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SOBRE OS LIMITES EPISTEMOLÓGICOS DA FÍSICA-MATEMÁTICA SEGUNDO O PENSAMENTO DE PIERRE DUHEM

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SOBRE OS LIMITES EPISTEMOLÓGICOS DA FÍSICA-MATEMÁTICA SEGUNDO O PENSAMENTO DE PIERRE DUHEM

Rogério Soares da Costa Prof. Dr. da PUC/RJ oleniski@outlook.com

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é apresentar sucintamente as ideias do físico francês Pierre Duhem sobre as relações entre física e metafísica na sua obra

La Théorie Physique com o fim de determinar o que o físico-matemático pode

afirmar sobre a natureza da realidade sem extrapolar os limites próprios de sua metodologia. Para Duhem, o físico só pode construir classificações matemáticas adequadas às leis experimentais e deve abster-se de tentar determinar a natureza do mundo físico.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência; Metafísica; Física

Segundo o físico, matemático, filósofo e historiador da ciência francês Pierre Duhem, as teorias físicas não são explicações do real, ou seja, elas não revelam a natureza última por trás das leis experimentais. Estas, por sua vez, não são mais do que o comportamento manifesto das magnitudes físicas. A Física, então, trata somente de descrever essas leis experimentais em uma estrutura rigidamente matemática, na qual as leis mais periféricas e particulares são deduzidas de um conjunto limitado de leis mais gerais.

Em sua obra seminal La Théorie Physique, Duhem mostra que a tentativa de fazer da teoria física uma explicação esbarra em duas perguntas cruciais. A primeira delas é a divisão entre aparência e realidade. Toda a filosofia, desde seus primórdios, discutiu o problema da aparência e da realidade. Por trás daquilo que percebemos usualmente há algo que constitui realmente aquilo que existe. Em outros termos, para alcançar a verdade dever-se-ia ultrapassar os dados imediatos da sensibilidade.

O importante, contudo, é notar que essa diferença (ou sua negação) é algo a ser determinado de forma anterior à pesquisa física. Esta somente lida com o que aparece empiricamente, com aquilo que é manifesto aos sentidos ou aos aparelhos de medição. Se há uma estrutura última do real distinta do que aparece aos

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sentidos, essa realidade está fora do alcance da física.

A segunda pergunta é, logicamente, acerca da natureza dessa realidade última. Novamente, a teoria física não tem nada a dizer sobre isso, pois, como foi visto acima, ela parte das aparências, do comportamento manifesto dos corpos. A natureza última das coisas é determinada não pelos meios empregados no método de observação da teoria física, mas pelas discussões e teses da metafísica. Se a Física quiser ser uma explicação do real, ela terá de submeter-se a uma metafísica. Seus princípios deverão ser os postulados fundamentais dessa metafísica e todas as leis particulares deverão ser rigidamente deduzidas deles.

Descartes, por exemplo, sumarizava no Discours de la Méthode sua posição sobre a construção de uma física dizendo que, em primeiro lugar, buscava em geral "os princípios, ou causas primeiras, de tudo aquilo que há, ou que pode haver, no mundo". Em segundo lugar, examinava quais eram "os primeiros e mais ordinários efeitos que se podiam deduzir dessas causas" (DESCARTES, 2000, p.100)1. E, por fim, na consideração dos efeitos mais particulares, a única dificuldade era saber de quais princípios gerais e simples se deveriam deduzi-los, pois, em geral, eles poderiam sê-lo de diversos deles.

A estrutura cartesiana dá o exemplo perfeito da fundamentação da Física na Metafísica. Esta determina as causas últimas do que existe, ou seja, distingue a aparência da realidade e dá a conhecer a natureza dessa realidade que reside além das aparências. Desses postulados fundamentais deduzem-se leis gerais que, por sua vez, servirão como base para a dedução das leis particulares, as leis experimentais do comportamento ordinário dos corpos.

Ocorre que se a Física estiver subordinada à Metafísica, então surgirão dois problemas. O primeiro deles é que o critério de avaliação de teorias não será só o sucesso preditivo e a adequação empírica, mas também, e precipuamente, a sua concordância com os postulados metafísicos de sua base teórica. Ora, o sucesso preditivo não pode ser suficiente para a determinação da verdade de uma teoria pelo simples fato lógico de que de premissas falsas podem ser deduzidas conclusões absolutamente verdadeiras. A mera adequação não será suficiente pelo mesmo motivo, isto é, o fato de que as equações concordam com o que se observa logicamente não garante a verdade da teoria.

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O único modo de garantir a verdade da teoria que explica um determinado conjunto de fenômenos físicos é mostrar que ela pode ser deduzida dos princípios fundamentais da metafísica geral esposada pelo cientista. Não é suficiente que a teoria física não esteja em contradição com tais princípios, mas que ela seja rigorosamente deduzida deles. Com isso, uma teoria física que descreve matematicamente um conjunto determinado de fenômenos de forma adequada e que permite predições acuradas pode ser rejeitada por não deduzir-se dos princípios metafísicos ou por contrariá-los frontalmente.

O segundo problema decorrente da subordinação da Física à Metafísica é a escolha entre as escolas metafísicas. Qual delas escolher? Nenhum dado empírico ou experimental pode ajudar aqui porque, afinal, a teoria física depende de antemão de uma metafísica. O único jeito é discutir e argumentar. Em outros termos, é necessário filosofar. Isso significa que a física deverá ser acompanhada sempre da discussão de seus pressupostos metafísicos mais gerais e que o mero sucesso preditivo ou tecnológico não representará vantagem nessa discussão racional.

Para o físico/filósofo cartesiano, por exemplo, as leis de Newton serão absurdas, pois fazem uso de forças atrativas e repulsivas, o que não se pode admitir dentro de uma teoria mecânica que deve fazer uso somente da extensão e de suas propriedades, como largura, comprimento, profundidade e movimento por choque ou tração. Para os atomistas, ambos, cartesianos e newtonianos, estão errados, uma vez que tudo o que há são átomos dotados de massa, figura e dureza movimentando-se no vácuo.

Atrelada à Metafísica, a Física deverá lidar com essas discussões e querelas. Duhem, contudo, não aceita essa subordinação e pretende mostrar que a Física pode ser uma ciência autônoma e o caminho para isso é limitar-se ao âmbito permitido por seus métodos próprios, isto é, ser uma classificação natural das leis experimentais regida pela mera adequação empírica e sem qualquer pretensão à explicação da natureza última dos fenômenos físicos. Através da limitação do escopo da física, Duhem pretendia separar claramente as esferas da ciência e da metafísica e salvaguardar a autonomia de ambas. Nenhuma teoria física poderia jamais refutar uma proposição ou tese metafísica e vice-versa.

Contudo, o cientista e filósofo francês chama atenção para um fato importante. Não obstante a barreira teórica que separa o físico do metafísico, há

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uma exigência ontológica na física que ultrapassa o seu domínio próprio, mas que lhe é essencial para sua constituição como campo de saber e de pesquisa. Nas palavras de Duhem:

O físico afirma que a ordem na qual ele arranja os símbolos matemáticos a fim de constituir uma teoria física é um reflexo cada vez mais claro de uma ordem ontológica de acordo com a qual as coisas inanimadas são classificadas. Qual a natureza dessa ordem que ele afirma? Através de qual tipo de afinidades as essências dos objetos sob observação se aproximam uma das outras? Estas são questões que não são permitidas a ele responder. Ao afirmar que a teoria física tende a uma classificação natural em conformidade com a ordem na qual as realidades do mundo físico estão arranjadas, ele já excedeu o limite do domínio no qual seus métodos podem ser legitimamente exercidos. Por fortes razões esse método não pode descobrir a natureza dessa ordem ou dizer o que ela é. Precisar a natureza dessa ordem de forma exata é definir uma cosmologia. Expô-la a nossos olhos é expor um sistema cosmológico. Em ambos os casos é realizar um trabalho que não pertence essencialmente ao físico, mas ao metafísico." (DUHEM, 2007, p.407)

Antes de comentar essa exigência, é mister esclarecer o sentido que Duhem atribui ali ao cosmólogo. Os termos cosmólogo e seu correlato cosmologia não são empregados por Duhem no sentido da moderna teoria cosmológica que, entre outras atribuições, estuda os fatos concernentes à formação e à origem do universo. O termo é empregado num sentido que se aproxima daquilo que Aristóteles e toda a tradição científica da antiguidade até os tempos modernos denominou de física, a saber, uma teoria geral dos seres móveis e contingentes, abarcando seus aspectos quantitativos e qualitativos.

A distinção se torna mais clara se atentarmos para um exemplo histórico: na antiguidade cabia ao físico ou cosmólogo a determinação da natureza última dos corpos celestes e ao astrônomo a determinação de seu comportamento observável através da aplicação de técnicas matemáticas. Duhem parece seguir as linhas gerais dessa distinção, aplicando-a agora ao contexto da ciência moderna. Esta faria o trabalho outrora reservado ao astrônomo, descrevendo matematicamente o comportamento observável de seus objetos e permanecendo no domínio restrito daquilo que é quantificável.

O cosmólogo mantém a sua função antiga - embora não mais com a designação geral de físico - de determinar a natureza real e subjacente daquilo que o astrônomo antigo ou o físico moderno estuda. Dado isso, Duhem, contudo, parece unir o cosmólogo e o metafísico, tradicionalmente separados por objetos diferentes de conhecimento.

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Ora, segundo a teoria aristotélica dos três graus abstrativos, no primeiro deles, o da física, abstrai-se a matéria particular da qual a coisa estudada é feita e considera-se somente sua natureza, forma ou Eidos. No segundo grau, abstrai-se toda e qualquer matéria possível e consideram-se somente seus aspectos quantitativos que não podem existir no real separada e independentemente, mas tão só como acidentes de uma substância concreta.

O terceiro grau é o da metafísica, no qual se abstraem todos os aspectos qualitativos e quantitativos e consideram-se somente as características essenciais do ser enquanto ser. Não está claro nas obras de Duhem se ele subscreve in

totum essa doutrina das abstrações, mas certamente ele reconhece (mesmo de

forma não explícita) a diferença que existe em considerar os objetos segundo suas propriedades matemáticas enquanto pertencendo a objetos materiais e não somente enquanto abstrações imateriais, distinção que já se encontra em Aristóteles (Física II 193b [25] - 194b[10]), na sua descrição das ciências "matemáticas mais físicas": a astronomia, a ótica e a harmonia (ARISTÓTELES, 1952, p. 270).

O físico moderno, então, encararia os objetos segundo suas propriedades matemáticas, ou seja, considera-os naquilo que neles é quantificável. Não o faz, entretanto, como o matemático que abstrai esses aspectos das coisas e estuda-os como se festuda-ossem entes separadestuda-os e independentes destuda-os objetestuda-os concretestuda-os. Ao contrário, o físico estuda os aspectos quantitativos das coisas como pertencendo inseparavelmente a elas. Por isso ele constrói equações que descrevem e refletem o comportamento manifesto das magnitudes físicas. Isto é, ele as encara a partir de suas propriedades que podem ser quantificadas.

Mas por esse mesmo método, ele se aparta de considerações sobre a natureza última desses mesmos objetos, limitando-se a coordenar logicamente as equações que descrevem aquilo que nos corpos físicos pode ser quantificado. Esse é seu limite. Para Duhem, o físico moderno deve permanecer dentro desse domínio específico. Ele não deve acalentar as pretensões do físico da antiguidade ou do cosmólogo, como Duhem o denomina. Questões de essência ou natureza última das coisas estão vetadas ao físico moderno. E isso pela limitação lógica intrínseca de seus métodos e de sua metodologia.

Retornando ao ponto onde paramos antes dessa digressão, Duhem admite que há uma pretensão do físico que escapa dessa barreira teórica estabelecida até

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aqui. Embora o físico não possa mais do que coordenar matematicamente o comportamento manifesto das magnitudes físicas sem tentar construir ou afirmar uma teoria sobre a natureza real das coisas, ele almeja que essa descrição tenha uma ligação real com aquilo que se dá no mundo.

Em outros termos, ele pretende que essa coordenação lógica das equações reflita cada vez melhor uma estrutura subjacente ao real enquanto tal. Implicitamente o físico afirma que suas teorias se aproximam sempre mais de uma classificação que refletiria a estrutura ontológica do mundo. Para Duhem, esse postulado é de ordem cosmológica, mas é indispensável ao exercício da ciência empírica. Ao físico é permitido seu uso desde que ele se mantenha dentro dos limites de seu domínio teórico. Em termos de cosmologia, essa postulação é o máximo que o físico pode se aproximar de uma afirmação sobre a natureza do real.

Sem esse pressuposto, o cientista se perderia num mar de equações que descrevem mais ou menos adequadamente como se comportam os corpos, mas com alcance limitado e sem ligação umas com as outras. Ele tem que admitir a

priori que essas equações podem ser coordenadas logicamente em um conjunto

coeso e coerente que, mais e mais, reflete uma ordem que subjaz ao próprio real. Duhem não admite que o ideal do físico seja aquele de encontrar leis e equações de fenômenos isolados, sem qualquer conexão ou necessidade lógica entre elas. Diferente de Poincaré, Duhem exige uma coordenação lógica dessas leis e equações, ou seja, que elas sejam um conjunto dedutivo rigoroso e que esse rigor reflita uma ordem que se dá realmente no mundo.

Em outros termos, os aspectos quantitativos que a ciência moderna trata e estuda nas coisas do mundo físico apresentam uma coerência que pode ser explicitada por uma classificação natural das leis observáveis e fornecem um conhecimento real do que acontece no mundo, ao menos no que se limita ao quantificável. Essa pretensão que ultrapassa o que pode ser legitimamente observado pela física é, no entanto, aquilo que fundamenta mesmo a pretensão de conhecimento que anima essa ciência. Duhem aponta assim para o fato de que o fundamento epistemológico de uma ciência particular não pode ser dado por ela mesma, mas por uma esfera de conhecimento mais alta e mais ampla.

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REFERÊNCIAS

ARISTOTLE. Physics. Translated by R.P. Hardie and R.K. Gaye. In Britannica Great Books, vol.8. Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1952

BRENNER, A. Duhem, Science, Realité et Apparence. La relation entre philosophie

et histoire dans l’oeuvre de Pierre Duhem. Paris: Vrin, 1990

DESCARTES, René. Discours de la Méthode. Paris: Flammarion, 2000

DUHEM, Pierre. La Théorie Physique, son objet et sa structure. Paris: Vrin, 2007

JAKI, Stanley L. Scientist and Catholic: an essay on Pierre Duhem, Front Royal, VA: Christendom Press, 1991

LUGG, A. Pierre Duhem’s Conception of Natural Classification. In. Synthese, 83, 409-420, 1990

MARTIN, R.N.D. Pierre Duhem: Philosophy and History in the work of a believing

physicist. La Salle, IL: Open Court, 1991

POINCARÉ, Henri. Dernières Pensées. Paris: Flammarion, 1913

________. La Science et l'Hypothese. Paris: Flammarion, 1943

Referências

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