Duas Traduções de “Tobias Mindernickel”
Catia Pietro da Silva FFLCH/USP Tenho duas traduções de “Tobias Mindernickel” para o português: a de Marcelo Backes, presente em Escombros e Caprichos (L&PM, 2004), um livro organizado pelo tradutor e por Rolf G. Renner, que traz 54 contos de escritores de expressão alemã do século 20, entre os quais Günther Grass, Ernst Jandl, Arthur Schnitzler e Christa Wolf; e a tradução de Lya Luft, em Os Famintos e outras histórias (Editora Nova Fronteira, 2000), uma coleção de contos de Mann.
Uma grande diferença que notei nas duas traduções foi o estilo de cada tradutor. Tradução definitivamente não é um trabalho de simples conversão de palavras da língua de partida para a língua de chegada, mas uma série de escolhas estilísticas, vocabulares, organizacionais e até mesmo ortográficas. Desconsidero que as diferenças nas traduções de Backes e Luft decorram de uma adaptação ao público-alvo: quem compra um livro de contos de Thomas Mann é o mesmo que compra um livro de contos alemães do século 20.
Backes é um tradutor mais literal, Luft é uma tradutora mais interpretativa. Entretanto, essas características são revezadas: em alguns momentos, Backes opta por aportuguesar o texto, enquanto Luft mantém uma forma mais alemã. Na tradução de Backes, há um efeito de estranhamento (V-effekt) mais recorrente do que em Luft, fato que, como Gabriele Knaur já havia notado, é absolutamente aceitável em textos literários[1].
Uma semelhança nas traduções é que ambos optaram por acentuar o nome do cachorro: no original, Esau; nas versões para o português, Esaú. Assim, o nome do animal é aportuguesado. Backes e Luft mantêm também a divisão do conto em três partes, assinaladas numericamente, como feita por Mann.
O discurso direto em alemão é marcado por aspas e permanece no meio do texto, i.e., não é feito outro parágrafo para marcar a fala dos personagens. Os dois tradutores optam, porém, por sinalizar o discurso direto na maneira portuguesa, fazendo uso de travessões. Luft, entretanto, na primeira fala de um personagem no conto, mantém a maneira alemã. Possivelmente a escolha da tradutora deve-se ao fato de que não se trata de um diálogo, mas de uma fala ilustrativa da atitude das crianças em relação a Mindernickel. Sobre essa fala ainda, ela está no 3º parágrafo do texto de partida e é a seguinte: “Ho, ho, Tobias!”. Ela marca a gozação das crianças da rua pela qual Mindernickel passa sempre ao sair de casa. Backes traduz a gozação como “– Rá, rá, rá, Tobias!”, com que inicia o 4º parágrafo, e Luft, como “Há, há, há, Tobias!”, mantendo-a no 3º parágrafo. Ambos passaram a onomatopéia da risada para a forma portuguesa, diferenciando-a pela ortografia. Luft a escreve com H, uma maneira estrangeira (mas acentua), e Backes, com R.
A seguir, comento brevemente algumas traduções de passagens do primeiro parágrafo de “Tobias Mindernickel”.
TEXTO DE PARTIDA VS. TRADUÇÕES
Texto de partida alemão de Thomas Mann
Tradução de Marcelo Backes
Tradução de Lya Luft
Eine der Straßen, die von der Quaigasse aus ziemlich steil zur mittleren Stadt emporführen, heißt der Graue Weg. Etwa in der Mitte dieser Straße und rechter Hand, wenn man vom Flusse kommt, steht das Haus No. 47, ein schmales, trübfarbiges Gebäude, das sich durch nichts von seinen Nachbarn unterscheidet. (...)
Geht man, mit dem
Durchblick auf einen Hofraum, indem sich Katzen umhertreiben, über den Flur, so führt eine enge und ausgetretene Holztreppe, auf
der es unaussprechlich
dumpfig und ärmlich riecht, in die Etagen hinauf. (...) rechts wohnt ein Mann Namens Mindernickel, der obendrein Tobias heißt. Von diesem Manne giebt es eine Geschichte, die erzählt werden soll, weil sie rätselhaft
und über alle Begriffe
schändlich ist. (Mann, 2004, p. 181)
Uma das ruas íngremes que descem a ruela do Cais em direção ao centro da cidade chama-se Caminho Cinzento. Mais ou menos no meio dessa rua, do lado direito de quem vem do rio, está a casa número 47, um prédio estreito e sombrio, que não se distingue em nada de seus vizinhos. (...)
Cruzando o pátio, onde
podem ser vistos gatos
brincando, chega-se pelo
corredor, a uma escada de madeira estreita e gasta, onde o
cheiro é indizivelmente
mofado e pobre, que leva aos andares superiores. (...) à direita mora um homem cujo sobrenome é Mindernickel, e que ainda por cima se chama Tobias. Há uma história acerca desse homem que deve ser contada, pois é enigmática e infame, além de qualquer noção especulativa. (Mann, 2004, p. 44)
Uma das ruas que sobem, íngremes, do cais até o centro da cidade, chama-se rua Cinzenta. Mais ou menos no meio dela, à direita, para quem vem do rio, fica a casa número 47, uma construção estreita, escura, que nada se distingue das suas vizinhas. (...) Se
passarmos pelo corredor,
vendo de relance um pátio com gatos vadios, chegamos a uma estreita e gasta escada de madeira, onde paira um indescritível cheiro de mofo e
pobreza, e subimos aos
diversos andares. (...) à direita mora um homem chamado Mindernickel, cujo primeiro nome é Tobias. Sobre esse conta-se uma história que devo relatar, porque é misteriosa e incrivelmente torpe. (Mann, 2000, p.67)
Comentários
Faço agora alguns comentário das passagens assinaladas, com uma tentativa de traduzir as passagens do texto de partida literalmente, i.e., mantendo a acepção de dicionário[2]. Ressalto que possuo alemão intermediário, então a possibilidade de eu falar algum impropério é grande. Agradeço àqueles que perceberem e me avisarem sobre erros conceituais, de vocabulário ou de compreensão.
Graue Weg = “Caminho cinza/cinzento” Backes: Caminho Cinzento
Luft: rua Cinzenta
A tradução de Backes é feliz ao manter o sentido original do substantivo alemão Weg, pois o conto começa falando que é uma rua: “Eine der Straßen” (“Uma das ruas”), assim o substantivo “caminho” não provocaria indeterminação ou confusão sobre o espaço referido. Além disso, “caminho” possui uma gama de possibilidades interpretativas superior à “rua”. O adjetivo “cinzento” caracteriza esse “caminho”, no qual Tobias Mindernickel mora: um bairro pobre, triste, periférico. A escolha dos tradutores pelo (a) “cinzento (a)” no lugar de “cinza” qualifica o espaço não somente com a cor, que já remete a uma série de emoções, mas também com uma certa dissolução de cores, uma mistura de tons.
Geht man = “Vá-se”, “Vá” Backes: Cruzando o pátio
Luft: Se passarmos pelo corredor
As duas traduções me parecem complicadas. Parece-me que o sentido das traduções é diferente: Backes diz que é necessário cruzar o pátio para chegar à escada de madeira, cujo acesso é dado pelo o corredor; Luft não diz que se deve necessariamente passar pelo pátio para chegar à escada, apenas deve-se passar pelo corredor. Pelo o que entendo do texto alemão, o sentido mais próximo é o de Lya Luft: em nenhum momento ele diz que se tem que cruzar o pátio. Entretanto, a tradução dela é problemática ao utilizar o verbo na primeira pessoa do plural. O narrador de “Tobias Mindernickel” só utiliza a primeira pessoa (do singular) no final do conto, fato que promove certa surpresa e intimidade do narrador com leitor até então inexistente. Ao usar a primeira pessoa nesse trecho, acaba-se com a mudança de “tom” presente no final da narrativa. Outro problema é o que é avistado: em Backes são gatos, em Luft é o pátio. No texto de partida está: “mit dem Durchblick auf einen Hofraum, indem sich Katzen umhertreiben”. Entendo que o pátio (Hofraum) é avistado e nele estão os gatos (Katzen), que, conseqüentemente, também são vistos.
sich Katzen umhertreiben = “gatos vagueiam/perambulam/vagabundeiam” Backes: gatos brincando
Luft: gatos vadios
Os tradutores optaram por mudar a forma infinitiva: Backes usa o verbo no gerúndio e Luft transforma-o em adjetivo. Pela as traduções que encontrei de sich umhertreiben, a tradução de Luft está mais próxima do sentido original.
unaussprechlich dumpfig und ärmlich riecht = cheira indizivelmente mofado e pobre Backes: o cheiro é indizivelmente mofado e pobre
Ambas traduções são boas. Apenas ressalto que os dois tradutores optaram por tornar o verbo riechen (“cheirar”) em substantivo (“cheiro”). Backes mantém os adjetivos (“mofado”, “pobre”), enquanto Luft faz locuções adjetivas (“de mofo e pobreza”). Esse é um dos casos em que a tradução de Backes provoca certo efeito de estranhamento: o que é um cheiro pobre? Pode ser um cheiro que não se sente bem, um cheiro “fraco”, mas não é isso – trata-se do cheiro da pobreza, da falta de recursos, talvez até mesmo falta de saneamento etc. As possibilidades são muitas.
in die Etagen hinauf = nos andares superiores Backes: que leva aos andares superiores Luft: e subimos aos diversos andares
Mais uma vez Luft faz uso de uma forma verbal que não está no texto de Mann: não existe nenhuma conjugação na primeira pessoa do plural nesse trecho. A tradução de Backes corresponde ao significado do texto de partida, a de Luft usa o verbo “subir”, que necessariamente empreende a idéia de “superior / para cima”, mas qualifica os “andares” como “diversos”, o que não aparece no texto de Mann.
obendrein = “além disso”, “ademais”, “ também”, “ainda por cima” Backes: e que ainda por cima
Luft: cujo primeiro nome
Eis um caso complicado para tradução: nessa passagem, Mann faz uma piada com o nome do protagonista. Separando o sobrenome dele, temos “minder”, que significa “menos”, “de menor qualidade”, “pequeno”; e “Nickel”, que é uma moeda de pouco valor, de cinco centavos. Ou seja, uma moeda insignificante, que não vale coisa alguma. É um sobrenome estranho em alemão, não é como se fosse “Müller”, por exemplo. Tobias é um nome de origem hebraica e bíblica; na Internet encontrei seu significado como “Deus é bom”. Tobias é um nome próprio e pode ser também um sobrenome em alemão. Mann cria um personagem esquisito, um outsider já pelo nome. Um falante de alemão deve sentir certa estranheza ao se deparar com esse nome, sentimento que escapa ao falante de português. Assim, é compreensível que Luft tenha escolhido falar que o primeiro nome de Mindernickel é Tobias, apesar de isso não ser dito dessa forma. Backes mantém a piada de Mann, mas ela se perde em português, o que causa mais um efeito de estranhamento no leitor: “Como assim, ‘ainda por cima’? O que tem demais nisso?”. Vejo essa escolha como positiva, pois se o leitor estiver interessado, pode pesquisar e descobrir que o nome já carrega um pouco da dicotomia que o personagem depois vive com o cachorro; mas se a curiosidade do leitor não for despertada, não há prejuízo em seu entendimento.
die erzählt werden soll = “que deve ser contada” Backes: que deve ser contada
Luft: que devo relatar
Backes faz uma tradução justíssima, Luft utiliza novamente uma forma verbal que não está em Mann, a primeira pessoa do singular. O narrador, como já disse, só se manifesta em primeira pessoa no final do conto.
über alle Begriffe schändlich ist = “é infame/nefasto/torpe/vergonhoso/vil além de todas compreensões/idéias/entendimentos/concepções/noções”
Backes: infame, além de qualquer noção especulativa Luft: incrivelmente torpe
Backes deixa o substantivo plural “Begriffe” no singular (“noção”), complementando-o com um adjetivo que não existe em Mann (“especulativa”). Não considero isso problemático, pois essa frase é um adiantamento, uma prolepse. Assim, o narrador demonstra que seu interesse não é especular os possíveis motivos que levam Mindernickel a fazer o que faz, o que de fato mantém. Luft usa o advérbio “incrivelmente” para intensificar a torpeza, a infâmia de Mindernickel, e comete assim um erro muito grave, pois ela dá ao narrador exatamente aquilo que ele diz que não fará, que é julgar as ações do protagonista.
[1] Knaur, Gabriele. “Übersetzen literatischer Texte - 1. Aspekte der Sprach-, Literatur- und Übersetzungswissenschaft – 3.Übersetzen/Bearbeiten“. Grundkurs Übersetzungswissenschaf Französisch. Klett, 1998, p. 61.
[2] Dicionários consultados: Großwörterbuch Deutsch als Fremdsprache. Berlin und München: Langenscheidt KG, 2003 e English-German Dictionary (http://www.dict.cc/).
Edições dos contos de Mann:
MANN, Thomas. "Tobias Mindernickel". Frühe Erzählungen 1893-1912. Text kritisch durchgesehen und herausgegeben von Terence Reed u. Malte Herwig, Kommentar von Terence Reed u. Malte Herwig (Große kommentierte Frankfurter Ausgabe). Frankfurt am Main, S. Fischer Verlag, 2004.
MANN, Thomas. "Tobias Mindernickel". In: RENNER, Rolf G.; BACKES, Marcelo (Org.). Escombros e Caprichos: O melhor do conto alemão no século 20. BACKES, Marcelo (Trad.). Porto Alegre, L&PM, 2004.
MANN, Thomas. "Tobias Mindernickel". Os Famintos e outras histórias. LUFT, Lya (Trad.). Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000.
Link para a postagem desse texto no Stoa: http://stoa.usp.br/catiapietros/weblog/58676.html