• Nenhum resultado encontrado

Em setembro de 2015 o Hotel Marina Palace, um dos mais. caros e tradicionais da cidade, localizado na avenida Vieira Souto, na

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Em setembro de 2015 o Hotel Marina Palace, um dos mais. caros e tradicionais da cidade, localizado na avenida Vieira Souto, na"

Copied!
26
0
0

Texto

(1)

5

Leblon

Em setembro de 2015 o Hotel Marina Palace, um dos mais caros e tradicionais da cidade, localizado na avenida Vieira Souto, na Orla do Leblon, lançou o projeto “Marina Art Wall”: um painel de 75 metros de altura e 10 metros de largura (o equivalente aos 26 andares do prédio), a ser pintado pelo grafiteiro Toz, em uma das laterais do hotel. Intitulado como o mais alto painel de grafite do Brasil, teve início com a escolha do tema, via votação popular, por meio da rede social Facebook. “Alegria, alegria! Trago a cidade amada em três dias” foi o tema escolhido na votação que durou uma semana, entre os dias 5 e 11 de setembro.

Figura 09 – Votação virtual na rede social Facebook, para escolha do tema do

painel que viria a ser pintado pelo grafiteiro Toz (fonte www.facebook.com).

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(2)

A pintura, anunciada como Live Painting e programada para se iniciar no dia 12, foi adiada em dois dias em virtude das chuvas e do mau tempo na cidade. Com pouco mais de uma semana de trabalho, o painel foi inaugurado com uma festa no bar do hotel, no dia 25 de setembro, e ganhou grande destaque da mídia, que cobriu não só o seu lançamento, como também todo o processo de execução. No evento, para convidados, estavam à venda quadros e personagens criados pelo grafiteiro.

Figura 10 – Foto de divulgação do grafiteiro Toz e o painel pintado na lateral do Hotel Marina Palace, no Leblon, aclamado como o maior painel do Rio de Janeiro (fonte Jornal O Globo).

Reconhecido como um dos mais importantes grafiteiros cariocas, Tomaz Viana, o Toz, foi um dos responsáveis pela popularização dos grafites na Zona Sul do Rio no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Na época, o então estudante de design começou a grafitar por influência de grafiteiros da Zona Norte e de São Gonçalo, conhecidos na festa Zoeira Hip-Hop, na

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(3)

Lapa. Em conjunto com outros amigos, o morador da Zona Sul começou a pintar muros e paredes do Centro da cidade, próximos às lojas de tinta da avenida Presidente Vargas e, em seguida, os espaços da Zona Sul.

A gente pintava muito no Centro. Na verdade, o grafite começou pra gente no Centro da cidade porque na Presidente Vargas a gente chegava no sábado, as lojas de tintas eram na Presidente Vargas e na Uruguaiana, a gente comprava as tintas e pintava ali por volta, em paredes de estacionamentos, dentro dos próprios estacionamentos, a gente estacionava o carro, a gente via um muro, pedia o cara de lá pra pintar. Pintava pistas de skate, rampas de skate. A gente foi testando, botando as manguinhas de fora, foi fazendo aqui e ali, ia indo, indo, não chegamos de cara na Vieira Souto, chegamos nas adjacências, começamos pelo Centro da cidade (...). A gente pintava muito também no Corte de Cantagalo, no Jardim Botânico, na Hípica, no Jóquei, na Gávea (Toz Apud Silva, 2012, p. 131).

Da experiência surgiu o FleshBeck Crew, um grupo formado em conjunto com outros grafiteiros, também moradores da Zona Sul, e estudantes de design. Dos grafites nos muros e paredes da cidade, o grupo passou a executar trabalhos comerciais para grandes empresas, fazendo o “grafite no Rio de Janeiro ganhar o status de profissão, de ser uma coisa séria” (Toz Apud Silva, 2012, p. 132).

Além dos grafites nas ruas e daqueles comerciais, Toz, que se intitula artista plástico14, é representado pela Galeria Movimento, em Copacabana, que desde 2009 vende pinturas e gravuras de sua autoria, que chegam a custar R$ 70 mil, além de Toy Arts numerados de alguns de seus personagens, com valores em torno de R$ 400,00. Com sete exposições individuais e participação em muitas outras coletivas, Toz e seu trabalho são um exemplo claro

14 Entrevista ao autor, em 20 de outubro de 2014.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(4)

da cooptação que grafiteiros sofrem por parte do mercado, seja ele de arte, negócios ou comércio.

Figura 11 – Personagem Shimu, criado pelo grafiteiro Toz, transformado em Toyart pela Galeria Movimento (fonte www.toz.com.br).

De acordo com Franco (2009), a atitude de alguns grafiteiros em se definirem como artistas, em detrimento à identidade de grafiteiros, quando passam a estabelecer relações com instituições artísticas, está ligada ao fato de que o grafite não possui o mesmo status que a arte. Esse fato limitaria as oportunidades de inserção e de valorização de seus trabalhos.

Não assumem a luta do grafite como arte de mesmo status, apenas mudam os nomes que atribuem ao que realizam, pois fora desse universo sabem que o grafite sofre resistência. Jogam com a identidade também quando o assunto é pichação: se passaram por esta prática, ocultam esse passado para facilitar a aceitação (Franco, 2009, p. 139).

Essa atitude aproxima-se da observação de Bourdieu (2007) a respeito da formação e da dissolução dos grupos de vanguarda.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(5)

De acordo com o autor, enquanto os sujeitos das posições dominantes são muito homogêneos, os sujeitos das vanguardas acolhem, em sua fase inicial de acumulação de capital simbólico, artistas com pensamentos muito diferentes, seja por suas origens ou mesmo por disposições. No entanto, a forte coesão e a solidariedade afetiva inicial dão lugar a conflitos e crises internas a partir do momento em que há um reconhecimento externo, do qual os lucros simbólicos geralmente são direcionados para uma pequena parte.

De acordo com Wolff (1982), todas as atividades exercidas pelo ser humano estão circunscritas dentro das estruturas sociais e, impreterivelmente, são afetadas por elas. São essas mesmas estruturas sociais e também instituições que possibilitam a realização de todas as atividades, sejam elas ações de transgressão ou de concordância. Nesse sentido, toda e qualquer atitude nasce da complexa relação e da conjunção entre as estruturas sociais e as ações individuais, diretamente influenciadas por numerosas determinantes e condições estruturais. Para a autora, “a atividade prática e a criatividade estão em relação mútua de interdependência com as estruturas sociais” (Wolff, 1982, p.23).

Nos séculos XVII e XIX, artistas eram vistos como sujeitos dotados de um gênio artístico e, por isso, estavam isolados da sociedade e longe das categorias habituais dos sujeitos comuns (Wolff, 1982). Já nas décadas finais do século XX e início do século XXI, pode-se dizer que os grafiteiros eram os sujeitos marginais e excêntricos, não por serem “dotados de um gênio artístico”, mas, sobretudo, pela transgressão e rebeldia que representavam. A história se repete. Da mesma forma como os artistas foram cooptados e agregados à sociedade industrial e ao modo de

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(6)

produção capitalista para trabalharem nos mais diversos setores da produção e organização em fábricas e indústrias, os grafiteiros também foram integrados ao modo de produção pós-industrial. Fato que pode ser observado na fala dos próprios grafiteiros, que se definem como designers, artistas plásticos ou visuais.

Muitas vezes eu digo que sou designer, minha formação é design. Mas hoje em dia eu posso dizer que sou um artista visual, porque acho que artista plástico fica um pouco limitado e o artista visual trabalha com imagens, eu trabalho com imagens, seja pintando, seja fazendo design vetorial ou ilustração (BR, em entrevista ao autor, em 20 de outubro de 2014).

Ao abandonarem a transgressão de pintar muros e paredes sem autorização e realizarem trabalhos financiados por empresas e instituições com fins mercadológicos e marqueteiros, os grafiteiros cederam forças ao capital e foram transformados em sujeitos dóceis e, sobretudo, úteis à sociedade. Sujeitos não mais vistos como aqueles que sujam e emporcalham a cidade, mas aqueles que, ao contrário, utilizam-se de suas pinturas para colorir, alegrar e enfeitar essa cidade. O grafite assume então uma posição muito mais decorativa do que transgressora e questionadora.

A aceitação e valorização como arte pela sociedade e a utilização pelos mais diversos meios de comunicação contribuiram para que diversas instituições públicas e privadas de arte observassem a estética do Graffiti, propiciando o aparecimento de galerias especializadas e consequentemente de novos artistas, gerando assim uma nova possibilidade técnica e estética, para o fazer artístico dentro do mercado de arte (Boemer, 2013, p. 20).

O novo muro do Jockey e o próprio grafite do Hotel Marina Palace são exemplos claros dessa ressignificação: o grafite deixa de ser vandalismo e transforma-se em trabalho remunerado,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(7)

abandonando sua qualidade de ser livre, sob a luz do capitalismo. Nas palavras do próprio Toz:

Mas o sistema já ganhou, não tem mais o que brigar, tem que deixar rolar. Não existe mais isso. A mídia é o maior aliado e o maior... Tipo, pode ser um aliado fortíssimo como pode te destruir. Você tem que estar com ela, não tem jeito (Toz Apud Silva, 2012, p. 132).

A grafiteira Panmela Castro enriquece a discussão. Antagonicamente, ao mesmo tempo em que critica a cooptação do grafite pelo capitalismo e a sedução criada ao seu redor na atualidade, ela aponta novas possibilidades apresentadas pela prática aos grafiteiros que se inserirem no mercado:

Está tudo vendido já, eu espero pra ver o que vai acontecer. A gente não sabe o que vai acontecer com a cultura [do grafite], é uma cultura que está mudando de uma forma acelerada e que não tem como saber se vai ser positivo ou negativo, se vai mudar. Não dá pra dizer o que é daqui a 5 anos ou dois anos. É bom, porque uma pessoa como eu pode viver deste tipo de trabalho, coisa que alguns anos atrás era impensável. Mas ao mesmo tempo que se vive do trabalho, perde-se todo o encanto de ser algo espontâneo, de juventude mesmo. Uma pessoa se forma na Escola de Belas Artes, em design, na própria PUC, e ela quer fazer grafite porque vai ter visibilidade e não por conta da cultura, das coisas que eram essenciais para se tornar um grafiteiro, explorar a rua (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014). Em analogia ao materialismo histórico, pode-se dizer ainda que o grafite perdeu seu valor de uso e adquiriu valor de troca. Seu valor de uso seria a própria rebeldia ou transgressão do ato de grafitar, fosse em função de protestos contra hegemônicos, tomada de territórios, batalha entre gangues rivais ou mesmo o grafite de jovens e adolescentes que se utilizavam da prática como ferramenta de expressão. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(8)

Na rua geralmente a gente faz um trabalho em um dia, poucas horas, às vezes rápido e a gente faz só com spray (...). Então você tem uma gama de cores enorme, possibilidades enormes com o spray. Mas é aquilo, você faz de forma efêmera, o grafite é efêmero. Então não fica ali – eu pelo menos – não fico ali com preciosismo em certas coisas que na tela, por exemplo, pra mim é essencial. Porque primeiro as pessoas que vão passar, elas vão ter diferentes situações. Na rua a pessoa não tem tempo pra ver o grafite, de parar na frente e ficar olhando todos os detalhes... “Pô, ele botou isso, botou aquilo” (...). Então é um tipo de preciosismo que não vale a pena no grafite (Toz, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).

Ao sair das ruas e penetrar no espaço das galerias e dos trabalhos comerciais, esse mesmo grafite ganha valor de troca, transformando-se em serviço ou mesmo em produto. Consequentemente, a prática torna-se cada vez mais alienada na medida em que ganha valor de troca e distancia-se da transgressão. No entanto, não se trata apenas de trocas comerciais, mas simbólicas, posto que sua amplitude, ainda que baseada na primeira, parece ser maior. Ao se aproximar e ser incorporado por outros campos, como a arte, o design e o marketing, o grafite torna-se uma prática sujeita às leis de mercado, e o grafiteiro assume um papel diferente nesse contexto. De sujeito marginal e contestador para o status de artista, passando a integrar ramos da produção e da organização social capitalista. Alguns grafiteiros veem a utilização dessa nomenclatura com precaução, quando se referem ao status atingido pelos grafiteiros e à sedução causada pela prática nos dias de hoje, como ressalta Panmela Castro.

Hoje o grafiteiro pode ser um estudante da Escola de Belas Artes, por exemplo. Pega uma lata de spray, faz um grafite numa parede qualquer e pronto: “sou grafiteiro”. Antes não, para você ser considerado grafiteiro tinha que passar por uma série de

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(9)

experiências adquiridas através do convívio com a rua. Era uma cultura, toda uma cultura, um estilo de vida (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014).

Com a popularização do grafite, não só nas ruas, mas também no mercado, o grafiteiro BR observa com cautela uma mudança de mentalidade no cenário carioca, em relação à prática e à atração causada em novos grafiteiros.

O cenário no Rio é meio preocupante, porque muita gente pinta na rua e muita gente está preocupada em expor em galeria e fazer trabalho comercial. Isso pode ser um pouco culpa nossa, mas a gente nunca deixou de pintar na rua. Hoje em dia as pessoas fazem três grafites na rua, postam no Instagram e já estão falando que pintam tela e falando que estão fazendo trabalho comercial etc. Esquecem um pouco da essência do que é o grafite de verdade (...). Neguinho está mais preocupado em ganhar seguidor [em redes sociais], em ganhar “like” no Instagram do que pintar na rua e ter um bom trabalho, então é complicado (BR, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).

Saem de cena o efêmero e o espontâneo e, em seu lugar, surge algo pensado e executado com maior preciosismo e, principalmente, surge um cuidado com o acabamento final, a fim de se atingir um outro público. Dessa maneira, o grafite é diretamente afetado quando cooptado pelo capitalismo.

Já numa tela não! A pessoa vai entrar numa galeria ou em uma exposição e ter todo o tempo do mundo que ela quiser pra sentar ali na frente da tua tela, olhar todos os detalhes, olhar de perto, de longe... Enfim, ela tem um tempo de apreciação e de entendimento da obra completamente diferente do que ele tem na rua. Eu demorei pra entender isso, quando eu comecei a fazer coisas na galeria eu trazia um pouco muito (sic) da rua e como se eu colocasse dentro de uma gaiola a rua. Hoje em dia eu já penso nessa extensão do trabalho, de você se aproximar mais, dar um zoom no seu trabalho que a rua não te permite, porque a rua ela é rápida, ela é ligeira, tem tempo, tem prazo, você não pode ficar dando mole com celular, nem ficar olhando. Ela tem um ritmo e não é você que determina, é o próprio dia a dia daquele grafite. E na

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(10)

galeria não, tem um ambiente condicionado pra receber uma obra de arte, pra receber aquele público que está ali para apreciar. Então pra mim, isso faz toda a diferença (Toz, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).

A fala de Toz, bem como suas telas, seguem claramente a linha de pensamento de seu marchand, Ricardo Kimaid, dono da Galeria Movimento. Segundo ele, os grafiteiros tornam-se artistas plásticos a partir do momento em que entram na galeria, lugar onde são produzidas unicamente obras de arte, que, para serem criadas precisam ser pensadas com tempo e dedicação.

Na rua eles fazem grafite, ilegalmente, fazem na pressa. Mesmo pensamento que um pichador, marcar território, deixar sua marca... Quando passa para uma tela é um outro conceito, eles vão para um ateliê, pesquisam, trabalham as cores, as telas, a calma é importantíssima, como um artista plástico. Claro que muitos usam também o spray como ferramenta, mas o processo é igual ao de um artista plástico. Existem ótimos grafiteiros, muito bons mesmo, mas quando tentam ir para a tela, nossa, perdem muito. Essa é a dificuldade que muitos grafiteiros não conseguem entender, pintar uma tela não é tão simples, tem muita coisa envolvida por trás (Ricardo Kimaid, em entrevista ao autor em 20 de janeiro de 2016).

Um conceito também compartilhado por outros grafiteiros, como Panmela Castro e BR, que identificam uma diferença entre a rua e a galeria.

O grafite na galeria, a orientação que a gente sempre teve [dos marchands], é falar que, na verdade, é um trabalho de arte que vem da transferência do artista na rua (...). Eu pessoalmente levo para os espaços fechados um outro trabalho meu, que não necessariamente eu considero grafite, são desdobramentos, da mesma essência, das minhas vivências (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014).

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(11)

Na rua você tem liberdade total, você não está preocupado em vender. Quando você bota um trabalho na galeria sua expectativa é vender. Ele está dentro de uma galeria, que sua função é vender arte. Então você tem uma preocupação estética um pouco maior, preocupação até na mistura de materiais. Você na vai utilizar só spray, você vai utilizar técnica uma mista, vai utilizar acrílica, spray óleo, você está livre. E na rua você está ali só usando spray, fazendo o que você quer, sem direcionamento, sem ter que querer “agradar” ninguém (BR, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).

A concordância de pensamento entre o marchand e o grafiteiro traz à tona aquilo que Wolff (1982) chama de produção coletiva da arte. Para a autora, o primeiro aspecto a ser observado diz respeito às questões da produção cultural, que funcionam como uma precondição à sua realização. Tal como as determinações estéticas às quais Toz se refere ao mencionar o cuidado com o acabamento, com os detalhes e mesmo com o local no qual a tela será exposta e com o público que irá apreciar a criação.

O efeito dos processos e instituições examinados sobre a produção artística pode ser direto ou indireto. Ou seja, em certos casos os artistas podem ajustar seu trabalho, e o produto acabado pode ser afetado em consequência de certos fatores econômicos ou de outra ordem (...). Quando influências sociais são indiretas, a própria obra pode não ser afetada, mas as condições que cercam sua produção, distribuição e recepção sofrerão, ainda assim, influências (Wolff, 1982, p. 47).

O papel do marchand pode até não interferir diretamente nas telas pintadas por Toz ou outros grafiteiros, mas determina as obras a serem expostas e vendidas. Há também a importância do papel dos críticos, que podem influenciar a recepção e o sucesso, por exemplo, de uma exposição, bem como das vendas.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(12)

Sempre conversamos, oriento, sugiro, mas o verdadeiro artista usa sua criatividade. Volto a dizer, quando vai para a galeria, deixa de ser um grafiteiro, grafite é lá fora, na ilegalidade. Antes de vir para a galeria, sempre acompanho o processo no ateliê, mas escolho o que irá para a galeria (Ricardo Kimaid, em entrevista ao autor em 20 de janeiro de 2016).

Marchands e críticos funcionam como mediadores, sujeitos que influenciam o resultado final do trabalho do grafiteiro, bem como a sua recepção. Seu poder pode determinar estilos, facilitar a receptividade por parte do público consumidor e definir o valor material e simbólico dos itens comercializados. Um valor que provém do relacionamento existente entre a galeria e seus interlocutores.

Quando fazemos uma exposição individual, contratamos assessoria de imprensa, curadores (muitos são críticos de arte), fazemos convites impressos, e uma mala direta direcionada para o mercado de arte, tanto Brasil quanto exterior (Ricardo Kimaid, em entrevista ao autor em 20 de janeiro de 2016).

Cada vez mais, no Rio de Janeiro, galerias e marchands investem em trabalhos de grafiteiros como um poderoso nicho no mercado de arte. Intitulados “novos marchands” (Sterman, 2011, s/p), Jaime Vilaseca e André Bretas (também criador do Instituto RUA), ao lado do já citado Ricardo Kimaid, são exemplos de galeristas que buscam em meio aos grafiteiros novos negócios.

Eles caminham pela cidade, sempre atentos aos muros desenhados, em busca de um bom negócio. Com faro apurado, tentam pinçar talentos na democrática arte de rua, em que uma grande quantidade de tapeações convive com traços de qualidade. Uma nova safra de marchands - ou art dealers, como gostam de ser chamados - desponta no Rio. Em comum, além da idade, em torno dos 30 anos, a decisão de investir em galerias próprias para dar

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(13)

visibilidade a seu portfólio de apostas, formado quase 100% por grafiteiros (Sterman, 2011, s/p).

Esses marchands são uma espécie de banqueiros simbólicos (Bourdieu, 2007), que trabalham em colaboração com a mídia e os críticos, de modo a interferirem na divulgação das obras e também na legitimação dos grafiteiros no mercado de arte. São agentes que atuam em parceria com outros colaboradores, como o sistema de ensino e a imprensa, de forma a preservar a crença na criatividade do artista grafiteiro. Nesse contexto, o poder do marchand emana do próprio campo de produção da arte, que pode ser entendido como um sistema de relacionamento entre agente e instituições e também o espaço de luta pela posse do poder de consagração, no qual se concebem os valores das obras e a crença nesse valor (Bourdieu, 2007, p.25).

A atuação do jornalista André Bretas é um exemplo desse sistema. Em 2005, ele decidiu trabalhar com grafite e arte urbana no Rio de Janeiro, após visitas a diversas galerias de arte de Chelsea, em Nova Iorque. No entanto, percebeu que não havia um mercado preparado para tal e que era preciso fomentá-lo. Os grafiteiros cariocas trabalhavam, na maioria das vezes, separados, e seus trabalhos raramente eram expostos em galerias. Inspirado pelo projeto Wynwood Arts District, em Miami, onde um bairro degradado foi revitalizado por meio do grafite, Bretas decidiu percorrer um caminho semelhante no Brasil. Foi ele o responsável pela produção, em 2010, do primeiro painel em grande escala (300 m2) no Rio de Janeiro, intitulado “Bambas da Lapa”, no bairro de mesmo nome, reunindo 15 grafiteiros e conquistando autorização e apoio da prefeitura da cidade e patrocínio para a pintura. Entre os grafiteiros participantes estavam Acme, Afa, Airá, Akuma, BR,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(14)

Marcelo Eco, Marcelo Ment e Toz. Na placa comemorativa à inauguração, além do logotipo da prefeitura, dos nomes dos artistas e dos patrocinadores (Cerveja Antártica, Polo Rio Antigo e Cimento Tupi), pode-se ler: “Este painel faz parte do Projeto RUA e foi confeccionado através da união de esforços públicos e privados, num movimento para revitalização da Lapa”.

Figura 12 – Painel de grafite no bairro da Lapa, projeto organizado pelo jornalista e marchand André Bretas, criador do Instituto Rua (fonte www.institutorua.com.br).

A própria prefeitura da cidade inaugurou, em 2015, a primeira galeria municipal de arte urbana. Localizado em um casarão do século XIX, no bairro de Botafogo, o GaleRio, ligado ao EixoRio, é um espaço que tem como proposta “salas exclusivas para grafiteiros, artistas de rua e empreendedores sociais traçarem as estratégias de expansão da arte desenvolvida nas ruas da cidade”15.

15 Disponível em <www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?id=5415113> acesso em 10 de janeiro de 2016. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(15)

Nesse sistema, o estabelecimento de valor de uma obra de arte se localiza em um regime específico, interno ao campo artístico, no qual o preço final é resultado de uma complexa articulação entre seus valores estético, simbólico, social, econômico e histórico.

O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche, ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor e conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra. (Bourdieu, 1996, p. 259).

Utilizando-se dos conceitos de Bourdieu (2007), pode-se dizer que no momento em que se constitui um mercado do grafite, os grafiteiros têm a possibilidade de afirmar a irredutibilidade da prática ao estatuto de mercadoria, como também sua singularidade e condição artística. Esse processo faz com que o grafite torne-se uma outra coisa que não ele mesmo, em muitos casos, uma mera mercadoria. Sua constituição em produto e o surgimento de um grupo de apoiadores e produtores de grafites como bens simbólicos, voltados a esse mercado, levam a uma ruptura dos vínculos dos grafiteiros com a marginalidade e, assim, a uma submissão das leis mercadológicas dos bens simbólicos.

Admiradores da arte urbana e bem informados a respeito da intensa movimentação do setor, os novos marchands do Rio perceberam a oportunidade de juntar as duas pontas: ganhar dinheiro e de forma prazerosa (...). O dia a dia deles resume-se a

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(16)

descobrir, difundir e viabilizar os novos talentos egressos dos espaços públicos (Sterman, 2011, s/p).

É o que Deleuze (1997a) chama de transcodificação, na qual a maneira com que um meio serve de base para outro meio, ou mesmo o inverso, como um meio se constitui sobre o outro, dissolve-se ou organiza-se no outro. Ao deixar a marginalidade e assumir novas formas, ocupar espaços autorizados, ordenados e preestabelecidos, nesse processo de transcodificação, o grafite cria outras interferências, superposições e articulações.

O grafite parece penetrar no campo da produção de bens simbólicos pela vertente da indústria cultural16 (Bourdieu, 2007), um campo subordinado a demandas externas, àqueles que possuem instrumentos de produção e transmissão. No qual, de forma a satisfazer os imperativos da concorrência pela conquista de mercado, a estrutura de seus trabalhos é produto das condições econômicas e sociais de sua produção. De acordo com o autor, os produtos da indústria cultural são destinados, na maioria das vezes, a um público também médio, sendo uma de suas principais características, e em primeiro lugar, a procura pela rentabilidade dos investimentos para um público cada vez mais amplo. Em segundo lugar, o fatos de eles serem consequência de acordos entre os diferentes agentes envolvidos no campo de produção. Um tipo de arte que se caracteriza pelo culto da forma pela forma, “que constitui uma acentuação sem precedentes do aspecto mais irredutível da atividade profissional” (Bourdieu, 2007, p.141).

16 A outra vertente do campo de produção de bens simbólicos é o chamado

“campo de produção erudita”, que, de acordo com o autor, é acessível a um público reduzido e sua recepção está subordinada ao nível de instrução dos receptores, que precisam ter manejo prático e teórico de um código refinado (Bourdieu, 2007). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(17)

A oposição que se estabelece entre a arte e a arte média que se retraduz, no plano ideológico, na oposição entre o idealismo do devotamento à arte e o cinismo da submissão ao mercado, não deve dissimular o fato de que a vontade de opor uma legitimidade propriamente cultural aos direitos do poder e do dinheiro (expressa no culto da arte pela arte) também constitui uma maneira de reconhecer que negócio é negócio (Bourdieu, 2007, p.142).

Nesse sentido, o acesso às obras pelo público é feito por intermédio das galerias, que funcionam como uma espécie de distribuidor, como define Canclini (1986), ou ainda, um intermediário cultural, na definição de Bourdieu (2007). O papel dessas instituições torna-se, no contexto contemporâneo, tão importante quanto a própria obra (Vaz, 2005). A obra de arte deve ser compreendida como produção e não apenas como pura significação: ela consiste na apropriação e na transformação de uma realidade material e cultural em algo com a função de satisfazer uma necessidade social, de acordo com as ordens vigentes em cada sociedade. Uma concepção que possibilita o entendimento das obras como trabalhos, bem como compreendê-las por meio das condições sociais, das técnicas e dos processos que permitem as transformações dessas condições.

A história moderna das relações entre produção artística e condicionamentos sociais é bastante irônica para os artistas. Depois de se tornarem independentes das diretivas da igreja e das cortes, ao quererem devolver a autonomia do seu trabalho, os artistas levaram a experimentação a formas cada vez mais herméticas e acentuaram o elitismo da arte. Suas rebeliões contra a sociedade, ao não se inserirem nos canais de comunicação populares, desvaneceram-se numa forma de dependência: a que lhe impôs o mercado (Canclini, 1986, p. 201).

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(18)

A entrada de grafiteiros brasileiros no mercado de arte nacional, na primeira década dos anos 2000, coincide com a efervescência vivida pelo setor, em decorrência das circunstâncias que a economia nacional propiciou17.

Aos poucos, os grafites adquirem status de obras de arte e atingem cotações inimagináveis até pouco tempo atrás (...).O fenômeno não é aleatório. Ele acompanha a valorização da arte contemporânea no Brasil e no mundo, resultado da pujança econômica global e do rejuvenescimento do público consumidor de arte. Nos últimos dez anos, um trabalho de Vik Muniz, por exemplo, chegou a ter seu preço inflado em mais de 2.000%, um investimento formidável, três vezes maior que a remuneração média da bolsa de valores no mesmo período. Com relação específica ao grafite, as paredes das grandes metrópoles servem de plataforma para revelar criadores que ganham reconhecimento e cotação galopantes (Sterman, 2011, s/p).

Nesse cenário, a arte contemporânea passou a atrair cada vez mais compradores, entre tradicionais e jovens colecionadores. De acordo com Marti18 (2013), as galerias de arte chegam a arrecadar até R$ 250 milhões ao ano e o valor das obras subiu em média 15%. Segundo Maciel (2013), o período compreendido entre os anos 2000 e 2012 foi favorável para as artes plásticas no Brasil. Um dos termômetros do crescimento foi o surgimento e o aumento das feiras de arte no país, como a SP Arte e ArtRio, a partir de 2015: “acho que houve um incremento no Brasil, as pessoas

17 Entre o final da década de 1970 e início de 1980, surgiram os primeiros

grafites icônicos, de autoria de Alex Vallauri, Carlos Matuck e Waldemar Zaidler, que são considerados por alguns autores (Gitahy, 2012; Szacher, 2009) pioneiros da prática no Brasil. No entanto, tratava-se, na verdade, de jovens artistas plásticos, todos com formação universitária, que encabeçaram um processo de espalhar seus desenhos e ilustrações pela metrópole, em um caminho inverso ao dos grafiteiros que começaram nas ruas e foram parar nas galerias. 18Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/07/1315439-estudo-atesta-pico-de-euforia-no-mercado-brasileiro-de-arte.shtml> acesso em 20 de dezembro de 2015. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(19)

começaram a olhar mais para a arte, e as feiras possibilitaram que mais pessoas conhecessem”(Filkenstein Apud Maciel, 2013, s/p).

A SP Arte teve um papel pioneiro e nosso trabalho de expandir o mercado de arte tem sido tão forte e consistente que permitiu o aparecimento de outras feiras de arte pelo país. Por outro lado, a SP Arte contribui para a inserção de novos artistas na medida em que desperta o interesse de novos colecionadores. Temos que criar condições de escoamento da produção jovem contemporânea em nosso país e uma das formas de fazer isso é estimulando o colecionismo, tanto privado como público (Feitosa Apud Maciel, 2013, s/p).

Bem como no mercado e na produção de arte, são as instituições e as escolas que determinam “quem se torna artista, como se torna artista, como é capaz de praticar sua arte, e como pode fazer com que a obra seja reproduzida, executada e colocada ao alcance do público” (Wolff, 1982, p. 52). Ou seja, há uma série de questões, acontecimentos e situações sociais que fazem com que os sujeitos adquiram suas identidades artísticas. De acordo com a autora, o modo como os artistas escolhem suas carreiras, assim como os valores e os costumes adquiridos com suas famílias ou classe social, e que levam consigo, interferem diretamente sobre o tipo de trabalho que executam. Da mesma maneira, as instituições nas quais são formados têm um papel fundamental de influenciá-los e direcioná-los.

A gente sempre teve essa cara que a gente tem de playboy. Nós somos da classe média carioca, a gente foi bem recebido por eles. Acho que se um moleque da periferia, do morro, tenta fazer o que a gente fez, talvez ele tivesse muito mais problemas, problemas mesmo. Assim, a gente nunca foi preso por aqui, a gente passeou nos carros de polícia, nunca fomos agredidos por policiais, nem por pessoas (...). A gente viveu uma cultura que vem do gueto, mas já com uma pegada diferenciada, de quem estudou na faculdade, de quem morou fora. A gente começou já cheio de maldades no trabalho, a gente sabia de cores, a gente já entendia de coisas.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(20)

Como um moleque de morro que começa a fazer grafite e não tem essa informação que a gente tinha. Então a gente foi para o muro com um nível de pintura mais alto, sofisticado... (Toz Apud Silva, 2012, p. 132).

Grafiteiros como Toz, BR e Panmela Castro, para citar alguns, recebem frequentemente encomendas de empresas, agências de publicidade e mesmo de órgãos do governo para a criação de trabalhos específicos. Interessante notar que o processo de realização de um grafite sob encomenda, muitas vezes, segue uma metodologia bastante similar, ou até mesmo inspirada, nos trabalhos de design, como observam alguns grafiteiros.

É simples mesmo, regra de mercado mesmo: encomendam, dão o briefing, desenvolvo e no final o cliente fica feliz, pelo menos na maioria das vezes (...). A gente tem dois tipos de clientes: um que é o cliente que o único objetivo do grafite é que seja a promoção da marca dele ou um briefing do interesse dele. E tem o cliente que gosta da minha pesquisa, do trabalho que eu desenvolvo. Então ele só quer que eu pegue essa pesquisa e autorize ele a utilizar com a marca dele (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014).

Esses patrocinadores podem até não influenciar o resultado final das obras, no entanto, os financiamentos têm uma relação direta com o fato de alguns grafiteiros alcançarem determinado sucesso em detrimento de outros, que não conseguem destaque. O caso específico do Hotel Marina Palace é um bom exemplo: não foi escolhido um grafiteiro novo ou desconhecido, mas um grafiteiro consagrado, admirado e com uma extensa carreira. Wolff (1982) lembra que a partir do século XX, quando expressões artísticas não têm mais patrocínios institucionalizados, tal qual nos períodos medievais e clássico, torna-se imprescindível conhecer e entender a relação existente entre cultura e economia, bem como a vulnerabilidade da primeira em relação à segunda. Nesse contexto, o

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(21)

grafite deve ser entendido como uma prática inserida tanto no campo material, quanto no campo social.

Assim como as obras de arte, o grafite contemporâneo, enquanto prática criativa, não pode ser compreendido como uma atividade circunscrita e autossuficiente. Ele é o resultado de “práticas históricas específicas de grupos sociais identificáveis atuando em determinadas condições” (Wolff, 1982, p.62). Dessa maneira, o grafite carrega consigo valores, conceitos e qualidades dos mais diversos grupos e de seus representantes, no caso, os grafiteiros. Como afirma Toz, a respeito do intercâmbio existente, no início dos anos 2000, entre os jovens de classe média da Zona Sul e os grafiteiros da Zona Norte do Rio de Janeiro: “o que fez o grafite ficar tão popular no Rio de Janeiro, uma das características principais, com certeza, foi a gente representar um pouco de uma classe e de outra” (Toz Apud Silva, 2012, p. 132).

Essa fala remete ao processo inicial de aceitação do grafite no Rio de Janeiro, no começo dos anos 2000, quando ele e outros grafiteiros de classe média e moradores da Zona Sul começaram a pintar os muros da região.

No início dos anos 2000, jovens universitários de classe média da Zona Sul começaram a pintar os muros da cidade com técnicas elaboradas e desenhos sofisticados, que chamaram atenção tanto da população quanto da mídia: eram imagens extremantes, coloridas e de conteúdos pouco contestatórios. Aos poucos, os grafiteiros foram cativando os moradores da cidade. Pediam permissão para pintar os muros das casas, mostravam os cadernos com os croquis para que as pessoas – ou a polícia – entendessem o que ia ser desenhado na parede (Silva, 2012, p. 33).

Normalmente, a ideologia de uma sociedade se constitui a partir de suas bases material e econômica. Uma ideologia dominante, imposta por classes dominantes, e que mantém uma

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(22)

posição privilegiada de poder em relação a essas bases. Tais classes ou grupos influentes controlam os meios de produção mental e dominam ideologicamente a sociedade (Wolff, 1982). A partir do momento em que as classes alta e média e também a mídia aceitaram e adotaram o grafite, ele passou a ser visto como um elemento positivo na paisagem urbana da cidade.

O nível da estética interpõe suas próprias mediações, portanto, entre a ideologia e sua expressão cultural (num quadro, num romance, numa peça). Isso não é negar (...) que o artista é, de certo modo, o agente da ideologia, através do qual opiniões e convicções de um grupo encontram expressão. É insistir, porém, em que isso não ocorre de maneira simples, numa transposição das ideias políticas, sociais e outras num veículo estético. As condições materiais concretas da produção artística, tecnológicas e institucionais mediam essa expressão e determinam sua forma específica no produto cultural (Wolff, 1982, p.74).

Ao ser cooptado para a realização de trabalhos comerciais, o grafiteiro torna-se um agente da ideologia das classes dominantes. No caso específico do grafite do Hotel Marina Palace, todos os elementos citados pela autora estão presentes: o valor investido tanto na remuneração do grafiteiro como no material gasto (tintas spray), o apoio de uma empresa de engenharia nos andaimes e elevadores necessários à execução da obra e o próprio uso do painel como ferramenta de marketing influenciaram de maneira decisiva sobre o produto final.

Mesmo estabelecendo seus próprios critérios para aceitação ou negação de propostas comerciais, a grafiteira Panmela Castro assume adequar seu trabalho a situações específicas e fala sobre a existência de uma agência da qual faz parte e para a qual trabalha, em conjunto com outros grafiteiros.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(23)

Tenho uma agência, então tem outros artistas que eu acabo trabalhando também. Por exemplo, “eu quero um porquinho com uns peixes”, aí eu não faço determinado trabalho. Agora se eu posso encaixar meu trabalho naquele briefing, aí eu faço, mesmo que eu tenha que fazer uma pequena diferença. Por exemplo, na época da Copa eu fiz um trabalho pra Nike, pra Casa Fenomenal, eles pediram uma tela que fosse inspirada na camisa da seleção brasileira. A princípio não teria nada com o meu trabalho, a pesquisa que eu desenvolvo, mas depois eu consegui fazer umas ligações com as composições, com as cores, que eu consegui desenvolver esse trabalho para eles, então acabei aceitando (...) Eu consigo me adaptar, porque a gente precisa, né? Todo mundo tem que pagar as contas, só quem tá na rua não vai pagar as contas. Então, de certa forma a gente tem que se adaptar ao mercado (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014).

Figura 13 – Casa Fenomenal, ação de marketing da Nike durante a copa do mundo de 2014, que envolveu a participação de diversos grafiteiros na ambientação (fonte www.nike.com.br).

É notório que ao associarem sua imagem ao grafite, essas empresas buscam a possibilidade de serem identificadas com elementos contemporâneos, jovens e urbanos, utilizando-se da linguagem do grafite como tática comercial. Essa propensão faz

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(24)

com que a prática se transcodifique também para outras áreas como o design e a publicidade, o que, consequentemente, abre novos campos de atuação e de trabalho para os grafiteiros. Ou, em outras palavras, cria outras formas de alienação do grafite. Um processo que é visto com naturalidade pelos grafiteiros.

Eu acho que é um processo normal dentro do esquema da nossa sociedade. Aconteceu com vários outros movimentos, aconteceu com o samba, com o funk. Por que não havia de acontecer com o grafite... E é por isso que eu digo que o grafite está em transformação e só em algum tempo vamos saber como ele vai se estabilizar (...) As marcas se apropriam da linguagem do grafite, os grafiteiros passam a ver a oportunidade e se tornam profissionais nessa área (Panmela Castro, em entrevista ao autor no dia 15 de outubro de 2014).

O grafite só ganha, todo mundo quer viver do que gosta de fazer. Acho que quem reclama disso são pessoas que não conseguem vender seu trabalho ainda, que têm cabeça pequena, que não conseguem enxergar que eles podem viver do que eles fazem. Eu tenho formação de designer, então na escola de design você aprende a vender sua arte, o design nada mais é do que a arte comercializada, então eu nunca tive problema com isso (BR, em entrevista ao autor em 20 de outubro de 2014).

Figura 14 – Grafiteiro BR personalizando jaquetas de couro da grife Patrícia Vieira (fonte https://partyof30.com). PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(25)

Entre os trabalhos comerciais já executados pelo grafiteiro, pode-se citar, como exemplo, uma série de jaquetas de couro grafitadas para a grife Patrícia Vieira. Peças exclusivas, feitas uma a uma, produzidas em parceria com a marca em 2012.

Na mesma linha, diversos outros exemplos podem ser citados, como as camisetas desenhadas pelo grafiteiro Bruno Big, para a loja/galeria Homegrown; as sandálias da marca Rider, intituladas Rider Street Talks, com estampas produzidas por diferentes grafiteiros; as capas grafitadas dos cadernos da Cícero; e o projeto Redley Wall, que convoca grafiteiros para criar a fachada da loja de Ipanema.

Impulsionados pelos valores pagos pelo mercado, muitos grafiteiros renderam-se também ao espaço doméstico: clientes dispostos a personalizar ambientes os contratam para pintarem diretamente sobre as paredes de suas casas e chegam a pagar de R$ 700,00 a R$ 6.000,0019 pelo metro quadrado. Pela lei da oferta e da demanda, também é possível encontrar grafiteiros aptos a personalizarem eletrodomésticos, objetos de decoração e vestuário. Nesse sentido, parece que parte significativa dos grafites que encontramos hoje nas ruas e nos espaços públicos das grandes cidades tem pouco ou nenhum caráter subversivo e transgressor, visto que muitos estão em espaços “institucionalizados” ou autorizados. Há algo que poderia ser aqui nomeado de marketing pessoal do grafiteiro contemporâneo: espalhar pinturas, desenhos e criações pela cidade é uma forma de tornar-se conhecido e

19 Disponível em <http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/06/tenis-geladeira-e-elevador-viram-superficies-para-obras-de-arte.html > acesso em outubro de 2014. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

(26)

reconhecido e, consequentemente, de conseguir mais trabalhos comerciais, criando assim um círculo vicioso.

É possível que a Zona Sul esteja sendo usada como uma vitrine do trabalho dos grafiteiros e, neste caso, enquanto propaganda, estes grafites não estariam indicando um vínculo emocional do grafiteiro com o lugar, mas, sim, a possibilidade de trabalho e reconhecimento do artista (Moren, 2009, p.77).

Dessa maneira, a rua funciona, hoje, mais como um portfólio do que como um suporte à expressão de um indivíduo ou grupo. O grafite passa por um processo de transformação e ressignificação que proporciona novas possibilidades de atuação e aplicação. Porém, essas mesmas possibilidades fazem com que o grafite torne-se uma prática torne-sem torne-sentido político, alienada ao modo de produção capitalista, deixando para a pichação o poder violador e questionador. PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1212294/CA

Referências

Documentos relacionados

Artigo 2º - A proposta de abertura de concurso para provimento de cargo de Professor Titular, em cada Unidade de Ensino Universitária, será apreciada e aprovada pela respectiva

As etapas que indicam o processo de produção do milho moído são: recebimento da matéria prima pela empresa, transporte manual, armazenamento, elevação mecanizada do produto,

Os interessados em adquirir quaisquer dos animais inscritos nos páreos de claiming deverão comparecer à sala da Diretoria Geral de Turfe, localizada no 4º andar da Arquibancada

O objetivo do curso foi oportunizar aos participantes, um contato direto com as plantas nativas do Cerrado para identificação de espécies com potencial

Após a implantação consistente da metodologia inicial do TPM que consiste em eliminar a condição básica dos equipamentos, a empresa conseguiu construir de forma

d) independentemente dos registros contábeis cabíveis, nas notas explicativas aos balanços da sociedade - conforme determinado pelo item XVI do Título 4 do Capítulo II

5.2 Importante, então, salientar que a Egrégia Comissão Disciplinar, por maioria, considerou pela aplicação de penalidade disciplinar em desfavor do supramencionado Chefe

O tubarão martelo liso pode chegar até, aproximadamente, 4 metros de comprimento e é encontrado em águas costeiras e semi-oceânicas da plataforma continental até 100 metros