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A interpretação de provérbios parodiados por afásicos e não afásicos: a reflexividade da linguagem

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Academic year: 2021

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A interpretação de provérbios parodiados por afásicos

e não afásicos: a reflexividade da linguagem

(The interpretation of parodized proverbs by aphasic and non aphasic subjects: the reflexivity of language)

Sandra Elisabete de Oliveira Cazelato1

1Instituto de Estudos da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

scazelato@yahoo.com

Abstract: This study analyzes the process of signification involved in the linguistic-cognitive

work required in the interpretation of parodized proverbs.Our work is based on a socio-cognitive and interactional perspective on the relationship between language and cognition. The corpus, collected through a Protocol of Parodized Proverbs, consists of linguistic data produced by aphasic and non aphasic subjects. The linguistic and discursive processes involved at the meta-enunciative task in relation to proverbs include: i) the recognition of pre-constructed proverbs; ii) its linguistic properties; iii) the recognition of cultural aspects that are not evident; iv) semantic-pragmatic inferences, and v) the recognition of meaning effects on the proverbial enunciation and on the proverbial parody. This linguistic-discursive and cognitive work demand diferent levels of reflection about language from the subjects.

Keywords: proverbs; parody; reflexivity; aphasia.

Resumo: Este estudo procura analisar os processos de significação implicados no trabalho

linguístico-cognitivo requerido na interpretação de provérbios parodiados, a partir de uma perspectiva sociocognitiva e interacional da relação entre linguagem e cognição. O corpus é constituído de dados linguísticos de sujeitos afásicos e não afásicos coletados a partir de um Protocolo de Provérbios Parodiados. Dentre os processos linguístico-discursivos implicados no trabalho meta-enunciativo com relação aos provérbios, destacam-se: i) o reconhecimento de pré-construídos; ii) as propriedades linguísticas; iii) o reconhecimento dos implícitos culturais; iv) as inferências semântico-pragmáticas; e v) o reconhecimento dos efeitos dos sentidos no enunciado proverbial e na paródia proverbial. Esse trabalho linguístico-discursivo e cognitivo dos sujeitos demanda diferentes níveis de reflexão sobre a linguagem.

Palavras-chave: provérbios; paródia; reflexividade; afasia.

A paródia nos provérbios

A paródia, como fenômeno metalinguístico, é uma forma de reflexividade, pois mobiliza alguma reflexão sobre a língua. É essencialmente dialógica, visto que apresenta relações dialógicas e interação dialógica entre vozes. É voz dupla com repetição, com distância crítica marcando a diferença e não a semelhança. A paródia orienta para diferentes posições e reveste de novos acentos. É criação ideológica com “vontade de acontecimento” (BAKHTIN, 1997, p. 21).

Na paródia, há dois textos que se inter-relacionam, sendo necessário competência para interpretar, codificar e decodificar a paródia; reconhecer os efeitos de sentido veiculados pelo discurso paródico, bem como as vozes que o compõem e os elementos contextuais pragmáticos para compreendê-la.

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Dessa forma, os fenômenos metalinguísticos envolvidos na constituição e no reconhecimento do discurso paródico põem em jogo e salientam, nas práticas de linguagem, alguma capacidade reflexiva dos sujeitos sobre o que estão a dizer e a significar, na interpretação e construção do sentido e nos processos de significação implicados no reconhecimento e explicitação do sentido nas práticas humanas. Isso nos leva a considerar o tipo de reflexividade relacionada a uma competência a que não se reduz nem ao linguístico nem ao cognitivo; é, antes, uma competência relativamente à linguagem e à interação (MORATO, 2005).

O enunciado proverbial tem traços de heterogeneidade enunciativa, de um conjunto de processos enunciativos que se organizam por uma relação complexa com o discurso do outro ou discursos outros, “pré-construídos”, de acordo com Authier-Révuz (1998); caracteriza-se pela metalinguagem e pela reflexividade enunciativa e possibilita a investigação dos fatores de constituição do sentido e do funcionamento linguístico-cognitivo. Portanto, é um lugar do discurso sobre a prática da linguagem, para a constituição do sentido e da significação que, segundo Morato (2002), relaciona o linguístico e o cognitivo envolvidos nas ações simbólicas humanas.

Numa concepção enunciativa, a metalinguagem está integrada ao funcionamento geral da linguagem. Assim, o provérbio é um interessante expediente para o estudo enunciativo da capacidade da linguagem de interpretar a si mesma e ser capaz de reconstituir o que foi dito ou pensado, de saber sobre a linguagem e da linguagem, de marcar – tanto quanto possível – as fronteiras entre nosso dizer e o dizer do outro.

Enquanto forma meta-enunciativa,1 o provérbio marca as possibilidades de

subjetividade e reflexividade na apropriação (social) da linguagem. O reconhecimento do caráter reflexivo da linguagem marca, vale dizer, a qualidade das interações entre processos linguísticos e cognitivos. Referimo-nos aqui especialmente ao trabalho inferencial, ao reconhecimento de uma memória cultural comum e aos mecanismos psico-pragmáticos gerais envolvidos na interpretação de um enunciado proverbial (e na enunciação proverbial).

O enunciado proverbial parodiado apresenta todas as características de um provérbio e de uma paródia, mas há nele um trabalho sobre a linguagem ainda mais sofisticado, pois a reflexividade enunciativa incide sobre reconhecer o enunciado proverbial origem, ao mesmo tempo em que sobre o sentido parodístico. Se é verdade que os processos meta demandam diferentes níveis de reflexão dos sujeitos sobre a linguagem, a paródia proverbial parece demandar dos sujeitos um nível de reflexão meta-enunciativa/meta-discursiva particular sobre a linguagem. Ou seja, demanda uma atitude linguística, discursiva, meta--enunciativa e sociolinguística dos sujeitos em relação ao provérbio e à paródia.

Nos provérbios parodiados, o enunciador do provérbio identifica o sentido do provérbio-origem, usa das propriedades linguísticas (sintáticas, fonéticas, morfológicas) desse provérbio, se remete a uma memória cultural, mas de maneira a fazer ou reconhecer uma repetição com ênfase na diferença, como define Hutcheon (1985). A paródia se remete, pois, ao enunciado origem; é repetição, mas num enunciado que enfatiza a diferença,

1 A meta-enunciação está relacionada à tomada de um discurso, enunciado ou enunciação já construída,

ou seja, é constituída por uma memória cultural e histórica, tal como ocorre com os provérbios. Segundo Authier-Révuz (1998), a meta-enunciação é o discurso sobre a linguagem e sobre um outro dizer, é auto--representação do dizer, e envolve a questão do sujeito e de sua relação com a linguagem.

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portanto é preciso reconhecer no provérbio parodiado o provérbio-origem e, além disso, o efeito de sentido veiculado no enunciado parodiado.

Reconhecer a paródia implica reconhecer o texto produzido anteriormente, no caso, o provérbio-origem que faz parte da memória social ou da memória discursiva dos interlocutores, que está inserido no provérbio parodiado, para a construção do sentido. É preciso reconhecer e interpretar a voz original e a voz que subverte o sentido original para reconhecer e interpretar a paródia como paródia, ou seja, reconhecer a superposição de diversas vozes, a polifonia do sentido do provérbio parodiado. Isso exige dos interlocutores o reconhecimento de elementos linguísticos, metalinguísticos, semânticos, discursivos e pragmáticos dos provérbios parodiados; a relação do provérbio parodiado com o provérbio-origem (ou seja, a intertextualidade); o reconhecimento do que há de implícito e explícito nos provérbios; a identificação do discurso presente nos provérbios parodiados (por exemplo, racista, feminista etc.); a identificação dos mecanismos ideológicos, sociais, culturais e históricos veiculados; a identificação do elemento parodístico que faz o sujeito reconhecer o provérbio parodiado como paródia (ou seja, o que leva o sujeito a reconhecer que o provérbio parodiado parodia outro provérbio); a identificação do que é parodiado ou contestado no provérbio-origem e o porquê parodia-se o que se parodia; reconhecer contextos de uso ou situações de enunciação possível de uso, o que parece depender do grau de cristalização formal e discursiva dos provérbios-origem e dos provérbios parodiados.

Em suma, ao que parece, nos enunciados proverbiais parodiados, a metalinguagem, a reflexividade enunciativa, a subjetividade e uma “postura meta” são exigidas de forma relevante na determinação referencial e no trabalho linguístico-discursivo de interpretação. A interpretação e manipulação de enunciados proverbiais e de enunciados proverbiais parodiados dependem de alguma maneira da competência pragmática dos sujeitos, de modo a colocar em relação os processos linguístico-cognitivos (o saber da língua e o saber de mundo), a contextualizar a emergência e a mobilização de diversos processos predicados como meta no funcionamento da linguagem (metalinguísticos, metapragmáticos, meta-enunciativos, metaformulativos, meta-discursivos). Podemos, nesse caso, observar o movimento do sujeito e suas “manobras linguísticas” em relação ao dizer próprio e alheio, que tende a confirmar a hipótese de que os modos de funcionamento do componente “meta” não são subsumidos pela língua ou pela cognição, stricto sensu.

A paródia proverbial apresenta e convoca dos sujeitos uma reflexividade e uma atividade meta-enunciativa intensa com a linguagem, para reconhecer e interpretar o sentido do provérbio-origem e o da paródia proverbial, o que depende do tipo de intertextualidade e do grau de cristalização das expressões na memória discursiva e cultural. Observa-se a subjetividade2 e uma atitude reflexiva dos sujeitos em relação ao efeito parodístico e ao

caráter persuasivo e acional das práticas como ação no mundo. Portanto, interpretar provérbios parodiados implica um trabalho linguístico-discursivo-cognitivo dos sujeitos sobre o provérbio--origem, sobre o provérbio parodiado e sobre a relação de intertextualidade entre eles.

2 De acordo com Benveniste (1995, p. 286), a subjetividade “... é a capacidade do locutor para se propor

como ‘sujeito’ [...] não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem”. E, a linguagem é “[...] a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter as formas linguísticas apropriadas à sua expressão; e o discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas” (BENVENISTE, 1995, p. 289).

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O corpus

O corpus deste estudo é constituído de dados linguísticos dos sujeitos afásicos representados pelas siglas LM e MN que frequentam o Centro de Convivência de Afásicos (CCA – IEL/UNICAMP), e de sujeitos não afásicos, CC e IG, na faixa etária de 50 a 70 anos de idade e com diferentes graus de escolaridade, coletados a partir do Protocolo de Provérbios Parodiados.3

Para a coleta de dados, realizamos entrevistas individuais com os sujeitos afásicos e não afásicos que foram registradas em gravador digital e em filmadora digital, sendo posteriormente transcritas por nós de acordo com o sistema de notação estabelecido pelo Grupo de Pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Edwiges Maria Morato (2007), o qual inclui aspectos concernentes ao contexto não-verbal. O Protocolo foi apresentado oralmente e por escrito aos sujeitos.

Na análise dos dados, consideramos os processos de significação implicados na interpretação de provérbios. Para identificar os processos de significação veiculados nos provérbios, foi solicitado aos sujeitos que explicitassem o sentido neles veiculado, isto é, que tornassem explícitos os conteúdos implícitos ou informações pressupostas ou subentendidas nos provérbios parodiados a partir da exposição oral dos mecanismos de construção do sentido, de forma que o interlocutor pudesse ter condições de perceber o que se quis transmitir, sendo a ele esclarecidos os valores presentes nos provérbios recuperados através de inferências.

Além disso, consideramos, também na análise, a reação não-verbal dos sujeitos como o riso, os gestos, as expressões faciais, a postura corporal, o direcionamento de olhar em relação ao provérbio parodiado ou à paródia como fenômeno discursivo, quando caracterizavam, de alguma forma, o reconhecimento dos provérbios e a explicitação de seus sentidos.

A interpretação do provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde” por afásicos e não afásicos

A seguir, podemos observar a interpretação do provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde” realizada pelos sujeitos afásicos e não afásicos na atividade em que o pesquisador apresentou a seguinte questão do Protocolo de Provérbios Parodiados:

Quais desses provérbios você conhece? (mediante apresentação oral e escrita). Quando as pessoas usam este provérbio, o que elas querem dizer? Justificar. A partir desta questão os sujeitos afásicos e não afásicos apresentaram as interpretações dos provérbios “Antes tarde do que mais tarde” e “Antes tarde do que nunca” discutidas a seguir.

3 O Protocolo de Provérbios Parodiados foi elaborado como metodologia de coleta de dados para a minha

Tese de Doutorado intitulada “A interpretação de provérbios parodiados por afásicos e não afásicos”, defendida em 2008, sob orientação da profa. Dra. Edwiges M. Morato, no Instituto de Estudos da Linguagem/IEL – UNICAMP. O objetivo da elaboração desse Protocolo foi o de estudar os processos de significação implicados na interpretação proverbial. Na seleção dos provérbios do Protocolo, procuramos realizar um levantamento dos provérbios apropriados à configuração sociocultural e à realidade sociolinguística dos sujeitos que frequentam o CCA, assim como os provérbios mais recorrentes e cristalizados em nossa cultura.

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“Antes tarde do que mais tarde” (“Antes tarde do que nunca”)4

O sujeito CC, não afásico, reconheceu o provérbio-origem “Antes tarde do que nunca” na forma do provérbio parodiado, e explicitou o sentido da seguinte maneira: “ai ... eu acho ... às vezes ... a pessoa tem ... uma esperança ... uma esperança de ter alguma coisa ... cada dia a esperança aumenta e: e não consegue ... e vem o outro dia nada ... mas um dia aparece ... ela tem esperança de que um dia vai conseguir e consegue”. A investigadora perguntou, então, sobre o sentido do provérbio parodiado, provérbio que ele não reconheceu, e sobre o qual comentou fazendo uma relação intertextual entre os provérbios-origem e parodiado:

(01) CC: não ... eu acho que pode ser ... aí no caso ... “Antes tarde do que mais tarde” porque aí ela conseguiu ... e “Antes tarde do que nunca” é uma coisa que ela nunca vai conseguir ... então é “Antes tarde do que mais tarde” ...

No dado acima, CC reconheceu e explicitou a diferença de sentido entre os provérbios, reconhecendo e interpretando a paródia proverbial, após a investigadora perguntar sobre o sentido do provérbio parodiado. Ele não explicitou exatamente o sentido veiculado no provérbio-origem, já que comentou que: “é uma coisa que ela nunca vai conseguir”. CC, entretanto, explicitou o sentido desse provérbio no dado anterior. A inserção que a investigadora fez, provocando uma reflexão de CC sobre o sentido veiculado no provérbio parodiado, levou-o a refletir sobre a sua própria enunciação, uma atividade meta-enunciativa, para interpretar o sentido dos provérbios e explicitá-los, reconhecendo a diferença de sentidos entre eles e os efeitos de sentido da paródia.

O sujeito IG, não afásico, não reconheceu provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde”, mas demonstrou que o reconheceu como paródia proverbial do provérbio “Antes tarde do que nunca”, ao comentar sobre o provérbio parodiado: “‘Antes tarde do que mais tarde’ no::ssa ((risos)) e ’Antes tarde do que mais tarde’ ... ‘Antes tarde do que nunca’ ... antes você fazer tarde do que nunca fazer nada ... esse eu acho engraçadinho ... mas não concordo muito com esse ((risos)) ((lendo os provérbios))”.

IG também reconheceu e tentou explicitar o sentido do provérbio-origem “Antes tarde do que nunca”, colocando em questão o seu sentido ao comentar: “mas você nunca deixar de fazer uma coisa também é difícil né ... NUNCA NUNCA dependendo do que você possa fazer”. Sobre o sentido desse provérbio-origem, IG ainda comentou, sem explicitar o sentido que realmente é veiculado no provérbio-origem:

(02) IG: qualquer coisa que você venha fazer que você queira fazer ... como que eu posso dar um exemplo ... qualquer coisa que a pessoa queira fazer ... não deixe pra amanhã ... não deixe pra depois ... é: faz ... não deixe de fazer porque às vezes ... o que você pode ... o mais tarde ... não vai dar mais tempo ... você não vai ter mais tempo pra fazer aquilo

Com relação ao provérbio parodiado, IG concordou com o sentido nele veiculado a partir de um comentário da investigadora (INV) quanto ao provérbio-origem, e explicitou o sentido veiculado no provérbio parodiado, demonstrando reconhecer a paródia e interpretando-a. Vejamos o dado a seguir:

4 O provérbio “Antes tarde do que nunca” não foi apresentado aos sujeitos da pesquisa, mas apenas o

provérbio parodiado, pois o objetivo deste estudo foi verificar o reconhecimento do provérbio parodiado e o reconhecimento do provérbio-origem na forma do provérbio parodiado, a partir da cristalização semântico--pragmática do provérbio-origem.

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(03) INV: é melhor “Antes tarde do que mais tarde” do que “Antes tarde do que nunca”? (04) IG: é ... nunca também é uma palavra muito comprida pra você falar nunca é grande né (05) INV: nunca é nunca ... então é melhor mais tarde do que nunca

(06) IG: é: pensando desse lado aí ... é melhor fazer tarde do que mais tarde ... concordo ... mas você nunca deixar de fazer uma coisa também é difícil né ... NUNCA NUNCA dependendo do que você possa fazer ... às vezes nunca vai dar pra você fazer mais ... né têm coisas que você pode fazer hoje ou amanhã ou depois que seja ... mas você deixar pra nunca ... nunca vai dar pra fazer ... entendeu o que eu quero dizer?

Podemos observar também que IG ponderou sobre a forma proverbial do provérbio parodiado, que substitui “nunca” por “mais tarde”, com risos, comentando que:

(07) IG: concordo “Antes tarde do que mais tarde” ... mas você acha que fica legal falar “Antes tarde do que mais tarde”? ((risos))

No dado, IG considerou o provérbio-origem como mais importante ou mais reconhecido do que o provérbio parodiado, já que fez poucos comentários sobre o provérbio parodiado, mesmo explicitando o seu sentido e concordando com ele. IG centrou-se mais no sentido veiculado no provérbio-origem e no sentido da palavra nunca presente neste provérbio, o qual parece apresentar um grau relevante de cristalização semântico-pragmática em nossa cultura.

No dado a seguir, podemos observar como o sujeito LM, afásico, procurou explicitar o sentido do provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde” e do provérbio-origem “Antes tarde do que nunca”. LM reconheceu o provérbio-origem, não reconheceu o provérbio parodiado e concordou mais com o sentido veiculado no provérbio parodiado. Na tentativa de explicitar o sentido do provérbio parodiado, LM comparou o sentido dos dois provérbios, como podemos ver a seguir:

(08) LM: ((movimento de afirmação com a cabeça)) é: esse aí talvez aconteça né: ... que antes tarde do que mais tarde ((olhando para a investigadora)) ... mas é ((olhando para o protocolo)) ... bom ... antes tarde ((olhando para a investigadora)) ((risos))

Neste dado, LM primeiro tentou explicitar o sentido de que no provérbio-origem

“talvez aconteça” e no provérbio parodiado “que antes tarde do que mais tarde ((olhando para a investigadora)) ... mas é ... mas é ... bom ... antes tarde”, reconhecendo um tipo

de intertextualidade entre os provérbios e interpretando a paródia. Ele reconheceu no provérbio parodiado o sentido de que é melhor “tarde” do que ainda “mais tarde”. Após essa explicitação, LM riu e parece que os risos foram pelo fato de ele considerar o sentido do provérbio parodiado como: “mas é ... bom ... antes tarde”.

Observamos neste dado que LM fez as inferências relevantes para o reconhecimento dos implícitos presentes nos provérbios e para a explicitação do sentido. Os movimentos linguísticos que LM fez, em torno da explicitação do sentido desses provérbios e da diferença de sentido entre eles, mostram uma reflexividade enunciativa de LM que caracteriza o reconhecimento dos efeitos de sentido dos provérbios e dos efeitos de sentido da paródia relevantes na interpretação e na explicitação do sentido neles veiculado. Isso demandou de LM uma atitude linguística, discursiva, meta-enunciativa, sociolinguística em relação ao provérbio e à paródia, ou seja, um trabalho sobre a língua e sua exterioridade.

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O sujeito MN, afásico, reconheceu o provérbio-origem “Antes tarde do que nunca” no provérbio parodiado comentando que: “’Antes tarde do que mais tarde’ do que mais tarde ... ‘Antes tarde do que mais tarde’ ((lendo no protocolo)) ... ‘Antes tarde do que nunca’ que eu conheço ((olhando para a investigadora))”. MN afirmou não conhecer o provérbio parodiado, mas explicitou o sentido desse provérbio parodiado. Vejamos o dado a seguir: (09) MN: é ... a gente fazer ... a gente quer fazer uma coisa ... a gente ... embora já seja tarde ... mas

ainda faz ... porque nunca fica por fazer ((olhando para a investigadora))

Posteriormente, MN também explicitou o sentido do provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde”, associando-o com o sentido do provérbio-origem, semelhantemente ao que fez o sujeito não afásico CC, e mostrando a relação de intertextualidade entre esses provérbios e os efeitos de sentido da paródia. Vejamos, então, o dado de MN:

(10) MN: é que a gente ... o que a gente queria fazer ... mesmo fazer a tempo ... fez mais tarde ... é melhor fazer mais tarde do que nunca fazer

Nesse provérbio parodiado, MN explicitou o sentido, comentando sobre o que se queria fazer a tempo, mas “fez mais tarde” e “fazer mais tarde do que nunca fazer”. Aqui MN demonstrou diferentes níveis de reflexão sobre a linguagem: sobre o sentido veiculado no provérbio parodiado e no provérbio-origem e sobre o sentido da necessidade ou do querer fazer as coisas no tempo e não mais tarde, e muito menos nunca fazer. MN reconheceu e interpretou a paródia presente nesse provérbio. Observamos um trabalho linguístico-discursivo e cognitivo envolvido no processo de significação da construção do sentido, do reconhecimento de sentidos e da explicitação deles (inferenciação requerida na interpretação), que evidenciam as relações entre linguagem e cognição e entre língua e exterioridade.

Sobre o provérbio parodiado, MN ainda explicitou o seu sentido com certa dúvida, apresentando algumas pausas como forma de organizar e explicar melhor o sentido veiculado nesse provérbio, em relação ao qual afirmou, considerando o sentido do provérbio parodiado “mais tarde” e do provérbio-origem “nunca”: “é melhor fazer do que mais tarde ... do que deixar por fazer”.

Nos dados acima, é possível observar que MN sempre tentou fazer uma relação de sentido entre fazer a tempo, fazer tarde, fazer mais tarde e nunca fazer. Essas manobras linguísticas caracterizam-se pelo acréscimo de elementos necessários para explicar e explicitar os sentidos e por repetições sobre os sentidos veiculados nos provérbios, que parecem ocorrer para reforçar o que ele quis dizer na construção do sentido veiculado nos provérbios e no reconhecimento dos efeitos de sentido da paródia. São atividades meta-enunciativas, tipicamente enunciativo-discursivas, que demandam um maior grau de reflexividade sobre a linguagem e seu funcionamento.

Nos dados dos sujeitos afásicos e não afásicos, pudemos observar que o provérbio--origem “Antes tarde do que nunca” apresenta um grau maior de cristalização de sentido em nossa cultura, uma cristalização a um só tempo formal e discursiva. Com relação ao provérbio parodiado, os sujeitos não afásicos apresentaram certa dificuldade no reconhecimento e na explicitação do seu sentido, fazendo-os a partir dos questionamentos da investigadora que, de certa forma, direcionaram os sujeitos na realização e coconstrução das inferências específicas para a interpretação do sentido. Os sujeitos afásicos LM e MN, que reconheceram

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e explicitaram o sentido desse provérbio parodiado sem os questionamentos da investigadora, mostraram uma reflexividade enunciativa mais incisiva na explicitação do sentido desses provérbios, como pudemos observar nos dados.

Na análise dos dados apresentados, observamos as justificativas, os comentários, as alternativas comunicacionais e as tentativas de explicitação do sentido nos provérbios, realizados tanto por sujeitos afásicos quanto por não afásicos. Com isso, nem sempre podemos considerar que as dificuldades ou resoluções se devam por dificuldades de ordem apenas metalinguística no tratamento interpretativo da paródia.

Pudemos observar nos dados estratégias de construção do sentido utilizadas pelos sujeitos para facilitar a compreensão, introduzir esclarecimentos, exemplificar, modalizar aquilo que é dito e, às vezes, refletir sobre a própria enunciação (cf. KOCH, 2004). Na explicitação do sentido dos provérbios, os sujeitos organizam o texto com inserções e repetições para facilitar a compreensão do interlocutor (no caso, a investigadora) sobre o sentido veiculado nos provérbios, introduzindo explicações ou justificativas, por meio de ilustrações ou exemplificações no discurso, algumas vezes provocadas a pedido de um esclarecimento do interlocutor. Nesses casos, os sujeitos puderam, ainda, fazer alusão a um conhecimento prévio, procedendo a comentários quando do reconhecimento dos provérbios-origem “Antes tarde do que nunca” e do provérbio parodiado “Antes tarde do que mais tarde”. As repetições aqui parecem contribuir, principalmente no caso dos sujeitos afásicos, para a organização textual-discursiva, favorecendo a referencialidade e a sequencialidade, importantes para a organização tópica. Além disso, através da desaceleração do ritmo da fala, ocorre aqui a possibilidade de um tempo maior para o processamento do que se quer dizer.

Observamos, ainda, que os sujeitos afásicos e não afásicos avaliam, corrigem, ajustam, comentam a forma do próprio ato de dizer (estratégias metaformulativas) e refletem sobre o provérbio e a sua enunciação, expressando a sua posição, o grau de adesão e de conhecimento, além de juízos de valor, fazendo atenuações etc. (estratégias modalizadoras ou metapragmáticas). Observamos, também, as ações reflexivas – estratégias meta-enunciativas, tanto dos sujeitos afásicos quanto dos não afásicos sobre a linguagem, na linguagem e com a linguagem.

Considerações finais

Este estudo teve como objetivo identificar e analisar processos de significação no contexto das afasias, destacando aspectos linguístico-pragmáticos da interpretação e manipulação enunciativa de sentidos veiculados nas paródias proverbiais por sujeitos afásicos e não afásicos.

Consideramos, neste trabalho, a paródia como um fenômeno meta-enunciativo que mobiliza relações linguísticas, intencionais, sociais e culturais. Caracterizada pela intertex-tualidade, ela se remete a manifestações discursivas que promovem seus efeitos com diferentes sentidos e revestidos de novos acentos no campo do discurso (cf. BAKHTIN, 1997).

Como podemos observar nos dados dos sujeitos, na paródia, não apenas os processos de ordem metalinguística, mas outros processos meta são intensificados de forma especial no percurso interpretativo e expressivo de sua constituição. Do ponto de vista de sua

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realidade textual, processos linguísticos envolvidos na paródia atuam com vários tipos de memória (verbal, cultural, autobiográfica, discursiva) e percepção do mundo social, evocando suas propriedades de remissividade (linguística e não-linguística) e de reativação referencial (sócio-cognitiva), que explicam não apenas a evocação do provérbio-origem, como também os termos (linguísticos, pragmáticos, discursivos) e os efeitos da paródia.

O enunciado proverbial parodiado apresenta, enquanto tal, uma complexidade linguístico-discursiva que envolve, dentre outras coisas, de acordo com os dados, conhecer ou não o provérbio parodiado, concordar ou discordar de seu sentido e reconhecer o provérbio-origem. Tais processos indicam diferentes níveis de reflexão dos sujeitos sobre o enunciado parodiado.

Na interpretação de enunciados parodiados, encontramos elementos ou processos de significação verbal (linguísticos, discursivos, inferenciais, referenciais, etc.) e também não-verbal (gestuais, mnêmicos, perceptivos, etc.) inter-atuantes nos diferentes níveis de reflexão sobre a linguagem e seu funcionamento. Pudemos, então, observar, nos dados dos sujeitos, a convocação de uma “postura meta-enunciativa”, em especial, na determinação referencial e na intertextualidade.

Por fim, por não depender apenas de operações metalinguísticas stricto sensu, os sujeitos afásicos puderam ter um desempenho semelhante aos sujeitos não afásicos. As duas populações serviram-se das relações solidárias e constitutivas entre língua e sociedade no processo de interpretação de provérbios. Observamos que os sujeitos afásicos, assim como os não afásicos, não deixam de lançar mão de processos linguísticos e cognitivos para dar conta das tarefas que exigem uma reflexividade mais intensa e específica sobre a linguagem, considerando, ainda, que os processos ou níveis linguísticos funcionam de maneira articulada.

Na interpretação de provérbios pelos sujeitos das duas populações, pudemos observar as estratégias cognitivas que são estratégias de uso do conhecimento, como os objetivos, as convicções e o conhecimento de mundo - representados na memória semântica ou enciclopédica dos sujeitos - que consistem na execução de algum “cálculo mental” pelos interlocutores (KOCH, 2004).

Em suma, na interpretação de provérbios parodiados por afásicos e não afásicos, foi possível, enfim, observar

um conjunto expressivo de processos de significação (lingüísticos, pragmáticos, argumentativos, textuais, discursivos, semióticos) verbais e não-verbais, que fazem emergir e consolidar diferentes competências sócio-cognitivas (linguísticas, pragmáticas, comunicacionais, sociais, procedurais, profissionais, etc.) com as quais atuamos e apreendemos o mundo. (MORATO, 2007, p. 5).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. Tradução de Maria da Glória Novak e Maria Luisa Néri, revisão do Prof. Isaac Nicolau Salum. 4. ed. Campinas: SP: Pontes/ Editora da Universidade de Campinas, 1995. 387 p.

HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985. 165 p.

KOCH, I. G. V. Introdução à Linguística Textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 190 p. MORATO, E. M. (Coord.). Centro de Convivência de Afásicos: práticas discursivas, processos de significação e propriedades interativas. Campinas: UNICAMP, 2002. (Relatório científico FAPESP no 99/07055-6).

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Referências

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