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O Diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e seus efeitos de subjetivação: uma análise das trajetórias escolares de jovens universitários

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Academic year: 2021

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O DIAGNÓSTICO DE TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) E SEUS EFEITOS DE SUBJETIVAÇÃO: UMA

ANÁLISE DAS TRAJETÓRIAS ESCOLARES DE JOVENS UNIVERSITÁRIOS1

Heliane de Lima2

Daniel Kerry dos Santos3

Resumo: O objetivo deste artigo foi analisar a trajetória escolar de jovens universitários diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e os efeitos de subjetivação decorrentes da experiência e apropriação desse diagnóstico. Foram entrevistados três estudantes de uma universidade da Grande Florianópolis (SC). A análise do material foi realizada a partir da perspectiva teórico-metodológica “análise de práticas discursivas e de produção de sentidos”, tal como proposta por Spink e Medrado (2013). As análises estão focadas nos efeitos de subjetivação dos processos de patologização e medicalização, com ênfase nas trajetórias escolares. Para fins de análise, as narrativas foram divididas em quatro categorias: 1) a construção do diagnóstico do TDAH; 2) trajetória escolar: o tempo pré-diagnóstico; 3) trajetória escolar: o tempo pós-diagnóstico; e 4) o efeito “zumbi” nos processos de subjetivação. Após as análises, concluímos ser de extrema relevância a problematização dos efeitos da medicalização e da patologização da vida nas trajetórias escolares de estudantes universitários. Tais reflexões podem contribuir com profissionais da área da saúde e da educação, de modo a construir um posicionamento mais coerente, critico e criterioso frente a uma demanda cada vez maior no contexto universitário. Considera-se que, por se tratar de uma questão controversa e polêmica, faz-se necessário mais pesquisas sobre este tema no contexto acadêmico.

Palavras-chave: 1. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). 2. Medicalização. 3. Patologização. 4. Subjetivação. 5. Jovens universitários.

1 Introdução

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é, segundo Luengo (2010), um dos transtornos que apresenta a maior frequência de encaminhamentos de crianças a centros especializados de neurologia pediátrica. Considerado por alguns especialistas da área da psiquiatria e neurologia como um

1 Artigo apresentado como requisito parcial para a conclusão do curso de Graduação em Psicologia

da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em 2019.

2 Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). E-mail:

helianedl@gmail.com.

3 Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor na

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transtorno mental crônico e evolutivo, tem levado a diagnósticos cada vez mais precoces. Como consequência desse processo, as crianças têm sido medicadas cada vez mais cedo. Segundo a autora, o TDAH surge no âmbito da educação como uma forma de explicação causal que, muitas vezes, é usada como justificativa para a repetência e o chamado “fracasso escolar”. As crianças que apresentam comportamentos indesejados e/ou não correspondem aos padrões esperados para certos modelos normalizadores de educação são vistas como sujeitos patológicos e desviantes de padrões normativos. Em muitos casos, a patologização e a medicalização dessas crianças podem levar a consequências para a vida.

Diante disso, essa pesquisa se propôs a analisar os efeitos de subjetivação do diagnóstico de TDAH, a partir de uma ênfase nas trajetórias escolares de jovens universitários de uma universidade na Grande Florianópolis, inscritos no Programa de Acessibilidade. A análise das narrativas desse grupo de jovens universitários buscou conhecer suas trajetórias escolares antes e após o diagnóstico, bem como os modos pelos quais esses sujeitos experienciam e se apropriam desse diagnóstico.

Inicialmente, apresentamos o conceito de TDAH e sua constituição histórica no âmbito escolar. A seguir, problematizamos a expressiva proliferação de diagnósticos e suas consequências sociais. A partir desse referencial, abordamos a medicalização sob a ótica de seus dispositivos de controle, dando ênfase ao contexto escolar e buscando analisar os efeitos do diagnóstico de TDAH sobre a subjetividade. Para finalizar, analisamos as narrativas de três participantes, tendo como referencial teórico-metodológico a “análise de práticas discursivas e de produção de sentidos” de Spink e Medrado (2013).

A pesquisa teve como objetivo geral analisar os efeitos que o diagnóstico de TDAH produziu na construção das subjetividades de jovens universitários. Os objetivos específicos foram: analisar as narrativas sobre as trajetórias de escolarização dos sujeitos diagnosticados com TDAH, antes e após o ingresso na universidade; analisar como o diagnóstico de TDAH foi sendo construído e incorporado às narrativas de si ao longo da vida do sujeito; e analisar como o sujeito foi se autorreferenciando ao longo da vida frente ao diagnóstico de TDAH.

Assim, a pesquisa teve como finalidade problematizar de que forma os diagnósticos de TDAH podem produzir efeitos de subjetivação ao longo das trajetórias escolares de sujeitos interpelados por esse diagnóstico.

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1.1 TDAH no âmbito escolar e suas implicações

O TDAH tem sido problematizado mundialmente por diversas áreas e é considerado, atualmente, um dos diagnósticos psiquiátricos mais comuns na infância. Segundo Whitaker (2017), apesar de o TDAH não constar nos manuais de psiquiatria antes de 1980, tem sua raiz em 1902, quando o pediatra inglês George Frederick Still publicou uma série de palestras de pesquisas realizadas com 20 crianças, nas quais associa os sintomas, até então identificados como fatores comportamentais, a fatores biológicos. As crianças pesquisadas não apresentavam doenças mentais, traumas ou problemas biológicos, e sim maus comportamentos, como “agressividade, destrutividade e peraltices desenfreadas”. Apesar da insuficiência de critérios para diagnosticá-las, Still (1902) as classificava como tendo “disfunção cerebral mínima”, apenas pelo fato de apresentarem comportamentos similares aos das crianças com doenças orgânicas conhecidas na época, como epilepsia, tumores cerebrais e meningite.

A partir desse momento, criou-se um termo diagnóstico que associava questões comportamentais a um problema cerebral não existente. Segundo Whitaker (2017), a ideia de que comportamentos hiperativos eram marcadores de lesão cerebral foi o que levou diversos autores a reproduzirem tais concepções em meados da década de 1950.

Na atualidade, o discurso de que o TDAH tem origem orgânica ainda vige. Porém, por se tratar de um transtorno que envolve uma multiplicidade de sintomas, as literaturas são controversas e imprecisas. Até o momento, não há, no meio científico, um consenso em relação às comprovações quanto a sua causa. Conforme aponta Whitaker (2017), a verdade é que sua etiologia continua desconhecida. Há teorias que continuam defendendo causas orgânicas, por meio da genética e de questões neurológicas4 e outras que as contrapõem. Todavia, todas as hipóteses

permanecem sem comprovações significativas.

4 Na última década, um crescente interesse vem surgindo em relação aos estudos de genética

molecular no TDAH. O principal alvo dessas pesquisas são sequências genéticas envolvidas no funcionamento dos sistemas dopaminérgicos e noradrenérgicos como possíveis fatores

desencadeadores dos fenômenos patofisiológicos do transtorno. Contudo, os estudos genéticos ainda são muito controversos, principalmente quanto ao papel dos genes DRD4 e DAT1, primeiros genes diretamente relacionados ao TDAH (COUTO; MELO-JUNIOR; GOMES, 2010, p. 2).

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Para Martinhago (2018), o diagnóstico do TDAH é clínico, pois não existem exames laboratoriais que possam comprovar tal patologia e suas possíveis causas. Segundo Collares e Moysés (1994, p. 29):

[…] podemos afirmar que até hoje, cem anos depois de terem sido aventados pela primeira vez por um oftalmologista inglês, os distúrbios neurológicos não tiveram suas existências comprovadas, é uma longa trajetória de mitos, estórias criadas, fatos reais que são perdidos/omitidos […]. Trata‐se de uma pretensa doença neurológica jamais comprovada; inexistem critérios diagnósticos claros e precisos como exige a própria ciência neurológica; o conceito é vago demais, abrangente demais […].

Em relação à nomenclatura, o TDAH veio sofrendo alterações continuas ao longo dos anos. Para Rafalovich (2001, p. 106), o TDAH foi conhecido por vários nomes, tais como: encefalite letárgica, paralisia cerebral mínima, retardo médio e disfunção cerebral mínima e desenvolvimento atípico do ego. O nome Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) surgiu pela primeira vez, segundo Phelan (2005), em 1980, na terceira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III) – traduzido como Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – e fazia divisão do transtorno em dois tipos: TDA com hiperatividade e TDA sem hiperatividade. Somente na quarta edição DSM, em 1994, que a suposta psicopatologia passou a ser chamada “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade”. Nessa edição, foi inserido um quadro de critérios para diagnóstico.

Em seu livro Voltando ao normal, Peter Frances, um dos psiquiatras mais renomados do mundo e membro da equipe que liderou a elaboração do DSM-IV, faz uma crítica aos excessos da psiquiatria e a sua relação com a medicalização. Frances (2017) relata que, durante a elaboração do DSM-IV, houve tentativas de buscar moderações para evitar que o manual pudesse dar margem para arbitrariedades e criatividades diagnósticas. Para o autor, os envolvidos neste processo deveriam excluir tudo o que não fosse respaldado pela ciência médica, para evitar riscos de falsos diagnósticos. Porém, não havia estudos suficientes que pudessem comprovar e embasar diversos transtornos mentais, devendo esses ficar fora do manual - algo que não aconteceu. Frances (2017) considera que, embora tivessem tentado ser rígidos, houve falhas em sua elaboração, de modo que o DSM-IV foi mal utilizado, acarretando algumas consequências na prática clínica e diagnóstica:

Não conseguimos evitar três novas falsas epidemias de distúrbios mentais em crianças, o autismo, o déficit de atenção e o transtorno bipolar. E não fizemos nada para conter a galopante inflação diagnóstica que já estava

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expandindo a fronteira da psiquiatria, muito além de sua competência. (FRANCES, 2017, pos. 72 Kindle).5

Diante dessa perspectiva, Whitaker (2016) afirma que a psiquiatria afrouxou ainda mais as fronteiras diagnósticas, fazendo com que o número de casos de TDAH mais que duplicassem. Esse crescimento exorbitante de diagnósticos produziu, na mesma proporção, um aumento de medicações destinadas a tratar o suposto transtorno. Três anos após o lançamento do DSM-IV, a indústria farmacêutica aumentou vertiginosamente a produção e venda de remédios para tratamento dessa nova psicopatologia. Segundo Frances (2017, pos. 2876 Kindle), o DSM-IV “[…] teve uma participação especial na marcha contínua da inflação diagnóstica. A engrenagem principal foi o marketing dos fabricantes de remédios”.

De acordo com a Nota Técnica do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (2015), o aumento da fabricação do metilfenidato (principio ativo do medicamento para tratamento do TDAH) passou de 578 kg, em 2012, para 1.820 kg, em 2013 – um aumento de mais de 300%. Conforme a Comissão Internacional de Controle de Narcóticos (INCB, 2016), esse aumento pode estar associado, dentre outros fatores citados: ao aumento do número de pacientes diagnosticados; ao aumento do uso em adultos; ao erro no diagnóstico de TDAH e à prescrição indevida dos medicamentos; à ampliação da faixa etária e à falta de diretrizes médicas adequadas relativas à prescrição de metilfenidato. Destacamos que, mesmo que esse medicamento seja o mais indicado para casos de TDAH, consta na bula da Ritalina (metilfenidato) o seguinte aviso: “Considerações especiais sobre o diagnóstico de TDAH em crianças: A etiologia específica dessa síndrome é desconhecida e não há teste diagnóstico específico”.

Com a publicação do DSM-V (APA, 2014), em maio de 2013, não houve grandes alterações em relação ao TDAH. Conforme Mattos (2013), a lista de 18 sintomas – sendo 9 de desatenção, 6 de hiperatividade e 3 de impulsividade (estes dois últimos computados conjuntamente) – permaneceram os mesmos da edição anterior. Algumas novidades foram: a mudança em relação à possibilidade de se classificar o TDAH em leve, moderado e grave, de acordo com o grau de

5 O documentário Infância sob controle (2009),deMarie-Pierre Jaury, França, corrobora com essa

perspectiva. Nele, expõe-se que os critérios de diagnóstico se tornaram muito abrangentes pela inclusão de critérios de ordem moral, social e política, extrapolando os critérios médicos. Dessa forma, a quantidade de pessoas diagnosticadas aumentou vertiginosamente.

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comprometimento que os sintomas causam na vida do indivíduo; e a idade de início dos sintomas, que também se modificou.

Em relação ao DSM-V, uma questão que consideramos relevante enfatizar é que esta versão traz em seu conteúdo geral “[…] um discurso higienista em que postula que todos os distúrbios e todos os transtornos deverão ser diagnosticados precocemente nos primeiros anos de vida” (BARBOSA, 2019, p. 9). Para a autora, isso move para uma atenção em vigiar as alterações dos comportamentos infantis, na mais tenra idade, para que assim os transtornos sejam detectados de modo cada vez mais precoce. Esse discurso de prevenção e de antecipação de riscos legitimou de forma avassaladora correntes de diagnósticos atribuídos às crianças, e estas se tornaram objeto de investigação de uma ciência normatizadora, padronizadora e medicalizante.

Diante desse contexto, a criança passou a ser o foco de diagnósticos de transtornos mentais. Para Brzozowski e Caponi (2009), muitas instituições escolares desempenharam um papel fundamental de legitimação desse processo, tanto para o encaminhamento dos casos como para o reconhecimento e a validação dos problemas. De acordo com essas autoras (2009, p. 1180), “[…] é a partir das instituições que as crianças recebem uma classificação e também é a partir delas que a classificação é legitimada”.

O diagnóstico de TDAH se prolifera no âmbito escolar a partir dessa ótica classificatória de vigilância e de controle dos corpos infantis. De acordo com Luengo (2010, p. 19), “[…] crianças que apresentassem comportamentos que não correspondessem ao esperado ou desejado pelos/as professores/as eram vistas como portadoras de tal transtorno”. Segundo a autora, os pais eram influenciados por queixas dos professores/as e se sentiam no dever de buscar ajuda médica e/ou psicológica para sanar tais comportamentos. Como consequência dessa dinâmica, a medicação surge como principal meio de solucionar estes “problemas” identificados nas crianças.

Segundo Brzozowski e Caponi (2009), quando a pedagogia valida os discursos médico-psicológicos, ela acaba por desresponsabilizar a escola. Dessa forma, é relativamente comum que alguns professores/as e coordenadores/as façam diagnósticos por meio da observação de determinados comportamentos das crianças e as encaminhem para avaliação psiquiátrica/psicológica. De acordo com Barbosa (2019, p. 10):

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Podemos considerar a escola como mais um actante importante para a manutenção da aliança firmada entre psiquiatria e a indústria farmacêutica. Como mediadora entre estas e as famílias, a escola ocupou um lugar de destaque ao ser responsável pelo papel de triagem que lhe confere o mercado do adoecer psíquico e de encaminhamento aos serviços públicos de saúde toda e qualquer criança cujo comportamento não estivesse dentro dos padrões estipulados para o adequado aprendizado.

Luengo (2010) aponta que, nesse contexto, de forma expressiva, muitas escolas passaram a atuar como instituições de vigilância e a funcionar como instrumentos normatizadores para punir os comportamentos desviantes. Para a autora, a disciplina, no âmbito escolar, era o principal instrumento de poder para controlar os comportamentos.

Dessa forma, algumas escolas com correntes pedagógicas mais tradicionais e disciplinares tornaram-se instituições intrinsicamente disciplinadoras. A escolarização, por sua vez, passou a ser a mola propulsora da ordem e de otimização de técnicas de vigilância e de controle, tendo como seu principal objetivo a eliminação de atitudes ditas “indesejadas” ou “inapropriadas”.

As tecnologias disciplinares, segundo a perspectiva foucaultiana, estigmatizam, controlam, normalizam e regulam o que não é aceitável. Tais mecanismos de controle têm como objetivo disciplinar os corpos, tornando-os dóceis, úteis e produtivos. De acordo com Foucault (2008, p.132-133), “[…] é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado […]. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”. Nessa perspectiva, os corpos controlados podem ser nomeados e codificados, muitas vezes por diagnósticos imprecisos, pouco criteriosos e deterministas e que podem interferir diretamente na subjetividade do sujeito ao longo da sua vida.

1.2 TDAH e o processo de medicalização no âmbito escolar

O conceito de medicalização foi proposto inicialmente por Zola (1972, p. 487). Para o autor, a medicina se tornou a maior instituição de controle social e incorporou aspectos de outras instituições mais tradicionais, como as religiosas e judiciais. Zola (1972) aponta que a medicina se tornou um substituto da verdade e ocupou um lugar onde muitas vezes são feitos julgamentos finais, por especialistas. Os profissionais se autorizam a diagnosticar, muitas vezes, sem muitos critérios éticos.

Nesse contexto, no qual os médicos se autorizam a diagnosticar e ofertar tratamento, Carvalho et al. (2015, p. 1254) consideram que as singularidades são

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diretamente afetadas: “[…] a medicalização interfere e interdita a ação independente e racional dos seres humanos sobre a sua própria produção de saúde”. Diante dessa perspectiva, os problemas sociais passaram cada vez mais a ser vistos como doenças que necessitam de tratamento.

O comportamento humano não é biologicamente determinado, mas tramado no tempo e nos espaços geográficos e sociais – histórico enfim. O ser humano é essencialmente um ser cultural; entretecido em um substrato biológico, sim, porém datado e situado. A naturalização dos padrões de comportamento, levando à crença generalizada de que se deve agir segundo determinados moldes, é um dos elementos fundantes da submissão, do não questionamento, da docilização de corpos e mentes, tão cara e necessária à manutenção da ordem vigente, em todos os tempos. (COLLARES; MOYSÉS, 2013, p. 11).

Sob a ótica de que a medicina tem ação direta sobre o corpo orgânico e pode funcionar como um dispositivo de controle, Zorzanelli e Cruz (2018) apontam que as características biológicas passam a se constituir como alvos preferenciais das estratégias de poder que incidem sobre o corpo. Conforme enfatiza Foucault:

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo−se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica. (FOUCAULT, 1979, p. 47).

Dessa forma, Giusti (2016) afirma que esse poder exercido sobre os corpos, nomeado por Foucault como biopoder, adentra ao campo da infância e da escola. Para a autora, pode-se ver agentes educacionais e profissionais da saúde mental demandando por diagnósticos médicos que nomeiem problemas comportamentais e de aprendizado apresentados pelas crianças. Nesse contexto, os sujeitos são submetidos a uma refinada trama de saber e de poder que se constitui em torno da medicalização, controlando, administrando e normalizando os comportamentos, as condutas e as subjetividades.

Assim, Barbosa (2019) afirma que a medicalização interrompe uma cadeia de afetações e relações sociais na qual a criança está inserida. Se essa cadeia é interrompida com a medicalização, apassivam-se esses corpos, e a criança é silenciada. Para a autora, esse é o significado de medicalização: “[…] é o ato de transformar os corpos que teimam em se desviar e forçá-los para o lugar de conformidade e aceitação” (BARBOSA, 2019, p. 400).

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Para Luengo (2010), a medicalização da infância é uma consequência da higienização – onde educação e saúde uniram-se com objetivo de implantar um programa de normatização e moralização para manter a ordem social. Para a autora, desde então, a educação passou a ser alvo do poder médico.

Diante dessa perspectiva, Giusti (2016) afirma que os comportamentos antes vistos como próprios da infância adentram a esfera da patologia e abrem possibilidades para que os problemas que se manifestam no contexto escolar sejam analisados em termos médicos. Segundo Collares e Moyses (1985, p. 10): “A patologização escolar consiste na busca de causas e soluções médicas, a nível organicista e individual, para problemas de origem eminentemente social”. É nessa direção que os diagnósticos de TDAH tiveram um crescimento exorbitante, pois no âmbito escolar o TDAH é visto como um transtorno dos sujeitos indisciplinados e “fora do normal”. De acordo com Luengo (2010, p. 64), “[…] o ato de patologizar atinge o indivíduo que se manifesta fora dos padrões considerados normais”.

Collares e Moysés (2013), por sua vez, sustentam que a normatização da vida tem por princípio transformar problemas que escapam às normas da sociedade em distúrbios, doenças ou problemas individuais. Para as autoras, profissionais que assumiram papéis de vigilantes da ordem e ancoraram-se em instrumentos padronizados de avaliação legitimaram e reproduziram esse processo de normatização. Nessa perspectiva, os profissionais da área da educação, saúde e psicologia que se vinculam a essas racionalidades buscaram ainda mais se especializar para atender a demanda dos transtornos mentais que vinham crescendo consideravelmente.

Conforme Abreu (2007), na primeira metade do século XX houve uma expansão dos conteúdos médicos nas formações e capacitações de professores, com criação de novos serviços de saúde escolar. Nesse contexto, a escola passou a ser o lugar para pesquisa e experimentações, bem como um lugar ideal para atuação do saber-poder do especialista. Dessa forma, “[…] surgiram os especialistas e seus saberes especializados produzindo nos corpos dos escolares a doença de não

aprender” (ABREU, 2007, p. 2). Collares e Moysés (2013) consideram que, com as

especializações das profissões, intensificaram-se o poder e as técnicas de vigilância e controle sobre os copos, redefinindo, assim, os limites da normalidade.

Vale ressaltar que algumas abordagens da psicologia tiveram um papel atuante e legitimador nesse processo de normatização, psicologização e medicalização da

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vida. Para Abreu (2007), na “caçada aos anormais”, ou seja, na busca em distinguir os anormais completos (ineducáveis) e os incompletos (educáveis) das demais crianças, fizeram-se associações entre critérios médicos e pedagógicos e utilizaram-se indiscriminadamente testes psicológicos para avaliações. Para Giusti (2016, p. 170), “[…] a psicologia e psiquiatria deram à educação escolar um olhar terapêutico sobre o indivíduo, no sentido de normalizar e transformar a vida”.

Ferreira e Gutman (2008) reafirmam que algumas correntes da psicologia, demandadas pela psiquiatria, buscaram por testes psicológicos meios para contribuir na classificação dos (des)ajustamentos dos sujeitos no meio social. Para os autores, muitos psicólogos agiam como engenheiros sociais da utilidade. Nessa perspectiva, Maria Helena Souza Patto (1999) afirma que a psicologia teve muita contribuição nesse processo:

Foram muitos psicólogos que, nesta época, empenharam suas vidas na pesquisa de instrumentos que pudessem verificar se, por trás do rendimento bruto, um individuo era intelectualmente mais apto que o outro. Isto é, muitos foram os que se dedicaram com afinco a tentativas de medir, com objetividade e precisão, as verdadeiras aptidões das pessoas, independentemente das influências ambientais, entre elas as de natureza socioeconômica. (PATTO,1999, p. 64).

O processo reforçador de uma sociedade normativa, que buscava enquadrar os sujeitos em comportamentos sociais aceitáveis, reflete-se de forma significativa na atualidade. Cabe enfatizar que a atuação de algumas abordagens da psicologia contribuía e ainda contribui para esse quadro.

Podemos destacar essa participação na criação do mais recente dispositivo criado nos Estados Unidos para aliviar sintomas de transtornos de TDAH. Esse dispositivo foi liberado no dia 19 de maio deste ano pela Food and Drug Administration (FDA).6 Trata-se de um aparelho desenvolvido para crianças de 7 a 12 anos, chamado

Sistema de Estimulação do Nervo Trigêmeo Mornarch Externo (eTNS), que será comercializado pela NeuroSigma. Esse dispositivo fornece um pulso elétrico de baixo nível para partes do cérebro que os cientistas consideram responsáveis pelos sintomas do TDAH. Ele age durante o sono das crianças, ligadas por um fio conectado à cabeça e fornece uma espécie de “formigamento”. Para Stephen Hinshaw (NOVO…, 2019), professor de psicologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley, que liderou

6 FDA é um órgão do governo dos Estados Unidos, criado em 1862, com a função de controlar os

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um grande estudo de pesquisa sobre o TDAH, o dispositivo “[…] parece seguro, e o estudo inicial é cuidadoso e promissor”.

Salientamos que, contrariamente a esse discurso, muitas áreas da psicologia se posicionam de forma crítica em relação à medicalização da vida e da educação. Inclusive, podemos destacar ações do Conselho Federal de Psicologia (CFP) posicionando-se sobre essa questão:

Essa organização permitiu a constituição do Fórum sobre Medicalização da

educação e da sociedade, que tem como objetivos: articular entidades,

grupos e pessoas para o enfrentamento e superação do fenômeno da medicalização, bem como mobilizar a sociedade para a crítica à medicalização da aprendizagem e do comportamento. […] Em função dessas preocupações, o Conselho Federal de Psicologia lança uma Campanha Nacional “não à medicalização da Vida”. Com isso, chamamos atenção para as questões da Medicalização, processo que transforma questões de ordem social, política, cultural em “distúrbios”, “transtornos”, atribuindo ao indivíduo uma série de dificuldades que o inserem no campo das patologias, dos rótulos, das classificações psiquiátricas. (CFP, 2012, p. 6, grifos do original).

Diante desse contexto, consideramos que a medicalização é um fenômeno social complexo e, dessa forma, não deve ser restringida a sentidos únicos e universais. Segundo Carvalho et al. (2015, p. 1262), a medicalização “[…] é um efeito de distintos processos e arranjos históricos sociais, no qual a medicina, em suas facetas variáveis, mas não apenas ela, tem um importante papel na conformação do fenômeno”. De acordo com Abreu (2007), é importante pensar a medicalização não somente como um processo de intervenção sobre os corpos, mas também como um grande discurso que acaba por induzir os sujeitos a determinadas formas de viver, pensar e se comportar: “[…] medicalização passa a significar, portanto, um modo de subjetivação que aciona os processos de constituição de uma subjetividade como resultante das forças que constroem e conformam modos de existir” (ABREU, 2007, p. 1).

1.3 Os efeitos de subjetivação do diagnóstico de TDAH

Consideramos que os diagnósticos produzidos sob uma ótica medicalizadora, por serem estigmatizantes e rotuladores, acabam muitas vezes se tornando determinantes na vida dos sujeitos. Para Frances (2017), ter um rótulo de transtorno mental pode causar grandes danos para o sujeito. Os estigmas podem atravessar muitas dimensões existenciais dos sujeitos permeados por interpelações diagnósticas. A marcação do estigma de um “sujeito com transtorno mental” pode

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ocorrer desde um modo sutil, como em comentários “despretensiosos”, até de maneiras mais danosas de violências simbólicas, que podem acarretar grandes prejuízos no dia a dia. “Rótulos também podem criar profecias autorrealizáveis. Ao ouvir que está doente, a pessoa se sente e age como tal, e os outros a tratam assim” (FRANCES, 2017, pos. 46 Kindle).

Em relação à imposição de rótulos diagnóstico às crianças, Brzozowski e Caponi (2009, p. 1166) afirmam:

[…] Rótulo diagnóstico dá a impressão de que as crianças que os possuem são similares e minimiza suas diferenças. […] Ser classificado, ganhar um nome, é muito comum. Quando este nome, porém, está relacionado a um discurso oficial, como o discurso científico, geralmente reconhecido pela sociedade como uma verdade, ele interage com o classificado de forma mais profunda, duradoura. Isso porque existe uma estrutura subjacente a essa classificação, que engloba a própria classificação, os indivíduos classificados, as instituições, o conhecimento e os especialistas […].

Dunker (2015) considera que, quando os sujeitos são classificados, eles começam a fazer parte de um grupo com conjunto estabelecido de normas. Com esses mecanismos, passam a seguir certos padrões em relação ao fazer, ao saber e ao que é permitido esperar desse diagnóstico. Para o autor, os diagnósticos classificatórios podem definir também os que merecem tratamento e atenção e os que devem ser reprimidos e excluídos.

As nomeações por meio de diagnósticos podem representar também uma forma de “libertação” para os envolvidos. Diante de um estudo feito por Brzozowski e Caponi (2009), que tinha por objetivo analisar a visão de pais e professores sobre o diagnóstico de TDAH e seu efeito sobre as crianças com esse problema, as autoras puderam concluir que, para muitos pais e professores, o diagnóstico é um alívio, pois os envolvidos passam a entender os porquês das atitudes das crianças. Essa nomeação gera grandes mudanças na vida dos sujeitos envolvidos. Ao saber do diagnóstico, as atitudes das famílias e dos professores em relação aos diagnosticados se modificam e, como consequência, os comportamentos das crianças e as percepções de si mesmas também são transformados. Para Fiore (2005), usar os diagnósticos como prescrições de rótulos é uma eficiente estratégia para controlar a subjetividade.

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Nesse contexto, Brzozowski e Caponi (2009) enfatizam que os sujeitos com TDAH apresentam um efeito “de arco com feedback positivo”,7 no qual crianças e/ou

suas famílias aceitam as características do diagnóstico e passam a enquadrá-las a partir dessas descrições nosográficas. Segundo as autoras, após receberem o diagnóstico, as crianças tendem a justificar suas atitudes em razão de sua situação diagnóstica ou até mesmo ver características que antes não eram identificadas. Também é frequente que passem a incorporar incapacidades e a se considerarem pouco inteligentes, internalizando – diríamos, subjetivando – as características próprias do transtorno. Toda a estrutura social muda em favor do nome que a criança recebeu.

Diante dessas interpelações, Brzozowski e Caponi (2009) concluem que, ao receber a nomeação de TDAH, produzem-se efeitos dúbios, ambíguos e complexos. Por um lado, o diagnóstico ajuda a resolver os problemas imediatos das crianças nas escolas, bem como os problemas das escolas em relação às diferenças das crianças. Por outro lado, as consequências de diagnosticar uma criança muito cedo podem gerar respostas na própria criança, que, conforme sugerem as autoras, são capazes de provocar a atualização subjetiva dos próprios sintomas da doença. Brzozowski e Caponi (2009) enfatizam que esse fator pode trazer grandes prejuízos na vida adulta, como se ver como incapaz de realizar atividades cotidianas.

Vale ressaltar que os efeitos sobre os sujeitos com diagnóstico de TDAH estão também associados à medicação, frequentemente utilizada na maioria dos casos. Podemos afirmar que os efeitos físicos, afetivos e psiquiátricos causados pelos medicamentos têm relação direta com os efeitos de subjetivação, uma vez que passam a orientar a forma como os sujeitos se veem. Segundo Whitaker (2017), os efeitos físicos causados pelo metilfenidato são os mais diversos e vão desde dores de cabeça, doenças hepáticas, insônia, inibição do crescimento, hipertensão, até a casos extremos que levam à morte súbita por problemas cardíacos.

Em relação às dificuldades afetivas, pode levar à depressão, ao embotamento geral, assim como oscilações de humor, ansiedade, acessos de choro e sentimentos de hostilidade em relação ao mundo, entre outros. Quanto aos problemas

7 Segundo Hacking (2006), o efeito de arco é um ciclo entre sujeitos que são considerados membros

da classe e a própria classe. A partir do momento em que o indivíduo tem consciência de sua classificação, ele se modifica, exacerba ou ameniza as características associadas às pessoas dessa classe (efeito feedback positivo ou negativo), podendo alterar também as características da própria classe.

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psiquiátricos, os sintomas podem ser desde manias, paranoias, até surtos psicóticos e alucinações. De acordo com Whitaker (2017, p. 237), “[…] os medicamentos apequenam de muitas maneiras a vida da criança, e podem transformá-la num adulto com uma capacidade fisiológica reduzida de sentir prazer”.

Esses medicamentos, que surgem como formas de “encobrir as falhas”, muitas vezes servem como véus para os sintomas e acabam por anestesiar os sujeitos de seus sofrimentos. Acreditamos que anestesiar é uma palavra que permite fazer uma analogia com a dor física, como uma cirurgia, por exemplo. Quando estamos anestesiados não sentimos a dor; porém, ao acabar o efeito da anestesia, a dor pode vir a qualquer momento, ou seja, estar anestesiado não significa estar livre de dor ou de sofrimentos.

Nessa perspectiva, vale ressaltar que existem outras formas e outros olhares em relação aos efeitos dos diagnósticos, entre as quais podemos citar a psicanálise. Para Dunker (2015, p. 33): “Em psicanálise, o diagnóstico não é uma nomeação dada pelo analista, referido em posição de autoridade, visando à naturalização do mal-estar expresso em seu sofrimento”. Para autor, o analisante formula e desenvolve seus próprios diagnósticos e muitas vezes o trabalho clínico tem que passar por toda uma desconstrução do que foi feito sobre o sujeito a partir das nomeações.

O psicanalista pode pensar e agir com hipóteses diagnósticas, pode tomar decisões e tecer estratégias, mas, antes de tudo, não deve inocular no paciente seu vocabulário psicopatológico. Não alienar o analisando com mais significantes, ele terá os seus próprios, basta esperar. Basta esperar que o diagnóstico se fará com as palavras de seu próprio analisante. Muitas vezes, o nome do sintoma virá quando ele não é mais necessário, como um título que se espera, dado a uma pintura concluída. Outras vezes a graça estará em reconhecer a resistência ou o peso dos nomes impróprios ou impostos. (DUNKER, 2015, p. 36).

Ainda segundo Dunker (2015), o diagnóstico em psicanálise acontece de forma distinta da psiquiatria e das ciências da saúde em geral. O diagnóstico na psicanálise é a marca ou o significante que lhe aparece a partir do outro, que venha a descobrir na sua experiência analítica, como uma nomeação própria, ou seja, não é uma prática reservada ao analista, pois é o analisando quem formula e desenvolve seus próprios diagnósticos.

Acreditamos que, independentemente de abordagens ou tratamentos, o que importa é que o sujeito seja visto nas suas singularidades e que seus sofrimentos tenham visibilidade diante dos profissionais que o circundam. De acordo com Dunker (2014, p. 186): “A verdadeira batalha não é entre psicanalistas e psiquiatras ou entre

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psicanalistas e cognitivos comportamentais, mas entre os que lidam com o sofrimento de sujeitos e os que administram o negócio do mal-estar”.

Diante dos temas abordados, analisamos as narrativas de jovens universitários sob os referenciais teóricos que serão descritos a seguir.

2 Metodologia

Esta pesquisa teve por objetivo ser exploratória, de natureza qualitativa, com corte transversal. Os participantes foram três jovens universitários, na faixa etária de 20 a 22 anos, que participam do Programa de Acessibilidade da universidade. Inicialmente, estabelecemos uma aproximação com o responsável pelo programa, a fim de explicar os objetivos desse estudo e de solicitar uma mediação entre possíveis participantes da pesquisa e a pesquisadora. Através desse contato, nos foi fornecido e-mails de oito pessoas com diagnóstico de TDAH que estavam inscritas no programa. Foi feito inicialmente contato por e-mail com seis pessoas, visto que era o programado na pesquisa.

Nesse e-mail foi apresentado resumidamente o projeto de pesquisa e foi feito o convite. Das seis pessoas, somente duas aceitaram fazer parte da pesquisa. Posteriormente, entramos em contato novamente por e-mail com as outras duas, sendo que, destas, somente uma teve interesse em participar. Visto que não havia mais pessoas com o diagnóstico no programa para que pudéssemos tentar mais participantes, tivemos que nos restringir a três participantes. Com os que aceitaram participar da pesquisa, foi possível agendar as entrevistas, explicar os procedimentos da pesquisa e as questões éticas.

2.1 Procedimentos de coleta de dados

Por se tratar de uma pesquisa que envolvia seres humanos, foram previstos os possíveis riscos. Diante disso, antes de iniciar a entrevista, foi apresentado aos participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O TCLE é um documento no qual constam explicações a respeito dos objetivos da pesquisa e dos direitos dos participantes, sendo estes: o anonimato, o direito de desistência a qualquer momento e de recusa a dar as informações solicitadas; os riscos e benefícios. Posteriormente à apresentação e leitura do termo, todos(as) os(as) participantes leram, concordaram e assinaram. Ressaltamos que esta pesquisa foi

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aprovada pelo Comitê de Ética de Pesquisa vinculada a uma universidade da Grande Florianópolis.

Para a obtenção dos dados, optamos por realizar entrevistas individuais e semiestruturadas. Para isso, foi seguido um roteiro de entrevista com 14 perguntas, que abrangiam a temática e os objetivos propostos para a pesquisa. Nesse tipo de instrumento, que combina perguntas abertas e fechadas, o pesquisador deve formular um conjunto de questões previamente definidas para que possa conduzir a entrevista. Além disso, pode-se incluir perguntas não elaboradas a priori para elucidar questões que não tenham ficado claras ou para recompor o contexto dialógico da entrevista. Essa técnica tem como vantagem sua elasticidade, permitindo uma cobertura mais profunda de determinados assuntos, bem como favorecer respostas espontâneas. (BONI; QUARESMA, 2005).

Segundo Pinheiro (2013), a entrevista é uma prática discursiva de ação e interação entre o locutor e o sujeito. É importante que a entrevista aconteça de forma dialética e que as posições não fiquem estáticas, e sim que sejam negociadas constantemente, evitando que a entrevista perca sua fluidez.

Nessa perspectiva, as entrevistas não tiveram limites de duração impostos a priori. A média de duração foi entre 45 e 60 minutos. O local em que foram realizadas foi previamente definido e combinado com antecedência com os envolvidos (pesquisadora e participante). Buscamos um local apropriado que garantisse o sigilo das informações e a privacidade no contexto da entrevista. Duas entrevistas foram realizadas no Serviço de Psicologia da Universidade, que contava com espaços já preparados para a garantia do sigilo, da privacidade e do bem-estar dos participantes. A outra entrevista foi realizada em uma sala de aula previamente reservada, que garantiu os mesmos benefícios. Todas as entrevistas foram audiogravadas e posteriormente transcritas.

2.2 Procedimentos de análise de dados

Após a realização das entrevistas, o material foi transcrito e organizado para análise. A análise das entrevistas foi feita tendo como referência teórico-metodológica a análise de práticas discursivas e de produção de sentidos, tal como proposta por Spink e Medrado (2013).

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Tendo como referência essa perspectiva téorico-metodológica, as narrativas escutadas nas entrevistas foram analisadas de modo a enfatizar as produções de sentidos e as práticas discursivas que se apresentam na interanimação dialógica entre entrevistados(as) e entrevistadora. Segundo Spink e Medrado (2013), é por meio de práticas discursivas que é possível se posicionar nas relações cotidianas e produzir sentidos. Diante disso, para analisarmos as práticas discursivas, fez-se necessário compreender a produção de sentidos.

[…] a produção de sentido não é uma atividade cognitiva intraindividual, nem pura e simples reprodução de modelos pré-determinados. Ela é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso. A produção de sentido é tomada, portanto, como um fenômeno sociolinguístico – uma vez que o uso da linguagem sustenta as práticas sociais geradoras de sentido – e busca entender tanto as práticas discursivas que atravessam o cotidiano (narrativas argumentações e conversas, por exemplo), como os repertórios utilizados nessas produções discursivas. (SPINK; MEDRADO 2013, p. 23).

Os sentidos, de acordo com Spink e Medrado (2013), são construídos na situação dialógica da entrevista, ou seja, não estão dados de antemão, tampouco estão prontos à espera de serem desvelados. Trata-se de uma construção social, um empreendimento coletivo, no qual as pessoas, por meio de suas histórias e culturas, lidam com situações e fenômenos a sua volta.

Para a análise das entrevistas, observamos, nas narrativas dos participantes, dois marcos temporais: o tempo vivido e o tempo curto. Segundo Spink e Medrado (2013), o tempo vivido é a própria história do sujeito, suas experiências e percepções no decorrer de sua vida, as memórias do tempo traduzida em afetos. Trata-se do nosso ponto de referência afetivo, no qual enraizamos nossas narrativas pessoais e identitárias. Quanto ao tempo curto, segundo Spink e Medrado (2013), é o tempo do acontecimento, refere-se a interações sociais face a face: “[…] é o momento concreto da vida social vista como atividade de caráter interativo” (SPINK; MEDRADO, 2013, p. 33). Salientamos que esses tempos acontecem de forma concomitante e são atravessados constantemente pelo tempo longo, que, segundo Spink e Medrado (2013), está ligado a conteúdos culturais definidos ao longo da história.

Nessa perspectiva, analisamos os sentidos atribuídos ao diagnóstico de TDAH nas trajetórias escolares de sujeitos que foram diagnosticados com esse transtorno. Pelas narrativas compartilhadas durante as entrevistas, procuramos analisar os efeitos de subjetivação desse diagnóstico para os sujeitos entrevistados.

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3 Discussão

Para que haja uma melhor compreensão em relação aos entrevistados, o Quadro 1 apresenta os seguintes dados de cada participante: nome; idade em que receberam os diagnósticos; medicações indicadas para tratamento do TDAH; trajetória escolar e fase atual do curso de graduação. Salientamos que os nomes usados são fictícios, como forma de garantia de sigilo.

Para a elaboração da análise das narrativas, os itens da discussão foram divididos em eixos. Primeiramente, tratamos da construção do diagnóstico do TDAH, no qual buscamos analisar como os diagnósticos foram se apresentando na vida dos participantes e os efeitos deles na subjetivação.

No eixo trajetória escolar: o tempo pré-diagnóstico, analisamos as trajetórias escolares antes dos efeitos diagnósticos. Já no eixo trajetória escolar: o tempo

pós-diagnóstico, buscamos compreender as possíveis mudanças e afetações que o

diagnóstico pode apresentar.

No último eixo de discussão, o efeito “zumbi” nos processos de subjetivação, abordamos os efeitos da medicação e os processos de subjetivação e medicalização, analisando as afetações desses processos na vida dos sujeitos pesquisados.

Quadro 1 – Caracterização dos participantes

Fonte: Elaboração da autora (2019)

3.1 A construção do diagnóstico do TDAH

Ao analisarmos os sentidos atribuídos pelos participantes ao diagnóstico de TDAH, percebe-se um discurso comum em relação aos comportamentos ditos

Nome Idade atual Idade do diagnóstico de TDAH Medicação indicada para tratamento de TDAH Trajetória escolar Fase atual do curso/ graduação

Marina 20 anos 10 anos Ritalina (metilfenidato)

Stilnox (hemitartarato de zolpidem) (para insônia) Escola particular (método tradicional de ensino) 2ª e 4ª fase

Joana 21 anos 19 anos Concerta

(metilfenidato) Serenata (cloridrato de sertralina) (para ansiedade) Escola particular (método tradicional de ensino) 7ª e 8ª fase

Felipe 23 anos 20 anos Ritalina (metilfenidato)

Serenata (cloridrato de sertralina) (para ansiedade) Escola particular (método tradicional de ensino) 10ª fase

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“anormais”, que foram evocados como recorrentes desde a primeira infância. Porém, os três casos foram diagnosticados de modos diferentes e em distintos tempos da vida de cada participante. Marina, por exemplo, foi a única que recebeu o diagnóstico na infância, quando tinha apenas dez anos.

Os comportamentos considerados “anormais”, que fazem parte de todo processo histórico e cultural já problematizado anteriormente, podem ser assim caracterizados por diversos motivos pela racionalidade médico-psiquiátrica. Salientamos que as exigências disciplinares e os excessos de demanda e informações às crianças podem levá-las a alterações comportamentais, dentre as quais podemos citar a hiperatividade como um comportamento que pode ser desencadeado por esses excessos.

Segundo Mano (2009), a criança hiperativa ocupa, muitas vezes, uma cristalização da demanda do outro direcionada em seu corpo, uma vez que ainda não possui recursos para lidar com os excessos dessa demanda. Essa cristalização está ligada ao fato de a criança encontrar dificuldade de lidar com a lógica da separação de desejos e posicionamentos, e, nesse caso, essas dificuldades se manifestam no corpo da criança em forma de agitação, como se fosse uma resposta dela frente às demandas.

Nessa perspectiva, percebemos, em uma das narrativas, que o comportamento hiperativo é atribuído como sendo a maior dificuldade na trajetória escolar de uma das participantes da pesquisa. Em sua narrativa, Marina relata que sempre foi uma criança agitada e tinha muita dificuldade de concentração: “[…] eu me mexia muito na aula,

não conseguia ficar sentada, tinha que ficar trocando de perna o tempo todo […] não prestava a atenção em nada direito” (Marina).

Frente ao sentimento de inadequação, por ser considerada agitada e com dificuldade de concentração, Marina expressa um sentido de “tranquilidade” decorrente da interpelação do diagnóstico de TDAH: “Foi tranquilo, porque como todo

mundo já estava acostumado comigo meio agitada e com essa oscilação de concentração, foi mais tranquilo […]” (Marina). Segundo Mano (2009), as formas pelas

quais se apresentam os significantes, nesse caso a “tranquilidade”, podem representar uma fantasia, podendo aparecer como forma de buscar um tamponamento do desejo do outro.

Diante disso, esse sentimento de tranquilidade, expresso por Marina ao receber o diagnóstico, parece responder, também, a um “desejo de normalidade”. Tal desejo

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se sustenta, na medida em que o diagnóstico passa a dar sustentação à cadeia de significantes (“sou TDAH”, “tenho TDAH” etc.) e satisfazer fantasias de ajustamento e normalidade. Tais fantasias são sempre demandadas por um outro, mas se apresentam enredadas no próprio discurso. Para Miller (1984, p. 24), “[…] a fantasia entra em cena no momento que é pressentido o desejo do outro”.

Joana e Felipe receberam o diagnóstico, respectivamente, aos 19 e 20 anos, quando já estavam na universidade. Ambos apresentaram ideias semelhantes em relação ao diagnóstico, associando-o a um sentido de “incapacidade” e de “comparação autodepreciativa a um outro semelhante”. Tanto Joana como Felipe têm irmãos com idades próximas, o que acarretou comparações em relação aos seus desempenhos escolares e comportamentais nos ambientes familiar e escolar. Ao serem questionados sobre como se sentiram ao receber o diagnóstico de TDAH, falaram:

É que é muito difícil, […] não é nem questão de receber, é questão de comparar sabe? Se comparar muito com as outras pessoas. “Ah, eles conseguem e tu não”. […] “Tu precisas de uma medicação pra conseguir” […]. (Joana)

Ah, eu vi que tinha dificuldade pra isso e tal. Eu pensei “é por isso que não consigo” […] é difícil às vezes ouvir a verdade, mas vejo os outros se dando bem e tal. E eu ali… (Felipe)

Em razão de muitas vezes o diagnóstico de TDAH estar diretamente ligado a sentimentos de incapacidade e de fracasso, pode trazer ao sujeito sofrimentos e angústias, pelo fato de ele acreditar que irá conviver com algo determinante e definitivo em sua vida. No entanto, em muitos casos, esse mesmo diagnóstico pode trazer uma sensação de alívio, pois nomeia o sofrimento. Esse sofrimento, segundo Dunker (2017), tem uma estrutura de narrativa e depende de atos e reconhecimentos de si e do outro. Para o autor, imaginamos que para termos um sofrimento legítimo é importante que ele tenha um nome digno (como TDAH), pois pensamos que sem isso o sofrimento não poderá ter reconhecimento ou legitimação.

Nas narrativas escutadas, observamos que as conclusões diagnósticas seguiram os mesmos critérios avaliativos em todos os casos. Destacamos as semelhanças nos procedimentos avaliativos, a despeito das diferenças de especialidades dos profissionais designados para a realização do diagnóstico. Cada um dos entrevistados foi diagnosticado por um profissional específico: neurologista, psiquiatra e psicopedagoga. Em todos os casos, foram aplicados os critérios de teste e checklists indicados no DSM-V, bem como relatos de comportamento dos pacientes.

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Conforme as falas de Joana e Marina, foi possível perceber que esses diagnósticos foram realizados em apenas uma consulta:

[…] daí a gente foi pro neuro[logista], o neuro[logista] fez uns testes comigo daí deu… eu tenho TDAH e hiperatividade [...]. Ele deu uma folhinha assim e acho que eram umas 20 opções pra assinar: “sim, não e talvez”. Vamos supor, umas perguntas dizendo assim: se tiver tantas coisas ligadas, no que tu prestas atenção, você responde: sim, não, talvez. Daí se marcasse sim valia, o talvez ele descartava. […] Então… e pelo meu comportamento do dia a dia também […]. (Joana)

Daí eu sei que fui no psiquiatra e fiz os testes de déficit de atenção de hiperatividade tudo… daí o psiquiatra me diagnosticou. (Marina)

De acordo com os relatos, percebe-se que não houve dúvidas ou questionamentos em relação aos diagnósticos ou às formas pelas quais eles foram realizados. Os critérios adotados para diagnosticar transtornos mentais são baseados em categorias pouco precisas e muito generalizantes. Conforme Dunker (2014), os patamares de confiabilidade diagnóstica foram sendo reduzidos, e isso reflete uma política “ampliacionista”, que insere pessoas de forma indiscriminada no campo da doença mental. Para o autor, é muito provável que esse movimento ampliacionista favoreceu as epidemias, como TDAH, autismo e depressão.

Outro fator que consideramos relevante em relação aos diagnósticos realizados é que houve, nos três casos, indicações medicamentosas para o tratamento do TDAH. Nos relatos escutados, identificamos o uso do metilfenidato – mais conhecido pelos seus nomes comerciais Ritalina e Concerta, associado a outros fármacos, como ansiolíticos e hipnóticos, a fim de controlar a ansiedade e regular o sono. Em todos os casos, a terapia farmacológica foi a primeira opção de tratamento.

Conforme aponta Luengo (2010), os medicamentos são a primeira escolha no tratamento de TDAH, sobretudo na infância. Segundo a autora, a maioria dos médicos usa a medicação como principal forma de tratamento e desconsidera que esta deveria vir combinada com terapias de diversas especialidades. O que ocorre, na maioria dos casos, é que o tratamento se restringe exclusivamente à medicação.

Os remédios, segundo Luengo (2010), dão conta de normatizar os sujeitos nas questões escolares e profissionais, pois aumentam o foco e a produtividade. Vivemos em um sistema que clama por sujeitos ultraprodutivos, no qual as soluções devem acontecer de forma imediata e as pessoas precisam estar preparadas para essa demanda.

Vivemos em uma sociedade marcada por uma elevada exigência de produtividade em curto prazo e com baixo custo. Os cidadãos são capturados pela escassez de tempo para desempenharem atividades cada vez mais

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complexas em um mercado altamente competitivo. Exige-se, também, que as pessoas possam superar a si mesmas. Aqueles que não se enquadram nesse padrão, por razões diversas, sentem-se inseguros e, ao manifestarem seus sofrimentos, são rotulados de doentes. No mundo do desemprego estrutural, ninguém se sente seguro diante da pressão por produtividade e resolutividade. (BAUMAN, 2001).

Nessa perspectiva, entende-se que, pelo fato de os sujeitos acreditarem que estão “dando conta” de atender a essas demandas diárias, as questões psíquicas acabam sendo desconsideradas, por estarem anestesiadas nesse processo. Dos três casos, apenas Marina fez acompanhamento psicoterápico durante três anos (dos 10 aos 13). Até o momento das entrevistas, constatou-se que nenhum dos participantes está em acompanhamento psicoterapêutico ou qualquer outra forma de intervenção. Salientamos que as abordagens psicoterapêuticas ou psicanalíticas poderiam contribuir de forma significativa no processo de elaboração psíquica das questões singulares dos sofrimentos dos sujeitos com o diagnóstico de TDAH.

3.2 Trajetória escolar: o tempo pré-diagnóstico

As trajetórias escolares dos três participantes se apresentaram de forma muito semelhante. Nesse primeiro momento, o do pré-diagnóstico, percebemos que as características citadas estavam ligadas a três eixos: ter comportamentos

problemáticos, não prestar atenção e não aprender. Essas são algumas das

descrições que compõem os enunciados sobre os modos de ser na escola, conforme se observa a seguir:

[…] quem tem esse diagnóstico tem um comportamento diferente dos outros alunos e isso é fato! Tem um comportamento diferente! Tem dificuldade de aprender mesmo. (Marina)

A questão de estudar…eu ficava 5 minutos não conseguia… eu não consigo

fazer… tipo, não adianta! […] “ah, eles conseguem e tu não” […] “ah, ela é burra”. (Joana)

Em perspectivas educacionais mais normalizadoras e prescritivas, esses comportamentos são classificados, a partir das alianças dos dispositivos médicos e pedagógicos, como desviantes e patológicos. Tal fato pode ser explicado historicamente. Segundo Patto (1999), os primeiros especialistas que se preocuparam com dificuldades de aprendizagem escolar foram os médicos, especialmente os psiquiatras. As classificações como “anormais” surgiram para designar e nomear as crianças que não acompanhavam seus colegas no processo de aprendizagem. As chamadas “crianças-problema” eram encaminhadas para os profissionais

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especialistas em corrigir os “anormais”, tendo sido identificadas em instituições disciplinares, como as escolas, onde, muitas vezes, os comportamentos agitados e desviantes das normas técnico-burocráticas não eram tolerados. Dessa forma, a psiquiatria foi se instituindo como defensora da ordem social no interior das práticas educativas.

Para Caponi (2009), a partir do momento em que se associa o conceito de saúde ao de normalidade, entendida como frequência estatística, qualquer anomalia ficará inevitavelmente associada à patologia. A autora ressalta que não são as mediações normativas ou os desvios padrão que estabelecem o estado de doença, e sim o sofrimento do sujeito diante desse processo normativo.

Dessa forma, podemos entender que certas correntes pedagógicas, mais tradicionais e disciplinares, muitas vezes não consideram os sofrimentos e as individualidades, pressupondo que todos precisam estar em um mesmo padrão de ritmos e comportamentos. Aqueles que se encontram fora desse padrão são vistos como “burros”, “incapazes”, “rebeldes” etc. Uma alternativa usada por essas instituições escolares, como forma de lidar com diferenças e incômodos, são as punições. Para Caponi (2009), essas punições apresentam-se como reforçadoras de estigmas comportamentais. Podemos perceber tal fato nas falas de Marina: “[…]

colocavam de castigo… eram mais rígidos… davam advertência, ocorrência por achar que a gente estava desafiando”.

Essa postura ditatorial pode transformar tais instituições em ambientes tóxicos, opressores e produtores de patologias, contrariando o ideal de escola a ser construído em sociedades democráticas. De acordo com Luengo:

A sala de aula deve ser vista como espaço de encontro onde aluno e professor unem-se para refletir sobre as questões que se encontram muito além dos livros. O professor não é um mero transmissor de conhecimento, e o aluno não é um mero receptor; são partes de um processo educativo que só flui de maneira positiva quando ambos se respeitam e reconhecem no outro a sua importância. (LUENGO, 2010, p. 57).

Quando os educadores/as se colocam na posição de saber absoluto e de controladores de comportamentos, acabam por eliminar qualquer possibilidade de troca e respeito. Como podemos perceber na fala de Marina:

“Presta atenção no que você tá fazendo, tá fazendo errado!” “Faz assim que é mais fácil”. Ih… a gente escuta muita coisa. A gente vai chegar no mesmo resultado, só que às vezes a pessoa não entende e quer que a gente faça do jeito delas.

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Segundo Paulo Freire (1987), é preciso pensar em uma educação que lute para a libertação do homem de sua condição de oprimido, atribuindo-lhe maior autonomia intelectual, a fim de que deixe de ser mero objeto de manipulação e resgate a sua condição de sujeito. Segundo o autor, a educação deve ser baseada em uma “pedagogia do diálogo”. Nessa pedagogia, muda-se a relação de poder do professor sobre o aluno e se estabelece uma relação educador-educando que faz acontecer simultaneamente as trocas de conhecimentos.

Posturas contrárias a essas perspectivas críticas e emancipatórias tendem a cair nas métricas comportamentais e, dessa forma, patologizar e medicalizar todos os comportamentos dos sujeitos, muitas vezes culpabilizando-os pelo fracasso escolar. Nessa perspectiva, a partir desse momento, segundo Luengo (2010, p. 60), “[…] o fracasso deixa de ser escolar e passa a ser do escolar, aquele que apresenta comportamento considerado desviante em relação ao padrão preestabelecido pela sociedade”. Esse fenômeno pode ser percebido no caso de Joana:

[…] é muito ruim se sentir assim… Porque tu acha que o professor vai chegar e vai achar que tu é incapaz, tu é burra, vai te comparar com os outros. Daí vem um pouco da comparação em casa. É muito ruim, é um sentimento de fracasso […].

Segundo Luengo (2010), os psicotrópicos, nesses casos, entram com objetivo de simplificar as coisas, resolvendo os problemas apresentados de forma rápida e milagrosa. Dessa forma, a “doença do não aprender” passa a ser medicada, e os problemas comportamentais e cognitivos são resolvidos de forma abrupta. Com a finalidade de se obter controle, desconsideram-se quaisquer outras possibilidades terapêuticas. Assim, consegue-se aumentar a concentração, e, por consequência, o desempenho esperado é alcançado.

3.3 Trajetória escolar: o tempo pós-diagnóstico

Na segunda temporalidade que analisamos, o pós-diagnóstico, quando questionamos quanto ao seu desempenho após terem sido medicados, os participantes responderam:

[…] melhorou muito meu desempenho...é muita diferença… tipo antes eu tirava 3,5, hoje, eu tiro 9, 9,5 […]. Hoje eu sento, faço a prova toda, muito concentrada… e vou super bem. (Joana)

[…] bem melhor, muda muito. […] as minhas notas melhoraram muito.

(Marina)

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Podemos perceber, nas falas acima, que os medicamentos entraram na vida desses sujeitos, para que estes melhorassem seu desempenho e dessem conta de fazer as provas, melhorar suas notas e conseguirem ser aprovados. Para Foucault (2003), técnicas escolares normalizadoras, a exemplo das provas, nas quais os estudantes precisam realizar para que recebam uma nota (média), são muitas vezes técnicas de vigilância hierarquizadas que têm por objetivo classificar, qualificar e punir.

Nesse contexto, podemos destacar as reprovações escolares, algo que acontece de forma recorrente com alunos que são classificados com a “doença do não aprender”, como sendo uma forma punitiva para os que não deram conta de estar nas médias estipuladas. Nas narrativas, percebemos que as reprovações aconteceram de forma significante nos pesquisados.

[…] pelo problema de concentração a gente tem mais probabilidade de reprovar […] eu já reprovei duas vezes e uma vez fiquei em dependência.

(Marina)

[…] eu já reprovei em várias matérias antes de tomar ritalina. (Joana) Essas técnicas que supõem um exercício de poder são formas muito eficazes de normalização e mostram como as instituições constituem seus próprios mecanismos de julgamento. Diante disso, algumas correntes educacionais, que agem como dispositivos de normalização e de modelos produtivos e normativos, buscam “sugerir” a esses alunos que não dão conta de estarem nas médias a procurarem profissionais que possam “orientar” quanto ao que pode estar “desregulado”, para que possam se adaptar aos padrões. Dessa forma, os psicofármacos entram nesse contexto, segundo Christofari, Freitas e Baptista (2019), para “regular” o que está “desregulado”. Buscam-se, assim, formas de proporcionar ao sujeito o que essas instituições pretendem: que os corpos desses sujeitos fiquem o mais próximo possível daquilo que acreditam ser “o melhor” para dar conta de uma demanda produtiva. Os sujeitos diagnosticados passam, então, a se apropriarem e a se identificarem com as patologias, conforme expressam alguns dos entrevistados:

[…] eu tenho TDAH, né, sou bem distraída. (Joana)

Eu tenho TDAH, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, eu faço prova em uma salinha separada. (Marina)

Segundo Caponi (2009), quando construímos apropriações dos diagnósticos psiquiátricos, tais identificações podem ter impactos diretos no modo de construção de nossa subjetividade, gerando respostas e consequências nos sujeitos e em seus familiares. Alguns desses efeitos são analisados no tópico seguinte.

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3.4 O efeito “zumbi” nos processos de subjetivação

Os psicofármacos utilizados para o TDAH, como o metilfenidato, são drogas que têm o efeito de produzir alterações comportamentais, intelectuais e afetivas. Da família das anfetaminas, possuem ação psicoestimulante. Esses medicamentos, que agem em cada organismo de formas diferentes, têm por objetivo principal aumentar a concentração e o foco. Porém, segundo Caponi (2019), ainda que estes fármacos permitam disciplinar e aumentar a atenção e concentração, eles têm o poder maior de inibir a capacidade criativa, lúdica e questionadora dos sujeitos. Para Foucault (2003, p. 268), “[…] as drogas foram, como são as drogas atuais, um instrumento disciplinar evidente: reino da ordem, da calma, da imposição do silêncio”.

As tentativas de adormecer esses corpos por meio da medicação e de reducionismo biológico tendem também a amortizar também os sujeitos frente às incertezas, às dificuldades e aos sofrimentos da vida. Para Giusti (2016, p. 213): “O discurso médico infiltrado nas escolas, por exemplo, influencia não só as práticas pedagógicas, mas a toda maneira de lidar com a vida”. Segundo a autora:

A falsa solução apregada pelos psicofármacos está minando a capacidade de escrevermos nossa própria história; minando nosso olhar crítico a respeito de problemas que cercam o cotidiano educacional. A reordenação das subjetividades no âmbito escolar, a partir da medicação, reduz a própria experiência da aprendizagem enquanto instância transformadora. (GIUSTI, 2016, p. 214).

Pudemos observar nas narrativas escutadas alguns dos efeitos dos psicofármacos. Um efeito narrado em uma das entrevistas que consideramos importante destacar foi o efeito “zumbi”, relatado por Marina:

A ritalina tem um efeito que a gente considera zumbi… porque quem toma ritalina fica mais calmo, e para a sociedade fica normal. Só que para a gente que é agitado ela acalma e dá concentração, só que a nossa cabeça tá a mil. Mas, aparentemente, tá tudo tranquilo […] É um efeito mais calmo, comparado ao que a gente era, e daí fica parecendo um zumbi.

Segundo Dunker (2017, p. 198), “[…] os zumbis – ou mortos-vivos, são os sujeitos que buscam repetir automaticamente uma ação: parecem seres que perderam a alma e cujo sofrimento surge em meio a mutismos seletivos, fenômenos psicossomáticos e alexetimias (dificuldade de perceber sentimentos e nomeá-los)”. Dessa forma, a medicação atua como reguladora da normalização e faz com que esses sujeitos sigam o fluxo de ritmos impostos, agindo como verdadeiros “zumbis” em busca das normas.

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Salientamos que a normatização da sociedade é algo que pode acontecer de modo muito agressivo e visível, mas também de modo muito sutil e imperceptível. Por isso, os sujeitos vão se “enquadrando” e seguindo em moldes sem muitas vezes questionar ou problematizar o que se vivencia. Para Butler (2014, p. 1):

Normas podem ou não serem explícitas, e quando elas operam como o princípio normalizador da prática social, elas geralmente permanecem implícitas, difíceis de perceber e mais clara e dramaticamente discerníveis nos efeitos que produzem.

As imposições normativas podem gerar, em alguns casos, dependências químicas e/ou psicológicas para dar conta da demanda. Na fala de Joana foi possível observar que em alguns momentos ela aparenta apresentar uma necessidade de medicação para que possa conseguir realizar demandas educacionais. Segundo ela relata: “Eu tomo quando vou estudar, para me concentrar. Eu fico o dia inteiro

estudando, mas se eu não tomar ele eu não consigo estudar e daí eu sei que vou mal na prova”. Assim, para Luengo (2010), as medicações podem tornar-se “bengalas” na

vida do sujeito, e estes passam a acreditar que não são mais capazes de realizar algumas atividades sem o auxilio dos psicotrópicos.

Além dos efeitos supracitados, os psicotrópicos também apresentam diversos efeitos colaterais orgânicos. Esses efeitos, que podem trazer prejuízos no dia a dia dos sujeitos medicados, eclodem de forma direta no âmbito escolar desses sujeitos. Nas três entrevistas, quando questionados sobre os sintomas físicos que sentiam ou sentem, testemunhamos alguns relatos:

A ritalina deixa a gente com muito sono ou com muita dificuldade para dormir. Pode deixar com muita fome ou sem fome nenhuma, depende do dia e da dose que você toma. (Marina)

[…] fico muito suor, pensamento a mil e fico com muita insônia se tomo mais tarde que o normal. (Joana)

[…] eu ficava todo tenso, sem rir, igual um robô. Mas, eu conseguia ter foco.

(Felipe)

Esses efeitos físicos apresentados podem interferir diretamente na qualidade de vida desses sujeitos, bem como nas suas relações sociais. Por produzirem efeitos que alteram o estado de vigília, por exemplo, podem deixar a pessoa cansada, alterando seu humor e deixando-a irritada. Percebemos que todos os sujeitos pesquisados se sentem ou sentiram muito desconfortáveis com os efeitos colaterais dos remédios para TDAH. Diante disso, fica explícito nas narrativas de Marina e Felipe que esses sujeitos buscaram encontrar estratégias alternativas de lidar com os sintomas e com os efeitos da falta de medicação. No período em que a entrevista foi

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