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Túnis, 14 de janeiro de Após

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Academic year: 2021

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TexTo Luís Patriani | FoTos Chema LLanos

Na Tunísia, ventos de modernidade

sopram depois da revolução. Mas não

varrem as tradições. Pelo contrário,

o contemporâneo e o antigo convivem

e dão ao país sabor particular

O ISLÃ COM

SOTAQUE

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erguido no século 3o d.C, o

coliseu de el Jem é o terceiro maior do mundo e abrigava até 35 mil espectadores no auge do império romano. À DIReITA, tunisiana mantém costumes antigos, como a tecelagem

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T

únis, 14 de janeiro de 2011. Após um mês de protestos nas ruas organizados pela internet, o pacífico povo tunisiano dá um basta à corrupção e põe para correr o ditador Zine El Abidine Ben Ali, que foge para a Arábia Saudita com sua família e um bocado de dinheiro. A chamada Revolução da Dignidade, marcada por ser a primeira do movimento Primavera Árabe e por ter sido bem mais pacífica do que os levantes populares no Egito, Líbia e Síria, colocou a Tunísia no mapa dos países democráticos e de volta à rota mundial dos destinos mais atraentes.

Nas ruas da capital, cenas do cotidiano revelam como essa nação do norte da África, palco do império cartaginês, se vale de suas tradições sem perder o sopro de

modernidade que resolveu bater aqui recentemente. Na avenida Habib Bourguiba ou nas baladas do chique bairro Samart, a ousadia de jovens mulheres vestidas com roupas ocidentais e orgulhosas em mostrar suas feições árabes contrasta com o recato de senhoras e moças e seus hijabs (véu) a encobrir-lhes a cabeça.

A poucos metros dali, no emaranhado de vielas da milenar medina, grupos de alfaiates

sentados no chão tecem à mão o tradicional

jebba, tipo de roupa usada pelos noivos nos

casamentos islâmicos. Ao lado, vendedores mantêm a tradição de ofícios aprendidos há muitas gerações e comercializam tecidos, especiarias, livros, perfumes, ouro e tudo o que se possa imaginar, barganhando o preço como se fosse há 1.400 anos, quando a antiga cidade murada foi construída.

Em Sidi Bou Saïd, vila fundada no século 13 por um líder sufista (corrente mística do islamismo), o passado religioso divide espaço com sofisticados restaurantes e hotéis de charme, como o Dar Said, com

privilegiada vista para o Golfo de Túnis, ou o requintado café Sidi Chebaane, também conhecido como Café das Delícias. As portas das casas são atração à parte. Pintadas de azul para contrastar com o branco das paredes – o estilo helênico é uma padronização estética de alguns países banhados pelo Mediterrâneo –, elas se diferem umas das outras com grafismos feitos com cravos de ferro, como se fossem uma espécie de assinatura do morador.

Lá embaixo, na base da colina onde fica Sidi Bou Saïd, o bairro La Marca abriga uma confeitaria que não chama a atenção apenas pelas guloseimas que vende, mas também

pelo resgate do patrimônio culinário herdado dos otomanos, feito por sua proprietária Abdelhak Zarrouk, de 97 anos. “Depois que deixamos de ser uma colônia da França, em 1956, curiosamente os tunisianos esqueceram grande parte de suas receitas de sobremesas mais antigas e adotaram as francesas. Minha mãe recuperou parte dessas iguarias e passou a ensiná-las aos mais jovens”, diz com orgulho o filho Yossef, enquanto segura um típico doce bombalouni, feito com semolina e açúcar.

A rica gastronomia da Tunísia, marcada pela mistura de influências dos diferentes povos que dominaram a região ao longo do tempo (leia-se fenícios, romanos, berberes, árabes muçulmanos, turcos e franceses), pode ser saboreada no restaurante Dar El Jeld, um dos melhores e mais procurados da capital. Localizado na entrada da medina de Túnis, visitá-lo vai além de aguçar o paladar por meio de saborosos couscous (criado pelos berberes com semolina cartaginesa), tenras carnes de carneiro assada, grelhada ou preparada no vapor, e o surpreendente

kabkabou, robalo refogado com pimenta,

tomate e batatas e servido com ovos. Ao passar a porta amarela, a casa construída no século 18 mostra-se em grandes salões

As termas de Antonino, em Cartago, revelam a mudança do poder após os romanos tomarem a região do controle dos fenícios; em Kaioran, a capital dos tapetes, modelo feito de caxemira chega a custar 3 mil dólares

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As portas azuis decoradas com cravos pretos são uma das atrações da vila de sidi Bou saïd, em Túnis, fundada no século 13

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eNfeiTes e Mosaicos leMbraM a éPoca dos roMaNos

o Museu do Bardo abriga uma das maiores coleções do mundo de mosaicos romanos

salen Boussida faz a barba sossegadamente no salão da medina

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ornamentados com pinturas e mosaicos arabescos. No pátio central, o som do kanoun, instrumento feito de madeira, pele de peixe, cordas de náilon e chaves de metal, cuja aparência e sonoridade se parecem com a harpa, cria uma atmosfera que remete os pensamentos à época em que a família El Jeld fazia parte da elite do império otomano.

O cardápio de atrações arqueológicas da Tunísia, assim como o gastronômico, é variado e muda conforme a cultura da civilização que reinou por aqui. A poucos quilômetros da capital, as ruínas da poderosa cidade-Estado de Cartago são umas das maiores relíquias do país. O domínio dos fenícios no norte da África durou do século 8º a.C. ao 2º a.C. Durante o período, a supremacia naval lhes deu o controle do Mar Mediterrâneo, assim como da Sicília, da Sardenha e de Cartagena, derrotando os gregos e caindo apenas depois da guerra púnica (termo que dá nome aos cartagineses) contra o império romano, em 204 a.C. Por aqui, a imaginação anda solta quando se encontra resquícios das antigas muralhas, pedras de tumbas de crianças que os fenícios sacrificavam para oferecer à divindade Baal Hammon e os Banhos de Antonino, termas construídas pelos romanos abastecidas por um aqueduto que trazia água quente.

A sudeste da capital, em El Jem, o terceiro maior coliseu do mundo, só perde para o de Roma e o de Pádua, mostra que o legado romano, reconhecido como o maior em todo o norte da África, foi bastante forte e presente nessa terra. Preservado pelo tempo, essa imensa construção de três andares, erguida no século 3º d.C., abrigava até 35 mil espectadores que se divertiam com os espetáculos de morte promovidos por leões e gladiadores. Hoje El Jem tem 3 mil habitantes e o único evento no coliseu é o festival internacional de música clássica, que acontece em agosto.

O show de espadas sai de cena para ceder lugar à quarta mais importante mesquita do mundo árabe na cidade santa de Kairouan. Fundada em 670 d.C., a Grande Mesquita só fica atrás de Meca,

Conhecidos como soukes, os mercados nas medinas vendem desde artigos para incenso até pratos típicos e trajes para casamentos islâmicos

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o saara fiNalMeNTe MosTra sua face.

esTraNgeiros e Mercadores de aNiMais

aProveiTaM a PaisageM desérTica

No deserto, passeios de camelo divertem os viajantes, enquanto os guias relembram histórias do passado

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Medina e Jerusalém em importância religiosa. “Quem vem rezar aqui sete vezes é como se tivesse feito uma peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, a mais importante de todas as mesquitas”, diz o guia Mohamed Dardour, que faz questão de frisar que o povo da Tunísia é conhecido pela convivência pacífica com outras religiões. “O bom praticante tem que rezar cinco vezes ao dia. A oração depende da fé. Pode durar só cinco minutos, mas se o fiel quiser falar com Alá, a prece deve demorar bastante.”

O clima sagrado de Kairouan se mantém firme no Mausoléu de Barbel (barbeiro, em português). Explica-se: o templo era a casa onde morava Sid Aboul Balaoui, o barbeiro do grande profeta Mohamed, que esteve na região para fundar a cidade depois de lutar contra o povo berbere no século 7º d.C. – diz-se que o fiel barbeiro foi enterrado em sua residência junto com três pelos da barba do profeta. Crenças à parte, a casa é toda decorada com mosaicos feitos com desenhos geométricos e florais e serve como escola do alcorão para crianças, que aprendem parte dos 114 versículos do livro cantando.

Kairouan não é só uma cidade “divina”. Ela é a capital dos tapetes, que chegam de várias partes do país para serem

comercializados na região. Em uma das maiores cooperativas, o vendedor Lorenzo dá vazão ao seu lado ator e chama tanta atenção quanto os tapetes de lã de cordeiro, caxemira e seda. “Levantem para tocar a caxemira. É melhor que Picasso”, diz com uma entonação bastante peculiar. “Agora sentem para saber o preço. Três mil dólares. Esse tapete de 20 quilos demorou três meses para ser feito. São 180 mil nós por metro quadrado”, justifica.

Em Sousse, conhecida pelos resorts à beira do Mediterrâneo, a dica é subir na torre central do monastério fortificado, construído no século 8o d.C. Lá de cima, a

vista é espetacular e dá para ver os muros milenares que ainda cercam parte da cidade. Na medina, o início da noite deixa as vielas e o comércio quase vazios, a não ser pela presença de gatos (como sagrados, eram o animal favorito de Maomé) e de uma barbearia aberta. Lá dentro, Salen Boussida, um tunisiano muito simpático, está ansioso por fazer a barba e, segundo suas palavras, “ficar bonito para a esposa”. O barbeiro faz seu serviço até que o chamado para a reza das 18h30 (são cinco preces por dia) ecoa dos alto-falantes. Em poucos minutos todos se foram, inclusive Salen, de barba feita.

O mosaico de cenários e culturas, outra

vez, muda radicalmente. As montanhas de Matmata, próximas à cidade de Gabes, no centro do país, guardam até hoje as casas trogloditas, escavadas dentro da terra pelo povo berbere no século 10º d.C. Atualmente vivem aqui pelo menos 35 famílias. Em uma das moradas, situadas a cerca de 10 metros de profundidade, Fátima e sua filha Jésia mostram os tapetes berberes que fazem. Enquanto a mãe tece, a filha prepara uma pasta à base de amêndoas para o almoço. “No verão, a casa é muito fresca, mas no inverno, é quente”, conta Jésia, cujo filho trabalha nas minas de fosfato de Gabes,

a maior fonte de riqueza da Tunísia. Na ilha de Djerba, no sudeste do país, o bairro Riadh, cujo significado é

tranquilidade, mostra porque a Tunísia é reconhecida como pacífica e tolerante. Aqui vivem cerca de 1.300 judeus, que habitam a região desde o século 6º a.C. A sinagoga, dizem, guarda um livro da Torá muito antigo. “Os judeus e muçulmanos estudam na mesma escola. Há até casos de namoros entre eles, mas que não seguem muito adiante”, conta o guia Mohamed Dardour.

Na feira central da ilha, enquanto os judeus dominam o souk (mercado) de ouro,

acontece um concorrido leilão de peixes.

Na ilha de Djerba, Mohamed usa uma antiga técnica indiana para tecer artigos com folhas de palmeiras; em Tataouine, o Ksar Haddada, construído no século 10o d.C.

pelos berberes, foi cenário de star Wars

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Porta de entrada do saara, a cidade de Douz é palco de feiras onde os povos do deserto comercializam animais

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Alheio à disputa pelo robalo, o pescado mais cobiçado do dia, um artesão faz um cesto com folhas de palmeiras. Sua técnica se chama vanneriel e veio da Índia. “Meu pai aprendeu com meu avô, mas essa tradição está acabando. Minha geração não está mais interessada porque não dá dinheiro”, comenta a professora Amel, que ajuda o pai Mohamed nas horas vagas. Outra tradição típica de Djerba são os cozidos feitos em ânforas (vasos de cerâmica usados pelos romanos para armazenar azeites e cereais), que são fechados na abertura e colocados no forno. O prato, composto de carne e legumes, surgiu dos costumes berberes e, para servi-lo, é preciso quebrar o lacre de gesso, um ritual tão interessante quanto seu sabor.

O Saara se aproxima. A paisagem gradualmente fica mais desértica. Ao largo da estrada, dromedários são vistos pastando. Ao fundo, a La Dorsale, braço da Cordilheira do Atlas, com 2.400 quilômetros de

extensão, confere um tom ocre e arenoso ao visual. Próximo à cidade de Tataouine, o Ksar Haddada, espécie de celeiro cavado na rocha, serviu de locação para o filme Star

Wars, de George Lucas, que viu nessas

construções do século 10º d.C. (são mais de 150 ksours na Tunísia) o lugar perfeito para ambientar sua guerra galáctica. Há,

inclusive, uma cidade cenográfica usada em

Guerra das Estrelas que não foi desativada e

fica à beira do Chott-el-Jerid, uma depressão salina que parece com outro planeta.

Em Douz, o Saara finalmente mostra sua face. A cidade é uma das portas de entrada para o deserto – as outras entradas são o oásis de Ksar Guilane, onde se pode dormir em um acampamento de luxo, e Tozeur, a capital das palmeiras e das tâmaras (são mais de 120 tipos), rota para o oásis de Chebika, na fronteira com a Argélia. Andar pela feira de animais em Douz, onde europeus passeiam ao lado de berberes nômades que vieram do deserto para negociar camelos, e saber que quase todos os moradores têm facebook, surpreende e, ao mesmo tempo, explica como a Tunísia conseguiu fazer uma revolução pacífica e retomar sua vocação de um país tão aberto aos estrangeiros. LP

A equipe da Lonely Planet viajou com o apoio da operadora Tunísia Tur. Partindo de Tozeur, o

trem do século 19 cruza cânions da La Dorsale, braço da Cordilheira do Atlas, com 2.400 quilômetros de extensão

Passear Pelo saara revela

a deMocracia social da TuNísia

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