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IDEALIZAÇÃO E REALIDADE NA REPRESENTAÇÃO DA FALA ESPONTÂNEA

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Centro de Comunicação e Letras Programa de Pós-Graduação em Letras

NINGUÉM FALA ASSIM!

IDEALIZAÇÃO E REALIDADE NA REPRESENTAÇÃO DA FALA ESPONTÂNEA

Felipe Vivian Goulart

Orientadora: Profª. Drª. Maria Helena de Moura Neves

São Paulo

2019

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FELIPE VIVIAN GOULART

NINGUÉM FALA ASSIM!

IDEALIZAÇÃO E REALIDADE NA REPRESENTAÇÃO DA FALA ESPONTÂNEA

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Helena de Moura Neves

São Paulo

2019

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3 FELIPE VIVIAN GOULART

NINGUÉM FALA ASSIM! IDEALIZAÇÃO E REALIDADE NA REPRESENTAÇÃO DA FALA ESPONTÂNEA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção de título de Doutor em Letras.

Aprovado em 01 de agosto de 2019.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Maria Helena de Moura Neves Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. José Gaston Hilgert Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Ronaldo de Oliveira Batista Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Roberto Gomes Camacho Universidade Estadual de São Paulo

Prof. Dr. Hudinilson Urbano

Universidade de São Paulo

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4 AGRADECIMENTOS

Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa, pela bolsa concedida.

Aos amigos e à família, por terem tantas vezes caído na armadilha de fazer perguntas sobre o objeto de minha pesquisa, e assim me dado passe livre para discursar sem contenção sobre um dos temas mais fascinantes com que já me deparei.

À orientadora Maria Helena de Moura Neves, sem cujo auxílio esta pesquisa jamais teria tomado forma. Pelas reuniões longas, pelos telefonemas de sábado, pelos e-mails de domingo, enfim, por sempre ir muito além das suas obrigações como orientadora, meu 'muito obrigado'.

Ao colega e amigo André Coneglian (cuja invejável competência se faz

evidente a qualquer um já nos primeiros minutos de contato), pela enorme boa

vontade e disposição tanto para ajudar na elaboração da tese quanto para apagar

incêndios burocráticos.

(5)

5 RESUMO

Os estudos da oralidade têm, ao longo das últimas décadas, oferecido à comunidade científica uma descrição sólida e detalhada do funcionamento da comunicação oral (Preti, 2003, 2011; Preti e Urbano, 1990; Leite e Callou, 2002;

Chafe, 1980, 1994; Ilari e Neves, 2008; Sacks et al., 1974). Esse ramo da linguística já reuniu diversos dados relacionados às especificidades fonéticas, morfossintáticas e discursivas da língua falada, frequentemente indicando a existência de uma diferença entre a forma como as pessoas acreditam falar e a forma como elas falam de fato. Esse banco de informações parece viabilizar a tarefa de selecionar uma variedade linguística e verificar até que ponto ela se aproxima ou se distancia daquilo que os linguistas vêm demonstrando ser a língua falada real. É justamente isso que se pretende realizar neste trabalho, sendo as variedades selecionadas para esse fim: (i) a língua falada em filmes, novelas e afins, isto é, a fala da ficção audiovisual; (ii) a língua falada no quadro televisivo Teste de Fidelidade, supostamente não roteirizado. Tendo como principal referência de fala espontânea e pouco monitorada as amostras de interação do corpus de Iboruna, pretende-se determinar até que ponto pretensas representações da fala espontânea realmente a representam, e, por consequência, obter pistas quanto aos traços que denunciam a artificialidade de uma produção roteirizada. A investigação é predominantemente direcionada a três aspectos de (potencial) discrepância entre a fala espontânea efetiva e a fala roteirizada: as minúcias do fluxo de informação, a frequência e distribuição das descontinuidades estruturais (hesitações e interrupções), e a frequência e distribuição de disputas por turnos conversacionais. Os resultados confirmam a existência de diferenças significativas entre as variedades em todos os três aspectos.

Palavras-chave: Língua espontânea. Língua roteirizada. Descontinuidades. Disputa

por turno. Fluxo de informação.

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6 ABSTRACT

Over the last few decades, the study of spoken language has provided the scientific community with a solid and meticulous description of the way oral communication works (Preti, 2003, 2011; Preti e Urbano, 1990; Leite e Callou, 2002; Chafe, 1980, 1994; Ilari e Neves, 2008; Sacks et al., 1974). This particular branch of Linguistics has gathered a large amount of data related to the phonetic, morphosyntactic and discourse specificities of spoken language, which indicates the existence of a gap between the way people think they speak and the way they actually speak. This database seems to enable the task of selecting a linguistic variety and verifying to which degree it resembles (or differs from) actual spontaneous speech as described by linguists. This is precisely what this investigation aims to accomplish, and the varieties selected for comparison with spontaneous speech are: (i) the language spoken in movies, soap operas and the like, that is, the language of audiovisual fiction; (ii) the language spoken on the television sketch Teste de Fidelidade (Fidelity Test), which is supposedly not scripted. With the Iboruna sample as our main reference of real, spontaneous, non-monitored (or barely monitored) speech, we aim to determine the degree to which supposed representations of spontaneous speech actually represent it, and, consequently, to acquire clues as to which traits give away the artificiality of scripted speech. The investigation is predominantly directed at three aspects of (potential) discrepancies between natural and scripted speech: the minutiae of information flow, the frequency and distribution of structural disfluencies (hesitations and interruptions), and the frequency and distribution of competitive overlap. The results confirm the existence of significant differences between the varieties in all three aspects.

Keywords: Spontaneous speech. Scripted speech. Disfluencies. Competitive overlap.

Information flow.

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7 LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - ... 43

Quadro 2 -... 45

Quadro 3 -... 54

Quadro 4 -... 57

Quadro 5 -... 65

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LISTA DE ABREVIATURAS DOS MATERIAIS DE ANÁLISE

ABREVIATURA MATERIAL

AI Amostra de Interação

ALIP Amostra Linguística do Interior

Paulista

COF Corpus da Oralidade Fingida

OHQC O Homem Que Copiava

C169 Celebridade (capítulo 169)

TF Teste de Fidelidade

MA2001 Malhação (temporada 2001)

MA2004 Malhação (temporada 2004)

P1 Propaganda 1: Azeite Borges

P2 Propaganda 2: Selaria Texana

P3 Propaganda 3: Chevrolet

P4 Propaganda 4: Vivo

P5 Propaganda 5: TIM

P6 Propaganda 6: Activia

P7 Propaganda 7: Belvita

P8 Propaganda 8: Toddy Pronto

P9 Propaganda 9: Colgate Total 12

(clean mint)

P10 Propaganda 10: Colgate Total 12

(gengiva saudável)

P11 Propaganda 11: Ariel líquido

TF1 Teste de Fidelidade 1: testado Jean

TF2 Teste de Fidelidade 2: testado Bruno

TF3 Teste de Fidelidade 3: testado

Wellington

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LISTA DE ABREVIATURAS DOS TIPOS DE OCORRÊNCIA

ABREVIATURA OCORRÊNCIA

DT disputa por turno

H (AL) hesitação por alongamento vocálico

H (E) hesitação por expressão hestitativa

H (P) hesitação por pausa

H (R) hesitação por repetição

I (CR) interrupção com retomada

I (SR) interrupção sem retomada

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Índice

Introdução...12

2 - O aporte teórico da análise...20

2.1 - Diretrizes gerais...20

2.2 - A articulação entre a teoria e a presente investigação...24

3 - Metodologia...27

3.1 - Sobre a variedade linguística em foco...27

3.2 - Dificuldades da captação da variedade-alvo...28

3.3. - O corpus de referência: Banco de Dados Iboruna...29

3.3.1 - A origem e a natureza do corpus...29

3.3.2 - Limitações...31

3.4 - A oralidade fingida: materiais selecionados...32

3.4.1 - A natureza do corpus...32

3.4.2 - O Teste de Fidelidade...33

3.5 - A codificação das descontinuidades linguísticas...35

3.6 - A delimitação das disputas por turnos conversacionais...40

4 - Descontinuidades estruturais...44

4.1 - Resultados quantitativos...44

4.1.1 - Visão geral...44

4.1.2 - Distribuição dos resultados segundo a categoria ‘gênero discursivo’...47

4.2 - Análise qualitativa...48

4.2.1 - Disfluência em filmes e novelas...48

4.2.1.1 - Fluência e processamento...48

4.2.1.2 - A ‘descontinuidade fingida’...50

4.2.2 - Disfluência em peças publicitárias...52

4.2.3 - Disfluência em experimentos sociais: o Teste de

Fidelidade...53

(11)

5 - Disputas por turnos...55

5.1 - Resultados quantitativos...56

5.1.1 - Visão geral e articulação com o objeto de análise anterior...56

5.1.2 - Distribuição dos resultados segundo a categoria ‘gênero discursivo’...59

5.2 - Análise qualitativa...60

5.2.1 - Sobreposições de vozes e sinais de fim de turno...60

5.2.2 - Disputas e conflitos...63

5.2.3 - A alternância roteirizada: um caso extremo...65

5.2.4 - Pronto, agora é sua vez: a disputa por turnos na roteirização parcial...66

6 - Oralidade fingida e fluxo de informação...69

6.1 - Malhação (temporada 2004)...70

6.2 - Propagandas...76

7 - Considerações finais...80

Referências...85

(12)

1 - INTRODUÇÃO

De todos os artifícios descobertos pelo homem para lidar com a realidade à sua volta, poucos se aproximam, em tempo de existência e em universalidade, da representação. Embora falar em representação ou em mimese usualmente remeta às artes – pinturas, filmes, romances ou danças –, é oportuno manter ciência de que a atividade mimética não é restrita às produções artísticas: a representação, na verdade, constitui uma das mais básicas formas de expressão humana, presente “não só nas artes como também em muitas outras áreas de nossas vidas” (WALTON, 1990, p. 7). Isso fica atestado no fato de que, até onde se sabe, crianças de todas as culturas e grupos sociais dedicam grandes porções de tempo e esforço à mimese, isto é, a atividades que envolvem algum tipo de “faz de conta”. Mesmo com o avançar da idade, a relação do indivíduo com esse faz de conta nunca desaparece, mudando apenas os meios pelos quais essa relação se mantém: por exemplo, cavalos de madeira e brincadeiras de polícia e ladrão dão lugar a esculturas e a espetáculos de ópera. Esse estado de coisas conduz à conclusão de que, quaisquer que sejam as necessidades supridas pelas atividades representacionais, elas parecem ser necessidades bastante fundamentais (WALTON, 1990, p.

11).

Vista a posição importante reservada pela civilização à representação, que desde o começo dos tempos vem possibilitando registrar diferentes modos de perceber ambientes, seres vivos, objetos e até mesmo situações ou emoções, não é de surpreender que, sem muita demora, as faculdades representacionais tenham sido direcionadas também à própria língua.

Talvez seja impossível precisar o momento em que as primeiras recriações da fala surgiram, mas parece bastante seguro atribuir um papel de destaque, nesse desenvolvimento, ao advento de formas de expressão como a literatura e, sobretudo, o teatro. A empreitada de fabricar uma interação entre indivíduos implica, obviamente, a necessidade de fabricar a língua por meio da qual eles interagem. Isso exige que o autor acesse, em seu repertório mental, uma percepção da fala coletiva para, a partir daí, supor as escolhas linguísticas que falantes fariam dentro das circunstâncias estabelecidas na narrativa. Trata-se da criação daquilo que Sinner (2012, p.

436) veio a chamar de oralidade fingida.

Essa fabricação não é um encargo simples. Na verdade, a reprodução da comunicação

humana talvez seja a mais ambiciosa de todas as tarefas assumidas pelo indivíduo que se

dispõe a criar uma obra de ficção. Por mais que as interações informais do cotidiano possam

(13)

parecer eventos de simplicidade banal, tentativas conscientes de recriá-las estão longe de ter sucesso garantido. A naturalidade da fala parece ser uma propriedade de difícil imitação, e o êxito nessa empreitada pode fazer a diferença entre um produto midiático convincente e outro cuja inverossimilhança acabe por repelir o público. Em seu guia de escrita para cinema e televisão, Drouyn (1994, p. 82) discorre sobre dificuldades dessa natureza:

Não deveria ser tão difícil assim fazer as pessoas falarem umas com as outras, expressarem ideias e transmitirem informações que movam a história adiante. E, no entanto, o diálogo é uma das maldições da vida do escritor. Muitas vezes forçado e entediante a um nível entorpecente, ele pode retardar um roteiro cheio de embalo narrativo até uma parada completa.

1

De todo modo, mesmo quando diálogos fictícios não chegam ao ponto de evocar em seus espectadores exclamações como Ninguém fala assim!, mesmo quando a interlocução forjada se faz crível, talvez seja inapropriado saltar para a conclusão de que ela é, realmente, um retrato fiel da comunicação espontânea. Diversos estudiosos da área chamam a atenção para o fato de que existe uma diferença entre a forma como as pessoas acreditam falar e a forma como elas de fato falam (TRUDGILL, 2000, p. 75; HALLIDAY, 2004, p. 34; CLARK, 2007, p. 31). Dito de outro modo, a impressão que os indivíduos têm de como as interações linguísticas acontecem tende a não corresponder à maneira como elas realmente acontecem. É possível, portanto, que as simulações de linguagem humana tidas como mais convincentes se aproximem mais de uma simples impressão do que da realidade.

Embora muito se fale sobre a preocupação dos ficcionistas em captar o linguajar popular, essa preocupação é frequentemente limitada ao léxico, sendo o emprego ocasional de gírias e de regionalismos a medida mais comumente eleita para atingir esse fim. Em outros casos, e de forma célebre em certas vertentes do cinema brasileiro, é no apelo exagerado a palavras-tabus que os autores encontram a maneira de sinalizar a espontaneidade e a ausência de filtros na fala de seus personagens. As características que distinguem a fala cuidada da fala relaxada, no entanto, transcendem o domínio lexical: desde os metaplasmos no domínio da fonologia até as estruturações não padrão no domínio da sintaxe, existem inúmeros traços que distanciam as duas variedades além do (não) uso de determinadas palavras. Uma fala fabricada que deixe esses traços menos óbvios de lado não pode, objetivamente, ser considerada representativa da língua oral espontânea.

1 Tradução deste autor.

(14)

A identificação de todos esses traços nessa variedade da língua é uma conquista dos estudos da oralidade (com destaque para a análise da conversação), ramo da linguística que vem experimentando um desenvolvimento acelerado nas últimas décadas. Graças a esses estudos (ver, por exemplo, CHAFE, 1980, 1994; HARVIE, 1998; ILARI e NEVES, 2008;

JUBRAN, 2015; LEITE e CALLOU, 2002; PRETI, 2003, 2011; PRETI e URBANO, 1990;

TARALLO, 1983, 2007; SACKS et al., 1974; TANNEN, 2005), a comunidade científica dispõe hoje de um acervo considerável de informações sobre o modo como a língua falada funciona. Com base nesse conhecimento acumulado, parece realizável a tarefa de, após selecionar uma variedade da língua, verificar quanto ela se aproxima ou se distancia da língua falada real. É exatamente esse o objetivo geral deste trabalho: determinar o quanto uma seleção de recriações da língua falada se aproxima ou se distancia da língua falada verdadeira, documentada por linguistas. Em outras palavras, pretende-se verificar até que ponto pretensas representações da língua falada espontânea realmente a representam.

Cabe, aqui, perguntar especificamente em quais meios sociais o indivíduo comum pode deparar-se com tentativas de reprodução da língua falada. Pode ser tentador resolver a questão com uma resposta curta e direta como “em obras de ficção audiovisual”. Contudo, a verdade é que representações da língua falada também são encontradas em meios para os quais o rótulo de ficção audiovisual talvez não seja adequado. É certo que filmes, seriados, novelas e peças teatrais são o ambiente da representação linguística por excelência, mas essa representação pode igualmente ser encontrada, por exemplo, no gênero da propaganda, cuja eventual categorização como ficção audiovisual seria, no mínimo, questionável. Poucas pessoas citariam a propaganda como um exemplo de ficção, muito embora: (i) uma parcela significativa das peças de propaganda tenha natureza narrativa, isto é, apresente uma história (por mais curta que seja) que foi concebida na mente de um autor; (ii) a propaganda constitua, atualmente, uma das principais áreas de trabalho para atores e roteiristas, dentre outros dos profissionais que também atuam em filmes, seriados, novelas e peças teatrais.

Outro meio de interesse, este ainda menos compatível com o rótulo de ficção

audiovisual, é aquele que popularmente se convencionou chamar pegadinha. Trata-se de um

gênero tipicamente constituído pela interação entre um ator – cuja classificação como ator

não implica, neste caso específico, que sua fala seja completamente planejada – e um

transeunte desavisado, geralmente com pretensão de comicidade. Partindo do pressuposto de

que o transeunte é um indivíduo desprevenido que tem seu comportamento gravado sem

consentimento prévio, sua produção linguística poderia ser tomada como um exemplo de

(15)

língua falada espontânea; no entanto, são corriqueiras as acusações de que as interações em questão são pré-acordadas, ou, em termos mais simples, de que as pegadinhas são combinadas. Quando esse é, de fato, o caso, o que se observa não é a interação entre um ator e um indivíduo comum, alheio à natureza da situação em que se encontra, e sim uma interação entre dois atores, talvez não no sentido de que ambos exerçam esse ofício como sua principal ocupação, mas no sentido de que ambos carregam algum tipo de instrução quanto a como devem agir e, mais central aos nossos interesses, quanto ao que devem dizer. A variedade linguística da suposta vítima, nesse caso, não será a língua falada espontânea, e parece razoável esperar que ela apresente sinais disso.

Outro cenário menos óbvio em que a oralidade fingida pode instanciar-se é o de qualquer situação em que haja indivíduos em uma plateia, de um lado, e um indivíduo (ou vários) em alguma espécie de palco, de outro. Tem-se tornado comum a prática de plantar um ator entre os membros da plateia, instruído a realizar algum tipo de intervenção em determinado momento do evento. Um exemplo é o de um rapaz que, durante um programa de auditório, tomou a palavra para acusar um músico famoso presente de ter-se envolvido com sua irmã; outro exemplo é o de um suposto eleitor insatisfeito que, durante um comício político, fez um longo discurso sobre as falhas do sistema de saúde em vigor. Os propósitos por trás dessas intervenções variam, assim como varia o grau de transparência quanto à natureza da intervenção: em alguns casos, o ator revela-se como tal assim que termina sua participação, sendo retribuído com aplausos; em outros, nenhuma revelação do tipo é feita, o que indica que, nesses casos, a intenção é de fato criar a ilusão de que a manifestação em foco é espontânea, fruto das vontades e impulsos de um indivíduo autônomo.

Produções como essas, isto é, produções que são destinadas à divulgação em massa e

que envolvem ao menos um indivíduo cuja produção linguística se “vende” como espontânea,

remetem a outro dos interesses existentes por trás desta pesquisa. Como já se explicitou,

pegadinhas e outras produções pretensamente espontâneas suscitam, com certa frequência,

desconfiança e acusações de falsidade da parte dos espectadores. No entanto, perguntar

diretamente a esses mesmos espectadores o que, nas produções em questão, os conduziu a tal

conclusão, na grande maioria das vezes não gerará respostas precisas. Em outros termos, o

falante comum é capaz de perceber quando uma produção linguística é artificial

(especialmente se ela ultrapassar um determinado grau de artificialidade); no entanto, é

incapaz de apontar, com exatidão, os traços que lhe sinalizam essa artificialidade.

(16)

Mas esses traços sinalizadores certamente existem. O ponto de partida para essa conclusão está no fato de que nem todas as produções linguísticas causam no indivíduo a impressão de artificialidade. Uma produção linguística espontânea real, não roteirizada, certamente não lhe parecerá artificial, a não ser em circunstâncias anormais. Assim, considerando-se que uma determinada fala causa impressão de artificialidade e outra fala não causa essa impressão, a conclusão lógica é que a fala percebida como artificial deve necessariamente ter alguma característica que a fala percebida como natural não tem. Espera- se aqui descobrir justamente qual é essa característica (ou quais são essas características). Em outras palavras, interessa a esta pesquisa apontar exatamente quais são os traços, aparentemente subconscientes na maioria dos falantes, que sinalizam a naturalidade ou a artificialidade de uma produção.

Neste ponto, é necessária uma ressalva quanto ao ponto de vista não avaliativo da investigação. Não se pretende, aqui, tratar a (in)fidelidade da oralidade fingida à oralidade real como algo bom ou ruim, ou como um sucesso ou fracasso da parte do elaborador. Visto que este é um trabalho de linguística e não de teoria literária ou de estudos da ficção, não há interesse em discutir o grau de competência do autor ou o valor de suas escolhas. Pretende-se, apenas, como um botânico que, diante de uma pintura de uma samambaia, analisa o quanto essa representação se aproxima da realidade de seu objeto de estudo, analisar até que ponto a representação da fala espontânea se aproxima da fala espontânea real. Parece pertinente lembrar que, mantendo a analogia da pintura, nem todo quadro tem a pretensão de ser fotorrealista; igualmente, nem todos os roteiros televisivos ou cinematográficos têm a pretensão de representar a fala exatamente como ela ocorre no mundo real: o distanciamento da realidade pode ser um traço desejado. De todo modo, cabe apontar que, embora nem todos os autores tenham a intenção de representar a fala real, alguns certamente objetivam isso (e aqui decerto se incluem os elaboradores de pegadinhas, por exemplo); espera-se, enfim, que os resultados desta pesquisa possam servir como uma espécie de auxílio aos membros deste último grupo.

Boa parte dos textos eleitos nesta pesquisa como amostra da língua espontânea real vem do banco de dados Iboruna, fruto do projeto Amostra Linguística do Interior Paulista, ou ALIP

2

. Como se mostra mais discriminadamente na seção Metodologia, esse banco de dados é composto por dois tipos de material: uma Amostra Censo, composta por entrevistas

2 Ver http://www.iboruna.ibilce.unesp.br.

(17)

sociolinguisticamente controladas, e uma Amostra de Interação Dialógica, composta por amostras de fala gravadas secretamente em situações livres de interação social. É a este último tipo de material que se recorre aqui, uma vez que ele constitui uma fonte valiosa de diálogos verdadeiramente informais, marcados por automonitoramento baixo ou nulo. Esse tipo de material permite, portanto, contornar os problemas da captação da língua informal normalmente enfrentados pelo linguista, que, como aponta Labov (2008, p. 244, grifos do autor), dificilmente consegue evocar a fala mais relaxada de um informante durante uma entrevista:

Qualquer observação sistemática de um falante define um contexto formal em que ele confere à fala mais do que o mínimo de atenção. No corpo principal de uma entrevista, onde se pede e se dá informação, não se deve esperar encontrar o vernáculo em uso. Por mais que o falante nos pareça informal ou à vontade, podemos sempre supor que ele tem uma fala mais informal, outro estilo no qual se diverte com os amigos e discute com a mulher.

É justamente essa variedade mais íntima, reservada para indivíduos próximos, que está registrada na Amostra de Interação Dialógica, por meio de gravações de diálogos entre amigos e entre familiares, realizadas com a ciência de somente um dos participantes (que, na maioria dos casos, é o que menos fala).

No que diz respeito ao embasamento teórico, esta pesquisa busca suporte nas teorias funcionalistas e sociolinguísticas, sobretudo em suas propostas mais convergentes. Do aparato funcionalista, têm papel importante na pesquisa as seguintes assunções: a impossibilidade de tratar a língua como um sistema autônomo (GIVÓN, 1995); a susceptibilidade da gramática às pressões do uso (GIVÓN, 1993); o uso da língua como um meio não apenas de transferência de informações, mas também de gerenciamento de relações (HALLIDAY, 2004;

HENGEVELD e MACKENZIE, 2008); a variação dos segmentos linguísticos quanto ao seu valor informacional (CHAFE, 1980, 1994; FIRBAS, 1992).

Do repertório sociolinguístico, são de especial interesse as seguintes noções: a

associação de valores socioculturalmente positivos e negativos a determinadas formas

linguísticas (LABOV, 2008); o desejo dos falantes de apresentar-se de maneira positiva por

meio de sua fala (CALVET, 2002); a existência de formas linguísticas socialmente tomadas

como indicadoras da identidade social do falante, isto é, a existência de marcadores

sociolinguísticos (LABOV, 2008; TRUDGILL, 2000); a sensibilidade dos falantes aos

diversos contextos de produção linguística (JOOS, 1967); a sensação, da parte da maioria dos

(18)

falantes, de que devem, em todas as situações comunicativas, adequar-se a um mesmo padrão linguístico, ou seja, a existência de pressão normativa (SCHERRE, 2008).

Parte-se desta primeira etapa com três hipóteses. A primeira é a de que devem ser relativamente escassas, nas produções roteirizadas, as instâncias de descontinuidades linguísticas, isto é, as instâncias em que, por alguma dificuldade de formulação, o falante usa formas hesitativas ou interrompe uma construção iniciada. Trata-se de um fenômeno de alta frequência na língua falada (PRETI e URBANO, 1990; JUBRAN, 2015), sobretudo na sua variedade informal (GOULART, 2015). Supõe-se, no entanto, que ele seja muito menos frequente na fala fictícia; afinal, embora esta se apresente, em seu estágio final, como um produto oral (proferido pelo ator), ela é inicialmente formulada em modo escrito. Essa particularidade pode render, aos diálogos fictícios, um padrão de frases estruturalmente

“perfeitas”, todas com começo, meio e fim, prontas para fluir da boca do intérprete. A língua espontânea real, obviamente, não funciona dessa forma: basta verificar qualquer transcrição de fala não roteirizada para perceber o quão frequentes são as dificuldades de formulação e as disfluências estruturais por elas geradas.

A segunda hipótese está relacionada a outro tipo de “acidente” característico da língua não planejada: a disputa por turnos. Visto que a troca linguística tem como um de seus princípios básicos a não simultaneidade de falantes, a conversação depende de um mecanismo que controle a cessão e a tomada da palavra entre os participantes. Trata-se da alternância de turnos conversacionais: uma negociação contínua que fazem falante e ouvinte para determinar quando vão trocar seus papéis. O momento em que aquele que ouve passa a falar (e vice- versa) não é algo previamente acordado entre os interlocutores e, como tudo que precisa ser resolvido no momento da emissão, pode ser motivo de algum embaraço: é bastante comum, na fala espontânea, que dois (e às vezes mais) interlocutores tentem falar ao mesmo tempo, configurando-se assim uma disputa pelo turno (PRETI e URBANO, 1990; KURTIĆ et al., 2013). Parece fazer sentido esperar que esse fenômeno seja bem menos frequente na fala roteirizada do que na fala efetiva, uma vez que, nas dramatizações, a alternância de turnos não é realmente acordada em concomitância com a emissão, e sim pré-estabelecida por um roteirista que, muito provavelmente, dará preferência a uma estrutura mais "ordeira" na construção do texto conversacional.

A terceira e última hipótese diz respeito ao volume de informação compartilhada entre

falante e ouvinte. Além da diferença na frequência de descontinuidades e de disputas por

(19)

turnos, espera-se encontrar, também, uma diferença no que diz respeito à explicitação de informação já conhecida pelo ouvinte. Enquanto na conversação real a distribuição informacional é guiada por aquilo que, no julgamento do falante, devem ser as necessidades do ouvinte (CHAFE, 1994), na conversação da ficção o interesse verdadeiro não está em transferir informações ao ouvinte fictício, e sim em transferi-las ao espectador, ao público.

Isso pode levar o falante fictício a uma explicitação exagerada de informações, isto é, a um nível de explicitude que não seria necessário para a compreensão da parte do ouvinte fictício.

Nesses casos, em que o fluxo informacional é obviamente direcionado para o espectador e não para o personagem, o roteiro está ignorando, ao mesmo tempo, uma orientação de Drouyn (1994, p. 83), segundo a qual os personagens não devem agir como se soubessem estar em um filme, e uma máxima conversacional de Grice (1975, p. 46-7), segundo a qual a contribuição do falante deve ser somente tão informativa quanto necessário.

Passa-se, enfim, ao trajeto a ser percorrido nos próximos capítulos. O próximo passo

consiste na necessária incursão pelos princípios funcionalistas e sociolinguísticos que

norteiam este trabalho. Em seguida, passa-se à apresentação detalhada do corpus, bem como

dos procedimentos escolhidos para sinalizar as ocorrências de interesse. Na segunda parte do

trabalho, são expostos os resultados encontrados, mediante análises quantitativas e

qualitativas das semelhanças e diferenças descobertas entre as variedades em foco. Por fim,

no capítulo de considerações finais, pretende-se, dentro daquilo a que se conseguiu chegar até

este momento, responder a seguinte questão: até que ponto a fala espontânea de programas de

entretenimento é, de fato, representativa da fala espontânea efetiva?

(20)

2 - O APORTE TEÓRICO DA ANÁLISE

2.1 - DIRETRIZES GERAIS

Uma pergunta nos moldes de “para que a língua serve?”, feita em qualquer meio, quase invariavelmente suscita ao menos uma resposta nas linhas de “serve para a transmissão de informação”. Embora essa seja, de fato, sua serventia mais evidente, é importante lembrar que a língua desempenha outras funções além da simples transmissão de informação de uma mente a outra. Dentre essas funções, uma das mais relevantes é o gerenciamento das relações entre os participantes da troca linguística. Trata-se de um tema bastante amplo, explorado sob diferentes luzes por diferentes escolas.

Sob o olhar funcionalista, esse papel especificamente social da linguagem foi chamado de metafunção interpessoal (HALLIDAY, 2004). Nessa visão, usar a língua, ao mesmo tempo que envolve representar mentalmente a experiência e comunicar essa experiência a outros indivíduos, também implica a colocação em cena das relações existentes entre esses indivíduos. Assim, ao mesmo tempo que cada uso da língua envolve a comunicação de algum evento, de algum dizer, de alguma sensação ou de alguma posse, esse uso também implica uma proposta, um anúncio, um questionamento, uma ordem, uma oferta ou uma avaliação (HALLIDAY, 2004, p. 29). Desse modo, a língua desempenha um papel vital na mediação das relações dos indivíduos de um grupo, sinalizando, entre outras coisas, “afeto, cooperação, obrigação, dominância ou competitividade” (GIVÓN, 1993, p. 21).

Esse mesmo componente da língua é explorado na sociolinguística por Trudgill (2000,

p. 1), com recurso ao fato banal de que, quando dois ingleses desconhecidos se posicionam

cara a cara em um trem, a tendência é que os dois iniciem uma conversa sobre o tempo. O

autor chama a atenção para o fato de que, uma vez que a maioria das pessoas não tem

particular interesse em análises de condições climáticas, deve necessariamente haver outro

motivo por trás dessa interação que não a simples transmissão de informação. Em outras

palavras, se conversações podem ocorrer sem que nenhuma informação realmente relevante

seja transferida, a conclusão lógica é que a língua necessariamente exerce outra função além

dessa. Naturalmente, essa função é o gerenciamento de relações mencionado no início desta

seção. Assim, ambas as escolas – funcionalista e sociolinguística – chegam a conclusões

(21)

semelhantes nesse quesito: nas palavras de Trudgill (2000, p. 1), a língua “é um meio muito importante de estabelecimento e manutenção de relações” entre pessoas.

É certo que a dinâmica que governa esse gerenciamento varia de acordo com as diferentes culturas: como o próprio Trudgill (2000, p. 114) aponta, existem tribos indígenas (como os Navajo e os Apache) que aderem à norma de que não se deve falar a menos que se tenha algo não trivial a dizer. Ainda assim, em termos gerais, permanece verdade que as interações linguísticas servem para que as pessoas se conheçam, e descubram como se posicionam umas em relação às outras. No caso das duas pessoas conversando sobre o tempo no trem, o aspecto mais interpessoalmente relevante não está no conteúdo da conversação, mas simplesmente no fato de elas estarem conversando, em contraste com a opção de não interagir.

Essa noção de que a língua serve para gerenciar relações está intimamente ligada à noção de que é impossível tratar a língua como um sistema autônomo, dissociado das necessidades de seus usuários. Enquanto a escola formalista mantém uma tradição de análise voltada exclusivamente para a estrutura, admitindo a existência de uma espécie de sintaxe autônoma, a corrente funcionalista trata a pragmática como o domínio englobador da semântica e da sintaxe (DIK, 1997, p. 7-8). Isso implica o reconhecimento de que é impossível compreender o funcionamento da língua sem levar em consideração fatores externos à estrutura, como a intenção do falante, ou o conhecimento compartilhado entre ele e o ouvinte (DIK, 1997). Esses fatores externos, além de determinarem a forma como a língua é usada, acabam por moldar a estrutura da língua em si (GIVÓN, 1995).

A atenção ao conhecimento compartilhado entre os interlocutores está ligada a outro

ponto de interesse da escola funcionalista: o fluir da informação. Embora assumir uma postura

funcionalista implique reconhecer que a língua exerce outras funções além da transmissão de

informação, é certo que essa também é uma das funções que ela exerce, e existe um modo

particular, no meio funcionalista, de compreender essa transmissão. Trata-se da consideração

de que os segmentos linguísticos diferem quanto ao seu valor informacional. Nos termos de

Firbas (1992), os múltiplos componentes da mensagem variam em seu grau de dinamismo

comunicativo, isto é, variam no grau em que fazem a comunicação avançar. O potencial de

cada segmento linguístico para levar ao avanço da comunicação está estreitamente ligado a

seu estatuto como dado, acessível ou novo. Chafe (1994, p. 72) classifica informação dada,

nova e acessível, respectivamente, do seguinte modo: aquela que já está ativa (na consciência)

(22)

em um dado momento da conversação; aquela que acaba de ser ativada em um dado momento da conversação; e aquela que se encontra semiativa nesse dado momento. O estatuto informacional de cada referente, adicione-se, é um fator de alta influência na sua apresentação formal: como o próprio Chafe (1994, p. 71-2) sintetiza, a tendência é que referentes novos surjam como sintagmas nominais completos – marcados por acento prosódico na fala – e referentes dados ou acessíveis realizem-se ou como pronomes – proferidos de forma mais átona na fala – ou como zero.

Esse interesse na prosódia deriva de noção, recorrente no meio funcionalista, de que a língua escrita e a língua falada constituem, por assim dizer, „universos‟ diferentes, dependentes de recursos distintos e, também, governados por regras distintas. Para Firbas (1992, p. 220), faz sentido considerar a língua escrita e a língua falada como “duas normas linguísticas que diferem não apenas em termos materiais (substância fônica vs. substância gráfica) mas também em termos funcionais”. Com uma tradição de análise voltada quase que unicamente para a língua escrita, é comum que extratos reais de textos falados pareçam caóticos e desestruturados aos olhos do analista de primeira viagem; no entanto, é importante lembrar que, como o mesmo Firbas (1992, p. 205) aponta, “um diálogo espontâneo natural não consiste exclusivamente em estruturas perfeitamente organizadas”.

Uma incursão nos estudos da oralidade leva a uma melhor compreensão daqueles fenômenos linguísticos que, à primeira vista, podem ser tomados como imperfeições estruturais. A língua oral é permeada por descontinuidades (como hesitações e cortes), definidas por Fox Tree (1995, p. 709) como “fenômenos que interrompem o fluxo da fala e não adicionam conteúdo proposicional ao enunciado”. Embora possam parecer falhas, a verdade é que essas descontinuidades desempenham importantes funções no fazer linguístico, sobretudo na troca face a face. Na seguinte passagem, Souza-e-Silva e Crescitelli (2015, p.

81-2) discorrem sobre percepções de valor de enunciados cortados, o aparente desarranjo dos textos falados e a real natureza das disfluências em questão:

Segundo o ponto de vista tradicional, o enunciado pleno está assimilado à norma e,

consequentemente, os enunciados interrompidos são considerados desvios,

indicadores de falhas de desempenho, eventualmente indesejáveis no que se refere a

essa norma. De fato, quando nos detemos apenas à transcrição de textos falados, é

comum sentirmos um certo estranhamento, que não ocorre, no entanto, quando

ouvimos a gravação ou estamos envolvidos em uma situação de fala espontânea. Isso

porque as variações de ritmo, velocidade e entonação, além do preenchimento de

pausas, sem dúvida, ajudam a preencher os vazios, que, na verdade, são o pano de

fundo do texto falado, e não imperfeições.

(23)

As descontinuidades são, portanto, adotando a rotulação de Jubran (2015, p. 47),

“fenômenos intrínsecos da oralidade”, e não sinais de incompetência do falante. Afinal, como apontado na passagem transcrita, o habitual é que hesitações e interrupções passem despercebidas pelo ouvinte que está de fato inserido na situação interativa. A descontinuidade é uma consequência natural da simultaneidade entre planejamento e verbalização. Uma vez que tal simultaneidade é uma característica de toda interação não planejada, parece, por extensão, fazer sentido esperar que toda interação não planejada apresente descontinuidades, ao menos em algum grau.

Em termos gerais, descontinuidades servem como uma maneira de sinalizar para o ouvinte que o falante está passando por dificuldades de produção, dificuldades essas que podem ocorrer em qualquer estágio do processo da fala: “no planejamento, na seleção lexical ou na articulação de um plano de fala” (CORLEY e HARTSUIKER, 2003, p. 1). Existe, ainda, evidência de que tipos diferentes de disfluências sinalizam tipos diferentes de problemas (BORTFELD et al., 2001 apud CORLEY e HARTSUIKER, 2003, p. 1). Como mostra Jubran (2015, p. 47), interrupções servem tanto para a reformulação de algo que já foi dito quanto para a inserção de “dados informacionais ou situacionais” que o falante julgue importantes para a compreensão de seu texto, enquanto hesitações possibilitam um ganho de tempo para o planejamento e verbalização do texto. A necessidade de ganhar tempo deriva, é claro, das pressões situacionais a que o falante é sujeito, dentre as quais uma das mais relevantes é o risco de perder o turno conversacional. Ao usar formas hesitativas, isto é, ao fazer pausas preenchidas em vez de pausas não preenchidas, o falante sinaliza que ainda não terminou seu turno e, consequentemente, ainda não está pronto para ceder a palavra a seu interlocutor.

A hesitação ainda tem o efeito, segundo Corley e Hartsuiker (2003), de facilitar a compreensão do ouvinte. Isso acontece, argumentam os autores, porque hesitações tendem a ocorrer antes de termos de mais baixa predizibilidade, e os ouvintes, sendo inconscientemente capazes de perceber essa tendência, ficam preparados para o processamento de um item pouco previsível após uma hesitação do falante.

Ainda no âmbito dos efeitos da hesitação, merecem atenção os resultados da pesquisa

de Arnold et al. (2003). Em um experimento, os investigadores rastrearam os movimentos

oculares de 24 participantes, que recebiam instruções para que selecionassem determinados

objetos (dois dos quais tinham nomes de início semelhante, como candle e camel) em uma

(24)

tela de computador. No momento em que estavam sendo exibidos, alguns desses objetos já haviam sido estabelecidos como informação dada, enquanto outros constituíam informação nova. As instruções eram dadas com fluência em alguns casos, e continham hesitações (como theee, uh, candle) em outros. Os investigadores perceberam que, nos casos em que a instrução era fluente, os participantes tendiam a fixar o olhar mais rapidamente em informação dada, e que, paralelamente, quando a instrução continha hesitações, os falantes tendiam a fixar o olhar mais rapidamente em informação nova. Contribuições como a de Corley e Hartsuiker (2003) e a de Arnold et al. (2003) parecem licenciar a afirmação de que, no que diz respeito ao fluxo de informação, a hesitação direciona o ouvinte para a absorção de informação nova.

Não obstante todas as funções que a análise científica vem atribuindo às descontinuidades da fala espontânea, permanece certo que, na avaliação do público geral, hesitações e interrupções são traços indesejáveis que falantes verdadeiramente competentes são capazes de evitar. Por trás dessa avaliação está algo que já foi identificado por sociolinguistas, como Scherre (2008): uma impressão generalizada de que existe um único padrão linguístico a ser buscado em toda e qualquer situação comunicativa, impressão que gera o que a autora rotula como pressão normativa.

A ideia de que existe uma única língua “boa” a ser usada em toda situação comunicativa – escrita ou falada, formal ou informal, planejada ou espontânea –, unida ao desejo comum de apresentar-se como um falante competente (CALVET, 2002), pode levar a um automonitoramento em que o indivíduo tenta eliminar de sua fala toda forma linguística que carregue um valor socioculturalmente negativo (LABOV, 2008). Isso pode acabar por estender-se, mesmo que de forma inconsciente (na verdade, quase sempre de forma inconsciente), ao indivíduo que se aventura a escrever um diálogo roteirizado, como se discutirá na próxima seção.

2.2 - A ARTICULAÇÃO ENTRE A TEORIA E A PRESENTE INVESTIGAÇÃO

A atividade de criar, a partir do nada, uma interação linguística que nunca aconteceu –

isto é, a atividade de elaborar um diálogo para um filme, uma novela ou mesmo uma

pegadinha – envolve, talvez invariavelmente, a escrita. Como qualquer profissional engajado

em um projeto, um roteirista precisa registrar aquilo que vai concebendo, e a escrita é a

(25)

ferramenta mais saliente e natural para essa finalidade. O que isso significa é que, na maioria esmagadora das criações de diálogos (se não em todas elas), concebe-se pela escrita uma interação linguística que, no produto final, se realizará pela fala. Ora, não é surpreendente que esse modo de operação possa gerar amostras bastante estranhas de língua falada, bem diferentes da língua falada efetiva, que se ouve fora desses meios.

Primeiramente, como já se indicou, a língua escrita e a língua falada são dois canais de expressão que diferem não apenas na forma como se materializam, mas também no modo como funcionam. Em outras palavras, regras diferentes estão em jogo quando o usuário se expressa pela escrita e quando se expressa pela fala, e estratégias comunicativas que são possíveis em um canal nem sempre o são no outro.

Outra complicação de elaborar pela escrita um produto final falado tem a ver com a pressão normativa identificada por Scherre (2008): trata-se de uma força muito mais atuante na escrita do que na fala (MARTINS, 2016). Não é difícil supor a razão por trás disso: existe uma diferença considerável, para o indivíduo comum, entre a forma como se adquire a fala e a forma como se adquire a escrita. Enquanto a fala é adquirida logo nos primeiros anos de vida, em um processo instintivo análogo ao de aprender a andar, a escrita é adquirida de maneira bem menos natural: por meio de um processo escolar, iniciado mais tarde na vida, e embasado nos conceitos de regra e correção. Obviamente, esse processo tem grande participação na fixação, na consciência coletiva, das concepções de “língua certa” e “língua errada”.

Tendo isso em vista, é mesmo de esperar que o indivíduo que se senta à mesa com a caneta (ou teclado) à mão sinta, agindo sobre ele, mais pressão normativa do que sente quando se comunica pela fala. É certo que há uma particularidade na escrita de diálogos que a distancia da escrita de qualquer outro texto, no que diz respeito a essa pressão: qualquer

“erro” ou “mau uso da língua” que estiver presente no diálogo será uma “falha” da parte do

personagem, e não do autor. Naturalmente, o desejo de apresentar-se de forma positiva por

meio da língua apontado por Calvet (2002), ao menos em princípio, restringe-se ao próprio

usuário, e não se estende a personagens que ele venha a fabricar. Ainda assim, parece

razoável estimar que, salvo nos casos em que o autor está ativamente tentando caracterizar um

personagem como ignorante ou pouco sofisticado, ele inconscientemente será levado, pelas

forças do canal em que está produzindo, a evitar tanto estruturas não padrão quanto

disfluências (como hesitações e interrupções); afinal, relembrando Souza-e-Silva e Crescitelli

(26)

(2015, p. 81), “o enunciado pleno está associado à norma” e “enunciados interrompidos são considerados desvios”.

É claro que, para avaliar a naturalidade de uma fala, não basta verificar a presença (ou ausência) de formas não padrão e de descontinuidades orais. Uma volta às propostas de Dik (1997) e de Halliday (2004) torna evidente a necessidade de levar em conta o aspecto interpessoal do fazer linguístico: quem fala o quê, para quem, em quais circunstâncias. É notório que indivíduos diferentes têm identidades sociais diferentes e estabelecem relações hierárquicas culturalmente relevantes; assim, em qualquer tentativa de julgar a plausibilidade de um enunciado, deve-se reservar alguma atenção às relações existentes entre os usuários em questão, especialmente porque uma mesma estrutura pode ser plausível dentro de certas circunstâncias e duvidosa dentro de outras.

Finalmente, no caso do fluxo de informação, as razões por trás de sua inclusão como um ponto de interesse nesta análise são evidentes. Como já se indicou na Introdução, um roteiro criado sem atenção à informação compartilhada pelos interlocutores tem boas chances de conter interações linguísticas que não atendam ao imperativo conversacional básico de não explicitar mais do que o necessário. Parece sustentável esperar que, quando um diálogo não retrata de forma convincente a capacidade dos interlocutores de julgar o que merece e o que não merece ser dito, o público seja capaz de perceber (ou, talvez melhor dizendo, sentir) que algum aspecto do diálogo em questão não condiz com a realidade das interações linguísticas.

Estando explicitadas as relações entre os conceitos funcionalistas e sociolinguísticos

expostos e os objetivos desta investigação, passa-se a uma seção dedicada a apresentar a

variedade linguística em foco, os corpora selecionados para a análise comparativa, e o código

usado para marcar as ocorrências de interesse.

(27)

3 - METODOLOGIA

3.1 - SOBRE A VARIEDADE LINGUÍSTICA EM FOCO

Trabalhar com a língua espontânea implica, necessariamente, alguns cuidados. Antes de tudo, é necessário deixar bem estabelecido o que se entende por língua espontânea. Em consonância com Corley e Hartsuiker (2003), assume-se aqui que a língua espontânea é aquela variedade linguística que é formulada, desde a seleção do pensamento a ser verbalizado (CHAFE, 2005, p. 65) até as subsequentes escolhas lexicais e estruturais, no próprio momento da enunciação. A variedade língua espontânea opõe-se, dessa forma, à variedade língua planejada, em que as escolhas relacionadas à produção de linguagem já foram efetuadas, pelo próprio falante ou por um terceiro, antes do momento da enunciação.

Em outras palavras, considera-se que, na língua espontânea, todas as escolhas que a produção linguística envolve acontecem em simultaneidade (ou algo próximo disso) com o ato físico de falar.

A necessidade desse esclarecimento inicial vem de uma imprecisão que parece

permear as análises da língua falada em geral: em discussões sobre esse tema, termos como

língua falada, língua espontânea, língua informal, língua coloquial, língua não padrão,

língua popular e língua dos jovens são frequentemente usados como elementos

intercambiáveis. Embora o tratamento de língua informal e língua coloquial como sinônimos

seja, talvez, defensável, isso certamente não se estende aos demais termos citados, cada um

dos quais faz referência a um plano distinto da variação linguística. Língua espontânea, como

já se apontou, diz respeito ao planejamento (espontâneo/planejado), língua falada diz respeito

à modalidade ou canal (falado/escrito), língua informal (e, aceitando a sinonímia, língua

coloquial) diz respeito ao registro (formal/informal), língua não padrão diz respeito à

conformidade com a prescrição gramatical (padrão/não padrão), e os dois últimos termos,

língua popular e língua dos jovens, dizem respeito aos grupos sociais de que o falante faz

parte (no caso, camada socioeconômica e faixa etária). Embora exista, de fato, um inegável

compartilhamento de traços entre todas as variedades linguísticas em questão, é importante

considerar que cada uma delas se define pela presença de uma propriedade que não

necessariamente se faz presente nas outras, isto é, que é possível isolar amostras de língua

informal que não seja falada, de língua falada que não seja espontânea, de língua espontânea

que não seja popular, e assim por diante (TRUDGILL, 2000).

(28)

Uma vez estabelecida a língua espontânea como principal variedade de interesse nesta pesquisa, torna-se necessário selecionar um material de análise que seja marcado pelo traço aqui considerado como definidor da espontaneidade: em outras palavras, o material de análise deve conter falantes em situação de produção linguística não planejada. Esse direcionamento pode parecer suficientemente preciso para que a seleção de produções a serem analisadas aconteça sem dificuldades; porém, diante da diversidade das produções linguísticas observáveis na comunidade, pode ser difícil determinar, em termos dicotômicos, se uma dada produção é ou não planejada. Afinal, como tantas outras propriedades na língua, o planejamento acontece em graus: desde uma ausência total de preparação para a situação enunciativa, passa-se por gradações de uma preparação parcial (em que apenas alguns componentes do enunciado são pensados com antecedência) até uma roteirização total da mensagem a ser expressa. Obviamente, como o analista não tem acesso direto à mente do falante, o grau de planejamento, em si, não é verificável. Assim, na ausência de declarações do próprio falante sobre o tipo de preparação que antecedeu um determinado evento comunicativo, resta ao analista estimar o nível de planejamento da produção. Isso pode ser feito com base nos traços linguísticos sensíveis a essa variável e também com base na natureza do evento comunicativo, uma vez que, obviamente, situações sociais diferentes implicam graus de planejamento linguístico diferentes. Para os propósitos desta investigação, julga-se suficiente uma divisão tripartite entre espontaneidade total, preparação parcial e roteirização total.

3.2 - DIFICULDADES DA CAPTAÇÃO DA VARIEDADE-ALVO

A busca leva à seguinte questão: onde encontrar um material linguístico representativo da espontaneidade linguística total, que possa servir como base de contraste com as produções linguísticas (de obras fictícias e de pegadinhas) cuja naturalidade se pretende avaliar?

Embora, como se acaba de apontar, espontaneidade e informalidade sejam propriedades

distintas, permanece inegável que a fala informal e a fala espontânea compartilham muitas de

suas características, e que o ambiente que favorece o surgimento de uma é o mesmo que

favorece o surgimento da outra. Assim, parece defensável que, para coletar amostras de fala

espontânea, sejam adotados critérios semelhantes àqueles que se adotam na coleta de amostras

de fala informal.

(29)

Assim sendo, a primeira conclusão a que se chega é a de que a vasta maioria das produções linguísticas facilmente acessíveis – isto é, a maior parte das produções difundidas por grandes veículos de comunicação – é imprópria para este tipo de análise. Telejornais e discursos políticos, por exemplo, passam longe de representar a variedade espontânea da língua, tendo em vista que seus participantes certamente não se permitem simplesmente falar à primeira maneira que lhes vem à cabeça, sem filtros. Mesmo no caso de programas de humor ou de entrevistas de teor mais irreverente, nos quais a fala dos participantes pode parecer mais natural e descontraída, não é recomendável partir para a conclusão de que ela é realmente espontânea: a simples ciência de que sua fala será transmitida a um público amplo e indefinido tende a levar o participante a conferir a ela mais do que o mínimo de atenção. Em termos gerais, portanto, as produções facilmente observáveis pelo pesquisador em veículos como o rádio e a televisão não constituem um material ideal para a investigação da língua espontânea.

Em contrapartida, as conversações particulares, que, segundo Koch (2015, p. 43), são por excelência o ambiente da informalidade (e, parece cabível estender, da espontaneidade), quase invariavelmente começam e terminam sem nenhum tipo de registro e, assim, perdem-se no tempo. Devido a sua natureza privada, essas interações são eventos de difícil observação sistemática, e tentativas de gravá-las sem a ciência de seus participantes podem até mesmo acarretar sanções judiciais.

Diante disso, uma possível estratégia é a de recorrer a um meio termo: buscar um material que se distancie das conversações espontâneas no sentido de ser disponibilizado para acesso público, mas que também difira das produções midiáticas no sentido de ser elaborado em um ambiente caseiro, com traços de amadorismo. Foi essa a solução encontrada em Goulart (2015), em que se recorreu ao gênero relativamente novo dos videologs como fonte de produções linguísticas representativas do registro informal. Embora o material não seja ideal – por ter sido conscientemente produzido em frente a uma câmera –, considera-se que ele seja suficientemente representativo da variedade-alvo para permitir uma investigação frutífera.

3.3 - O CORPUS DE REFERÊNCIA: BANCO DE DADOS IBORUNA

3.3.1 - A origem e a natureza do corpus

(30)

A presente investigação, por sua vez, serve-se de um material que, ao menos no que diz respeito ao automonitoramento, certamente pode ser considerado ideal. Trata-se da Amostra de Interação do Banco de Dados Iboruna, que compõe parte do Projeto Amostra Linguística do Interior Paulista (ALIP), dirigido por Sebastião Leite Gonçalves e Sandra Bastos. O projeto focaliza as variedades linguísticas em uso na região de São José do Rio Preto, mais especificamente em sete municípios adjacentes do noroeste do estado. À época de sua concepção, um dos principais interesses por trás do projeto era o de possibilitar investigações com objetivos diferentes daqueles que haviam motivado a formação de amostras de fala semelhantes até então (GONÇALVES, 2003).

Como explicado na Introdução, o Banco de Dados Iboruna é composto por dois conjuntos distintos de gravações: uma Amostra Censo Linguístico (AC) e uma Amostra de Interação (AI). A AC é formada por entrevistas sociolinguísticas em que são rigorosamente controladas variáveis como gênero, escolaridade, faixa etária e classe social. Os informantes, cientes de que sua fala está sendo gravada, são levados pelo documentador a transitar por diferentes gêneros discursivos, como relato de experiência pessoal, relato de narrativa recontada e relato de descrição. A AI, por sua vez, consiste em gravações coletadas sem o conhecimento dos informantes

3

, durante situações livres de interação social. As gravações podem envolver mais de dois falantes, muitas vezes com diferenças consideráveis no que diz respeito às características sociais de cada um. É neste último conjunto de gravações, isto é, na Amostra de Interação, que se concentra o interesse neste trabalho.

A Amostra de Interação reúne 28 falantes (não se contando os documentadores) distribuídos por 11 gravações, em um total de aproximadamente 170 minutos. O grau de instrução dos informantes é misto, variando sua escolaridade desde o analfabetismo até o grau superior completo. Boa parte das interações consiste em conversas descompromissadas entre indivíduos de aparente intimidade, os quais, acrescente-se, muitas vezes conversam enquanto desempenham outras atividades (como mexer em panelas ou usar um computador). Há casos pontuais de debates mais enérgicos, assim como também há uma gravação específica cujo registro é, recorrendo-se aqui à tipologia de Joos (1967), consultativo, isto é, gira em torno da consulta de uma mulher a um profissional, que lhe explica o melhor procedimento legal para

3 Naturalmente, os informantes foram posteriormente informados sobre as gravações e autorizaram o uso dos dados coletados.

(31)

lidar com um ex-cônjuge problemático. É sobretudo em razão dessa gravação específica que não se pode dizer que o corpus em questão é informal em sua totalidade. Ainda assim, parece seguro dizer, mesmo essa gravação é espontânea, no sentido de que ambos os falantes demonstram estar elaborando suas falas no mesmo momento em que as emitem, o que licencia a afirmação de que o corpus é espontâneo em seu todo.

3.3.2 - Limitações

A escolha do Banco de Dados Iboruna como uma referência de naturalidade no português brasileiro pode, eventualmente, pode suscitar algumas objeções. A primeira diz respeito à origem geográfica das gravações: a amostra de fala aqui selecionada é, inegavelmente, bastante localizada, isto é, limitada em variação regional, uma vez que todos os dados são provenientes de uma mesma região (o noroeste do estado de São Paulo). Seria possível alegar que uma seleção de falas da região de São José do Rio Preto não pode ser representativa daquilo que é natural no português brasileiro como um todo. No entanto, há duas questões a serem levadas em conta: (i) a raridade de gravações como as aqui escolhidas, obtidas sem o consentimento prévio dos falantes, e (ii) o fato de o foco deste trabalho não estar naqueles fenômenos mais obviamente afetados pela variação regional, como a seleção lexical ou a realização de certos fonemas, e sim em fenômenos que, ao menos à primeira vista, não parecem especialmente sensíveis à origem geográfica do falante (como a hesitação, por exemplo). Tendo esses dois pontos em mente, parece fazer sentido deixar de buscar um corpus mais rico em variação diatópica em favor da certeza de estar em posse de produções linguísticas verdadeiramente espontâneas.

Também pode evocar objeção o fato de estarem sendo contrapostos, neste trabalho, produções linguísticas de natureza bastante diferente. Os eventos comunicativos da AI consistem, quase exclusivamente, em conversações descontraídas entre conhecidos, enquanto os eventos comunicativos das peças de entretenimento selecionadas vêm em formas das mais variadas: além de conversações descontraídas, também há entrevistas de emprego, consultas a profissionais, interpelações a desconhecidos em lugares públicos, entre diversas outras.

Assim, pode parecer descabido determinar que uma dada fala não é realista porque suas

características diferem das de um conjunto de falas produzido em circunstâncias diferentes.

(32)

Contudo, há que se considerar que seria inviável, se não impossível, obter um material de análise que, além de marcado por espontaneidade, reunisse todos os tipos de eventos comunicativos existentes em uma comunidade linguística. A necessidade de usar um gênero mais abrangente para comparação com outros gêneros mais específicos parece, por essa lógica, inescapável. Assim sendo, o melhor gênero para o cumprimento desse papel é, sem dúvida, a conversação, que, como sintetizou Tarallo

4

, é a manifestação da linguagem por excelência.

3.4 - A oralidade fingida: materiais selecionados 3.4.1 - A natureza do corpus

Para compor a amostra de produções cuja naturalidade será mensurada por relação com o Banco de Dados Iboruna, optou-se por uma compilação de falas extraídas de diferentes gêneros, a saber: filmes, novelas, propagandas e quadros de programas de auditório. Foram selecionadas somente aquelas peças que contêm representações da fala espontânea contemporânea; nesse sentido, obras de época foram preteridas, uma vez que qualquer disparidade entre a fala real e a fala da obra poderia ser atribuída ao fato de a história em questão ocorrer em um período distante.

Este corpus conta com um total de aproximadamente 14 produções roteirizadas transcritas, abrangendo todos os gêneros listados acima: um filme, dois capítulos de novela (acrescidos de algumas cenas avulsas de outros capítulos), três episódios de um programa de auditório e onze propagandas. O tempo total de gravações transcritas deste Corpus de Oralidade Fingida (COF) é de aproximadamente 150 minutos, uma duração relativamente próxima à da Amostra de Interação do Iboruna, que é de cerca de 170 minutos. Cabe apontar que o tempo ocupado pelos gêneros é desigual (ficando a maior parte do corpus preenchida pelo filme e pelas novelas), razão pela qual análises isoladas para gêneros específicos são necessárias em alguns pontos da investigação.

Deve-se salientar que, durante a transcrição dos materiais selecionados para este corpus considerado de oralidade fingida, nem todo tipo de fala foi incluído: o objetivo deste

4 Em comunicação pessoal com a orientadora deste trabalho.

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