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TOCAR E VER: O CORPO TORNANDO-SE SUJEITO

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Academic year: 2021

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TOCAR E VER: O CORPO TORNANDO-SE SUJEITO

Iraquitan de Oliveira Caminha 1

O objetivo desse estudo é analisar a experiência de tocar e de ver, considerando a pulsão de domínio, concebida por Freud, e a motricidade do corpo próprio, concebida por Merleau-Ponty. Nossa intenção é mostrar como a subjetividade vai se construindo nos atos de se dirigir para o outro. Nesse sentido, pretende-se compreender como as ações do corpo, por meio do tocar e do ver para dominar o objeto ou para agir intencionalmente em relação ao mundo, podem ser concebidas como experiências originárias para se compreender o corpo tornando-se sujeito. Em outras palavras, como o corpo vai se tornando corpo-sujeito a partir de sua relação com o mundo, estruturada pela experiência de tocar e de ver.

Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a pulsão de domínio, que num primeiro momento Freud entende como de natureza não sexual, tem como meta dominar o objeto pela força. Nesse sentido, estamos falando de um ato pulsional que se dirige para o exterior com o intuito de se apoderar do objeto.

O objeto é a instância correlativa da atividade pulsional. Usar a boca para tocar o seio da mãe, bem como usar as mãos para alcançar um objeto distante podem ser consideradas como experiências em que a pulsão de domínio é ativada em busca de dominar o objeto. Esse objeto pode ser também uma pessoa, um objeto real ou fantasístico, ou ainda um objeto parcial ou total. Mas como o corpo se faz sujeito e alguma coisa se faz objeto? Com é possível um corpo se constitui num “aqui” que se dirige para um “lá”?

Se buscarmos responder essa duas questões usando a lógica cartesiana, poderíamos propor ações intencionais de um sujeito que usa o corpo para dominar, de forma controlada, o objeto. Estamos falando de uma espécie de subjetividade anexa ao corpo que pressupõe toda atividade intencional. Todavia, propomos trilhar um caminho diferente daquele adotado por Descartes.

1

Professor-pesquisador do Departamento de Educação Física, do Programa Associado de Pós-Graduação

em Educação Física da Universidade Estadual de Pernambuco/Universidade Federal da Paraíba e do

Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. Membro do Laboratório

de Psicopatologia do EPSI – LABORE e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Educação do

EPSI/NEPPE. Autor do livro O distante-próximo e o próximo-distante: corpo e percepção na filosofia

de Merleau-Ponty.

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Antes de tudo, para Freud, a psique é extensa. Ao propor esse entendimento, Freud desconstrói a visão cartesiana de que só existem dois modos de ser distintos: res extensa e res cogitans. De um lado, a coisa extensa que é a matéria ou o corpo enquanto estrutura física. De outro, a coisa pensante que é puramente mental. Nesse sentido, no lugar de considerar duas coisas distintas que se associam, Freud opta por conceber o conceito de pulsão como um conceito-limite entre o psíquico e o somático. Por este caminho podemos propor argumentos que afirmam que o corpo se faz sujeito. Mas como o corpo pode ele mesmo tomar a forma de subjetividade?

Com base na filosofia de Merleau-Ponty (1992), podemos compreender o corpo como existência ambígua. Ora é possível admitir o corpo humano como objeto, quando ele é submetido às leis mecânicas da natureza, ora ele é sujeito, quando realiza movimentos voluntários. Nesse sentido, o corpo pode ser considerado ele mesmo como dotado de existência subjetiva. O poder de realizar movimentos voluntários procede do próprio corpo e não de uma consciência anexa que comanda o corpo.

Quando toco minha mão esquerda com a minha direita, percebo que há em meu corpo uma experiência reflexiva. A mão que toca e a mão tocada podem experimentar uma alternância de papeis. O mesmo corpo experimenta uma reversibilidade em que ora é tátil, objeto tocado, e ora é tocante, sujeito que toca. A descrição dessa experiência serve para mostrar que o corpo pode ser compreendido não somente como objeto, mas também como sujeito. Logo, o corpo humano é habitado e animado por uma consciência que nasce da experiência reflexiva do próprio corpo. Não se trata de uma reflexão fundada na representação de um objeto que é posto a distancia, mas uma elaboração sensível vivida pelo corpo e no próprio corpo, interagindo com outros corpos. O poder de voltar-se para si, considerado próprio da atividade de pensar, não é apenas uma faculdade da razão, mas elaboração originária do próprio corpo.

Podemos observar que Freud e Merleau-Ponty, na contramão do caminho cartesiano, admitem que a subjetividade é originária do próprio corpo. Todavia, Freud apela para o conceito de pulsão e Merleau-Ponty para o de intencionalidade. Haveria uma aproximação possível entre esses dois conceitos?

Para Freud, o corpo, considerado do ponto de vista pulsional, se dirige para o

objeto em busca de realizar um certo tipo de satisfação. O que está em evidencia é

dominar o objeto para encontrar uma satisfação. Nesse caso, o objeto da pulsão é tudo

aquilo no que e por meio do que tal satisfação pode ser efetivada. Desse modo, a pulsão

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pode ser compreendida como carga energética presente na origem da atividade motora do corpo.

Segundo Merleau-Ponty, antes de ser um “eu penso”, a consciência é, originariamente, um “eu posso”. Pelos movimentos, o corpo vai inventando formas de se relacionar com o mundo. Pelo “eu posso”, podemos falar de uma subjetividade fundada no poder de sentir e de se movimentar do corpo, vividos por meio de relações de interações com o meio ambiente. Pelo poder sensório-motor, o corpo experimenta um transbordamento, uma saída de si e um alargamento do mundo. O próprio corpo vai transformando um fazer mecânico em fazer livre. O corpo do bebê não somente responde mecanicamente aos estímulos do mundo. Aquilo que era reflexo de preensão torna-se o esforço de alcançar um brinquedo. O corpo se movimenta para se fazer presente a um brinquedo que está distante. Tal movimento é a expressão da existência de um corpo que está no mundo por meio de seus gestos.

Segundo nossa compreensão, tanto Freud como Merleau-Ponty apontam na direção de uma subjetividade se constituindo no corpo. Todavia, Freud destaca, pelo conceito de pulsão, uma relação intercorpórea que é da ordem da satisfação. Para Merleau-Ponty essa relação intercorpórea é da ordem da percepção. Mas para se obter uma experiência de satisfação, vivenciada pelo domínio do objeto, não é necessário perceber algo como objeto?

Tomemos o exemplo do tocar e do ver. Para Freud a humanidade começa com um bebê sendo cuidado por um adulto. Podemos dizer que ao receber os cuidados do adulto, o bebê não somente vive a experiência de ser tocado, mas também de tocar, não somente de ser visto, mas também de ver. Ele transita da posição de um corpo passivo para um corpo ativo. Ele não somente é afetado por objetos, mas se dirige para eles para afetá-los. Mas como é possível vivenciar no próprio corpo a mudança de passivo para ativo?

O corpo que busca o outro corpo para encontrar uma satisfação poder estar sujeito à frustração, insatisfação, impotência e sofrimento. A experiência que fazemos de nosso corpo para realizar um movimento intencional sofrerá a resistência do mundo.

Só podemos afirmar que eu posso movimentar-me porque, em algum momento, o

dirigir-se para realizar uma ação resultou numa falha ou fracasso. O defeito, a

interrupção e o insucesso são fundamentais para o corpo se constituir corpo-sujeito por

meio da pulsão de dominar e da motricidade corpórea.

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Tocar e ver são fundamentais para se reconhecer o corpo como sujeito e o contato com algo externo que se percebe como objeto. Se relacionarmos o ver e o tocar como atividades pulsionais e perceptivas fundadas na noção de domínio, podemos dizer que Freud e Merleau-Ponty se encontram. Seja para buscar satisfação ou perceber o que se pretende é dominar.

Freud e Merleau-Ponty nos ensinam que o ver e tocar não é apenas uma experiência de reagir aos estímulos ambientais. Ver e tocar nasce no corpo como experiência de uma massa que ganha forma direcionando o sensível para dominar o objeto pela força do próprio corpo. O corpo não é apenas constituído por ossos, músculos e órgãos. Freud e Merleau-Ponty evocam o problema do uso do corpo a serviço do poder de dominar. Dominar para que?

À medida que o corpo vai controlando o uso de sua musculatura ele vai dominando a si mesmo e a sua relação com o mundo. Mas ele descobre isso na ação que falha. O objeto não é passivo. Ele resiste às ações controladoras do corpo. É nessa tensa relação de um corpo, que se dirige para o objeto buscando dominá-lo, e o objeto que lhe apresenta resistências, que o corpo inicia um processo de subjetivação que lhe transformará num corpo-sujeito.

O corpo não apenas toca e ver, mas deseja tocar e ver. O corpo não apenas faz uma ação, mas aprende a fazer tal ação em busca de usar o objeto a serviço de seu prazer. Mas o objeto somente ganha sua condição de alteridade, isto é de objeto externo separado do corpo, pela resistência a se submeter aos investimentos de um corpo ávido por domínio. Sem a instauração de conflitos não podemos conceber qualquer forma de subjetividade. A polaridade atividade/passividade é decisiva no movimento do corpo tornado-se sujeito.

O corpo que busca controlar e dominar o outro faz desse exercício uma experiência também de autocontrole e autodomínio. O corpo busca executar com eficiência seus movimentos. O corpo visa ordena o objeto a serviço de seu prazer. Mas o objeto lhe resiste. Se os objetos estivessem sempre à disposição do corpo sem sair do campo visual e tátil, eles não seriam objetos nem o corpo poderia ser corpo-sujeito. O está em evidência é o tema do poder na vida psíquica que se instaura, originalmente, pelo poder do corpo.

O corpo humano é afetado por outros corpos, bem como afeta outros. Não há

corpo humano sem vínculos. Nosso corpo não somente se abre para o outro pelos

sentidos e movimentos, mas possuem zonas erógenas, que só alcançam o estatuto de

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erógenas pelo contato com o outro. Os corpos são sensibilizados permanentemente pelas interatividades intercorpóreas.

Para Safra (2005), os contatos entre os corpos, que marcam a origem da humanidade é, fundamentalmente, estético. Esses contatos definem o protótipo do corpo-sujeito. As elaborações corporais de tocar e de ver são fundamentais na formação da subjetividade, que faz a experiência estética ser senso-perceptiva. O corpo não é apenas excitado pelos contatos, mas inicia uma longa caminhada para ser senhor dessas excitações. Ela não apenas senti, mas começa um processo de dominar o que se senti. O corpo não somente experimenta o tocar e o ver, mas busca controlar tais experiências.

Nasce da pulsão de dominar, que impulsiona a experiência de perceber o sentido de interno e externo, indispensável para se conceber a condição de ser uma existência subjetiva fundada no corpo.

A psique nasce como instancia mediadora de relacionamentos por meio de ações e reações corporais para dominar os objetos, que manifestam resistências ao poder de dominar do corpo. Há uma espécie de “não” originário que funda a psique que é da ordem do não poder, da impotência. É na ameaça de ser negado, que o corpo se afirma como corpo-sujeito. A subjetividade possui uma instauração originária que é subjacente ao corpo, que se descobre dirigindo para um outro quando se depara com a resistência do limite, da diferença, do não, da morte. A surpreendente finitude nos revela que o “eu posso” da motricidade intencional ativa se afirma na tensão do “eu não posso” passivo revelado pela presença aniquiladora da morte.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud, Edição Standard brasileira. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Vol. VII. Rio de Janeiro:

Imago, 1987.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1992.

SAFRA, Gilberto. A face estética do self: teoria e clínica. Aparecida: Idéias & Letras, 2005.

LAPLANCHE, Jen e PONTALIS, Jen-Bertrand. Vocabulário da psicanálise. São

Paulo: Martins Fontes, 2008.

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