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A “eletronização” dos “sonhos”

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A IIELETRONIZAÇÃO"

DOS IISONHOS"

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Maria Meirice Pereira de Sousa'

RESUMO

o

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

t e x t o r e fl e t e a s r e c e n t e s m u d a n ç a s n o p a d r ã o p o l í t i c o d o s g o v e r n o s d o C e a r á ( T a s s o

J e r e i s s a t i - 1 9 8 7 / 1 9 9 0 e C i r o G o m e s - 1991/ 1 9 9 5 ) c o m o i n v e s t i m e n t o n a t e c n o l o g i a d o s

v i d e o s c o m a l t o p a d r ã o d e q u a l i d a d e , b a s e a d o s

n o c o t i d i a n o d a s c l a s s e s p o p u l a r e s e t r a t a n d o

-a s c o m o " b e n e fi c i á r i a s " d o s p r o j e t o s

a s s o c i a t i v o s a d m i n i s t r a d o s v i a p a r c e r i a p o v o /

g o v e r n o .

ABSTRACT

T h e p a p e r d e a l s w i t h r e c e n t c h a n g e s i n

politi-c a l p a t t e r n s a s r e v e a l e d b y g o v e r n m e n t o f t h e s t a t e o f

C e a r a ( T a s s o J e r e i s s a t i - 1 9 8 7 / 1 9 9 0 a n d C i r o G o m e s

- 1991/1995) w h i c h i n v e s t e d h e a v i l y o n h i g h q u a l i t y

v i d e o t e c h n o l o g y , h a v i n g a s i t s b a s e t h e d a i l y s t r u g g l e

o f p o p u l a r c l a s s e s t o o r g a n i z e , a n d s h o w i n g t h e m a s

b e n e fi c i a r i e s o f j o i n t p r o j e c t s t h a t w e r e a d v a n c e d b y

m e a n s o f p a r t n e r s h i p p e o p l e / g o v e r n m e n t .

INTRODUÇÃO

As características da relação Estado e

Movi-mentos Populares no período em que o cenário político

do Ceará foi dominado pelos sucessivos governos dos

"coronéis urbanos" tornaram-se mais visíveis após 1986, com a ascensão do grupo político composto por jovens empresários ligados ao Centro Industrial do Ceará - CIC,

e mais precisamente com a eleição de Tasso Jereissati

estre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará.

EDCBA

= n

o c a ç ã o e m D e b a t e - F o r t a le z a - A N O J9 - N ° 3 4 - J9 9 7 -p.7 8 - 8 4

ao governo do Estado, quando o discurso governamental passou a dar ênfase à participação popular e à renovação

da mentalidade pública vigente até então, o que foi

veiculado através de discursos, documentos e inclusive de um enorme investimento em publicidade, posto em

prática pelos governos que se auto-denominaram

G o v e r n o s d a s M u d a n ç a s (Tasso Jereissati/1987-1990

e Ciro GomesI1991-1995), gerando depoimentos nos

bairros que exprimiram muito bem a absorção desta lógica. A princípio, isso pode ser sintetizado num deles, de teor bastante significativo, pronunciado por uma líder

comunitária, em reunião ocorrida no Bairro Granja

Portugal, localizado na periferia urbana de Fortaleza,

numa associação de moradores onde houve forte

ingerência de recursos fmanceiros oriundos de programas governamentais:

A g e n t e , a g o r a , e s t á fa z e n d o p a p e l d e

g o v e r n o (Líder comunitária).

Ele denotou outro convívio com o Estado,

apontando um perfil diferenciado do que se conhecia

enquanto representante dos movimentos populares ao

afirmar atribuições, segundo uma funcionalidade

"estranha", pois oriunda do convívio com os programas

participativos, e imersa numa outra temporalidade, a do

discurso da participação, conforme determinada pelo

Estado, o "outro" de uma relação anterior onde os

movimentos populares apregoariam uma contraposição radical dos objetivos de ambos.

De fato, algumas modificações na dinâmica de

interação dos movimentos populares com o Estado sina-lizavam, neste momento, um perfil de "domesticação"

ou espaço de legitimação dos movimentos pelo Estado

via interação propiciada em sua recente política social. Através dela, o Estado apareceu de forma mais

nítida, desenvolvendo programas sociais sob uma ótica

(2)

com os sujeitos

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

s o c i a i s

emergentes da

s o c i e d a d e c i v i l ,

surgiram inclusive lideranças articuladas às referidas

políticas governamentais que se colocaram

simultanea-mente como seus porta-vozes e dos movimentos de

bairro".

Para caracterizar o Estado do Ceará nas gestões governamentais de Tasso Jereissati (1987-1990) e Ciro

Gomes (1991-1995), faz-se necessário identificar duas

conjunturas em nível local: a primeira, de 1979/85,

compreende a administração Virgílio Távora e os dois

primeiros anos da gestão Gonzaga Mota, com a

predominância de um padrão tecnocrático e autoritário na execução das políticas sociais e na relação do Estado com

os setores populares, marcada pelos dilemas com a

problemática habitacional, e assinalando diretrizes voltadas

para o desfavelamento urbano através do exercício do

d e s e n v o l v i m e n t o d e c o m u n i d a d e ' enquanto processo de remoção, transferência e readaptação de moradores, num contexto em que a problemática urbana ficou mais evidente com o acirramento dos conflitos em áreas de ocupação, passando a exigir uma tomada de posição dos governantes frente à visibilidade assumida pelas disputas.

A segunda tem como marco inicial o rompimento do governador Gonzaga Mota com o governo Figueiredo, sua participação na Campanha das Diretas e o apoio à candidatura Tancredo Neves caracterizando a emergência de um novo padrão de relações entre Estado e Movimentos Sociais, através das estratégias participativas.

Assim nos deparamos com formatos distintos

para a política social no Estado cearense numa confluência

de acontecimentos, ora no âmbito do acirramento dos

conflitos entre movimentos populares e Estado, ora nas disputas políticas pelo poder local.

Ao lidarmos com outra conjuntura política,

percebemos que, além do discurso dos governantes,

modificaram-se os padrões de mediação institucional e

as estratégias de utilização de imagens, onde o

aparecimento de líderes populares, afirmando as

melhorias propiciadas pela política social vigente,

garantiu aos governos em questão uma visibilidade para

as "mudanças" apregoadas.

EDCBA

2 Tratamos mais detidamente do surgimento de programas de

cunho participativo, propiciando a existência de técnicos governamentais imbuídos do discurso da participação, e das influências sobre o processo de construção de lideranças constituindo-Ihes um perfil paradoxal de gerentes e/ou representantes, em SOUSA, Ma. Meirice Pereira de.C e n a s d e u m " e n c o n t r o " . Dissertação de Mestrado, Fortaleza:UFC.

3 GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. 1 1 P L A M E G -D i a g n ó s t i c o e P r o g r a m a ç ã o - 1979/83. Governo Virgílio Távora, 1983.

Outrossim, a realidade

contemporânea

apre-senta uma combinação bastante rica de práticas e

experiências culturais diante das quais nos deparamos

com uma estreita vinculação entre o tradicional e o

moderno. E, embora a situação cultural contemporânea

seja mais complexa do que o quadro que ora

apresentamos, há mais um agravante: a condição

pós-moderna, sinalizando modificações na produção e no

consumo da cultura, bem como nas práticas cotidianas,

também decorrentes do aprofundamento da

moder-nidade, ou ainda, como nos diz BELLONI (1994), da

possibilidade de uma mutação antropológica de grande

alcance nos sujeitos que convivem nessa era

in-formatizada.

Neste contexto, as imagens tornaram-se

mercadorias (BAUDRILLARD, 1986), tendo que

desempenhar outras funções. A política passou, então, a

valorizá-Ias como componentes de sua aura de

autori-dade e poder. Por isso, a produção e o consumo dessas imagens exigiram sofisticação para obter reconhecimento e para eliminar a "concorrência" política.

Assim sendo, poderíamos inferir que as

simulações, enquanto réplicas bastante aproximadas

da perfeição, aparências de realidade porque

possuidoras de disfarces, determinam um papel

poderosíssimo à mídia, no tocante à constituição de

"novas'" identidades políticas. Empilham-se imagens,

eclética e simultaneamente, na tela da TV,

transformando-as em simulacros de ambientes

indistinguíveis do original, compondo uma síntese de

temas e personagens efêmeros.

Tratar do relacionamento comunicação e política,

cujo principal instrumento mediador foi a televisão se

traduz num caminho repleto de controvérsias, mas as

questões daí emergentes permitem exercitar uma

confluência temática, senão inquietante, pelo menos

sugestiva.

1 OS COMERCIAIS DA

IIGERAÇÃOcEARÁ

ELHOR"

As recentes mudanças no padrão político dos

governos do Ceará (décadas de 80/90) assinalaram a

utilização da tecnologia do vídeo com alto padrão de

qualidade, evidenciando a propaganda como instrumento

• O termo entre aspas traz implícita uma compreensão de identidade como um referencial ambíguo o qual sofre reelaborações e não inovações por completo.

(3)

político. Assistimos, diariamente, a depoimentos cuja característica de repetição se fez perceber assentada em atitudes do cotidiano das classes populares' .

Numa tentativa de exposição sucinta destes

comerciais, vejamos: (Narrador) "Esta é Dona fulana,

residente no bairro tal, costureira. Uma das milhares de

beneficiados pelos recursos do Governo do Estado,

destinados ao incentivo das atividades produtivas e à

melhoria da qualidade de vida do povo do Ceará.

Governo das mudanças: construindo o Ceará melhor!"

(A narração tem as imagens do cotidiano da personagem

como cenário e é entrecortada por depoimentos da

mesma confirmando os benefícios recebidos, as

modificações qualitativas e quantitativas por eles

propiciadas e, de forma enfática e espontânea, a

transformação operada em sua vida e na dos moradores

pela gestão Tasso Jereissati). Nos comerciais veiculados

na gestão posterior (Ciro Gomes) acrescenta-se algo

ao conteúdo destas imagens. Substitui-se o final anterior por: "O Ceará mudou: Geração Ceará Melhor", dando idéia de continuidade do "projeto mudancista" proposto na gestão que a antecedeu" .

Os comerciais da

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

G e r a ç ã o C e a r á M e l h o r

("slogan" que passou a nomear o poder público

esta-dual) apresentaram imagens de comunidades

beneficia-das por recursos oriundos do Estado, via programas

sociais de cunho participativo, onde moradores e líderes populares foram personagens de uma rede de

"beneficia-dos" pelos projetos encaminhados mediante a parceria

povo/governo.

Estes governos veicularam uma vasta campanha publicitária na qual os anseios populares por justiça social

foram transformados num projeto "novo" e

"demo-crático", cujo envolvimento com o "resgate da cidadania"

(GOVERNO DO CEARÁ, 1987) se expressou através

5 No período em questão, foi produzida a novela "Tropicaliente"

pela Rede Globo com ajuda financeira proveniente do governo do Estado, segundo informações veiculadas pela imprensa. Embora este fato seja comumente apontado como um investimento em propaganda pelo mesmo, optamos pela análise dos comerciais porque sua característica de repetição, forma de investimento e veiculação assim permitiu caracterizá-los, Também, enquanto denominados "prestação de contas à população cearense", a qualidade técnica e o evidente direcionamento ideológico dos mesmos distinguiram e tomaram marcante o relacionamento população e governo na realidade local.

6 Ao utilizarmos o termo m u d a n c i s t a , não estabelecemos, por isso, uma conotação pejorativa, nem tampouco queremos afirmar que houve efetivamente as mudanças apregoadas. Apenas

dimos a uma expressão amplamente mencionada pela

::o

EDCBA

c a ç ã o e m D e b a t e - F o r t a le z a - A N O 1 9 - N " 3 4 - 1 9 9 7 -p.7 8 - 8 4

dos "slogans" definidores destas gestões ("Construindo

o Ceará Melhor", "Governo das Mudanças", "O Ceará

Mudou") e "trajes" de imagens, apresentadas na TV,

como fotografias da realidade cearense.

Houve a exibição constante desta "fotografia", onde, ao invés de política "ao vivo", assistimos às cores e veracidades possíveis de serem obtidas em gravações

e montagens. Para isso, reestruturou-se um certo

número de elementos fornecidos pela realidade,

com-pondo, em vídeo, não a realidade própria, mas um

simulacro da mesma ou uma hiper-realidade

(BAUDRILLARD, 1986).

O aperfeiçoamento deste "padrão de

qua-lidade" se fez notar na sucessiva eleição de Ciro Gomes

(em 1990, para o exercício do mandato 1991-1995) e

na transposição de Tasso Jereissati, reeleito governador

do Ceará em 1995, do cenário regional ao nacional,

em liderança significativa do Partido da Social

Democracia Brasileira - PSDB. E o Ceará chegou ao

restante do país. Pudemos observar o simulacro,

permitindo o convencimento, ao percebermos a

"realidade" cearense exposta como uma "tela gigante".

Os programas do mencionado partido político

(campanha presidencial de 1994), projetados

nacionalmente, foram significativos deste fenômeno

quando apresentaram o referido Estado como uma

"Ilha da Prosperidade".

Fortaleza, outrora palco de inúmeras

mobili-zações em prol da garantia dos serviços públicos

básicos, pareceu o recorte de um realismo, quase

harmônico: "o Ceará que mudou". E a TV ali estava

comprovando que o atendimento oriundo das

solicita-ções dirigidas ao governo propiciava melhorias.

Parecia tratar-se agora de gestões qualitativamente

diferentes, porque dispostas ao diálogo e à parceria

(4)

com as comunidades e capazes de responder a

contento a reivindicações.

A partir de então, as formas políticas anteriores

(não apenas o coronelismo, como também a clássica

atuação da militância de esquerda), perderam

grada-tivamente sua influência diante da significação assumida pelas produções veiculadas pela TV, as quais colocaram a população em contato direto com a grande "verdade":

"O Ceará Mudou".

EDCBA

Z

A PUBLICIDADE NA TV

O fenômeno que articula política e mídia

cristalizou-se, a partir de meados da década de 80, com

as eleições diretas para prefeituras de capitais e governos

de Estado, quando os efeitos da utilização de técnicas de

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

m a r k e t i n g nas campanhas eleitorais e a associação aos

códigos de televisão se fizeram claramente perceptíveis,

intercalando o próprio conteúdo das práticas políticas

convencionais.

A política, como se configurara na modernidade, enquanto ampliada e hegemônica, passara a exigir uma

atividade de realizações no âmbito público sob o risco

de que outras formas de sociabilidade, em meio às

contradições e conflitos que marcam a sociedade, e

também capazes de alcançar sua dimensão pública,

colocassem em xeque o seu percurso, exigindo

realizações concretas.

O lugar da política, mediante as transformações

ocorridas ,buscou dar conta destas mudanças, formando

o fenômeno da "mediatização da política" (MASC,

1994: 192). Observa-se, a partir da cristalização de uma

cultura midiática, um outro lugar de construção do

político onde ocorre o predomínio da condição de

platéia. O lugar da praça, se não é destruído, fica

claramente constrangido pelos limites da central idade

alcançada pelos meios de comunicação de massa no

conjunto das práticas políticas (idem).

Assim a política, para atender a tais

condicio-nantes, passa a reter o "fato" político via mídia, para

viabilizar suas possibilidades de trânsito no nível público

da sociedade. Com' o( s) vídeo( s) é possível eternizar

experiências importantes vivenciadas nas lutas

populares, alternando individualidades, coletividades e

moldando imagens sociais, sintetizando-os sob temas,

personagens e cenários, ou seja, conformando-os

politicamente.

Como a mediatização não é apenas o usufruto

instrumental de canais para a difusão de ideários políticos,

nem para a construção organizativa, os meios de

comunicação, principalmente a TV, tornaram-se os

principais interventores nos espaços tradicionalmente

legitimados como lugares clássicos da política.

Assim, os investimentos para assegurar ganhos eleitorais foram redefinidos. Walter Benjamin, quando trabalha a obra de arte, nos fornece pistas fecundas, as quais, por analogia, ousamos estender à política enquanto "bem" cultural.

Para BENJAMIN (1985), a concepção

tradicio-nal de arte é estremecida quando sua reprodução se dá

pela mediação da técnica, e não pelo trabalho humano

de imitação. A reprodução técnica destrói a "aura" da

obra de arte, o que a tomava alvo de admiração. Assim,

a autenticidade perde o sentido, pois o limite entre o

original e a cópia dá "autonomia" à segunda, porque a

técnica acelera o alcance de resultados que abalam a

autenticidade do real. O autor destaca o cinema como

arte que por excelência sintetiza a ruptura da autoridade do real porque abre perspectivas para exibição do nosso inconsciente.

Aqui, destacaríamos a utilização da televisão

-pois, via "telinha", pudemos perceber, também, uma

quebra no alcance da visibilidade do real, a qual ficou

demarcada numa sobreposição da publicidade aos

desníveis socioeconômicos da realidade cearense

-contrapondo-se ao padrão político em vigor

ante-riormente.

Pela publicidade há um processo de construção

e reconstrução como num espelho deformado onde a

imagem do lado do vídeo é muito melhor que a do real. Desse modo, não apenas vende produtos mas demonstra

m o d e l o s a serem seguidos. Ela apresenta padrões

comportamentais e dita regras de reconhecimento e

valorização social. A publicidade na sociedade industrial capitalista funciona como um reforço das ideologias, da

valorização das aparências, da promoção de status,

reforçando tendências disfarçadas da cultura. Ela

confirma distinções reproduzindo a própria cultura, repleta de desigualdades.

No contexto em vigor, essa função exercida pela

publicidade, transportou para o ídeo valores e desejos

ancorados na cultura e, por isso, consumidos pelas

populações nos bairros. Ela agiu sobre as necessidades

sociais, principalmente aumentando as investi das sobre

as necessidades simbólicas. Desse modo, aquele que não

se enquadrasse no modelo imposto pareceria

marginalizado e tenderia, por isso, a render-se a tais

imperati os.

A repetição de imagens, que reprocessaram

tradições do movimento popular, apareceram

(5)

sadas por inversões onde os "lugares" do que depõe no

vídeo e o do ouvinte ficaram aprisionados num modelo

sociotecnológico, até mesmo por desmontagens: era uma história diferente em cada caso, o que dava a impressão de que as peculiaridades desta ou daquela comunidade não importavam como coletivo, quando, em sua trajetória, os

movimentos populares, constroem um imaginário de

comunidade (DURHAM, 1984) o qual busca demonstrar justamente o contrário, não evidenciando conflitos, senão

em momentos de refluxo dos mesmos.

Vale lembrar, aqui, a prática de produção de

vídeos pelos movimentos populares de bairro,

notadamente pelas Comunidades Eclesiais de Base

-CEB's. Importava gravar momentos e eventos

significativos para a luta comunitária. O vídeo funcionaria

como instrumento de organização, pois tratava-se de

utilizá-Io como material de educação política e, dentre

outros alcances interpretativos, dar o sentido de evitar

que os "políticos" conseguissem ludibriar as comunidades com sua versão dos fatos.

Como as imagens congelam e cristalizam o

presente, o (s) vídeo (s) possibilitaria eternizar experiências importantes vivenciadas nas lutas populares.

Porém, nos comerciais da

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

G e r a ç ã o C e a r á

M e l h o r , vimos, inclusive, lideranças populares,

anteriormente posicionadas em contraposição à esfera

centralizada de poder, o Estado, depondo em favor do

mesmo. Assim, os elementos culturais foram como que

misturados "inadequadamente" com outros pela vivência

em outros lugares, no caso as políticas sociais de caráter participativo, chegando a gerar um lugar ambíguo como a possibilidade de localizar algumas destas lideranças nesta

realidade, na anterior, ou "deslocadas", vivenciando um

pertencer tanto a uma como a outra, agora em vigor.

Por conseguinte, é possível dizer que também

os moradores, os liderados, ficaram sem a localização

exata do discurso reivindicatório. A TV parece ter

quebrado a identidade cultural, à medida que recolheu "produtos" de seus lugares de origem e os multiplicou,

transmitindo a milhares de outras. Entretanto,

projetando formas atraentes, o d e s i g n dos vídeos

veiculados pela TV embelezou o cotidiano, cujos

objetos viraram informações estéticas como se fossem,

agora, iscas de sedução. O discurso tradicional do

movimento de bairro foi traduzido para a sociedade,

enquanto grande platéia sob o predomínio de uma

transformação imagética.

O resultado, a troca de cenários e atores, interfere na formação de propostas e na conjunção de interesses

na ida cotidiana dos bairros: surge o enfraquecimento

das militâncias e do trabalho educativo, a redução do

Ed ocação em Debale - FMaIeza -

mo

19 - N" 34 - 1997 - p. 78-84

proselitismo direto, o abandono da inserção nestes

espaços, entre outros efeitos.

Outrossim, comparando novamente a televisão com um espelho da realidade, percebemos que na TV as coisas funcionam como num espelho invertido. Enquanto no espelho observam-se defeitos que não se gostaria de ter ou ver, ansiando a chegada do "lado bom", na TV o negativo aparece como oposição ao estado harmonioso dos fatos, como contraponto da situação almejada.

No caso das gestões mudancistas, a "aura" dos

personagens (líderes comunitários e moradores dos

bairros de Fortaleza) se dissipa,já que tornaram-se figuras

permutáveis num jogo de imagens adaptáveis ao

imaginário da população que assiste ao espetáculo da

política cearense.

A realidade é transposta, através da montagem

de fragmentos, para a hiper-realidade que assume uma

"visibilidade" diferenciada do vivido em dimensão e

qualidade. As câmeras focalizam cenas nos bairros, nas

ruas, nas casas, nos grupos, produzindo imagens mais

expressivas, dificultando a percepção dos critérios de

verdade dos acontecimentos porque eles, agora, podem

ser reproduzidos e virar notícias.

A "reprodutibilidade técnica" produz seus

consumidores específicos (as massas), fazendo com que os fatos e as coisas tornem-se mais próximos, dominando-os através de sua imagem.

Para garantir sua eficiência, a técnica exige que

o imaginário coletivo seja revolvido, a fim de que a

imagem atinja

EDCBA

°

sentimento de usufruto do modelo de

participação política veiculado pela televisão. Em sua

luta por se fazerem reconhecer, as camadas populares

assistem ao processo de reconhecimento, porém apenas

no âmbito do gerenciamento de recursos oriundos dos

programas sociais de cunho participativo.

Entretanto, os videoteipes parecem com a vida

e não importa se são ou não reais, pois estão falando ao público e com a sua participação. Esta participação é um simulacro da vida, destitui a linguagem do ideológico, o eletrônico é absoluto, vai além dos limites entre o signo e o sentido, seduzindo a massa. O trecho abaixo sintetiza muito bem este processo:

Q u a n d o o s s i g n o s p e r d e m o s e n t i d o e s e

c o n s o m e m n a fa s c i n a ç ã o t e m s e o e s p e

-t á c u l o (BAUDRILLARD, 1986).

Não estamos priorizando, aqui, o aspecto da

comunicação como mensagem ideológica, pois, se

agíssemos assim, cairíamos numa concepção de

(6)

conse-qüentemente, a comunicação seria apenas divulgação da atividade política.

Acontece que a forma de comunicação em foco

potencializa enormemente o lugar social do discurso,

diferenciando-se do modo de comunicação interpessoal

em voga nos movimentos, o qual fazia intermediação

entre os sujeitos. Agora a comunicação é configurada

pela produção e divulgação de bens simbólicos acerca

da sociedade, onde os discursos são reproduzidos

incorporando novas regras e outras maneiras de "olhar" o lugar social reconstruído.

3

O MUNDO DO VíDEO

Como um meio globalizante, a televisão introduz novas discussões, mas suprime o diálogo direto, os debates

entre as pessoas, apresentando exemplos de vida, de

ambientes, e de situações que acabam virando modelos. Enquanto as reuniões nas sedes das associações

de moradores giram em torno das dificuldades do

cotidiano, quando, algumas vezes, toca-se na vida

político-administrativo-econômica, a televisão apresentou

"novas realidades". Assim, ela que fascina mais do que outras formas de comunicação, introduz uma linguagem distinta, a qual, inicialmente, atrai o receptor, que, passível

de incorporá-Ia, insere reelaborações à sua forma de

percepção sociocultural.

Também, a modernidade gerou uma concepção da realidade que deu às pessoas a impressão de satisfação

das suas vontades através de mercadorias. Talvez por

isso este veículo, que apenas poderia acrescentar algo

mais ao cotidiano, teve importância especial, sendo tão

sedutor e transformando relações.

A televisão fala, mostrando cenas, fotografias, uma coisa atrás da outra, num ritmo que não permite prestar atenção. São cores, vozes, rostos, sons, imagens, tudo causando impacto num telespectador que tem pouco ânimo para fazer alguma coisa. Embora o cotidiano do

homem moderno, que permite utilizar todo um

instrumental criado para facilitar sua vida na moderna

sociedade industrial, apesar da globalização, também

possibilite que alguns grupos se coloquem como

simbolicamente distintos (vide revitalização de grupos

étnicos e religiosos em contraposição à tentati a de

homogeneização, como se houvesse, ao mesmo tempo,

um processo contínuo de dominação e resistência). As classes populares, não tendo acesso a todas

as condições geradas por tal sociedade, i em como que

numa modernidade incompleta na qual os sujeitos

parecem vivenciar dois níveis - aquele do trabalho, das coisas práticas, o mundo das normas e da participação no todo social coercitivo (DURKHEIM, 1974) e, o outro é aquele que parece escapar a tudo isto, como se fosse meramente subjetivo, porém que move o primeiro, pois é mais dinâmico, mais vivo, mais criativo e inovador. A

televisão, inclusa na intimidade, parece percorrer a

mediação entre os dois mundos referidos. Mexe com o imaginário e apresenta fatos e acontecimentos ligados ao

real social, aparentemente distante da imaginação, ela

tenta isolar completamente os sujeitos que, sem

perceberem, têm a ilusão de participar do ambiente

apresentado numa presença ilusória.

Tomando o exemplo da fotografia, verifica-se que há possibilidade de análise e de reingresso no passado,

quando a observamos e somos informados sobre seu

conteúdo (personagens, onde vivem, quais as suas idéias etc.), enquanto na televisão as imagens passam rápido e não permitem uma exploração minuciosa, uma fixação nos detalhes, senão quando quem as construiu assim os deseja. Porque nela ocorre uma escolha de detalhes para o telespectador sem possibilitá-Io o direito à escolha e à concentração.

No caso do cinema, a televisão, diferentem dele (no filme há um certo retardamento da imagem para

que quem assiste possa percorrer os seus ângulo o

se observasse fotografias), vende cada ins e

programado. O filme é, então, como

um

p

inteiro, enquanto a 1V "angustia-se diame da possibilidade de o telespectador mudar de canal a qualquer momento

Assim, os sujeitos mantêm relações disrimas

EDCBA

c o m

os meios de comunicação.

E

telespectadores, a 1V além de11 ,',CTr.:> .•.•• Oa:x~ülf:ns;:tgelllS

sociais que chegam até os

atualização. E mais ela v .

toma-se interior aos __

recepção regular e contínua,

Como conseqãês:lCJ;2.:

da consciên ia da dinâmica seleti as,

lidades e inovacão cuímraí, Desse zaooo

se cada

"ma é . _"ri •.•..•." ,=

do ira

Os modos gens que as pessoas

resultado o contato direto com as

s e inhamentos corriqueiros da luta

comrmnaria, enrique iam sua formação, seu uni erso

e estimula 'am a expressão de suas peculiaridades,

onstiruindo um produto cultural típico, o qual

possibilita a o reconhecimento às pessoas enquanto

(7)

c o m u n i d a d e

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

coesa, unitária, ou melhor, compunha a

noção de i d e n t i d a d e c u l t u r a l como possibilidade de

reconhecimento em falas, enquanto narrativas que

compõem uma totalidade orgânica, como produto de

práticas sociais de determinado contexto, grupo ou

sociedade.

Os meios de comunicação, no caso a

1V,

extraíram

dos MSU' s (Movimentos Sociais Urbanos) suas aberrações,

seus elementos chocantes, suas peculiaridades,

"simplificando-as", tornando-as, no discurso televisivo,

compreensíveis para todos: "Esta é dona Fulana, do bairro

tal. Uma das milhares de beneficiadas pelos muitos

chafarizes construídos pelo Governo das Mudanças". Ou seja, passa-se a assimilar uma compreensão simplista de

que o governo modificou a difícil realidade com o

atendimento às necessidades individuais, lá no seu lugar de moradia, sem a mediação de conflitos, conforme emerge do depoimento - proferido por morador do bairro Parque

São João durante encontro comunitário na sede da

associação de moradores, 1989 - reproduzido abaixo:

. . . o g o v e r n o , a g o r a e s t á b e m i n t e n c i o n a d o ,

a s c o i s a s a g o r a t ã o m u d a n d o , t á t u d o d i fe

-r e n t e . N u m p -r e c i s a fi c a -r fa z e n d o c o n fu s ã o

a n t e s d o t e m p o q u e q u a n d o t e m q u e d á

c e r t o , t u d o s e a j e i t a (Líder comunitário).

Já não há mais nada a ver com a passeata na avenida principal do bairro, com as incontáveis reuniões, envolvendo a comunidade e as autoridades, com o abaixo-assinado, os oficios encaminhados ao órgão competente.

Criou-se a partir da resultante, o atendimento

EDCBA

àdemanda

dos moradores, algo vazio de todo este dinamismo.

Assim, a tendência reivindicativa dos

movi-mentos vai sendo substituída por um perfil da execução

referente à gestão de programas e à negociação direta,

nos padrões administrativos estabelecidos com a esfera

governamental.

Portanto, os signos acentuados pelas gestões

mudancistas apregoaram uma repetição que pareceu

condenar a preocupação com a ruptura. Foi um fenômeno

que se integrou ao cotidiano dos bairros, tendo papel

preponderante na forma de encaminhamento das lutas

populares. Tal repetição acionou uma identificação com

as camadas populares de onde decorreram a força e a

durabilidade deste padrão administrativo. Emergiram,

também, outros horizontes de sociabilidade,

simulta-neamente, ampliados e limitados enquanto prisioneiros

das regras de produção dos discursos e dos controles

sociais conseqüentes, os quais problematizaram a

alardeada transparência.

m

E à ração D e b a t e - F o r t a le z a - A N O J9 - N ° 3 4 - J9 9 7 -p.7 8 - 8 4

No Ceará, para proporcionar a "evidência" da

abertura dos canais de participação popular, tomou-se mister que a cidadania, com a utopia da gestão igualitária

dos serviços urbanos, "sonho" dos movimentos

reivindicatórios, se realizasse. Assim sendo, o mundo que o vídeo nos permitiu visualizar tornou-se mais real que a própria realidade.

A participação nestes dois mundos teve efeitos visíveis no modo como os líderes passaram a ordenar seu trabalho. Como efeito da circulação de informações. e imagens, surgiram as características de uma outra forma de exercício da liderança. Esta forma não é homogênea, pelo contrário, ressalta as possibilidades do diverso pelas distintas articulações em cada situação específica. Isto

também nos remete ànecessidade de investigar melhor

as formas de ação cotidiana das camadas populares para

alcançar novas formas de pensar os posicionamentos

ideológicos daí emergentes.

lntencionamos, ao analisar uma outra

constru-ção das formas de mediaconstru-ção política entre Estado e

movimentos populares, resultante destas vivências, sugerir questões para possíveis e bem-vindos aprofundamentos posteriores.

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Referências

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