Temas Pertinentes à Construção da Psicologia Contemporânea
Fernando Pontes Celina Magalhães
Regina Brito William Martin
orgs.
Diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas Maria de Nazaré Sarges
Chefe do Departamento de Psicologia Experimental Marilice Fernandes Garotti
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento
Luiz Carlos de Albuquerque (2004) Glauben José Alves de Assis (2005)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Biblioteca Central / UFPA - Belém-PA
Temas pertinentes à construção da Pscicologia contemporânea/organizada por Fernando Augusto Ramos Pontes ...[et al.]. – Belém. EDUFPA, 2005.
ISBN: 85-247-0280-X
1. Psicologia. I. Pontes, Fernando Augusto Ramos, org.
CDD: 21. ed. 150 Laïs ZumeroCapa
Projeto gráfico - Produção editorial Laïs Zumero
Fotos Fernando Pontes
Editoração Ione Sena Impressão Gráfica Supercores
Fotolito Pontopresso
O Estudo das Relações Sociais sob a Perspectiva Etológica
Fernando Augusto Ramos Pontes Patrícia Izar
A etologia, conforme apresentada pelos principais manuais, refere- se a uma área da biologia que estuda o comportamento, em especial o comportamento animal. Esta caracterização, no entanto, não é suficiente para diferenciá-la, em essência, de outras abordagens teóricas que estudam o comportamento de indivíduos; na verdade, a etologia se distingue por sua perspectiva biológica particular.
Este capítulo discute algumas contribuições da etologia para a compreensão do processo de relações sociais entre indivíduos humanos.
Com o objetivo inicial de salientar a lógica e as suposições subjacentes a essa orientação, efetuamos uma breve introdução sobre a etologia e seu objeto de estudo. Em seguida, são apresentados os aspectos filogenéticos e ontogenéticos que justificam a relevância do estudo das interações sociais.
Na abordagem da filogênese, destaca-se o conceito de inteligência social, desenvolvido com base em estudos com primatas não humanos. No que se refere à ontogênese do comportamento social, a perspectiva etológica é exemplificada pelas temáticas das predisposições perceptuais do recém- nascido e da investigação das díades privilegiadas de interação: mãe-criança e criança-criança. Na terceira seção, são focalizadas as interações entre pares, com ênfase nos determinantes presentes no contexto lúdico. Ao final, tomando-se por base o modelo etológico de estudo da ontogênese do comportamento, ressaltamos a necessidade de integração de algumas questões de pesquisa ainda a serem investigadas.
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Etologia: Pressupostos Básicos
Atribui-se a fundação da etologia como ciência moderna aos biólogos Konrad Lorenz e Niko Tinbergen, na década de 30 do Século XX (Ades, 1976). As bases teórico-filosóficas da etologia, no entanto, remontam aos estudos de Charles Darwin acerca da seleção natural das espécies, que forneceu uma concepção global e objetiva da evolução do comportamento baseada em fatos comprováveis.
Ao identificar o comportamento como produto da seleção natural, a etologia ressalta o papel da genética na sua determinação. Segundo Carvalho (1998), essa ênfase levanta dois tipos de objeções entre os pesquisadores: primeiro, o comportamento humano é plástico e, como tal, não pode estar sujeito a controle genético exclusivo; e, segundo, o homem não se sujeita passivamente às pressões do ambiente. A autora, no entanto, refuta tais objeções, afirmando que o controle genético não se opõe à plasticidade - “a plasticidade é, ela própria, uma forma de adaptação” (p.
201). Quanto às pressões ambientais, o comportamento deve ser analisado em relação ao ambiente no qual a maior parte da história evolucionária da espécie ocorreu. O ambiente atual, com todas as modificações impostas pelo homem, ainda é o ambiente de evolução da nossa espécie, mas “falta- nos perspectiva temporal para analisar a natureza de suas pressões seletivas” (p. 204).
A proposta original de Lorenz e Tinbergen pretendia classificar os comportamentos de animais como unidades descritivas taxonômicas, biologicamente determinadas, tal como estruturas anatômicas.
Posteriormente, à medida que foram realizados estudos de campo, particularmente com primatas, os etólogos passaram a argumentar que a compreensão do comportamento e das relações sociais de espécies animais envolvia, necessariamente, o estudo da interação entre fatores biológicos e ambientais (Sockza, 1994).
Diferentes abordagens teóricas requerem o emprego de metodologias apropriadas. Assim, sob a perspectiva etológica, não cabe a dicotomia entre ciências sociais e biológicas acerca do comportamento humano. O objeto de estudo, relações sociais, não é intrinsecamente propriedade de uma disciplina ou ciência específica; ao contrário, perpassa
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vários campos de conhecimento, como sociologia, antropologia e psicologia. Cada uma dessas disciplinas, com um interesse particular resultante de seu recorte metodológico, adota concepções diferentes do fenômeno social. Ao compreender o homem como um ser biologicamente cultural, o estudo de suas características comportamentais torna-se mais vantajoso se estiver integrado a diversas abordagens teóricas (Bussab &
Ribeiro, 1998; Carvalho & Pedrosa, 2002).
Uma das principais contribuições dos estudos em etologia foi o aprimoramento de metodologias de observação naturalística para descrição, experimentação e análise do comportamento, permitindo a obtenção de informações – no mínimo descritivas – sobre os modos particulares de interagir dos animais. Conforme ressaltado, a investigação etológica não é particular a uma espécie, mas uma abordagem comparativa. Dos níveis de sociabilidade mais primitivos (por exemplo, um cardume) aos insetos sociais, dos primatas não humanos aos humanos, este modelo tem contribuído para a compreensão das relações comportamentais entre os membros de uma mesma espécie e para a integração do comportamento entre espécies diferentes.
A Descrição Etológica do Comportamento
Conforme salienta Hinde (1982, 1987), os etólogos adotaram a tradição da biologia – mais especificamente dos taxonomistas e sistematas – de iniciar seus estudos com uma base descritiva segura. A busca por métodos adequados para uma descrição exaustiva do comportamento faz sentido na medida em que se concebe o comportamento como relacionado a estruturas biologicamente determinadas.
Dois tipos básicos de descrição são utilizados: a física ou morfológica e a descrição pela conseqüência. A descrição física refere-se ao detalhamento de aspectos do comportamento, como força, duração, padrões musculares e movimentos do corpo. São exemplos desse tipo de descrição as categorias ‘levantar sobrancelhas’, ‘correr’, ‘nadar’. Por outro lado, as descrições pela conseqüência referem-se aos padrões que levam ou podem levar a alguma conseqüência no ambiente. Cortejar, olhar comida e apaziguar são categorias características deste tipo de descrição.
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Cada um desses tipos gerais de descrição está implicitamente relacionado a suposições subjacentes. A descrição física é adequada para identificação de padrões de comportamentos estereotipados, que podem ser comuns aos membros de uma espécie ou de uma população. A descrição pela conseqüência permite a identificação de atenção diferenciada ou preferência por estímulos específicos do meio, o que pode indicar determinadas predisposições internas em ação.
Dada a relevância atribuída às interações sociais, modelos com base em um referencial etológico também foram desenvolvidos com o propósito de descrever e compreender o comportamento social. Segundo Hinde (1997), a estrutura social de um grupo é um sistema emergente de relações interindividuais estabelecidas por seus membros. Uma relação envolve uma série de interações no tempo. Por interação entende-se uma seqüência em que um indivíduo A emite comportamento em direção ao indivíduo B, e B responde a A, e vice-versa. A descrição de uma relação social deve englobar o conteúdo e qualidade das interações entre os indivíduos envolvidos.
Quanto maior a diversidade de interações, maior a possibilidade de se identificar as propriedades das relações.
O curso de uma interação depende dos indivíduos participantes e da relação da qual tomam parte. A natureza da relação é, por sua vez, influenciada pelas interações, pelo ambiente físico e pela estrutura sociocultural (idéias, valores, mitos, convicções e instituições com seus papéis constituintes), compartilhados em maior ou menor grau pelos indivíduos, grupos ou sociedades. Todos os elementos envolvidos influenciam e são influenciados uns pelos outros, constituindo uma dinâmica de relações dialéticas entre diferentes níveis. Cada nível, assim como a estrutura sociocultural, possui aspectos objetivos e subjetivos. Por exemplo, as relações têm aspectos objetivos, que são aparentes a um participante externo, e aspectos subjetivos que são específicos a cada participante da relação. Os aspectos objetivos da estrutura sociocultural podem estar parcialmente classificados em leis e costumes, mas os aspectos subjetivos podem ser sutilmente diferentes para cada indivíduo.
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As Quatro Questões Fundamentais da Etologia
O estudo do comportamento sob a perspectiva biológica, sujeito à seleção natural, levou Tinbergen (1963) a formular o que se convencionou chamar de “quatro questões” causais da etologia: causa evolutiva ou função, causa filogenética, causa proximal e causa ontogenética.
Função e filogênese são as questões mais estreitamente relacionadas às funções biológicas do comportamento, centrando-se em associações entre variações comportamentais de indivíduos ou grupos e diferenças em sucesso reprodutivo. A função refere-se ao valor de sobrevivência de um dado comportamento e a filogênese, à história do comportamento na espécie ou no grupamento biológico específico.
Uma das estratégias para abordar a evolução comportamental é reconstruir o curso do comportamento com base da comparação entre unidades taxonômicas (espécie, gênero ou categorias mais elevadas) ainda vivas. As comparações podem levar a hipóteses acerca de relações entre essas unidades. Por exemplo, o sorriso humano pode ser considerado uma expressão aparentada da exibição de dentes silenciosa (silent bare-teeth) observada em primatas não-humanos, em que os lábios são esticados para trás e os dentes superiores e inferiores exibidos. Essa expressão é considerada um gesto de apaziguamento, utilizada por indivíduos subordinados frente a dominantes ou por dominantes como gesto de renovação de confiança. Alguns estudos têm mostrado que humanos em posição subordinada sorriem mais que dominantes, e mulheres sorriem mais que homens, sugerindo que as mulheres podem ser socializadas para apresentar-se de forma mais amigável e apaziguadora (Otta, 1998).
A causa proximal oferece a maior variedade de enfoques e perspectivas e um menor grau de consenso entre os etólogos (Gómez &
Colmenares, 1994). Independente da diversidade de enfoques, duas formas básicas de abordar o comportamento são destacadas: o modelo de ‘software’
e de ‘hardware’ (Gómez & Colmenares, 1994; Hinde, 1982). O modelo de software implica estudar sistematicamente o comportamento, considerando os eventos ambientais. São especificadas as relações entre estímulos e resposta, entre condições antecedentes e estados motivacionais, entre estados motivacionais e comportamento e, também, entre diferentes tipos
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de comportamento. Levantam-se hipóteses sobre processos internos (principalmente motivacionais) que podem estar em ação. O enfoque de software é também denominado de caixa preta, pois o comportamento é investigado sem referências a mecanismos neurais subjacentes.
No modelo de software, a ênfase sobre a noção de evolução se confirma pelo numeroso conjunto de elementos motivacionais considerados (Slater, 1999). Conceitos como atividade deslocada e energia específica de ação (Lorenz, 1995), agressão exploratória (Eibl-Eibisfeldt, 1989), são válidos em termos heurísticos e funcionais. Como cada organismo possui uma história evolucionária, a espécie em questão e, conseqüentemente, as forças internas em jogo, são determinantes básicos do seu comportamento.
No entanto, para um entendimento mais exato das causas proximais do comportamento é necessário investigar os mecanismos neurais subjacentes. Denomina-se este modelo de investigação causal de enfoque de hardware. Neste, a caixa (organismo) é ‘aberta’ para se compreender os processos fisiológicos e neurológicos em ação e a forma como eles afetam o comportamento. A influência e o avanço de tal modelo em etologia são tão intensos que, atualmente, existe uma subárea de estudo com este objetivo: a neuroetologia (Keeley, 2000).
Os estudos sobre ontogênese do comportamento envolvem descrições que respondam à questão ‘como o comportamento muda durante o desenvolvimento?’. Hinde (1987) acredita ser conveniente distinguir questão de causa proximal e de desenvolvimento: questões de causa proximal referem-se aos fatores que fazem um indivíduo comportar-se de determinado modo, em um determinado tempo particular. De outro modo, questões de desenvolvimento referem-se aos fatores que levam o indivíduo a ser o que é, em determinado tempo.
Em etologia, o desenvolvimento não é concebido como uma série de estágios que conduzem a uma condição mais madura ou adulta. O desenvolvimento não necessita de uma rota direta. Objetivos secundários devem ser alcançados para que a meta final seja atingida. Dessa maneira, os estágios de desenvolvimento da infância devem ser vistos como delicados ajustamentos que capacitam o organismo a aumentar suas chances de sobrevivência. Por exemplo, algumas das características comportamentais
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da criança são instrumentos temporários para a tarefa de crescer, subseqüentemente são descartados e funções adultas emergem (Bowlby, 1969/1990). Ao final deste capítulo será retomada, de forma mais detalhada, a discussão acerca das características de um estudo ontogênico segundo uma perspectiva etológica.
A etologia está interessada em todas as questões referentes ao comportamento, ainda que alguns biólogos tenham desconsiderado a importância dos estudos causais e de desenvolvimento e tenham concentrado grande parte de seus estudos em questões de cunho funcional (Slater, 1999). Apesar de as questões concernentes à causação proximal, ao desenvolvimento, à função e à evolução de um comportamento serem logicamente independentes, as descobertas em um nível influenciam o outro (Hinde, 1982). Este é particularmente o caso quando as hipóteses funcionais e filogenéticas imprimem relevância a determinados problemas em nível proximal e ontogenético.
Aspectos Filogenéticos e Ontogenéticos e sua Relevância para o Estudo das Relações Sociais
A Hipótese Filogenética e a Importância das Interações no Desenvolvimento Humano
A pesquisa comparativa, especialmente em primatas não humanos, permite identificar quais características comportamentais partilhamos com espécies próximas e quais aquelas que são exclusivamente humanas. A identificação dessas características afeta as hipóteses ontogenéticas acerca de competências humanas. Estudar características comuns a várias espécies permite analisar quais as possíveis causas evolutivas de um comportamento.
Humanos são animais sociais, como a maior parte das espécies de primatas. Mas, a sociabilidade humana tem características mais complexas, em função de habilidades cognitivas como a capacidade de prever as intenções dos parceiros sociais (teoria da mente), a aprendizagem cultural (Tomasello, 1988), a cooperação (Key & Ayello, 1999) e a comunicação por meio de linguagem oral (Nettle, 1999). No entanto, essas habilidades distintivas de seres humanos evoluíram a partir de características pré- existentes em primatas (Whiten, 2000).