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A INFLUÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO (?) NA ANCESTRALIDADE DO POVO INDÍGENA PAITER 1 SURUÍ. Palavras-chave: Migração. Rondônia. Indígena. Tradição. Suruí.

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INDÍGENA PAITER1 SURUÍ

Catia Cristina da Silva2

RESUMO:

O presente trabalho tem como objetivo analisar como o processo de colonização influenciou na tradição cultural dos hábitos e costumes do povo indígena Paiter Suruí, em especial dos reflexos no ritual da pajelança, que é caracterizada como uma série de rituais que o pajé3 realiza com o objetivo específico de cura e magia. Ao final, apresenta o Museu

“Paiter A Soe”, construído há um ano na Aldeia G̃apg̃ir4, uma das mais populosas dessa

etnia, com a finalidade de preservar a memória identitária da cultura Suruí. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, estudo de campo nas Aldeias Amaral e Lapetanha no município de Cacoal-RO e entrevistas. O estudo demonstrou que, devido influência das missões religiosas, grande parte dos Paiter Suruí foi evangelizada e a ancestralidade imaterial, especificamente os rituais de cura e magia realizados pelos pajés, foi gradativamente extinta.

Palavras-chave: Migração. Rondônia. Indígena. Tradição. Suruí.

1 INTRODUÇÃO

O povo Paiter Suruí tem uma história ancestral bastante rica, permeada de simbolismos e rituais. As danças, pinturas, confecção de artesanatos, caça, pesca, entre outros, são hábitos e costumes típicos da cultura dessa etnia. Sua história foi tradicionalmente transmitida de geração em geração, pelos anciãos, através de narrativas e memórias preservadas pela tradição oral.

Em Cacoal, cidade localizada na região centro-sul do interior de Rondônia, concentra-se o maior número de indígenas Paiter Suruí. O universo bastante rico e a

1 Paiter significa “Gente de Verdade” ou “Povo Verdadeiro”, autodenominação do povo Suruí.

2 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual de Londrina – UEL e mestranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR.

3 Indivíduo responsável pela condução do ritualismo mágico a quem se atribui a autoridade xamanística de invocar e controlar espíritos. Chefe de pajelança.

4 G̃apg̃ir é nome de um dos clãs originais do povo Paiter Suruí.

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proximidade com a realidade cultural urbana gerou o interesse de realizar o presente trabalho, que tem como objetivo apresentar elementos históricos da etnia Paiter Suruí e abordar algumas mudanças culturais ocorridas após o contato e processo de colonização, em especial, sobre a pajelança.

Neste sentido, apresento na segunda seção a contextualização histórica do processo migratório no Estado de Rondônia e seu impacto no modo de vida desta etnia, cujo contato oficial ocorreu em 1969 e destacou-se como um período de muitos conflitos e mortes na região.

Na terceira seção destaco aspectos culturais da ancestralidade Paiter Suruí e elementos históricos relatados pelos anciãos dessa etnia que encontram-se memorizados no livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, obra publicada em 2016 e uma das fontes de pesquisa deste trabalho, além do estudo de campo e entrevistas.

E por fim, na quarta seção, apresento o Museu Paiter a Soe, idealizado pelo jovem Luíz Suruí e construído há aproximadamente um ano na Aldeia G̃apg̃ir, no município de Cacoal. O objetivo do museu é manter viva a memória cultural dos hábitos e costumes do povo Paiter Suruí.

2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA: MIGRAÇÃO E POVOS INDÍGENAS

No século XIX os acordos políticos entre fronteiras dos governos do Brasil e países vizinhos foram firmados sem considerar os povos originários da amazônia ocidental, nos quais “rios, montanhas, florestas, aldeias, povos indígenas foram divididos entre os países como se fossem coisas, sem espírito, sem alma.” (SURUÍ et al, 2016, p. 241). A administração laica e as missões eclesiásticas eram as principais formas de dominação do território.

No começo do século XX, a construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e a instalação das linhas telegráficas chefiada por Marechal Cândido Mariano Rondon, que ligava o sul e sudeste ao norte do país, provocou um intenso fluxo migratório na região, resultando em graves conflitos e mortes de indígenas e colonizadores.

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Os Suruí foram os que mais sofreram no processo de colonização em Rondônia, já que ocupavam tradicionalmente as margens da BR-364, onde hoje é o município de Cacoal. Nesse sentido, destaca-se a narrativa de G̃athag Suruí:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 74.

Bem depois de conviver com meu pai, dentro da tradição, bem depois disso eu comecei a perceber a mudança, o tempo do medo. Esse tempo do medo chegou quando outros povos indígenas nos perceberam. Os yara ey5 também nos

perceberam. Eles trouxeram o medo […] Eu fui para ver como era. Era apenas um caminho largo, muito aberto, sem movimento, sem carro. O caminho seguia a beira do rio. Foi ali que ouvimos um barulho muito alto, assustador, que eu nunca tinha ouvido antes. Parecia até que fazia a terra tremer […] Então vimos um trator muito grande, derrubando as árvores, arrastando a floresta. Vimos um trator abrir uma trilha muito larga. Nós ficamos muito assustados com aquilo. Foi assim que eu vi o trator abrindo o caminho para os carros, abrindo a BR 364. Nós vimos isso pela primeira vez. Eu e meus pais vimos os yara ey pela primeira vez (SURUÍ et al, 2016, p. 75 e 77).

O intenso fluxo de pessoas, advindas de diversas regiões do país, demandou a necessidade urgente de proteção dos povos indígenas, criando-se em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais – SPILTIN que, oito anos depois, passou a ser denominado Serviço de Proteção ao Índio – SPI. O principal objetivo desse órgão era prestar assistência e promover a integração, cultura e respeito às terras dos indígenas, mas sua atuação interferiu significativamente na tradição deste povo, de modo que populações inteiras foram deslocadas para liberação de terras que seriam destinadas à

5 Yara é o não indígena, o branco. A forma yara ey é usada como plural.

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colonização e infraestrutura. Um documento da época explica como se deu o contato com os povos indígenas:

As táticas e técnicas de contato com povos indígenas, empregadas nas atividades de atração e pacificação do SPI, foram paulatinamente desenvolvidas por Rondon, no âmbito das Comissões de Linhas Telegráficas, desde o final do século XIX. Eram práticas filiadas a uma longa genealogia que tinha origem nos contatos dos jesuítas com os povos indígenas desde o séc. XVI.

Uma das principais táticas, em um cerco pacífico de povos indígenas (Lima, 1995), era a de identificar-se como amigo, isto é, como um interlocutor de confiança. Nas atividades de atração foram adotadas as seguintes técnicas: 1. A turma de atração deveria ser constituída por trabalhadores esclarecidos a respeito dos problemas de contato;

2. Chefe da equipe experiente no trato com os índios;

3. Participação de índios do mesmo tronco linguístico dos índios arredios para trabalharem como guias e intérpretes;

4. Equipe de atração instalada dentro do território indígena;

5. Construção de um posto indígena protegido, além da plantação de roçado; 6. Exploração das redondezas do posto indígena protegido, conhecendo matas, rios e tapiris6;

7. Exibição de armas de fogo, diante de qualquer ataque de índios hostis, demonstrando que a equipe tinha poderio que não seria usado contra o grupo; 8. Instalação de tapiris com presentes, distribuindo-se os índios intérpretes pelas matas. As trocas de presentes estabeleciam a fase inicial de “namoro” com os índios arredios;

9. Após o contato inicial, a pacificação era consolidada com ampla confraternização. Entretanto, se houvesse algum incidente grave, poderia ocorrer o colapso da atividade de atração7.

Contato com o branco. Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/surui-paiter/846. Acesso em: 5 ago. 2017.

6 Tapiri é uma estrutura de abrigo com caráter provisório que serve tanto para se proteger da chuva, como também para breve permanência dos brancos para deixar os presentes.

7 Fonte: http://www.funai.gov.br/index.php/todos-presidencia/2164-o-servico-de-protecao-aos-indios?start=1 Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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Contudo, devido graves problemas de corrupção denunciados na época, foi criada em 1967 a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em substituição ao SPI. Este tempo ficou marcado como um período de muitas mortes de indígenas e não indígenas, noticiados nos jornais que enfatizavam a necessidade de acelerar o processo de pacificação para evitar que os indígenas fossem dizimados pelos milhares de garimpeiros que se encontravam na região.

Nós não queríamos virar branco, yara. Mas não tivemos outra saída. Era a única chance de ficar vivos, porque soubemos que esses yara ey estavam defendendo nosso povo, davam roupa, comida, facão, remédios para as doenças. Eram mais amigos que os outros índios inimigos. Por causa do medo das guerras, tivemos que nos aproximar dos yara ey. Se nós tivéssemos bem, felizes, duvido que tivéssemos ido ao encontro deles, nós não iríamos usar roupas, chegar até os

yara ey. (SURUÍ et al, 2016, p. 80)

A documentação sobre os massacres é escassa e são mais enfáticas quanto aos ataques sofridos pelos não-índios do que os sofridos pela população indígena. Segundo Mindlin (1985, p. 20), o serviço de proteção da FUNAI foi importante para defender o povo indígena, mas não suficiente para conseguir conter os massacres. Embora os documentos da época fossem enfáticos ao registrar os ataques violentos por parte dos indígenas, estes sofreram violência muito maior, sendo que o trabalho de proteção apontava mais à necessidade de acabar com os ataques dos índios que do desejo de evitar seu extermínio (1985, p.19).

A partir das décadas de 60 e 70 o crescimento na região de Rondônia aconteceu de forma bastante acelerada, época em que os incentivos fiscais e os grandes investimentos do governo federal estimularam a migração. Disto, o acesso fácil e barato à terra atraiu muitos empresários interessados em investir na agropecuária e indústria madeireira. A descoberta do ouro e cassiterita também contribuiu significativamente para o aumento populacional, sendo que entre 1960 e 1980 o número de habitantes passou de 70 mil para 500 mil, de modo que em 1981 Rondônia ganha a condição de Estado.

Oficialmente, o primeiro contato com os Paiter Suruí ocorreu em 1969, através da FUNAI, quando seus ancestrais migraram da região de Cuiabá para fugir dos yara ey. Esse período ficou conhecido como o “Tempo das Correrias”.

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O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, criado em 1970, foi o executor dos projetos de colonização e responsável pela demarcação e distribuição de terras para os colonos migrantes de diversas regiões do país que penetravam a floresta, grande parte originária do Centro Sul.

Nesta época, a ocupação da área no entorno da Terra Indígena Sete de Setembro, área tradicional dos Paiter Suruí, intensificou-se, dando origem ao assentamento dos colonos na então chamada “vila de Cacoal”, região da amazônia ocidental.

Neste período os ataques se tornam mais raros e os indígenas passam a ser cada vez mais colonizados e confinados às áreas reservadas. Segundo Mindlin, “os massacres haviam passado a ser de outro tipo”. (1985, p.23)

Desde então, elementos da cultura indígena dos Paiter Suruí foram sendo gradativamente influenciados por parte dos não indígenas, de maneira que muitos hábitos e costumes tradicionais dessa etnia se perderam.

3 OS PAITER SURUÍ: HISTÓRIAS, RITUAIS E ESPIRITUALIDADE

A Terra Indígena Sete de Setembro, onde vivem os Paiter Suruí, está localizada em uma região fronteiriça, ao norte do município de Cacoal-RO até o município de Aripuanã-MT. O acesso à área se dá através das linhas8 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 14, pelo fato das aldeias

estarem distribuídas ao longo dos seus limites, tanto por questões de segurança quanto de aproveitamento de antigas sedes de fazendas deixadas por invasores que se estabeleceram dentro da área nas décadas de 70 e 80.

Abaixo, segue o mapa da localização da área:

8 A denominação de “linhas” é corrente na região, proveniente da marcação dos lotes dos projetos de colonização e expansão fronteiriça. Refere-se as estradas que dão acesso a lugares outrora inacessíveis, ao mesmo tempo em que marcam geograficamente a área.

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Fonte: http://naturezadivina.org.br/textos/cultura-indigena/povos-surui/. Acesso em 10 ago. 2017.

A homologação da terra ocorreu em 1983 e os Suruí, até então concentrados nessa área, se dividiram por toda região. Até 2015, eram 25 aldeias espalhadas em uma área de 247.880 hectares demarcados e uma população aproximada de 1.350 pessoas. Atualmente, segundo informação da FUNAI, são aproximadamente 1.500 indígenas localizados em 27 aldeias.

A cultura dos Paiter Suruí é riquíssima, com uma grande diversidade de rituais, dentre eles o Mapimaí9, o Ngamangaré (roça nova), o Weyxomaré (pintura), o Hoeyateim

(festa em que o xamã controla os espíritos da aldeia), o Lawaãwewa (construção de casa nova) e o Ytxaga (pesca com timbó). Entretanto, ao longo do tempo muitas festas e danças tradicionais sofreram significativas alterações ou, até mesmo, foram abandonadas em função dos conflitos ideológicos com as novas religiões introduzidas nas comunidades indígenas. Disto, aspectos da cultura do não indígena foram gradativamente assimilados pelos Paiter Suruí, dentre eles, datas comemorativas como natal, aniversários, etc. (MARETTO et al, 2012)

9 Ritual da origem da humanidade, que reúne todas as pessoas da aldeia em torno da bebida, do alimento, de cantos e danças, com trocas de presentes e favores.

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A antropóloga Betty Mindlin, que viveu aproximadamente um ano nesta região com os indígenas no início da década de 80, descreve que, apesar dos conflitos, as aldeias eram permeadas por uma atmosfera de misticismo e espiritualidade, principalmente na época das chuvas, momentos em que deitados em redes e aquecidos pelo fogo, os índios contavam histórias e comiam iguarias típicas feitas de milho e caju. (Mindlin, 1985)

Maria do Carmo Barcellos, geóloga indigenista que reside em Cacoal há mais de quarenta anos e conhecida como Maria dos Índios, conviveu desde o início dos nos 70 com os Paiter Suruí nesta região. Em entrevista, ela apresentou um relatório de pesquisa elaborado entre 2009 e 2010 pela Associação Metareilá, da qual fazia parte, onde constam registradas muitas particularidades da história deste povo, como, por exemplo, a difícil realidade vivida entre os anos 1971 e 1980, marcada como um período de mortalidade extremamente alta devido a introdução de doenças desconhecidas, dentre elas o sarampo, das quais o povo não teve resistência natural alguma e que quase dizimou essa etnia que tinha uma população (estimada pelos próprios índios) de aproximadamente 5.000 pessoas.

O trabalho e convívio constante da geóloga com essa etnia contribuiu para a elaboração do livro “Histórias do Começo e do Fim do Mundo”, publicado em 2016 e lançado no mesmo ano na cidade de Cacoal. Esta obra, de conteúdo riquíssimo, retrata o modo de vida dos Paiter Suruí através das narrativas dos anciãos, conforme relato de G̃aami Anini Suruí:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 62.

À noite fazíamos festa. À noite o velho contava história, a história da origem das gerações. Contava a história de Palob10, porque naquele tempo o velho já

falava que existia deus. Ele não sabia ainda da existência de Jesus, mas falava 10 Palob é o grande pai criador.

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que existia um criador que havia criado o céu e a terra, que havia criado os humanos. Os velhos conheciam muitas histórias e aproveitavam o tempo para contar essas histórias. Eles falavam também como se devia viver, porque pra nós também existem “pecados”. Ensinavam que não se deve matar o parente, pode-se matar o inimigo para pode-se defender, mas não pode-se pode procurar o conflito, fazer o mal […] era a nossa lei: era proibido matar, proibido roubar, proibido mentir, acusar o outro, ter inveja. (SURUÍ et al, 2016, p. 65)

A cultura imaterial do povo Paiter Suruí, tema principal desta pesquisa, teve grande influência dos primeiros missionários religiosos que se aproximaram da região norte a partir da década de 70, através da missão evangélica americana Summer Institute of Linguistics – SIL, que trabalha com traduções bíblicas para língua indígena. Contudo, apesar do processo de evangelização dos povos indígenas iniciar-se nesta época, as primeiras conversões ocorreram apenas dez anos depois, a partir de 1980, sendo que até a década de 70, segundo Meireles (1983, p. 124), os Suruí “jamais se deixaram evangelizar por missionários.” Hoje, a maior parte da população indígena Paiter Suruí converteu-se ao cristianismo. Segundo G̃aami, o povo Suruí abandonou a dança, a cerimônia do pajé, o

mapimaí, e hoje tudo é considerado pecado. (2016, p. 172)

Abaixo, o indígena Itabira G̃apoi Suruí fala sobre a pajelança, principal ritual religioso dessa etnia:

Fonte: SURUÍ et al, 2016, p. 110.

Como meu pai era pajé, ele fumava muito para se proteger, proteger a mãe também. Eu peguei sarampo muito forte. Fui curado pelo espírito para estar vivo até agora. Os espíritos ajudaram-me a me curar. […] Quando eu estava doente eu sonhei. O irmão mais velho perguntava o que estava acontecendo comigo e eu respondia; “Eu estou morrendo”. Então eu vi uma mulher muito bonita, perto de

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mim. Ela estava se escondendo, não mostrava o rosto. Ela tinha franja, os cabelos eram pretos e muitos longos. Ela ficou por trás de mim. Meu irmão não tinha colar no pescoço, só colar na cintura e os objetos do pajé na mão. Ele ficou na minha frente, estava com o cigarro do pajé. […] No outro dia eu vi meu irmão que estava ali me visitando. Perguntou-me como eu estava. Eu disse que estava curado, porque o espírito havia me curado. Ele colocou em mim a pedra de cura,

ysoah11, sinal do espírito em mim. Contei o meu sonho pra ele. Logo depois ele

disse: Eu também estou ficando com febre, ficando doente. Ele piorou muito rápido, à noite estava muito mal, no outro dia estava morto. (SURUÍ et al, 2016, p. 114).

Na visita de campo que realizei na Aldeia Lapetanha, o ex-pajé Perpera Suruí (80 anos) relatou que já fez muitas curas através da pajelança. A conversa foi traduzida por um jovem indígena residente na aldeia, pois Perpera tem dificuldade em falar nossa língua. Na entrevista, ele contou uma história sobre o período em que ainda era pajé. Disse que certa vez uma moça da aldeia estava praticamente morta, quando foi chamado pelos parentes para fazer um rito de cura. Exemplificou, através de gestos, como se deu esse ritual: levou as mãos justapostas até a boca, assoprou, esfregou e sobrepôs sobre o corpo da jovem indígena, que retornou à vida.

Atualmente Perpera não realiza mais rituais de pajelança. Relatou que o motivo de ter abandonado essa prática teria sido porque numa certa ocasião (não soube precisar há quanto tempo) ele passou muito mal e achou que morreria, momento em que foi curado através da oração de um parente que havia convertido-se ao cristianismo. Desde então, decidiu abandonar os rituais da pajelança, “parô tudo, espíritu ruim”, e tornar-se cristão. Hoje, ele é porteiro numa igreja evangélica localizada na sua aldeia, onde, de terno e gravata, recebe os irmãos nos dias de culto.

Perpera relatou também que seu primeiro nome foi Yab-Lab, dado por sua mãe desde a floresta. Após o contato com a FUNAI, passou a chamar-se Perpera Suruí, nome que consta no seu documento de identidade. Hoje, é conhecido pelos irmãos da igreja como Simão Pedro, que diz ser seu nome preferido.

O ex-pajé demonstra ter assimilado muito da cultura evangélica, assim como grande parte dos indígenas da Aldeia Lapetanha, onde existem duas igrejas cristãs. Segundo censo realizado pela Associação Metareilá (2010), esta aldeia conta com uma população aproximada de 90 pessoas.

11 Ysoah é uma pedra usada em ritual de cura e proteção.

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Na Aldeia Amaral, próxima a Aldeia Lapetanha, a maioria da comunidade indígena também é evangélica. Segundo estimativa da geóloga Maria dos Índios, atualmente existem, no mínimo, 20 igrejas espalhadas nas aldeias do povo Suruí, sendo a maior parte de denominação evangélica. Abaixo, algumas fotos tiradas durante a visita de campo:

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha. Fonte: Acervo pessoal da autora.

Igreja Evangélica na Aldeia Lapetanha. Fonte: Acervo pessoal da autora.

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4 O MUSEU PAITER A SOE

Ainda que muitos elementos da cultura imaterial dos Paiter Suruí foram se perdendo no decorrer dos anos, estes perseveram em manter viva a memória de alguns hábitos e costumes do seu povo. Disto, buscando valorizar a cultura dos seus ancestrais, construíram há um ano em Cacoal o Museu Paiter A Soe12, localizado na aldeia G̃apg̃ir.

Este projeto é um sonho antigo dos Paiter Suruí e foi idealizado pelo professor indígena Luiz Wymilawa Suruí.

O museu é instalado em uma casa de modelo tradicional da aldeia, feita de palha de babaçu e construída pelos indígenas jovens, que foram supervisionados pelos anciãos. Expõe panelas de barro, cestos de palha, artesanatos e diversos utensílios de uso tradicional do povo indígena, de modo os visitantes possam conhecer um pouco dos hábitos e costumes dos Paiter.

O objetivo maior do museu é estimular a reflexão da comunidade acerca das principais mudanças ocorridas na história da cultura indígena e preservar a memória dos seus ancestrais. Segundo pesquisa realizada pela Associação Metareilá no ano de 2010, não obstante as significativas perdas da tradição tribal sofridas nas últimas décadas, 79% das famílias ainda produzem artefatos materiais, como colares, anéis, pulseiras, entre outros.

Mulher indígena confeccionando artesanato. Fonte: Acervo pessoal da autora.

12 Paiter A Soe significa “coisas de paiter”.

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Museu Paiter A Soe.

Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.

Museu Paiter A Soe.

Fonte:http://acontecero.com.br/2016/07/20/primeiro-museu-indigena-de-rondonia-e-inaugurado-em-aldeia/. Acesso em: 05 ago. 2017.

A comunidade Paiter Suruí, ainda que tenha perdido muito da sua ancestralidade imaterial desde a época do contato, persevera em manter alguns elementos de suas tradições. Anais do XIV Congresso Internacional de Direitos Humanos. Disponível em http://cidh.sites.ufms.br/mais-sobre-nos/anais/

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho apresentou alguns elementos da trajetória histórica do povo indígena Paiter Suruí e buscou abordar os principais impactos sofridos por esta etnia desde o contato com os não indígenas, em especial, acerca da cultura imaterial.

Disto, destaca-se que no início do processo de colonização de Rondônia houve grande resistência dos povos indígenas Paiter Suruí para com as práticas religiosas trazidas pelos missionários, porém, essa resistência não se perpetuou, pois a divisão em pequenas aldeias acarretou no enfraquecimento cultural desses indígenas, de modo que parte da cultura foi dizimada e que um dos seus principais ritos religiosos, a pajelança, foi extinto.

Neste sentido, embora a Constituição Federal de 1988 reconheça aos índios o “Direito a Diferença”, assegurando-lhes o respeito a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conclui-se que tal reconhecimento alcançou tardiamente os Paiter Suruí.

Do exposto, é possível afirmar que os direitos constitucionalmente garantidos não foram suficientes para alterar o processo de desculturalização que influenciou hábitos e costumes deste povo, haja vista que sua ritualística imaterial foi significativamente influenciada pelas missões religiosas.

Neste contexto, pelo menos quanto a cultura material, o Museu Paiter A Soe se mostra como um mecanismo de resistência contra o esquecimento das riquezas culturais dos Paiter Suruí.

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REFERÊNCIAS

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Referências

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