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CORPO E(M) CONSTRUÇÃO:DISCURSO E TRABALHO EM UM PROCESSO JUDICIAL

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Academic year: 2021

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CORPO E(M) CONSTRUÇÃO:DISCURSO E TRABALHO EM UM PROCESSO JUDICIAL Stefany Rettore Garbin RESUMO: O presente estudo parte de um processo judicial de Acidente de Trabalho, ocorrido em um prédio em construção. Trago o acidente como materialidade para pensar sujeito e trabalho através da língua. A leitura do processo é feita pelo viés do dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso (AD) de linha pêcheutiana. Na teoria, um dos modos de visualizar o sujeito é através do corpo. Lugar de inscrição do discurso, este corpo-acontecimento que se acidenta é efeito de sentido no sujeito que se constitui entre a língua e a ideologia. No corpo trabalhador irrompe o impossível de dizer e de não dizer. Sendo o ser-em-falta, do inconsciente, que falha, o acidente é sintoma daquilo que retorna na forma que o trabalho pode assumir para o sujeito: pulsão de morte. A justiça condiciona os dizeres possíveis como verdadeiros ou falsos, formando uma rede de proposições lógicas que devem resultar numa conclusão definitiva que incidirá na decisão do juiz. O processo judicial depende da unidade, da homogeneidade e da transparência dos sentidos. No processo analisado, procuradoria e polícia narram o acidente, mas parecem incapazes de nomear o que aconteceu. Na pretensão da verdade e da totalidade, o testemunho do traumático se marca no equívoco da língua. Segundo Michel Pêcheux, a necessidade universal de um mundo semanticamente estável começa com a relação de cada um com seu corpo e seus arredores imediatos. Mas, no caso analisado, a discrepância dos pré-construídos judiciais não aponta para o assujeitamento completo, mas para sua falha. A evidência satura o sentido e marca a equivocidade no processo como um todo. O corpo reclama sentidos e não se deixa recobrir, o corpo resiste. PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Trabalho; Corpo.

1. Introdução

O presente estudo é uma discussão inicial sobre discurso e trabalho em um processo judicial de Acidente de Trabalho. No processo 24508 a fotografia faz parte do arranjo documental da perícia policial, a morte e sua causa são evidenciadas pela imagem. Inscrição do possível e do impossível, exposto ao olhar, esse corpo é discursivizado ao longo das páginas, contornado pela obviedade, recoberto pela concretude do acontecimento empírico. A estrutura discursiva do processo tenta sustentar a evidência do trabalhador que morre no e pelo trabalho. Sua concretude depende da unidade, da homogeneidade, da transparência dos sentidos.

Em meus estudos procuro pensar os sujeitos no trabalho através da língua pelo viés do dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso (AD) de linha pêcheutiana. Assim, tomo a fotografia como materialidade e o corpo como lugar de inscrição do discurso, como acontecimento de onde irrompem falhas.

A concretude, a literalidade, a transparência de sentido, revestem Luiz Carlos nas páginas do processo judicial. Há uma tentativa de cobri-lo logicamente, não só de trazer para o concreto, mas também rebocar as fissuras que ali se formam. Fazer uma cobertura homogênea, que condiciona os dizeres possíveis como verdadeiros ou falsos, formando uma rede de proposições lógicas. E essa necessidade universal de um mundo semanticamente normal, começa com a relação de cada com seu corpo e seus arredores imediatos (Pêcheux, 2002).

Análise do Discurso e Corpo II do Eixo Temático Estudos de Análise do Discurso do 4. Encontro da Rede

Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC).

Estudante de Mestrado, bolsista CAPES, do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Graduação em Licenciatura em História (UCS/2014). regarste@gmail.com.

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Entre o inconsciente, a linguagem e a ideologia está o ser-em-falta, o sujeito Luiz Carlos, deixando em cada ordem um furo: furo da linguagem pelo equívoco, da ideologia pela contradição e furo do inconsciente. Pensar o trabalhador, não é só pensar em sujeito, é pensar um corpo que trabalha. Como recorte do processo, apresento nas imagens o corpo como linguagem e forma de subjetivação, portanto, em relação com o discurso.

Antes de trazer o aporte teórico que direcionou o olhar para a materialidade, trago uma breve descrição do percurso de pesquisa no Arquivo Público. Como documento o processo tem sua própria trajetória.

O processo e o arquivo

As imagens analisadas surgiram da busca por processos que discutissem relações de trabalho no acervo permanente do poder judiciário do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Pensei que nesses processos poderia encontrar as requisições de trabalhadores e as disputas travadas entre estes, empregadores e procuradores. No Arquivo Público há processos de diferentes varas e instancias de julgamento (cível, criminal, comercial, público). Encontrei em meio aos livros catalográficos processos de reclamatórias trabalhistas em diferentes varas de julgamento.

Especificamente na Comarca de Porto Alegre, há uma vara de Acidentes de Trabalho, onde encontram-se processos de todo o estado. A leitura do arquivo remete aos gestos de leitura do Estado enquanto aparelho de poder que gere a memória coletiva e dos conflitos internos que surgem do encontro entre as questões de pesquisa e o conjunto de documentos na ordem de leitura em que se encontram guardados. Digo isto, pois antes mesmo de ler um processo, foi preciso ler o arquivo público.

Compreender seus catálogos, a organização geográfica, os tipos de processo, as palavras-chave e verbetes de referência. No arquivo, as palavras mudam, e há disponível para o pesquisador um índice de verbetes correspondentes para guiar a busca e o recorte por temas. Na organização do Arquivo Público, tendo a língua como materialidade, onde o sentido desliza e se inscreve na história, a discursividade do arquivo (Pêcheux, 2014b) se apresenta e conduz o pesquisador desde o catálogo até a entrega dos maços de processo.

Solicitei “Reclamatórias Trabalhistas” e encontrei processos de emancipação de jovens da vara de órfãos. O meu gesto de leitura do arquivo relaciona-se com o gesto de leitura de organização do Arquivo Público. O arquivo tem seus mecanismos de guarda, e foi preciso fazer seu percurso para chegar ao recorte que aqui proponho, determinado pela teorização.

Análise do Discurso, trabalho, corpo

A leitura do processo é feita pelo viés do dispositivo teórico-analítico da Análise de Discurso (AD) de linha pêcheutiana. Na teoria, um dos modos de visualizar o sujeito é através do corpo. Lugar de inscrição do discurso é neste corpo-acontecimento, corpo do trabalhador de onde irrompem falhas e sintomas sociais. “O corpo seria o lugar de simbolização onde se marcariam os sintomas sociais e culturais desses equívocos – tanto os da língua quanto os da história. ” (FERREIRA, 2013, p. 78). Portanto, é através do corpo que poderemos visualizar o sujeito. O corpo é o lugar da falta estruturante, falta que completa pela ausência, o corpo é efeito de linguagem. O corpo discursivo “se constrói pelo discurso, se configura em torno de limites e se submete à falta” (Ibidem, p. 78). Mas o que falta no corpo trabalhador é estruturante do sujeito, enquanto sujeito inserido em uma formação social: a capitalista.

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1. Fotografia da perícia policial. Fonte: Acervo Judicial do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Comarca Porto Alegre – Acidente de Trabalho. Anos 1964. Maço 14A. Processos 24499 a 24546. Nº 24508. (efeito de esboço da autora)

Pensar o trabalhador, enquanto sujeito, é pensa-lo ocupando um lugar social. Ou seja, trabalho é uma posição que é parte constitutiva de sua subjetividade e é no corpo que o trabalho acontece. Em “Só há causa daquilo que falha: ou o inverno político Francês”, Michel Pêcheux nos convida a discernir o que falha e a repensar a força unificadora da consciência e o impossível da forma-sujeito. Ele traz o ponto de realização impossível do assujeitamento perfeito, no exemplo do trabalhador das industrias Citroen:

“E se a gente se dissesse que nada tem muita importância, que basta se habituar a fazer os mesmos gestos de uma forma sempre idêntica, aspirando somente à perfeição plácida da máquina? Tentação da morte. Mas a vida se revolta e resiste. Algo no corpo, na cabeça, se fortalece contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que pende inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um falso movimento, a “reconstrução”, o “escoamento”, a tática do posto; tudo o que faz com que, nesse irrisório quadrado de resistência contra a eternidade vazia que é o posto de trabalho, haja ainda acontecimentos, mesmo minúsculos, que haja ainda um tempo, mesmo monstruosamente estirado. Esse desajeito, esse deslocamento supérfluo, essa aceleração súbita, essa solda fracassada, essa mão que retoma a vida que se liga. Tudo o que, em cada um dos homens da cadeia, urra silenciosamente: “Eu não sou uma máquina!” (PÊCHEUX, 2014a, p.307)

Pensar a extorsão do sobre trabalho e seus efeitos na constituição do sujeito e do sentido na história a partir de uma teoria materialista dos sentidos é pensar como ideologia e inconsciente se manifestam no discurso, através de e sob a linguagem (FERREIRA, 2010). O trabalho tem a ver com o interior das práticas do sujeito, que se efetiva através delas no social. O seu valor, a própria vida perdida na objetivação, não retorna. Mas ela resiste, o que retorna no sujeito é o real via linguagem. Algo do real do trabalho, retorna discursivizado no corpo, eis o sintoma do sujeito.

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2. Fotografia da perícia policial. Fonte: Acervo Judicial do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Comarca Porto Alegre – Acidente de Trabalho. Anos 1964. Maço 14A. Processos 24499 a 24546. Nº 24508.

(efeito de esboço da autora)

O acidente é esse gesto que resiste. No cotidiano da obra, o corpo urra contra a eternidade vazia do trabalho, contra mortificação do sujeito. Vamos evitar a leitura da imagem como o conteúdo por trás da forma. Trago esse sujeito e a imagem como o sintoma da única forma que o trabalho pode assumir para o sujeito: a morte. Porque o trabalho no capitalismo, como nos diz Marx (2010), é mortificação. Sua significação só pode aparecer ali, neste excesso de vida que pulsa. O processo judicial faz parte de uma matriz de sentido dominante, no interior de um Aparelho de Estado e da formação discursiva dominante, que parte da coerção lógica disjuntiva (Pêcheux, 2002): verdadeiro ou falso, culpado ou inocente, vara cível ou vara criminal, etc. No processo de Luiz Carlos o discurso judicial retoma a repetição de saberes, mas o que ecoa causa estranhamento em relação as fotografias da perícia. É isso que eu gostaria de destacar inicialmente, as imagens no processo têm a intenção de construir determinação. Porém, elas não dão efeito de textualidade, mas causam estranhamento.

O trabalhador vai se humanizando ao longo do processo. Ao ser descrito, ele não é mais só corpo, mas um sujeito, que era também várias outras coisas. Descrever a morte traz de volta o sentido inverso como um peso. Não era obvio que ele estava vivo? A ruptura que a morte faz, não leva a um deslizamento ou a uma ressignificação do discurso judicial. Mas faz quebras na regularização do processo e abala a matriz de sentido ‘acidente’.

Averiguar as causas da morte é da alçada da polícia, mas o acidente de trabalho não. As frases técnicas da polícia não parecem se adequar. O corpo/acontecimento como morte reclama sentidos no processo. Vai tentar se usar o mesmo termo para classificar o ocorrido. Mas a materialidade não é a mesma. Ele não se deixa recobrir.

O choque do real fica estetizado e inscrito na língua. Produzindo as evidências necessárias, no contraponto entre aquilo ‘que todo mundo sabe’ (o que é um acidente de trabalho), com o que todo mundo pode ver (que ele morreu), a justiça marca na língua ‘o que não pode ser dito’. A “coerção lógica disjuntiva” do verdadeiro ou falso não funciona. Se o acidente não foi um crime, se ninguém matou Luiz Carlos, e ele mesmo não tem culpa, o que não pode ser dito, vem à cena: o trabalho matou o trabalhador. Isso é da ordem do insuportável.

Considerações finais

Procurei colocar em relação com a Análise de Discurso noções que pudessem contribuir para pensar os processos discursivos que atravessam o corpo do trabalhador. A morte de Luiz Carlos marca o que é sintomático das relações de trabalho. O trabalho representa um lugar na estrutura social, nos meios de produção, o trabalho é o meio da própria vida do sujeito.

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O trabalho é sintoma constitutivo do (no) sujeito e do (no) social. Luiz Carlos, enquanto sujeito, é produto destas relações. A centralidade não está no sujeito, enquanto trabalhador, mas no trabalho enquanto relação e processo. No mesmo lugar em que o sujeito se insere na formação social, o seu trabalho, seu meio de vida e existência, ele se perde, não produz nada, ele é produto da luta de classes. A imagem é sintoma da única forma que o trabalho pode assumir para o sujeito: a morte.

Há uma evidencia latente, distorcida e dispersa. Afinal, o trabalho mata? O que não pode ser dito, vem à cena: o trabalho matou o trabalhador. Algo falha, algo não é pago, a algo não é dado um preço, esse excesso é da ordem do real, do impossível para o sujeito. Aquilo que sujeito deve esquecer para trabalhar, a vida, retorna, falha e mata. A ordem da ideologia e do inconsciente não coincidem, devemos então pensar seus efeitos no discurso a partir de uma materialidade.

Para além das questões levantas pelo gesto de leitura do processo e da imagem, também senti nesse trabalho a necessidade de pensar o Arquivo Público enquanto instituição que faz uma interpretação sobre a história conforme aquilo que lá está salvaguardado. Pensar o apagamento do processo 24508 e de tantos outros. Luiz Carlos estava em um maço, em meio a outros quarenta e sete. Processos trabalhistas de 1964, talvez, sugiro, salvos somente pelo seu ano de existência. Um entre tantos outros pequenos acontecimentos cotidianos, resto destas existências rápidas que marcam esse todo absoluto que é a Justiça.

Referências

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Análise do discurso e suas interfaces: o lugar do sujeito na trama do discurso. Organon, Revista do Instituto de Letras. Porto Alegre: UFRGS, vol. 24, n. 48, p. 17-34, 2010.

FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O corpo como materialidade discursiva. REDISCO. Vitória da Conquista: UESB, vol. 2, n. 1, p. 77-82, 2013.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

PÊCHEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento. 3ª ed. Campinas: Pontes, 2002. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do obvio. 5ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014a.

PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni P. Gestos de leitura: da história no discurso. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014b.

Referências

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