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DA NARRATIVA ORAL AO TEATRO. ROMARIA: UMA PARTILHA DE EXPERIÊNCIAS HUMANAS

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DA NARRATIVA ORAL AO TEATRO. ROMARIA: UMA PARTILHA DE EXPERIÊNCIAS HUMANAS

Luiz Carlos Leite

Em uma pesquisa junto a romeiros que se dirigem à festa de Nossa Senhora da Abadia de Água Suja, busca-se dialogar, dentro do campo da Teoria Literária, com as obras de Walter Benjamin e Paul Zumthor, a partir do entendimento de que estes abriram um caminho de possibilidades sobre um olhar acerca de inquietações que nos desafiam há bastante tempo, ao longo de uma prática da escrita para o teatro. Possibilitam, não de maneira ainda definitiva, identificar em que medida os narradores orais deixam sua marca por meio da performance5 no momento de sua partilha, problematizando as formas da narrativa através de um olhar sobre a ficção, a história e a memória desses narradores.

A proposta de fixação de uma linguagem que é oral em uma outra linguagem, a escrita, passível de ser encenada e realizada na efemeridade do teatro, não representa uma novidade, sendo objeto de investigação e debate de diversos críticos e pesquisadores.

Peter Szondi (2001), em seu ensaio Teoria do drama moderno (1956), aponta a instauração do teatro moderno na narrativização da forma dramática, em um período que vai do final do século XIX até meados do século XX, momento em que paradoxalmente, ao buscar uma renúncia ao poético objetivando uma aproximação com o mundo real, a linguagem dramática indica sua origem subjetiva, o seu autor.

Posteriormente, em um ensaio intitulado Posição do narrador no romance contemporâneo, publicado no ano de 1958, Theodor Adorno (1983) caracteriza a posição do narrador no romance por um paradoxo: ao mesmo tempo em que o romance contemporâneo exige a narração, não se pode mais narrar.

Para Adorno, o romance, eleito como forma literária específica da era burguesa, objetivaria a “sugestão do real” em oposição a um narrador senhor de seu tempo e espaço. Um maestro produtor de sua própria harmonia, mas que, inserido em um

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O conceito de performance a ser adotado no trabalho é aquele defendido por Paul Zumthor, onde durante as narrativas , é imprescindível ao narrador considerar as regras de tempo, lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e a resposta do público, quando o narrador utiliza-se de outros sistemas semióticos para além da voz. Ele fala com o corpo, como um todo, não promovendo apenas um recorte sobre a voz.

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momento histórico onde “desintegrou-se a identidade da experiência – a vida articulada e contínua em si mesma – que só a postura do narrador permite” estaria impossibilitado de narrar como antes o fazia. (ADORNO, 1983, p.269)

Anteriormente às citadas obras, mais precisamente no ano de 1936, Walter Benjamin, de maneira hiperbólica já decretara o fim das narrativas. Associava sua “morte” à desintegração das experiências humanas, ao surgimento do romance burguês, e à fixação da palavra escrita, estabelecendo, assim, uma oposição entre a tradição oral da poesia épica e o romance marcado pela quebra da experiência, pelo indivíduo isolado.

O romance burguês seria, assim, o gênero apropriado à existência de indivíduos isolados, capazes de compreender o significado das coisas somente através da perspectiva de suas vidas privadas (BENJAMIN, 1994).

Como exemplo dessa desintegração da identidade de experiências, Adorno também aponta para a impossibilidade de alguém que houvesse participado da guerra a narrasse “como antes uma pessoa contava suas aventuras.” Essa posição aparentemente pessimista, que aponta para a impossibilidade da narrativa após as experiências dos campos de concentração nazistas, ou até mesmo das recentes revelações do horror stalinista, pode ser também encontrada nas obras de Walter Benjamin.

Mas antes de, em uma primeira leitura, decretar o aparente fim das narrativas, é preciso também chamar à cena, o filólogo russo Mikhail Bakhtin, quando esse aponta para uma característica predominante nos estudos literários ao longo dos anos setenta do século passado; a falta de audácia e da experimentação em detrimento à manutenção de cânones estabelecidos (BAKHTIN, 1997, p.361-362). Ao mesmo tempo, defende a idéia da impossibilidade da separação entre a história cultural e a ciência literária, propondo ao investigador o papel de pensar a cultura de seu tempo.

Já o filósofo J. P. Sartre (1980) problematizando sobre o destino do escritor, afirma que, mesmo este pretendendo ser neutro ou passivo, sua escrita é em essência sempre uma ação e intervenção, de maneira que, esta possui sempre um sentido, sendo impossível a ele negar sua responsabilidade perante a história. O suporte livro teria assim, o poder de fazer da literatura um fato social, uma instituição que levaria o escritor a pensar sua situação na época presente, tornando-o atual, impedindo-o de sonhar com um futuro distante, de forma que sua escrita é sempre um engajamento e por isso, uma responsabilidade.

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Ao refletir sobre modos de fazer e pensar sobre qual é o tipo de teatro possível de ser vivido, a partir de uma fonte que são os narradores orais, essas breves colocações anteriores remeteram a uma outra questão: quais relações poderiam ser estabelecidas entre o abandono dos cânones em direção a um diálogo com o tempo presente, proposto por Bakhtin e, a proposta de uma escrita para leitores contemporâneos, através de uma negativa do olhar para o futuro, apontados por Sartre?

Para além de intervenções, através da idéia de que todo escrito possui um sentido, podemos dizer que estamos diante de um olhar pretensamente contemporâneo, mas que não promoverá uma ruptura com a ótica positivista se, o texto for pensado por ele mesmo. Essa escrita não pode reduzir-se a um documento, pois a história da literatura, “é uma história das diferentes modalidades da apropriação dos textos” (CHARTIER, 2002, p.257), de maneira que, o que se propõe, é uma opção de escrita, pois se não é possível, para Bakhtin, trabalhar uma literatura desvinculada da cultura, em sentido contrário, sua proposta de trabalhar os vazios e rupturas, com aquilo que está à margem, remete às marcas de uma subjetividade, aí sim, podendo superar a dualidade causa e efeito positivistas e, que é, em essência, uma opção de escrita, pois esta poderia ser desenvolvida de maneira oposta, mantendo-se os cânones, por exemplo.

Ao buscar promover uma escrita em sintonia com seu tempo, Walter Benjamin chama a atenção para as conseqüências da perda da dimensão do olhar do artista conduzindo à dissolução do próprio sujeito, em detrimento a um mundo no qual a vida de cada um desses sujeitos é regida pelo mercado (BENJAMIN, 1994), lugar onde as mercadorias revelariam um momento histórico da “reprodutibilidade técnica” quando a obra de arte irá tornar-se uma reprodução, assim como em uma fotografia, levando, por exemplo, a literatura a assumir um papel de documento informativo, assim como a própria imaginação a assumir uma função de publicidade.

É com essa insuficiência dos sentidos, ou do “declínio da aura” artística diante da reprodutividade técnica, apontada por Benjamin, que é possível estabelecer um recorte sobre a literatura e mais especificamente, a dramática, como arte possível de viver o presente, indo ao encontro da proposta do filósofo Sartre.

Ao promover uma abordagem sobre o fazer teatral contemporâneo, Hans-Thies Lehmann (2007) identifica um núcleo comum no chamado teatro pós-moderno: os espetáculos inseridos nesse “movimento” distanciam-se do dramático, constituindo-se em espetáculos de faces plurais, pautados pela miscigenação de outras linguagens como a música, a dança, o cinema, as artes visuais e demais expressões das mais variadas

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esferas artísticas, promovendo assim, a autonomia da cena e do processo criativo do ator, em detrimento a um tipo de texto como condutor do processo de criação.

Para além de uma opção estética, Lehmann identifica o teatro dramático, aquele baseado na sua realização a partir de um texto que contenha as categorias de ação e imitação, como um mecanismo de totalização e promotor daquilo que ele denomina de “passivamento”, ou seja, uma mercadoria. Em contrapartida, o teatro pós-dramático, ao negar essa totalidade, seria “um modo de utilização dos signos teatrais que, ao por em relevo a presença sobre a representação, os processos sobre o resultado, gera um deslocamento dos hábitos perceptivos do espectador educado pela indústria cultural” (LEHMANN, 2007, p.15) gerando a atração pelo reconhecimento de experiências novas.

Em consonância a essa prática teatral contemporânea, José Sanchis Sinisterra (2001) também aponta para o sentido da obra dramática, ou melhor, aquilo que nomeia de “dimensão literária do fazer teatral”, ter deixado de ser – como era até os anos cinqüenta do século passado – a origem da representação.

De um longo período marcado pelo textocentrismo, onde a encenação teatral era a mais fiel possível ao texto original, oferecendo pouca ou nenhuma autonomia ao diretor (VENDRAMINI, 2001), o teatro realiza-se em outro momento, a partir do afastamento dessa concepção, ou seja, caminhou para a autonomia em relação ao texto, onde o diretor parte para um experimentalismo.

Da total inexistência de textos como ponto de partida para uma encenação, ou até mesmo da possibilidade de diversas obras narrativas e líricas poderem ser transpostas para o teatro, o teatro pós-dramático admite também como suporte-texto, obras não dramáticas, sendo assim, possível a teatralização de cartas, documentos iconográficos, notícias de jornais, obras de arte, biografias, depoimentos, enfim textos que não são considerados literários, consolidando-se cada vez mais a idéia de que qualquer texto também pode ser encenado. Jean-Pierre Ryngaert (1995) nos chama a atenção para o fato de que:

O teatro atual aceita todos os textos, qualquer que seja sua proveniência, e deixa ao palco a responsabilidade de revelar sua teatralidade e, na maior parte do tempo, ao espectador a tarefa de encontrar seu alimento. A escrita teatral ganhou em liberdade e em flexibilidade o que ela perde, por vezes, em identidade (RYNGAERT, 1995, p. 17).

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Dessa forma, partindo-se de temas para improvisações, de depoimentos, de músicas, performances ou até mesmo textos considerados não literários, estaríamos diante do abandono da consciência da existência de regras teatrais para a escrita de um texto teatral? O teatro dramático é mesmo a expressão da manutenção deste mesmo texto como mercadoria?

Ao identificarmos a partir da década de setenta e oitenta, do século passado, sobretudo, um processo de dessacralização do autor em direção a uma dramaturgia dos grupos, a um processo de criação coletiva e a um fazer teatral independente, marcado pela desdramatização a ser encenada em salas e espaços alternativos, tomando o texto apenas como ponto de partida ou ainda, admitindo sua total inexistência, estaríamos diante de dois momentos distintos e; assim, a escolha de uma das duas maneiras de relacionar o texto à encenação, pode ser entendida como uma opção estética, podendo existir um teatro com texto, um teatro sem o texto e também o texto servindo de pretexto para sua realização (VENDRAMINI, 2001, p.86).

Há nesse instante duas vias possíveis de serem tomadas, a partir desse diálogo com os citados autores. Opção estética ou prática revolucionária? Não é uma simples questão colocada.

Ao defender a idéia de que a valorização recebida por parte do imaginário social está muito aquém da criatividade e superioridade da produção teatral espanhola, por exemplo, Guillermo Heras nos diz que “ainda hoje é raríssimo que uma edição de um texto teatral contemporâneo seja analisado ou criticado nos suplementos culturais dos jornais, e inclusive em revistas especializadas em literatura esses livros ocupam um lugar residual” (HERAS, 2001, p. 307). Lehmann caminha no mesmo sentido ao polemizar com a “crítica jornalística convencional, despreparada para analisar um teatro que não mais se baseia numa cosmovisão ficcional nem no conflito psicológico de personagens identificáveis” (LEHMANN, 2007, p.7).

Identificamos no pensamento de Heras a defesa da existência de bons textos teatrais, mas que são marginalizados em relação ao chamado grande mercado. Ao promover uma reflexão sobre a dramaturgia que se vem fazendo hoje na Espanha, Heras defende a idéia de que a democracia não “valorizou” o trabalho da geração de dramaturgos que escreveu sob a censura do período franquista, agentes promotores de uma resistência ética e estética. A materialização dessa não valorização estaria no predomínio da não estréia de novas obras e, tampouco a produção de uma revisão dos textos cênicos do período. Para ele, apenas após as revoltas de maio de 1968, período de

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enfrentamento ao regime franquista, com o chamado “novo teatro espanhol” é que houve uma ruptura ao realismo predominante no teatro.

Surgem os movimentos do chamado “teatro independente” marcado pela “criação coletiva” onde desaparece o nome do autor. É o período da “dessacralização” do conceito de autor em favor de uma dramaturgia dos próprios grupos. Mas nesses próprios grupos militavam autores que desenvolviam suas primeiras experiências literárias e propuseram escritas solitárias paralelamente ao abandono dos textos. Uma contradição! ao mesmo tempo em que há o abandono da figura do dramaturgo, este se renova dentro de uma nova predominância do fazer teatral; produzindo não para grupos, mas sim nos grupos.

Também ao teatro independente incorporaram-se autores das chamadas zonas fronteiriças, como os cineastas, pintores e cenógrafos, de maneira que, a década de oitenta foi marcada pelo excessivo culto ao “teatro de imagem” em detrimento a subvalorização do texto dramático. Aqui são utilizados exemplos do teatro espanhol, mas essa tendência não restringiu-se apenas à Espanha, espalhando-se com freqüência pelo chamado mundo ocidental, sendo uma prática recorrente à cena teatral paulistana por exemplo, sobretudo, a partir dos anos 80, onde podemos destacar por exemplo, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu.

Na análise de Heras, o “teatro de imagens” foi saudável no sentido em que varreu as “teias de aranha” do velho teatro naturalista, provocando ao mesmo tempo, um desequilibrio na valorização da textualidade contemporânea e, por isso, foi também responsável, para o fazer teatral, provocando essa renovação ocorrida nos anos 80 e 90, através de movimentos que receberam as mais variadas denominações, como de minimalismo, fragmentação, pós-modernidade, fisicalidade, contaminação com outras linguagens artísticas, novas tecnologias, mestiçagem, etc.

Assim, uma nova geração de dramaturgos, herdeiros do chamado “teatro independente”, buscam sua recepção diante de um público mais generalizado, em um código mais produtivo como em uma empresa privada, enquanto outro grupo estaria vinculando suas propostas à exibição das “salas alternativas”, geralmente dos próprios grupos, talvez resultado do debate entre os chamados autores de gabinete versus autores vinculados ao processo de uma companhia.

O fato é que contraditoriamente a um progressivo abandono da dramaturgia enquanto elemento chave e constitutivo do fazer teatral, houve também um aumento significativo no número de autores teatrais recentemente, sobretudo, devido a uma

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maior consideração sobre essa prática literária, ao aumento do número de prêmios de literatura dramática, de subvenções, à recuperação de edifícios teatrais e a consolidação de oficinas de dramaturgia e assim por diante.

Para além de uma opção estética, se admitida for, a possibilidade da teatralização dos mais variados elementos, o que tornaria, por exemplo, viável a encenação de uma lista telefônica ou de uma narrativa oral transcrita em forma de texto? Mesmo que não configure o ponto de partida e, seja produzida a posteriori, o que pode permitir a fixação de outras linguagens não produzidas originalmente para o teatro, em uma escrita, passível de ser encenada e realizada na efemeridade do teatro?

Ainda sem respostas a essas questões, nossa opção de pesquisa foi a de partir em busca das narrativas orais, fossem elas texto ou apenas pretexto, mas com a leitura de que os narradores poderiam oferecer uma preciosa fonte a subsidiar uma investigação da possibilidade de registros, transcrições e transcriações6 de suas narrativas orais em uma literatura dramática, passíveis ou não de serem encenadas.

Foi preciso também, a partir de um processo investigativo, estabelecer uma opção de leitura acerca dos acontecimentos transmitidos, pois se enunciou em campo a constatação de que os fatos ou acontecimentos coletivos transmitidos pelos narradores são, em um primeiro momento, absorvidos de maneira individual e, posteriormente comunicados, partilhados para uma esfera que é coletiva. No momento dessa transmissão, há uma partilha imaginativa7, geradora de um imaginário de histórias,

tipos, crenças, comportamentos que as tornam coletivas novamente. A investigação detêm-se agora mais profundamente no momento dessa partilha

imaginativa, no instante dessa transmissão, marcada pela memória do narrador, que, para além de sua relação com o processo criativo, deve ser também pensado enquanto sujeito constituído, pensado histórico e culturalmente nas suas relações no tempo e espaço, através das lembranças, esquecimentos e, sobretudo, no seu exercício de pertencimento, navegando entre o poeta e o historiador.

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O termo transcriação é, na verdade um conceito utilizado em Teoria da Literatura, pelos poetas concretistas brasileiros, sobretudo por Haroldo de Campos. Difere-se da palavra adaptação, pois os princípios da comunicabilidade, da interacionalidade e da legibilidade se sobrepõem aos princípios da autenticidade e fidelidade à obra de base original.

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Como o ator que ao fazer o prólogo de Henrique V, diz : “conterá tal rinha as planícies da França? Ou poderemos segurar neste (o palco) O de lenho os elmos que assustaram os ares de Agincourt? Peço perdão! [...] acionemos sua força imaginária”. É preciso que o personagem, ou o narrador, quebre a chamada “quarta parede” e provoque no público uma imaginação ativa, onde este tem de construir a imagem daquilo que é narrado, onde não há uma cenografia daquilo que é contado, mas é necessária uma imaginação do objeto, fato, ação, etc, diferentemente do assistir a uma representação.

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Quando narram, os romeiros partem de um imaginário intimamente ligado ao próprio meio, determinado por condições objetivas, ao mesmo tempo em que vivenciavam um processo de criação, que é artístico. Não desfilam simples falas ou ações do cotidiano, apontam para o caminho da performance, ou melhor, para a produção de uma cena performática.

Carl. G. Jung (1991) afirma que existe um domínio no qual os conteúdos psíquicos não são apenas próprios de um indivíduo, mas de muitos ao mesmo tempo: de uma sociedade, de um povo ou da humanidade. Caminha-se, assim, para o que ele denomina de Inconsciente Coletivo, expresso nas narrativas mitológicas, nos contos de fadas, nos motivos e imagens que podem nascer de novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migrações históricas. Além de ter uma origem individual, a fantasia criadora dos homens se utiliza de uma camada arcaica soterrada há muito tempo e que se manifesta em imagens peculiares, reveladas nas mitologias de todos os tempos e de todos os povos.

Sob essa ótica, a função do artista e dos romeiros que produzem suas narrativas orais, é a mitologização do que acontece no mundo, ou seja, a capacidade de refazer a ponte entre a consciência e os conteúdos do Inconsciente Pessoal e Coletivo (CAMPBELL, 1990, p.57). Para isso, podem valer-se de imagens internas e incorporá-las em obras externas. O artista, como genuíno porta voz do ser humano e de suas necessidades existenciais, seria o transmissor do mito de sua época, de maneira que o relato mitológico se dá pela linguagem do imaginário e não por uma descrição histórica e objetiva da realidade.

E os romeiros, o que narram esses artistas? Ao longo da pesquisa há uma busca do aprofundamento desse tema, por ora, seria suficiente partir do entendimento de que narram suas experiências mais significativas que se retêm na memória e posteriormente são comunicadas. Não promovem a apreensão do todo, mas colhem os frutos de um processo de seleção, de cortes e recortes que são comunicados, compartilhados ou imaginados através das narrativas e que contribuem para a criação de um repertório comum: a transmissão – ou partilha imaginativa – de experiências humanas.

Nas sociedades onde há a ausência da escrita com predomínio da oralidade, a memória cumpre também a função de transmitir conhecimentos secretos, através da descrição e ordenamento dos fatos de acordo com certas tradições estabelecidas.

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Assim, enquanto que a reprodução mnemônica palavra por palavra estaria ligada à escrita, as sociedades sem escrita [...] atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas. (LE GOFF, 1994, p.430)

Essa maior liberdade criativa característica da transmissão de memórias através da oralidade representa, em diferentes momentos, um processo de reconstrução de uma memória que é coletiva em sua essência e, assim mais distante da rigidez de controle, de uniformização dessas mesmas transmissões. Não por acaso, há todo um processo histórico de valorização da linguagem escrita sobre a oral, a criação de instituições de memória, com seus arquivos; compartimentando, selecionando e exercendo um controle sobre aquilo que deve ser lembrado, como é o caso da instituição Igreja, o que trás como conseqüências alterações no desenvolvimento da memória coletiva.

A passagem da memória oral à memória escrita produz um processo de armazenamento, de marcação e de registro das informações, de maneira a permitir uma reordenação das frases e palavras, possibilitando a fixação de uma nova ordem, uma hierarquização expressa em uma nova memória, uma “memória artificial”, onde se narra, por exemplo, uma genealogia - o prestígio das famílias dominantes – os grandes feitos de reis e governantes, as vitórias militares e demais ações a serem eternizadas através de escritas, monumentos, hinos, pinturas e demais elementos de fixação. Mas são elementos que contêm um saber técnico, fórmulas que permitam sua reprodução, mas ao mesmo tempo são excludentes, acessíveis apenas a uma parcela do coletivo.

Freqüentemente justifica-se uma divisão entre duas tradições culturais: a literária e a não literária, entendendo-se a primeira como escrita e a segunda como oral. Não por acaso, atribui-se à oralidade características negativas, como afirma o estudioso medievalista Paul Zumthor (1993), ao apontar que a mensagem oral estaria destinada a uma audição pública, enquanto que a escrita se destinaria à percepção individual.

A partir dessa distinção entre as percepções, Zumthor afirma ainda que, a oralidade funcionaria apenas no interior de um grupo limitado, reduzido; ao passo que a escrita buscaria a universalidade, por se apoiar na abstração e conseqüente possibilidade de ser pulverizada entre uma infinidade de leitores individuais que, somados, tenderiam a atingir o universal.

De maneira oposta à escrita, a oralidade tenderia a espacializar a memória em um espaço físico mais restrito, definido pela extensão da acústica, um alcance sensorial da percepção imediata, enquanto a espacialidade da escrita possui uma natureza

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adversa, fixando-se na superfície de uma página, de maneira a repetir indefinidamente sua mensagem sobre o tempo.

Retomando a idéia de Adorno, quando este associa o romance à quebra da experiência e ao indivíduo isolado, em oposição ao narrador que é senhor de seu tempo e seu espaço, é possível uma associação a outro elemento destacado por Paul Zumthor que é o da imediatez. Essa é ligada à oralidade, pois remete a possibilidades de compreensão que se desenvolvem com extrema brevidade, ou seja, são apreendidas pelo registro da memória apenas no momento em que se desenvolvem em uma relação específica de momento, enquanto restaria à escrita uma possibilidade mais intensa de permanência em um tempo maior. É nessa imediatez e independência em relação ao seu tempo que se encontra o estágio atual de investigação.

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