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Ruínas circulares : vida e história no norte do Haiti /

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Rodrigo Charafeddine Bulamah

RUÍNAS CIRCULARES:

vida e história no norte do Haiti

Campinas 2018

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Rodrigo Charafeddine Bulamah

RUÍNAS CIRCULARES:

vida e história no norte do Haiti

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social, no âmbito do Acordo de Cotutela firmado entre a Unicamp e a École des Hautes Études en Sciences Sociales (França).

Orientadores: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz (Unicamp) e Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené (EHESS)

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Rodrigo Charafeddine Bulamah, e orientada pelo Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz e pelo Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené.

Campinas 2018

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Agências de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2013/24916-4; CNPq,

142308/2013-7

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4734-7672

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Bulamah, Rodrigo Charafeddine, 1986-

B87r Ruínas circulares : vida e história no norte do Haiti / Rodrigo Charafeddine Bulamah. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

Orientadores: Omar Ribeiro Thomaz e Enric Porqueres i Gené. Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas.

Em cotutela com: École des Hautes Études en Sciences Sociales.

1. Antropologia e história. 2. Camponeses - Caribe - História. 3. Revoluções - Haiti. I. Thomaz, Omar Ribeiro, 1965-. II. Porqueres i Gené, Enric. III. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. IV. École des Hautes Études en Sciences Sociales. V. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Les ruines circulaires : vie et histoire au nord d’Haïti

Palavras-chave em inglês Anthropology and history Peasants - Caribbean - History Revolutions - Haiti

Área de concentração: Antropologia Social Titulação: Doutor em Antropologia Social Banca examinadora:

Omar Ribeiro Thomaz [Orientador] Enric Porqueres i Gené [Orientador] Nashieli Cecilia Rangel Loera Federico Guillermo Neiburg Louis Marcelin

João Felipe Ferreira Gonçalves

Data da defesa: 21-06-2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de junho de 2018, considerou o candidato Rodrigo Charafeddine Bulamah aprovado.

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené

Profa. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg Prof. Dr. Louis Marcelin

Prof. Dr. João Felipe Ferreira Gonçalves

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Agradecimentos

Ao longo destes anos de pesquisa, acumulei dívidas que já se tornaram históricas. Contudo, como nós, antropólogos e antropólogas, sabemos bem, essa é a matéria mesma da vida social – ou, como aprendi vivendo em Milot, para retribuir basta que as coisas estejam em movimento. Por isso, agradeço, primeiramente, às pessoas que me receberam em suas casas, que dividiram comigo suas histórias e que me apresentaram esse lugar fascinante e cheio de vida que é o Haiti, especialmente a Innocente, Maurice, Jorab, Marzou, Arzou, Rose, Didine, Guy, Chris, Oetly, Bal, Henri Claude, madame Lima, Lolit, Dada, Sephonise e Merci-Lourdes. Mèsi, moun a m!

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo n. 142308/2013-7) pelo apoio durante o primeiro ano do doutorado, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior pelo período de pesquisa na França e à FAPESP (Processo n. 2013/24916-4) por ter garantido a continuidade da pesquisa durante essa jornada como doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp e da École des Hautes Études en Sciences Sociales. Aos funcionários e funcionárias dessas duas instituições, que me ajudaram a vencer burocracias dos dois lados do Atlântico, deixo registrada minha imensa gratidão pelo apoio cotidiano, particularmente a Márcia Goulart, a Sônia Cardoso, a Maria José Rizola, a Claudine Raymond, a Vanessa Szenwald-Liwicki, a Alexandre D’Ávila, a Fábio Guzzo, a Ricardo Cioldin, ao seu Luis, a Suely, ao Bene pelos ótimos papos e ao Santos pela camaradagem. Aos professores e professoras que tive a sorte de encontrar ao longo da minha formação, especialmente Nádia Farage, Suely Kofes, Vanessa Lea, Emília Pietrafesa de Godoi, Mauro Almeida, Bibia Gregori, Heloísa Pontes, José Maurício Arruti, Ronaldo de Almeida, John Monteiro (in memoriam), Laurent Dubois, Andrea Ballestero, Benoît de l’Estoile e Carlo Severi. A Omar Ribeiro Thomaz, pela generosidade e por esses longos anos de orientação e parceria. A Enric Porqueres i Gené que me recebeu com grande animação durante meu período na França, pelas inúmeras conversas e ensinamentos duradouros.

Aos professores José Maurício Arruti e João Felipe Gonçalves pela leitura atenta e pelas sugestões na banca de qualificação. À professora Nashieli Loera e aos professores João Felipe Gonçalves, Federico Neiburg e Louis Marcelin por terem participado da banca de defesa de doutorado.

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Entre os trânsitos acadêmicos que fizeram parte do meu doutorado encontrei e reencontrei amigos e amigas especiais e sem os quais esta tese não teria sido possível. Sou grato especialmente a Maryse Jean-Jacques, Jacques Bartholi, Gabriela Read, Winter Schneider, Diego Bertazzoli, Igor Scaramuzzi, Hugo Ciavatta, Josué Tomasini, Iracema Dulley, Luisa Pessoa, Ilana Goldstein, Stella Parteniani, Carolina Perini, Aline Hasegawa, Lucas Jardim, Benjamin Parton, Rodrigo Lobo, Heloísa Pisani, Fábio Accardo, Thiago Aoki, Flávia Dalmaso, Julia Goyatá, Lía Giraldo, Etienne Saint-Sernin, Felipe Evangelista, Filipe Calvão, Alexandros Stravos-Iliopoulos, Bryan Brown, Miguel Goldstein, Joseph Sony Jean, Peterson Georges, Barbara Weiss, Ana de Francesco, Maíra Vale, Inácio Andrade, Fábio Luiz Pimentel, Lucas Mestrinelli, Marc Joseph, Manoune Ruffy, Katie Simon, Marcelo Mello, Andrew Tarter, Alex e Elía Martinéz, Caio Barini, Solaiman Shokur, Scott Freeman, J. Cameron Monroe, Keith McNeal, Kiran Jayaram, April Mayes, Elizabeth Manley, Martin Tsang, Henry Chip Carey, Sandeep Ray, Cyma Farah, Hicham Safieddine, Bhavani Arabandi, Nate George, Susann Kassem, Suraya Khan, Miller Wright, Horace, Will, Maurizio Esposito, Arthur Saraiva, Fátima, Horácio e Marina Galvanese, Victor Giménez, Magnus Sugurðsson, Sólveig Sigurðardóttir, Baird Campbell, Patrícia Alvarez, Louise e Martin, Yifan Wang, Mel Ford, Katie Ulrich, Jessica Lauren, Alejandro Molina, Diego Garcia, Maria Dominguez, Marie-Laure Nauleau, Berhman, Marie-Claire e Clément Garçon, Matilde e Fábio Macedo.

Não posso deixar de enfatizar o quanto sou grato a Jean-Philippe Belleau pela confiança, parceria e amizade e a Robin Derby pelo estímulo e pelos encontros os mais inspiradores. A Andrea Ballestero, que me recebeu na Rice University, por compartilhar de uma paixão indescritível pela antropologia e pela acolhida generosa durante o período que passei ali, a Alida Metcalf pelas tantas conversas sobre o Brasil, a James Sidbury pelos ensinamentos sobre o Caribe e aos funcionários da Fondren Library por me auxiliarem a navegar aquele imenso acervo. Meu tempo na Duke University, ainda durante o mestrado, foi decisivo para minha formação, por isso, agradeço a Laurent Dubois e a Deborah Jenson pelo apoio e pelas valiosas lições que ainda carrego. Ali, também conheci Laura Wagner, Vincent Joos e Joshua Nadel que se tornaram amigos especiais e parceiros intelectuais incontornáveis. No Haiti, Joanna da Hora, Renold Laurent, Winter Schneider, Susie Zeiger, Marvin Chochotte, Paul Clammer e Xuan Lai Dao foram companheiros de descobertas e cúmplices de momentos que carrego com carinho na memória. Em bom crioulo do Cabo: mèsi, zanmanm!

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Aos bibliotecários e funcionários dos arquivos da Bibliothèque des Frères d’Instruction Chrètienne (BFIC) e da Bibliothèque Nationale d’Haïti (BNH), em Porto-Príncipe, da Bibliothèque du Collège du Sacre Coeur, em Cabo Haitiano, do Tribunal de Paix, em Milot, da UNESCO e do Muséum national d’Histoire naturelle, em Paris, expresso minha calorosa gratidão e deixo registrado o testemunho da minha admiração pelo notável trabalho que fazem organizando e catalogando documentos os mais diversos e em situações as mais adversas. Também a Laura Wagner, mais uma vez, pela amizade e pelo impecável trabalho organizando, catalogando e tornando públicos os arquivos da Radio Haïti. A Ivan Siqueira, meu camarada, pela ajuda com o acesso a periódicos virtuais e livros de difícil circulação. Aos fundadores e mantenedores das plataformas Library Genesis (http://gen.lib.rus.ec/) e Sci-Hub (http://www.sci-hub.tw/) pela quebra de monopólios editoriais, democratizando assim o acesso a produções acadêmicas mundo afora.

À Laila, minha mãe, pelo apoio e amor e por me ensinar o valor da palavra. Aos meus irmãos, Lucas e Gustavo, companheiros queridos de vida e de tantas aventuras, agradeço a lealdade. Ao meu pai, Jorge, pelo carinho e por ter me ensinado a como observar bichos e plantas. Aos meus parentes que fizeram parte dessa jornada, aos que continuam próximos e aos que seguiram pra longe e deixaram saudades, agradeço-lhes as conversas, as andanças, as lembranças e tudo o mais.

Lucas Jardim, Ludmila Maia, Iracema Dulley, Luisa Pessoa, Hugo Ciavatta, Marvin Chochotte, Etienne Saint-Sernin, Mélanie Montinard, Bethânia Pereira, Igor Scaramuzzi e Josué Tomasini leram capítulos da tese e me ajudaram a reformular argumentos, corrigir falhas e pensar comparativamente outros contextos e outras questões. É deles o meu maior reconhecimento. Erros e insistências continuam, é claro, inteiramente meus.

Por fim, agradeço à Ludmila esperando que esta dedicatória represente apenas uma fração da minha gratidão por nossa história cheia de beleza e encanto e da qual o Haiti é paisagem principal, desde o começo.

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Resumo

Esta tese explora as articulações entre e vida e história no norte do Haiti. A partir de uma etnografia centrada no vilarejo de Milot, onde diferentes vestígios de tempos passados se cruzam por meio de experiências cotidianas e rituais, busco tratar de temas relacionados ao parentesco, à magia e à política e suas articulações com o tempo, o espaço e as formas contemporâneas de subjetivação. Assim, combinando etnografia e trabalho historiográfico, argumento que a história é produzida ativamente através do trabalho de diferentes agências, como espíritos e ancestrais, e através de engajamentos diversos com materialidades, conhecimentos e afetos conformando diversas paisagens históricas neste contexto caribenho.

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Abstract

This dissertation explores the relations between life and history in northern Haiti. Drawing from an ethnography in the village of Milot, where many traces of past times are connected through daily and ritual experiences, I deal with themes such as kinship, magic, and politics as well as their articulation with time, space and contemporary forms of subjectivation. Combining ethnography with historiographic work, I argue that history is produced through the work of agencies such as spirits and ancestors as well as with a series of engagements with materialities, knowledges, and affects that conform different historical landscapes in this Caribbean context.

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Résumé

Cette thèse est dédiée au thème des articulations entre vie et histoire au nord d’Haïti. A partir d’une ethnographie dans le village de Milot, où des différentes traces de temps passés se croisent dans des expériences rituelles et quotidiennes, j’aborde les thèmes de la parenté, de la magie et de la politique ainsi que ses articulations avec le temps, l’espace et les formes contemporaines de subjectivation. Ainsi, j’articule l’ethnographie au travail historiographique et j’argumente que l’histoire est produite activement par le travail des esprits et des ancêtres ainsi que par des engagements avec matérialités, connaissances et affects qui donnent forme à des paysages historiques dans ce contexte caribéen.

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Lista de Imagens

Imagem 1: Sem título, Jean-Baptiste Jean, 198-. Pintura representando diferentes episódios da vida e do

reinado de Henry Christophe. Foto do autor, Milot (Citadelle), 2015. ... 19

Imagem 2: Maurice Etienne e o autor. Nova Iorque, novembro de 2012. ... 22

Imagem 3: Milot. Ilustração elaborada a partir de imagem do Open Street Map. ... 33

Imagem 4: Mapa da região de Milot. Elaborado a partir do QuantumGIS. ... 33

Imagem 5: Jorab e sua filha. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ... 39

Imagem 6: Milot vista a partir do Palácio Sans Souci. À frente, a Igreja real e o estacionamento do Parque Histórico Nacional. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ... 43

Imagem 7: Palácio Sans Souci desde a casa de Lucius Valsan. Foto do autor, Milot, março de 2015. ... 52

Imagem 8: Lucius Valsan na entrada de sua casa. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ... 54

Imagem 9: Retrato mais célebre de Christophe, por Richard Evans, s.d., óleo sobre tela. ... 56

Imagem 10: Crianças atravessando Sans Souci após o término da escola. Foto do autor, Milot, outubro 2015. ... 63

Imagem 11: Montagem com as placas institucionais em diferentes locais do Parque Nacional Histórico. O brasão do Instituto de Salvaguarda do Patrimônio Nacional (ISPAN), abaixo à direita, é o próprio brasão do rei Christophe. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ... 66

Imagem 12: Sans Souci, Numa Desroches, ca. 1820. Bibliothèque des Frères d’Instruction Chrètienne (BFIC), Porto-Príncipe. ... 78

Imagem 13: Rei Christophe inspeciona a construção da Citadelle, Jacques-Richard Chéry, ca. 1963, óleo sobre compensado. Coleção de Astrid e Halvor Jaeger. Fonte: Cosentino (1995, p. 243). ... 83

Imagem 14: Citadelle alguns metros depois do “segundo estacionamento”. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ... 96

Imagem 15: Saint Jacques, litofotografia sobre papel, Coleção de Michel Leiris, ca. 1948, Museu do Quai Branly. ... 98

Imagem 16: Multidão no alto da Citadelle I. Ao centro, a pilha de argamassa que serve de tumulo ao Rei Christophe. Foto do autor, Milot, abril de 2012. ... 101

Imagem 17: Multidão no alto da Citadelle II. Foto do autor, abril de 2012. ... 102

Imagem 18: Sem título, Charles Saül, ca. 1970. Óleo sobre tela. Coleção de Laura Wagner, gentilmente cedida ao autor. ... 104

Imagem 19: Madame André segurando uma fruta-pão. Foto do autor, Milot (Samson), 2012. ... 106

Imagem 20: Ilustração da chegada dos espanhóis, detalhe da presença de porcos no canto inferior esquerdo. Fonte: História general de las cosas de la Nueva España (ou Códice Florentino) de Bernardino de Sahagún, 1577, vol. 3, carta 406r, reproduzido do exemplar virtual da Biblioteca Medicea Laurenziana, Florença. ... 123

Imagem 21: Porcos (Sus scrofa domestica) no Novo Mundo. Fonte: Donkin (1985, p. 40). ... 125

Imagem 22: “Mapa da ilha de São Domingos confeccionada para a obra de M. L. E. Moreau de St Méry”, por L. Sonis e Vallance, 1796. Cabo Francês destacado em amarelo e Cotuy, em vermelho. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. ... 130

Imagem 23: “Mapa itinerário das duas rotas principais entre Cabo Francês à vila espanhola de Santo Domingo”, confeccionado por Daniel Lescalier, 1764. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. ... 133

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Imagem 24: “Engenho de açúcar”, ilustração adicionada à edição francesa de Oexmelín (1930, p. 57). Destaque para a banana, abaixo no canto esquerdo, alimento importante para a sociedade colonial, aqui

representada próxima à senzala (cases de nègres). ... 134

Imagem 25: “Planta de uma plantation de índigo”. Ilustração do livro de M. de Beauvais-Raseau (1770, p. vi). Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. ... 137

Imagem 26: Marcha em protesto contra a decisão do CDC. Foto de Richard Elkins (AP), fonte: Jared McCallister, “A court ruling to deny citizenship to Dominican Republic-born Haitians…”, New York Daily News, 13 de outubro de 2013. ... 164

Imagem 27: “Celebração de 200 anos do Bois-Caïman, 1791-1991”, Jean-Baptiste Jean, 1993. Coleção do autor. ... 169

Imagem 28: “Porco importado do estado de Iowa (EUA) bebendo água da torneira". Fonte: Diederich (1985, p. 17). ... 173

Imagem 29: (Esq.) Sem título. Fonte: Mark (1981, p. 4). (Dir.) “Em setembro de 1980, todos os porcos domésticos da República Dominicana foram massacrados”. Fonte: Mark, Chain e Ellis (1981, p. 15). .. 181

Imagem 30: Anouse Jasmin em frente à sua casa. Foto do autor, Milot (Samson), maio de 2016. ... 185

Imagem 32: Revolução até o fim. Foto do autor, Cabo Haitiano, 2015... 211

Imagem 31: O 1804 de Moïse. Foto do autor, Milot, 2015. ... 211

Imagem 33: Santinho de Jean Charles Moïse. ... 212

Imagem 34: Acima, lê-se, “Nós apenas começamos o trabalho”. O verbo kare, lit. “endireitar” ou “aprumar”, é utilizado comumente em brigas de galos quando se “aprumam” os galos para o início do combate ou ainda em brigas em geral, quando duas pessoas se “endireitam” e “aprumam seus corpos” (kare kò). Abaixo, “‘Hoje, eu lhes apresento um pequeno camponês que escolheu trabalhar por sua comunidade e pelo seu país’, Michel Joseph Martelly”. Fonte: https://mangodhaiti.blogspot.com/2015/09/nou-fenk-kare-travay-phtkhaiti.html ... 219

Imagem 35: Propagando eleitoral, ca. 1987. Arquivo do Tribunal de Paix de Quartier Morin. Agradeço a Marvin Chochotte pelo envio deste e de outros documentos do período... 221

Imagem 36: Ilustração de alguém que vendeu a crédito (à esquerda) e um outro que vendeu à vista (à direita). Mesmo referindo-se ao ano de 2012, esse calendário continuava pendurado na parede de uma vendinha no centro de Milot. Ilustrador não indicado. Foto do autor, Milot, novembro de 2015. ... 226

Imagem 37: Antigo arquivo notarial de Milot. Foto do autor, maio de 2018. ... 234

Imagem 38: Capa da edição dos dias 7 a 10 de fevereiro, Le Nouvelliste, coleção de periódicos da Biblioteca Nacional do Haiti. Foto do autor. ... 240

Imagem 39: “Voodoo temple”, Bryant Slides Collection, University of Central Florida, fotógrafo e localidade desconhecidos, ca. 1970. Disponível em: www.dloc.com (acesso em 05/04/2018). Destaque às bandeiras do Haiti com o retrato de de Duvalier... 270

Imagem 40: Estátua do Marron Inconnu, de Albert Mangonès. Foto de Cris Bierrenbach, Porto-Príncipe, janeiro de 2010. ... 279

Imagem 41: Sem título, Hector Hyppolite. Coleção do Museu de Arte Haitiano, Porto Príncipe. Foto de Cris Bierrenbach, janeiro de 2010... 286

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Sumário

Agradecimentos ... 6 Resumo ... 9 Abstract ... 10 Résumé ... 11 Lista de Imagens ... 12 Sumário ... 14

Convenções ortográficas e guia de pronúncia ... 16

Um historiador chofer de táxi (ou à guisa de introdução) ... 19

O Caribe e os povos sem história ... 25

O lugar da história ... 33

O trabalho de campo, o arquivo, o texto e as imagens ... 43

Os sistemas desta tese ... 50

Capítulo 1: Rituais da história... 52

Um conto de duas ruínas ... 59

Arqueologia como pirataria ... 66

Sentar, conversar, flanar ... 70

Do cotidiano ao movimento ... 76

O sistema dos ancestrais ... 84

As ruínas circulares ... 99

Capítulo 2: Pode um porco falar? ... 104

De porcos e humanos ... 109

Sobre origens, caças e criações ... 122

O sistema contra-plantation ... 139

Capítulo 3: A morte do país ... 144

Porcos domésticos, portadores inaparentes e vírus mortais ... 145

Teorias (alter)nativas do contágio ... 156

Sonhavam os especialistas com porcos assassinos? ... 173

Sujeitando porcos, sujeitando pessoas: evento e desordem ... 180

Capítulo 4: Diabo, política e desenvolvimento ... 185

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O ataque dos homens de chifre e a morte de um lougawou ... 193

BOX: A presença estrangeira ou “os ladrões de cabrito” ... 200

De ancestrais e revoluções ou o 1804 de Jean Charles Moïse ... 206

Os encantamentos da comida e as promessas do desenvolvimento ... 218

Futuros passados ... 228

Capítulo 5: Ecos da Revolução ... 232

Revolta e resignação... 236 Em nome da pátria... 253 Um ser imaterial ... 258 Reivindicando o desconhecido ... 273 Desenraizando a história ... 280 Recriando o presente ... 291 Epílogo ... 296 Anexo ... 298

a) Reprodução integral e tradução da petição organizada por camponeses da região de Hinche, Departamento Central, Haiti. Extraído de Deshommes (2006, pp. 72-73). ... 298

b) Resumo substancial da tese em francês ... 301

Les ruines circulaires : vie et histoire au nord d’Haïti ... 301

Introduction ... 301

Les Caraïbes et les peuples sans histoire ... 304

Le lieu de l’histoire ... 312

Les systèmes de la thèse ... 315

Chapitre 1 : Rituels de l’histoire ... 317

Chapitre 2 : Un cochon, peut-il parler ? ... 327

Chapitre 3 : La mort du pays... 331

Chapitre 4 : Le diable, la politique et le développement ... 333

Chapitre 5 : Les échos de la Révolution ... 340

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Convenções ortográficas e guia de pronúncia

A língua que mais utilizei durante meu trabalho de campo foi o kreyòl ou crioulo haitiano. Esta língua tem gênese atrelada à colonização francesa do Caribe e surgiu no espaço da plantation açucareira outrora centrada no trabalho de africanos e africanas escravizados (ver, entre outros, Mintz, 2010). Entre a maioria dos linguistas, aceita-se a explicação de que a base gramatical dessa língua é caudatária de línguas do Oeste africano enquanto a base lexical vem principalmente do francês. Pode-se consultar o trabalho de Michel DeGraff (2003, entre outros) sobre a construção de uma excepcionalidade em torno das línguas crioulas e a excelente análise de Schieffelin e Doucet (1994) sobre as políticas linguísticas em disputa ao longo da história do país. Nas transcrições de falas e textos em crioulo haitiano segui, na maior parte do tempo, a convenção ortográfica mais recente, elaborada pelo Instituto Pedagógico Nacional (IPN) e tornada oficial em 1979, tomando por base sobretudo o dicionário de Vilsaint e Heurtelou (2005). Nas citações de trechos de outros autores, optei por manter a grafia original, fazendo alguma ressalva quando necessário. De modo geral, as consoantes possuem correspondência fonética similar aos grafemas de língua portuguesa, o que não deve causar grandes problemas a uma leitora e a um leitor lusófonos. O caso das vogais e semivogais merece um pouco mais de atenção, por isso, elaborei o quadro abaixo e adicionei a notação do Alfabeto Fonético Internacional seguida da pronúncia aproximativa.

Símbolo AFI Pronúncia

Vogais labiais

e /e/ “e” fechado, como em mês

è /ɛ/ “e” aberto, como em pé

ò /ɔ/ “o” aberto, como em só

ou /u/ “u”, como em julho (similar ao francês “ou”, como em jour) a, i, o /a/, /i/,/o/ pronunciam-se como em português

Semivogais

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w /w/ como em quase

Vogais nasais

an /ã/, en /ɛ̃/, on /õ/ e oun /ũ/ são vogais nasais quando não são sucedidas por outras vogais. Exemplo: jany, termo utilizado para definir espíritos da família, seria grafado em português como “jãi”.

Uma última palavra sobre as traduções. Salvo quando indicado, os trechos traduzidos são de minha autoria. Adianto que os termos em itálico representam ênfases minhas a alguma citação, nomes de locais em língua estrangeira ou expressões e categorias nativas, sobretudo quando aparecem pela primeira vez. Entre aspas aparecem trechos mais longos de falas de interlocutores, traduções de expressões em crioulo haitiano e citações de outros autores. Quanto às citações bibliográficas mais curtas em inglês, em francês e em espanhol, optei por traduzí-las quando as utilizo no corpo do texto e, quando mais extensas, deixei-as no original, separando a sentença em um parágrafo. Nas traduções de nomes pessoais, localidades e logradouros optei pela grafia internacionalmente mais usual para o Haiti, de base francesa. Assim, no lugar de Milo, Antwann, e Sansousi empreguei Milot, Antoine e Sans Souci. Em alguns casos, decidi empregar a tradução portuguesa de alguns termos a fim de dar mais fluidez ao texto. Desse modo, Citadelle (ou

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Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém, como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.

Italo Calvino, “As cidades invisíveis”

Assim, finalidade e acaso, natureza e espírito, passado e presente afrouxam neste ponto a tensão entre suas oposições, ou antes, guardando, preservando essa tensão, elas conduzem, não obstante, a uma unidade da imagem externa, da atuação interna. É como se fosse necessário que primeiro um pedaço da existência ruísse, para esta se tornar tão sem resistência às correntes e forças que vêm de todas as direções da realidade. Talvez seja esta a sedução da queda, da decadência: ir além de seu mero lado negativo, de seu mero estado rebaixado. A cultura rica e multifacetada, a capacidade ilimitada de impressionar e a compreensão aberta a todos os lados, que são próprios das épocas decadentes, significam justamente o encontro de todas as aspirações contrárias.

Georg Simmel (2005, p. 142)

The history told by these traditions defies our notions of identity and contradiction. A person or thing can be two or more things simultaneously. A word can be double, two-sided, and duplicitous. In this broadening and multiplying of a word’s meaning, repeated in rituals of devotion and vengeance, we begin to see that what becomes more and more vague also becomes more distinct: it may mean this, but that too.

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Um historiador chofer de táxi (ou à guisa de introdução)

Todas essas coisas, os cômodos da casa e também as palmeiras do campo, têm suas próprias histórias...

Tayeb Salih (2004 [1966])

Imagem 1: Sem título, Jean-Baptiste Jean, 198-. Pintura representando diferentes episódios da vida e do reinado de Henry Christophe. Foto do autor, Milot (Citadelle), 2015.

“O senhor é um historiador?”, indagou a dona de um restaurante haitiano em Nova Iorque, localizado em algum ponto entre o rio Hudson e o Central Park, não muito longe do Harlem. A pergunta não se dirigia a mim, mas a Maurice Etienne. Havíamos parado naquele restaurante após uma longa noite dirigindo por Manhattan. Eu tinha à frente um prato de boulèt, uma espécie de almôndega feita de fruta-pão e carne, e Maurice comia um cabrito guisado após uma tentativa frustrada de encontrar frango com molho de castanhas de caju no cardápio, um prato típico do norte do Haiti e o seu favorito. O lugar era pequeno e carregado de objetos de decoração em

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madeira que reproduziam figuras de camponeses e pescadores. Nas paredes estavam uma bandeira haitiana e alguns quadros com cenas do cotidiano no campo e outras reproduzindo batalhas ou lugares históricos do país. O retrato de uma senhora mirando o horizonte com um cachimbo na boca e portando um lenço vermelho na cabeça era uma imagem que eu já havia visto em outros lugares. Tudo ali guardava um ar de familiaridade e me fazia lembrar das tantas casas que eu havia visitado ou morado no Haiti. O nome do restaurante – “Crik? Crak!” – remetia ao jogo de pergunta e resposta que dá início às narrações de contos em rodas de conversa comuns em todo o país.

Era novembro de 2012 e eu estava em Nova Iorque pela primeira vez em razão de uma reunião da Associação de Estudos Haitianos. Havia muito lixo pelas ruas e algumas regiões estavam sem iluminação. Eram vestígios da passagem do furacão Sandy e das inundações que o seguiram. A cidade estava se recuperando, mas por todos os lados viam-se destroços amontoados em esquinas e locais ainda alagados. Eu havia falado com Maurice alguns dias antes e ele estava bem. “Nap degaje nou, Rodrigo”, ele me disse por telefone. Todos, como ele, “estavam se virando”. Assim que cheguei à cidade, não demorei para avisá-lo. Combinamos de nos encontrar em um fast-food próximo da minha hospedagem, no cruzamento da Rua 125 com a Broadway.

Monsieur Maurice, como eu costumava chamá-lo, chegou em seu táxi amarelo, trajando um

chapéu de palha e um terno xadrez bem cortado. A barba volumosa e elegante mesclava fios pretos e cinzas, o que contribuía para o seu costumeiro ar de intelectual caribenho. Subi em seu táxi e, durante toda aquela noite, Maurice me falava sobre Nova Iorque, não escondendo o apreço pelos detalhes. Entre um cliente e outro, parávamos em pontos turísticos e passávamos por bairros cheios de movimento enquanto Maurice me explicava sobre a compra da ilha de Manhattan, sobre a queda do World Trade Center e sobre seus clientes. Por algumas horas, o antropólogo que eu era deu lugar ao “aprendiz de chofer de táxi”, como Maurice passou a me apresentar aos passageiros.

Conheci Maurice no segundo dia em que me mudei para o norte do Haiti, em finais de 2011. Como parte de minha formação de mestrado em antropologia social, meu trabalho de campo seria feito em Milot, um vilarejo que fora a capital de um reino criado alguns anos após a Revolução Haitiana. Exatamente por haver sido o centro de um reinado, ali encontram-se importantes vestígios e ruínas dessa experiência monárquica, como o Palácio Sans Souci, localizado no fim da rua principal de Milot, e a Citadelle La Ferrière, uma fortaleza no alto da colina que circunda o vilarejo. Milot hospeda, por isso, o Parque Histórico Nacional, uma área de 27 km2, que atrai turistas, autoridades e especialistas do país e de fora. Desembarquei em Cabo

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Haitiano, a capital do departamento do Norte, no dia 31 de dezembro daquele ano e cheguei até Maurice pela indicação de um manual de viagem no qual ele figurava como o melhor guia turístico de Milot e o dono de um centro cultural que fazia as vezes de restaurante e de hospedagem. Como vim a saber logo que o conheci, Maurice viajava a Nova Iorque com certa regularidade, passando ali um total de 3 a 6 meses por ano. Seu objetivo era juntar dinheiro para seguir com a construção de seu centro cultural, chamado Lakou Lakay. Ele era alguém muito respeitado no vilarejo particularmente pelo seu notável conhecimento sobre a história ou sobre o que diziam ser “coisas de tempos distantes” (bagay tan lontan). Com o tempo, eu passei a encarar Maurice como o misto de autoridade tradicional e um membro da elite haitiana, o patriarca de uma casa que era também uma instituição comunitária. O Lakou Lakay era onde Maurice organizava festas em datas comemorativas, onde ele fazia discursos aos moradores do vilarejo e por ali passavam políticos além de inúmeros estrangeiros que visitavam as ruínas históricas da região. Foi nesse centro cultural que morei durante boa parte do tempo em que vivi em Milot.

O Lakou Lakay era também, e sobretudo, a casa de Maurice. Ali viviam sua mulher, madame Innocente, suas duas filhas (que depois se mudaram para os Estados Unidos), além de sobrinhos e crianças da vizinhança. Nesse ambiente familiar, comecei a adquirir um maior domínio do crioulo, com a especial ajuda de jovens e crianças que não tinham reservas em rir do meu sotaque e me corrigir no uso de termos e estruturas gramaticais. Ali fiz também amigos, me tornei uma “pessoa da casa” (moun kay) e é para onde retorno sempre que regresso a Milot. Reencontrei Maurice em Nova Iorque seis meses depois de haver terminado meu primeiro período em campo. Naquela noite, depois de algum tempo aprendendo a como conduzir um táxi e ouvindo Maurice contar histórias sobre Nova Iorque com o mesmo fascínio com que falava sobre as histórias de Milot, paramos no restaurante haitiano. A conversa seguia e Maurice me falava sobre as grandes glórias do passado, mas também sobre os grandes infortúnios do presente. Ele me contava da Revolução Haitiana, do reinado de Henry Christophe, da ditadura de François Duvalier e da decisão de ir morar nos Estados Unidos. Maurice via a história haitiana com grande orgulho e tinha para si um certo sentimento de missão. Contudo, ele falava também que algo havia se perdido, de uma situação de miséria e ruína e da presença crescente de organizações não-governamentais no país. Foi então que a dona do restaurante se aproximou e, dirigindo-se a Maurice, perguntou: “O senhor é um historiador?”. Ao que ele respondeu sem titubear: “Sim! Um historiador chofer de táxi!”.

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Imagem 2: Maurice Etienne e o autor. Nova Iorque, novembro de 2012.

***

O cerne da discussão que proponho aqui é a história ou, mais especificamente, o modo como conhecimentos, práticas e representações tornam o passado algo significativo. Tal como o parentesco (Lévi-Strauss, 2008 [1967]), a arte (Gell, 1998), a política (Palmeira e Barreira, 2006a) e a economia (Neiburg, 2010), a história pode ser objeto de investigação antropológica exatamente pela possibilidade de ser descrita e analisada a partir de um olhar dedicado às articulações diversas entre pessoas, artefatos, conhecimentos, agências, escalas, lugares e representações. De fato, a história vem sendo sujeita a debates no campo da antropologia que questionam o seu caráter objetivo e apontam exatamente para as dimensões construtivas envoltas em disputas, arranjos e negociações (Herzfeld, 1991; Trouillot, 1995; Abu El-Haj, 2002; Palmié, 2013). Nesse sentido, este trabalho se propõe a fazer uma antropologia da história, atenta às formulações locais, tanto cosmológicas quanto práticas, que envolvem diferentes agências, materialidades, tempos e espaços.

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Se já se vão mais de trinta anos que Marshall Sahlins (1990) analisou o desembarque de Capitão Cook no Havaí, ainda o lemos como um exercício estruturalista aplicado à história – algo que Lévi-Strauss (2008 [1985]) já havia mostrado como possível ao refletir sobre as relações entre mito e política e que Manuela Carneiro da Cunha (2014 [1973]) havia articulado como lógica do mito e da ação ao tratar do messianismo entre os Canela. Contudo, o que permite a Sahlins chegar a formulações sobre a prática como elaboração histórica de esquemas culturais em uma “estrutura da conjuntura” é exatamente um interesse legítimo tanto de europeus quanto de havaianos em registrar o contato e seus efeitos (Thomas, 1999; Gow, 2001). O resultado é uma rica quantidade de materiais com os quais Sahlins construiu suas análises mais brilhantes, de Ilhas de história (Sahlins, 1990) ao extenso e detalhado Anahulu: the anthropology of history in the Kingdom of

Hawaii, escrito em coautoria com o arqueólogo Patrick Kirch (Sahlins e Kirch, 1992). Entendemos

melhor, a partir disso, que, em seu ambicioso projeto, “[o] grande desafio para uma antropologia histórica é não apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é reordenada” (Sahlins, 2008, p. 28).

No entanto, o que fazer quando nos falta essa riqueza documental ou quando, se pensarmos particularmente no Caribe, o que temos à nossa disposição é, antes, uma estrutura da conjuntura que deita raízes profundas, chegando à própria gênese dos grupos humanos que acabaram por fazer, daquelas ilhas e regiões, seus territórios e espaços de vida? Como afirmam Stephan Palmié e Francisco Scarano (2011), na introdução a uma coletânea sobre o Caribe:

Because of the long history of colonial domination, the Caribbean is rightly considered the oldest theater of overseas European expansion. The extended duration of the region’s colonial experiences and the depth of the colonial imprint on its society and culture dwarf those forged in African or Asian colonies during the age of high imperialism (ca. 1850-1914). Whereas in those latter regions, with very few exceptions, colonial arrangements lasted less than a century, in the Caribbean most societies were built from scratch at least 350 years ago (and some more than 500 years ago), all within strictures (sic) dictated by a mercantile, colonial capitalism (p. 7).

Essa extensa dominação se deu, com expressivas diferenças locais e notáveis mudanças ao longo do tempo, a partir do extermínio quase completo de populações indígenas e da subsequente montagem de um sistema de plantation centrado na escravidão de populações negras africanas e

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orientado à produção de açúcar para a exportação. Tal configuração deixou marcas nas paisagens, nas histórias e na própria gênese dos grupos sociais no Caribe. “A plantation açucareira”, resume C. L. R. James (James, 1989 [1963]) no apêndice de sua célebre história da Revolução Haitiana, “foi, a um só tempo, a influência mais civilizadora e a mais desmoralizante na história das Índias Ocidentais” (p. 392)1. O longo período da dominação colonial europeia conferiu à região um

caráter extremamente contraditório, ambíguo e decididamente não primitivo. Sidney Mintz foi quem levou ao extremo essa análise, afirmando em diversas ocasiões que a empresa colonial conferiu ao Caribe uma dimensão profundamente moderna, na qual a plantation foi responsável pela criação de um regime fabril no campo, tanto pelo aspecto propriamente industrial da produção, quanto pela organização da força de trabalho, argumento que ecoa não só os textos de C. L. R. James, mas também os de autores como Eric Williams (2012 [1945]) e Edgar T. Thompson (2013 [1932])2. “[A] tragédia e a glória do encontro [do] mundo não-ocidental com o Ocidente”, afirma

Mintz (2003), “aconteceu [no caso do Caribe] muito antes que ocorresse em outra parte, e sob condições que impediram que sua horrorosa novidade fosse reconhecida pelo que era: uma

modernidade que antecedeu o moderno” (p. 82, grifos meus)3. Essa modernidade precoce foi

exatamente o que tornou a região um local de pouco interesse para a antropologia. Menos uma

área cultural com um conjunto de tradições homogêneas do que uma região social marcada pelo

peso de uma história compartilhada: “Com uma população predominantemente não-branca”, destaca Michel-Rolph Trouillot (1992), seguindo as pistas lançadas por Mintz, o Caribe “não era

1 Como continua James (1989 [1963]): “When three centuries ago the slaves came to the West Indies, they entered

directly into the large scale agriculture of the sugar plantation, which was a modern system. (…) The Negroes, therefore, from the very start lived a life that was in its essence a modern life” (p. 392, grifos meus).

2 Se as análises de Mintz e as dos autores que o inspiraram centram-se sobretudo na “revolução do açúcar” como

motivo e tema da história caribenha (Mintz, 1985a), pesquisas historiográficas recentes têm questionado essa centralidade, sobretudo a partir de materiais do Caribe hispânico. Tendo se tornado uma zona de provisão associado às colônias açucareiras por uma divisão regional do trabalho, o Caribe espanhol “era, como também não era, parte da economia de plantation”, como mostra o historiador Juan Giusti-Cordero (2009, pp. 69-70), passando só tardiamente a se dedicar à produção de açúcar, no século XIX – e isso a partir de arranjos bastante distintos daqueles encontrados em colônias britânicas, francesas e holandesas nos séculos XVII e XVIII.

3 Reconhecida por David Scott (2004) como “sua mais distinta contribuição para o entendimento do Caribe” (p. 191),

a preocupação de Mintz em delinear e conceitualizar essa modernidade fundamental da região apontava tanto para uma inadequação do Caribe à agenda antropológica quanto para uma dimensão ideológica, relembrada por Scott ao citar um trecho do prefácio feito por Mintz à obra de Jean Besson, publicada em 2002: “For most North American anthropologists, that sense of things was probably accentuated because racism and social separation in North America had made their black fellow citizens alien without making them exotic” (citado em Scott, 2004, p. 192). Sobre a obra de Mintz, ver ainda Baca (2016), Cunha (2011), Palmié (2005) e, particularmente, a coletânea organizada por Baca, Khan e Palmié (2009).

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‘ocidental’ o suficiente para se adequar às preocupações de sociólogos. Porém, não era ‘nativo’ o suficiente para caber no nicho do selvagem (savage slot) onde antropólogos e antropólogas encontraram seus temas prediletos” (p. 20).

O Caribe e os povos sem história

Essa ambiguidade é o que confere à região um caráter indisciplinado, no duplo sentido do termo, tanto pela inadequação a uma agenda clássica de pesquisa antropológica, quanto pela possibilidade de crítica à imaginação antropológica a partir da região (Trouillot, 1992, p. 22). Exatamente pela sua complexidade, sociedades caribenhas exigiam novas perspectivas e estratégias de pesquisa que não ficassem restritas ao estudo de culturas primitivas ou a uma escala reduzida que correspondesse à unidade local e localizável, como a tribo, o vilarejo etc. De fato, o Caribe sempre foi avesso a conceitos que tentavam dar conta de sua totalidade reduzindo-a a um elemento englobante ou meta-teórico, tal como a hierarquia na Índia, e o complexo honra-vergonha no Mediterrâneo. Denominados gatekeeping concepts por Trouillot, tais “conceitos de mediação e controle” serviriam exatamente para eliciar ou subsumir um estudo detido das complexidades históricas e sociais desses diferentes contextos (pp. 21-22). Na definição do autor, esses conceitos “são traços assim chamados ‘nativos’ mitificados pela teoria como formas de enquadrar o objeto

de estudo. Eles agem como simplificadores teóricos para restaurar o presente etnográfico e proteger a atemporalidade da cultura” (p. 22, grifos meus). Isso é evidente, por exemplo, quando

o Caribe é utilizado como fonte de inspiração conceitual por disciplinas e autores que se apropriam de termos como hibridismo, crioulização e marronage (ou quilombismo), fetichizando-os e transpondo-os para um uso meramente ilustrativo e instrumental, sem contudo se aprofundar em suas histórias e nos contextos que os tornaram possíveis (Mintz, 1998; 1985, entre outros, e ver Scott, 2004, pp. 192-193, para uma discussão mais detida).

Na pena de romancistas e pensadores(as) sociais caribenhos(as), por outro lado, tais contradições foram encaradas a partir de uma perspectiva da falta – tanto de um passado estável e coerente, como de uma consciência histórica desse passado – e assumida como possibilidade interpretativa da história e do presente. Entre a dominação, a heterogeneidade e a falta de vestígios históricos, ao Caribe não restaria nada além de “uma ausência de ruínas” – uma imagem literária criada por Derek Walcott (1962) que acabou se tornando um lugar-comum, retomado por Orlando Patterson (1967) em seu romance homônimo e por muitos outros escritores e ensaístas caribenhos

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(Price, 1985; Khan, 2010; mas ver também Stoler, 2013 e Scott, 2017 [1991]). De V. S. Naipaul (1963) e a ênfase no caráter disjuntivo da travessia atlântica a Junot Díaz (2007) e a personagem Beli de seu premiado romance A fantástica vida breve de Oscar Wao, para quem, ao deixar para trás um passado de sofrimentos e perdas, “nunca mais pensou naquela vida. Deu vazão à amnésia que é tão comum a todas as Ilhas, metade negação, metade alucinação. Abraçou a força das Anti-ilhas (Untilles)”4 (pp. 258-259; para estes e outros exemplos, ver Khan, 2010, pp. 179-180).

Por isso, para seguirmos a proposta de Trouillot (1992), “[s]ociedades caribenhas são inescapavelmente históricas, no sentido de que parte do seu passado não é só conhecido, mas conhecido por ser diferente de seu presente, e, assim, relevante tanto para os observadores quanto para os nativos e suas respectivas formas de entender este presente” (p. 21). Tanto a natureza da história caribenha quanto o significado do passado para os povos do Caribe constituem, por isso, um problema epistemológico irredutível (Trouillot, 2002, p. 854).

Questões similares às que me dedico aqui foram enfrentadas por Richard Price (1983) em um outro contexto caribenho. Entre os Saamaka do Suriname, o autor notou uma “consciência profunda de que viviam na história” (p. 5)5. Tal fato dizia respeito não necessariamente a suas

habilidades narrativas, mas às práticas e às ações que conjuravam o passado e o tornavam presente: canções, tambores, genealogias, epítetos, rituais e toponímias (pp. 7-8). Todas essas formas serviam a preservar um conhecimento sobre o fesiten (“tempo primordial” ou First-Time, na tradução do autor): o tempo das guerras de libertação contra o domínio colonial holandês. Os Saamaka vivem a história, pois, nos conta Price, vivem o constante medo de um retorno à escravidão e por isso resistem à toda forma de esquecimento. O fesiten é, assim, tratado como um “evento” e, como tal, constitui a unidade de análise do autor (p. 25):

Taking fragments (often a mere phrase) from many different men, comparing them, discussing them with others, challenging them against rival accounts, and eventually

4 A tradução em português, lançada em 2015, apesar de bastante competente, deixou escapar a sutileza do termo

forjado por Díaz, optando por manter o original em inglês, “Untilles”. “Un-”, homófono de “an-”, denota oposição, contrariedade ou reversão, carregando um sentido particularmente interessante aqui e cujo prefixo “anti-” parece dar conta.

5 A exemplo do próprio autor (Price, 2013a) em seus textos mais recentes, emprego aqui a grafia contemporânea do

etnônimo (Saamaka), mantendo a variação anterior (Saramaka) nas citações. O mesmo vale para fesiten, anteriormente grafado por Price como fési-tén.

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holding them up against contemporary written evidence, I try to develop a picture of what the most knowledgeable Samarakas know, and why they know and preserve it (p. 25).

A partir dessa constatação, ao autor lhe pareceu possível cotejar os fragmentos e as elaborações que constituem a consciência histórica saamaka com registros coloniais holandeses – que eram, de fato, numerosos exatamente em razão das guerras, acordos de paz e negociações que tiveram lugar entre os Saamaka e o poder colonial – em um experimento original de escrita antropológica orientado pela busca de uma objetividade histórica. Com efeito, e Price (2013b) o deixa bastante claro na introdução à recente edição francesa do livro, os Saamaka representariam uma exceção dentro de um espaço caribenho marcado pela dominação externa (mercados, Estados e colonialismos) e pelo esquecimento – quando não pela mimeses ou pelo simulacro:

Si Les Premiers Temps est un livre consacré à la conscience historique, il est aussi consacré à des gens qui, de tous habitants du Nouveau Monde, sont les seuls à pouvoir, sans la

moindre exagération, se prévaloir d’une tradition de résistance sans relâche à l’esclavage, et à pouvoir se revendiquer comme des vrais ‘Nègres marrons’. A une époque où chacun,

dans les Caraïbes, depuis le plus humble paysan martiniquais jusqu’aux intellectuels antillais les plus éminents, voudrait se faire passer pour Nègre marron, à une époque où les hommes politiques, depuis Papa Doc jusqu’à son équivalent de Guyana, ont tous érigé des monuments à la gloire de cette figure mythologique (…), Les Premiers Temps donne l’occasion à de vrais Nègres marrons, en chair et en os et non pas imaginaires, de s’exprimer sur leur propre vie, leur passé héroïque et l’épopée des confrontations avec les colons, aussi bien que sur leurs histoires d’amour et de familles, et sur leurs grandes célébrations rituelles (p. 7, grifos meus)

Como alguns críticos apontaram, as limitações da proposta de Price estão exatamente na busca de um passado autêntico por meio de um esforço verificacionista (Scott, 2017 [1991]) e no caráter excepcional que ele confere à resistência saamaka (Khan, 2010), algo que o próprio autor reafirma mais ou menos explicitamente em trabalhos recentes (Price, 2008). De fato, representando um caso exemplar de sociedade negra no Novo Mundo, os Saamaka apresentariam uma excepcionalidade fundamental, como se as precoces fugas às florestas e às montanhas e a ruptura com a dominação colonial e particularmente com a plantation lhes conferissem a possibilidade

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quase que exclusiva de manterem tradições orais, consciência histórica e um sentido coletivo de si. De fato, a possibilidade de contar a história saamaka segundo as instâncias de legitimação historiográficas modernas teve um importante papel na própria luta política desses grupos sociais (cf. Pires, 2015). Não obstante, o que me interessa aqui é menos construir uma excepcionalidade para o caso dos camponeses norte-haitianos do que explorar as possibilidades abertas a partir de trabalhos como os de Price, assumidas aqui em sua radicalidade.

É fato que refletir sobre os significados culturais do passado e sobre a cultura em termos históricos não representa novidade alguma para a antropologia desde, pelo menos, os trabalhos de Lévi-Strauss (2010 [1962]). Sistemas de aliança, mais do que a filiação, podem servir como uma forma histórica de reprodução de identidades (Porqueres i Gené, 1995); um momento de possessão pode garantir a atualização de toda uma linhagem (Bastide, no prelo); a vingança e o canibalismo, enquanto formas de criação de nexos temporais entre passado e futuro, podem ser a matéria mesma do social (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985); e conflitos contemporâneos podem ser a herança direta de contendas espirituais que não foram resolvidas em seu devido tempo (Thomaz, 2016a). Nesse ponto, debates sobre etnografia e escrita que tiveram lugar entre as décadas de 1970 e 1980 foram particularmente importantes para formulações críticas e reflexivas sobre a noção de “presente etnográfico”, sobre a negação da coetaneidade dos nativos e sobre o “roubo da história” (Fabian, 1983; Kuper, 2005; Goody, 2007). Tudo isso nos ajuda a entender que o passado é um constructo social e, por isso, necessariamente relacional. Michel-Rolph Trouillot assim argumenta (1995),

...não existe passado independente do presente. De fato, o passado só é passado porque existe um presente, assim como só posso apontar para algo lá porque estou aqui. Mas nada está inerentemente lá ou aqui. Nesse sentido, o passado não tem conteúdo. O passado – ou, para ser mais preciso, a preteridade (pastness) – é uma posição (p. 15, grifos do autor)6.

Analisar a história a partir da etnografia deve, então, se preocupar menos em encontrar um passado autêntico – em relatos, registros, vestígios, performances ou em qualquer outro suporte – do que em entender essa dimensão relacional de conhecimentos e práticas que dão base ao

6 As traduções de Trouillot (1995) utilizadas aqui são de Sebastião Nascimento. Como a edição em português ainda

está no prelo, utilizei as referências correspondentes às páginas da versão original em inglês a fim de localizar melhor o leitor.

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desenrolar de experiências pessoais e coletivas em relação a distintos tempos e espaços. A isso podemos dar o nome de historicidade. Neil Whitehead (2003), na introdução de uma coletânea dedicada ao tema no contexto amazônico, define historicidade como “o esquema cultural e as atitudes subjetivas que tornam o passado significativo” e que produzem uma consciência histórica a partir da qual histórias específicas ganham sentido (p. xi). Assim “múltiplas histórias podem ser forjadas a partir de múltiplas historicidades” (idem). Contudo, argumenta o autor de modo convincente, com as novas aproximações entre antropologia e história, “nosso registro de histórias expandiu-se muito mais do que nossa compreensão das historicidades que as criam” (idem). A esta definição, eu adicionaria que historicidades não miram somente à produção do passado, mas tomam parte na elaboração do que Eric Hirsch e Charles Stewart (2005) chamaram de “um nexo temporal entre passado, presente e futuro” (p. 262). Tal como propostas teóricas recentes que questionam a validade de termos englobantes, como sociedade e cultura, o termo historicidade – a exemplo de outros como materialidade, socialidade e territorialidade – nos serve exatamente “para capturar a condição reflexiva e mútua própria às relações entre sujeito e objeto” (idem). Nesse sentido, a partir dessa noção, podemos entender melhor como passado e futuro ganham significados para além de um historicismo que se baseia em um marcação linear e cumulativa e que isola representações temporais enquanto entidades distintas (Trouillot, 1995, p.7).

Mesmo que nem todos os coletivos que constituem o Caribe tenham essa “consciência profunda” de que vivem na história ou não compartilhem de um passado heroico como os Saamaka, a maneira como a história lhes é assunto de elaborações cotidianas e de engajamentos rituais tem chamado a atenção de diversos pesquisadores e pesquisadoras nos últimos anos. Em rituais de santería cubana, tempos e espaços se embaralham a partir da fala e da performance de

muertos (Wirtz, 2016); trabalhadores guadalupenses “fazem a história andar” em peregrinações,

passeatas e protestos (Bonilla, 2015); o Estado cubano constrói legitimidade a partir do controle sobre eventos e personagens históricos (Gonçalves, 2017); e descentes de chineses e indianos recriam seus rituais em interação com divindades indo-asiáticas, europeias e afro-americanas (Mello, 2014; McNeal, 2015; Tsang, 2017).

A historicidade e os significados do passado no Caribe constituem, de fato, matéria de inúmeras disputas materiais e simbólicas. Em uma localidade como Milot, forças e agências distintas – como autoridades locais, espíritos, jovens, camponeses, elites letradas e o Estado – podem produzir sentidos sobre o passado e agir no tempo e no espaço de maneiras muitas vezes

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distintas, ocasionando não só conflitos, mas também novas e variadas possibilidades dialógicas e associativas. Como todo trabalho de campo, o que descrevo resulta das relações que estabeleci com pessoas de quem me tornei próximo. Nesse ponto, a saída que encontrei para dar conta desse problema foi, sempre que possível, descrever meus interlocutores com informações que julgo relevantes, atento ao fato de que Milot não é, de modo algum, um local homogêneo e fechado em si.

Voltemos à figura de Maurice Etienne a fim de ilustrar melhor essa questão. Maurice era reconhecido por muitos habitantes de Milot como um historiador popular (e também por outros públicos, afinal, ele figurava como tal em diversos manuais internacionais de viagem)7. Todavia,

a história era um tópico da vida diária que não pertencia somente a pessoas que, como Maurice, possuíam meios, recursos econômicos e transitavam internacionalmente. Em mesas de bares, nas ruas, em povoados rurais, nas roças e nos espaços domésticos, falava-se frequentemente de temas históricos os mais variados, como a expulsão dos franceses durante a Revolução Haitiana, o reinado de Christophe, o complô contra o primeiro dirigente da nação independente etc. A isso somava-se ainda uma profusão de datas comemorativas oficiais, programas de rádio, materiais didáticos, nomes de estabelecimentos comerciais, entre outros fatores que revelavam a centralidade da história e de ancestrais nesse universo afro-americano. Além disso, Milot possui um conjunto de ruínas cuja materialidade acentua essa presença do passado no cotidiano. Entretanto, há uma dimensão não só política, mas também cosmológica da história que parece ir além dessa particularidade local e que traz à tona símbolos e representações comuns, além de agências ancestrais e espirituais8.

Meu objetivo aqui é encarar essas formulações nativas e o valor cosmológico da história neste contexto. Com efeito, durante meu campo, era notável que o tema da história não envolvia o reconhecimento de que vestígios e versões sobre o passado estavam necessariamente circunscritos a um tempo distante, mas sim de que eram parte de um sistema (sistèm). Sistema, aqui, é algo que distingue o funcionamento ou o modo como coisas se organizam. Como elaborou certa vez um

7 Entre os guias e manuais turísticos sobre o Haiti que consultei e que falam de Maurice, há o Lonely Planet, edição

compartilhada com a República Dominica, o britânico Bradt e o francês Petit Futé.

8 Tal dimensão foi identificada por autores e autoras trabalhando no Haiti seja de maneira direta, como o historiador

David Nicholls (1985) que fala de um “interesse quase mórbido que os haitianos nutrem pelo seu passado” (p. 35), ou de maneira indireta ao incluírem ou iniciarem seus textos, livros e apresentações com algumas notas sobre a Revolução Haitiana mesmo se dedicando aos temas os mais diversos.

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jovem morador de Milot, “sistema, nesse sentido, é algo que é diferente”9. Nesse ponto, a magia

forma um sistema (sistèm maji), a comida um outro (sistèm manje), os ancestrais um terceiro (sistèm zansèt), assim por diante. Todos esses sistemas são englobados pelo sistema haitiano (sistèm ayisyen) que, por si só, se diferencia do sistema estrangeiro (sistèm blan). Abre-se, com isso, a possibilidade de pensarmos a história a partir dessa categoria nativa, o que nos coloca algumas questões interessantes.

A primeira é a de que a história é a base de uma lógica que orienta a experiência e se refaz através dela, sendo composta por formulações, agenciamentos, apropriações e circulações diversas. Nesse ponto, sistema se aproxima da noção de tradição definida por David Scott (2017 [1991]) como “um campo diversificado de discurso cuja unidade, tal como existe, reside não em traços antropologicamente validados, e sim em sua construção em torno de um distinto grupo de tropos ou figuras que, juntas, efetuam tarefas retóricas bastante específicas” (p. 301)10. A segunda

questão é consequência da primeira, pois, história aqui pode adquirir valores e significados distintos do que usualmente se entende por história nas formulações que dão base às práticas da disciplina historiográfica ocidental e ao seu historicismo. Um sistema revela possibilidades de cruzamentos entre tempos e espaços, como num cronótopo bakhtiniano (Bakhtin, 1981), e que dão abertura à agência de seres não-humanos na constituição da experiência histórica (Palmié, 2014). Tais pressupostos colocam qualquer trabalho histórico ou etnográfico em relação direta com uma lógica local de compreensão do tempo, do espaço e das forças e agências sociais. Com isso, textos de historiadores profissionais podem ser lidos a partir de narrativas de historiadores populares, de elaborações e de argumentos de interlocutores comuns ou subalternos, adquirindo um outro estatuto epistemológico, algo que abre a possibilidade desta tese ser lida enquanto uma transformação dos engajamentos e narrativas locais, numa relação horizontal com sistemas, agências e conhecimentos.

Duas grandes inspirações para esta empreitada são, de um lado, os trabalhos de Michel-Rolph Trouillot (Trouillot, 1995), e, de outro, os de Joan Dayan (Dayan, 1995). Trouillot discute, em seu livro Silencing the past: power and the production of history, que o uso vernáculo da

9 Sistèm se yon bagay ki diferan.

10 Entre as tarefas da tradição, Scott (2017) destaca três principais: i) “assegurar conexões entre um passado, um

presente e um futuro” estabelecendo posições em um campo cultural e político (p. 301-2); ii) “assegurar (...) uma comunidade distintiva de adeptos”, tornando a tradição não só inteligível, mas legítima (p. 302) e iii) “conectar narrativas do passado às narrativas de identidade”, instruindo e cultivando virtudes que a tradição valoriza (idem).

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palavra história em diversas línguas modernas carrega uma ambiguidade fundamental: história alude tanto a um fato ou processo que ocorreu no passado quanto ao que se diz ter ocorrido. “O primeiro significado”, destaca o autor, “enfatiza o processo sócio-histórico; o segundo, o nosso

conhecimento desse processo ou uma estória sobre esse processo” (p. 2, grifos meus). Criticando

tanto posturas positivistas quanto construtivistas, Trouillot argumenta que a sobreposição entre processo, o que ele chama de historicidade 1, e narrativa, historicidade 2, deve ser assumida tanto em sua distinção quanto em sua ambiguidade: todos os sujeitos podem ser, ao mesmo tempo, atores e narradores. Ademais, toda a narrativa histórica ocorre dentro de um conjunto de convenções, de grande variabilidade no espaço e no tempo, mas que conferem um certo limite à criatividade e garantem credibilidade à história, o que Appadurai (1981) chamou de “debatibilidade do passado” e que Scott (2017 [1991]) reconhece como uma das tarefas da tradição ao tornar algo não só inteligível, mas legítimo (p. 302). Ademais, como nota Trouillot (1995), há uma “materialidade do processo histórico” que “define o cenário para futuras narrativas históricas” (p. 29). “O que aconteceu”, continua o autor,

deixa indícios, alguns dos quais são bastante concretos – edifícios, cadáveres, censos, monumentos, diários, fronteiras políticas – que limitam o alcance e o significado de qualquer narrativa histórica. Esta é uma das muitas razões por que nem toda ficção se pode passar por história (idem).

Não me parece sem razão que, ao abordar estes temas, Trouillot tenha pautado parte importante de sua análise em um debate sobre a fundação do Palácio Sans Souci, em Milot. No entanto, se por um lado, Trouillot lança as bases para uma antropologia que analisa como forças e relações de poder distintas incidem na produção da história, por outro, é Joan Dayan (1995), em

Haiti, History, and the Gods, quem discute as possibilidades de uma escrita da história que inclua

registros pouco convencionais como histórias de família, canções do vodu e a própria agência dos espíritos – registros estes que compõem uma tradição. Como pondera a autora:

The history told by these traditions defies our notions of identity and contradiction. A person or thing can be two or more things simultaneously. A word can be double, two-sided, and duplicitous. In this broadening and multiplying of a word’s meaning, repeated

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in rituals of devotion and vengeance, we begin to see that what becomes more and more vague also becomes more distinct: it may mean this, but that too (p. 33, grifos no original).

Nesse sentido, se a materialidade é algo irredutível, é preciso olhar também para outras presenças, talvez menos tangíveis e muitas vezes contraditórias, mas que exercem também ativamente o trabalho de produzir conhecimentos e significados relacionados ao tempo, ora aproximando ora distanciando passado, presente e futuro.

O lugar da história

“Sabe, Rodrigo, se eu tivesse asas, voaria pra longe de Milot”11, me disse Jorab enquanto

conversávamos na varanda do Lakou Lakay. Jorab era um jovem estudante que vivia e trabalhava no centro cultural. Não levou muito tempo para que nos tornássemos amigos próximos e, posteriormente, quando Jorab teve sua primeira filha, compadres (konpè). Jorab me acompanhava em caminhadas pelos vales, colinas, planícies e povoados rurais que formam a comuna de Milot.

11 Ou konnen, Rodrigo, si m te gen zèl, m tap vole lwen Milo.

Imagem 4: Mapa da região de Milot. Elaborado a partir do QuantumGIS.

Imagem 3: Milot. Ilustração elaborada a partir de imagem do Open Street Map.

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Este movimento constante talvez tenha sido a principal característica da minha etnografia que foi, aos poucos, adquirindo uma forma predominantemente peripatética. Nesses trajetos, não era raro cruzarmos com alguma ruína do “tempo dos franceses” ou alguma árvore que servia de morada para um espírito. Esses deslocamentos também abriam a possibilidade de encontros fortuitos que, não raro, se transformavam em conversas ou em convites para uma visita. Durante as caminhadas, era comum encontrar pessoas que iam de um povoado a outro visitar seus familiares, que desciam para um roçado, que iam trabalhar no terreno de um vizinho, que se deslocavam para o mercado ou que estavam simplesmente flanando (flane). Muitas vinham acompanhadas de animais, objetos, carregavam na cabeça e nos braços sacolas com produtos de suas roças. Estar em movimento e fazer as coisas circularem são, com efeito, elementos cruciais do cotidiano e revelam o valor notável da liberdade e da autonomia12. Ao mesmo tempo, mover-se e circular são também uma

exigência das relações de parentesco e de troca que constituem a vida cotidiana local – da qual eu passei inevitavelmente a fazer parte.

Ver coisas, animais, comida, pessoas e os mais diferentes elementos circulando entre casas é um indício da proximidade e do parentesco entre pessoas. De fato, em Milot, “todos são parentes”, conforme uma elaboração que ouvi com frequência em campo13. Na divisão

administrativa oficial, Milot é uma comuna (komin) composta por três sessões rurais (seksyon

riral) dividas em um núcleo urbano ou burgo (bouk) e outros pequenos povoados conhecidos

popularmente como abitasyon. Dados estatísticos de 2016 elaborados pelo Instituto Haitiano de Estatística e de Informação (IHSI) calculam um total de 31.992 pessoas vivendo na comuna, sendo que 8.619 moram no vilarejo de Milot (27%) e o restante (23.273 ou 73%) nas abitasyon14. A

origem do termo abitasyon, que traduzo ao longo da tese como povoado rural, é associada às concessões territoriais do tempo colonial que recebiam o nome de habitation, termo francês análogo à plantation. Estas unidades produtivas empregavam majoritariamente o trabalho de africanos escravizados e as terras eram destinadas às diferentes culturas, particularmente ao açúcar,

12 Tal dimensão da vida e do cotidiano entre grupos sociais afro-americanos foi tema de reflexão privilegiado de Huon

Wardle (2000), que trabalhou em Kingston, na Jamaica e, mais recentemente, de uma obra coletiva assinada por Wardle e Silva (2016).

13 Isi a, tout moun se fanmi.

14 “Haiti Estimations Population Total - IHSI”, Haïti/ Open Data, publicado em 10 de junho de 2016, disponível em:

Referências

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