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A SÍNTESE CARNAVALESCA

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Academic year: 2021

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Revista de Humanidades e Letras ISSN: 2359-2354 Vol. 2 | Nº. 1 | Ano 2015

Ronie A. Teles da Silveira UFSB

A SÍNTESE CARNAVALESCA

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RESUMO

Inicialmente, apresento a noção de que existem vários tipos de síntese: relações diferentes entre elementos e resultados. Na sequência, caracterizo o sentido da síntese moderna como contraponto histórico útil à compreensão da síntese carnavalesca. Finalmente destaco o sentido da síntese carnavalesca e o que ela implica para uma melhor compreensão do Brasil.

Palavras-Chave: Brasil; Carnaval; Síntese Carnavalesca; Modernidade; Democracia

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ABSTRACT

Initially I introduce the notion that there are several types of syn-thesis: different relationships between elements and results. Fol-lowing, I characterize the sense of modern synthesis as useful his-torical counterpoint to the understanding of carnival synthesis. Finally I highlight the sense of carnival synthesis and what it en-tails to a better understanding of Brazil.

Keywords : Brazil; Carnival; Carnival Synthesis; Modernity;

Democracy

Site/Contato

www.capoeirahumanidadeseletras.com.br capoeira.revista@gmail.com

Editores

Marcos Carvalho Lopes marcosclopes@unilab.edu.br Pedro Acosta-Leyva leyva@unilab.edu.br

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A SÍNTESE CARNAVALESCA

Ronie Alexsandro Teles da Silveira

1. Introdução

Utilizarei nesse artigo o termo síntese de uma maneira bastante imprecisa. Mas a imprecisão não é, nesse caso, mera falta de cuidado conceitual desse autor. Ela é um resultado do conteúdo que trato. Como o leitor poderá observar na sequência, o carnaval brasileiro atual consiste em uma síntese muito específica de elementos. Essa especificidade terminará por se mostrar um tanto quanto diferente da compreensão habitual que nós, em geral, possuímos sobre o significado do termo síntese.

Uma síntese é habitualmente entendida como a unificação de elementos diferentes. Assim, tanto podemos entender que 2 é a síntese de 1 + 1, como podemos afirmar que a Independência do Brasil constitui-se como uma síntese histórica de elementos políticos e sociais que a precederam – ligados à vinda da Família Real de Bragança para o Brasil. Certamente ao reconhecer esses dois usos do termo síntese, não podemos pretender que eles estejam significando a mesma coisa.

Mesmo quando analisamos o esqueleto lógico dessas duas operações, não parece que elas querem dizer a mesma coisa. A menos, é claro, que compreendamos os fenômenos sociais e políticos como obedecendo à mesma estrutura lógica do pensamento matemático. Não parece razoável adotar essa última perspectiva. Com efeito, não creio que há uma matemática universal que explicaria tudo o que existe. Se fosse assim, seríamos capazes de prever o futuro de eventos políticos em função de um bom conhecimento das circunstâncias presentes. Assumo aqui, ao contrário, que essas duas situações dizem respeito a duas operações diversas de síntese. Há, pelo

menos, sínteses matemáticas e sínteses práticas – sociais, políticas, éticas etc.

Observe que os respectivos elementos constituintes não desempenham uma mesma função nessas duas formas de síntese. Na síntese matemática, eles são compostos de maneira integral em uma unidade por meio de uma justaposição e podem mesmo ser identificados nela. Assim, podemos decompor a unidade resultante, por meio de uma análise, e reencontrar os elementos básicos originários. Assim, se 1+1=2, então 2–1=1. Pela mesma operação, verificamos que um suco de laranja será, após uma análise, decomposto em água, caldo de laranja e açúcar – caso você o prefira adoçado. Na síntese histórica o que predomina é a irreversibilidade do resultado – que não preserva a integralidade dos seus elementos ao mesmo tempo em que se produz, nessa operação, uma mudança semântica. Nesse último caso, uma análise certamente não

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possibilita reencontrar os materiais originais de onde partimos, justamente em função das alterações operadas nos seus respectivos significados que foram sintetizados.

A Independência do Brasil não pode ser decomposta em elementos originais, de tal forma que o processo seja revertido diante de nossos olhos. Esse evento não obedece a leis estritas, de tal forma que diante de circunstâncias semelhantes poderíamos afirmar que se produzirão resultados semelhantes. Ele certamente pode ser compreendido, mas a explicação possível aqui é diversa do padrão lógico da compreensão química e matemática da síntese reversível.

Observe que a multiplicidade de significações da síntese termina sugerindo vários procedimentos distintos de explicação ou de compreensão dos fenômenos. Um tipo particular de síntese levará a um processo específico de explicação ou de compreensão do que foi sintetizado. Outro tipo de síntese conduzirá a uma forma alternativa de compreender o mesmo fenômeno – ou, se for o caso, a reconhecer que se trata de fenômenos diversos.

Como meu objetivo aqui não é o de promover uma descrição exaustiva dos tipos de síntese e sua relação com as respectivas modalidades de explicação, não aborrecerei o leitor com minúcias desnecessárias. Interessa-me aqui ressaltar apenas que há várias formas de síntese e que cada uma delas envolve relações distintas entre seus elementos e seu respectivo resultado. Tais relações entre elementos e resultado podem ser tão diferentes de nossa compreensão habitual das operações de síntese que talvez seja difícil reconhecer nelas aquilo que entendemos, habitualmente, como função elemento e como função resultado. Daqui se percebe como essa variabilidade de relações entre elementos e resultados termina tornando difuso o próprio conceito de síntese.

Acredito que é em uma relação peculiar de síntese que reside a especificidade do carnaval brasileiro. A noção de que há um processo de síntese envolvida na evolução das formas carnavalescas não é minha. Ao comentar o ganho histórico de prestígio das Escolas de Samba, Costa (1987, p. 244) afirma que

Pouco a pouco elas foram incorporando os elementos básicos daqueles agrupamentos [ranchos e sociedades] e moldando uma forma nova de desfile. Tudo faz crer que as escolas de samba sejam a síntese das manifestações populares coreográficas brasileiras. (grifo meu).

No mesmo sentido, porém agora com relação àquele momento particular da concentração que precede o início do desfile na passarela, Cavalcanti afirma que “ali a escola de samba se transforma num ser, ela é uma unidade, uma coisa integrada” (1995, p. 62) (grifos meus).

Interessa-me saber aqui qual a especificidade da síntese que foi forjada pelo carnaval brasileiro. Antes de tratar disso, esclareço o que vem a ser a síntese padrão do mundo moderno. Isso porque uma caracterização adequada da síntese carnavalesca requer, para efeitos de clareza, um elemento que nos sirva como base de comparação. Para isso, utilizarei a síntese moderna na

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medida em que essa se apresenta como uma forma cultural que se tornou historicamente hegemônica no ocidente contemporâneo e com a qual estamos habituados.

2. A Síntese Moderna

Considero que a síntese moderna ou democrática se caracteriza pela subordinação dos seus elementos constituintes. Em qualquer ordenamento tipicamente moderno, um sujeito precisa reconhecer a validade superior das regras para que elas adquiram vigência plena. Isso porque é o respeito constante a um conjunto de normas existentes que caracteriza qualquer jogo democrático. Esse ordenamento requer, como um gesto inaugural, uma reverência por parte do sujeito com respeito a valores que, então, passam a ser considerados por ele como superiores e dignos de respeito. Toda estrutura democrática implica um elemento moral de respeito a algo superior.

Dessa maneira, todo ordenamento democrático só se mostra eficaz se inaugura uma dimensão ética de profundidade. A profundidade advém justamente das distinções hierárquicas que o ordenamento moderno exige, na medida em que postula uma reverência especial com relação a alguns valores – e envolve, portanto, a inferiorização de outros.

É a profundidade que define as dimensões do dispositivo democrático e estabelece que tipo de valor deve receber um respeito especial por parte dos sujeitos. Sem essa diferenciação entre níveis de valor, não haveria espaço moral - por assim dizer - para que o sujeito efetivasse sua própria subordinação diante das regras do jogo ético e político. A reverência só pode se afirmar no âmbito prático quando o sujeito não estiver em guerra contra a superioridade dos valores ou não suspeitar da validade deles. Para a plena deposição das armas utilizadas numa disputa, para a pacificação e a conquista do interesse individual e para a eliminação da suspeita generalizada entre todos, cada indivíduo deve reconhecer a superioridade do mesmo conjunto de regras. Essa é a essência do que denomino de dispositivo moderno ou democrático. Como esse dispositivo requer a instalação de uma hierarquia, ele cria a profundidade ética que permite distribuir os valores em instâncias diferentes e passa a orientar as ações dos indivíduos que a eles se subordinaram.

Observe que não trato do dispositivo democrático como uma dimensão política apenas, mas também como uma dimensão ética. Assim, ele deve ser entendido como sendo mais amplo do que o arranjo político de uma sociedade ao envolver também uma dimensão existencial - que é essencial em um modo de vida democrático. Essa dimensão existencial significa que a subordinação não se opera somente no plano da regra objetiva: por exemplo, quando um indivíduo entende e reconhece a legitimidade do processo eleitoral que seleciona os seus

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representantes. Ela também implica na subordinação interior do sujeito e deve produzir o surgimento de uma reverência psicológica diante de valores que se tornaram sagrados nesse contexto.

Essa subordinação existencial ocorre justamente quando o sujeito reconhece, na esfera ética, um valor como dotado de superioridade. A flexão realizada aqui envolve dois movimentos em um único: uma ruptura da integridade do indivíduo e um impulso para superá-la. A ruptura da integridade individual se estabelece quando o indivíduo reconhece, em função da hierarquia de valores que adotou, que ele mesmo não é como deveria ser. Isto é, quando ele projeta um devir ético para si mesmo que é substancialmente distinto de sua própria constituição atual.

Esse sentimento de carência ou de incompletude só se estabelece plenamente por meio da projeção de um complemento ou de um processo de aquisição de um estado ético do qual se está inicialmente desprovido. Essa ruptura interior, entre o que se é e o que se deve ser, rebaixa o homem que existe concretamente e, simultaneamente, energiza as suas possibilidades futuras. São essas últimas que permitirão ao homem tornar-se diferente do que ele é. Observe que é essa ruptura interior que dará origem a uma dedicação intensa a todo processo de transformação ética do indivíduo. Sem ela, o homem não distinguiria um estado futuro desejável para si mesmo e não teria uma finalidade específica em direção à qual se mover. Não é por outro motivo que todo herói clássico possui um norte ético bem definido e, consequentemente, uma vontade inabalável. O herói é fundamentalmente um homem orientado por um futuro translúcido, mesmo dentro das piores tempestades éticas.

Assim, a dimensão existencial do dispositivo democrático envolve a inauguração da profundidade interior na qual o sujeito passa a lidar com a insatisfação com relação à sua condição atual e, por isso, também com o projeto de um homem superior. Não há qualquer separação empírica entre o momento da crítica e da repressão desencadeada sobre si e o início de uma história de aprimoramento da personalidade do sujeito. Essa interioridade só se tornou relevante na cultura ocidental porque o drama do aperfeiçoamento pessoal requer um palco para se efetivar. E esse drama é interior porque ele consiste na necessidade de ajuste entre o que o sujeito é e o que ele pretende ser, entre o homem inferior dado e o homem superior prometido a si mesmo. Como se tornará claro adiante, essa insatisfação consigo mesmo provocada pelo dispositivo moderno é uma forma de “anticarnavalismo” (MERQUIOR, 1972, p. 236).

Observe que um sujeito é um indivíduo insatisfeito consigo mesmo e que, justamente por isso, deve realizar um esforço de se tornar melhor do que é. A dimensão subjetiva é essencialmente o espaço interior disponível para que se tente operacionalizar as mudanças desejáveis. Um indivíduo, ao contrário, designa o homem sem fraturas interiores e plenamente

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adequado a si mesmo. Nele não se reconhecem fraturas, pois ele já é o que deve ser. O indivíduo é, portanto, um ser que se encontra em estado de perfeição absoluta (SILVEIRA, 2015).

A subjetividade é a dimensão que permite ao homem tornar-se outro e iniciar um projeto que deve levá-lo a uma condição ética superior. Isso não significa, obviamente, que o processo de aprimoramento ocorre somente no que se entende por âmbito subjetivo. Na verdade, a subordinação contida no dispositivo democrático envolve uma compulsão pelo disciplinamento integral do sujeito (WEBER, 2010), incluindo o mundo prático que o cerca.

Essa compulsão significa que o sujeito busca fazer-se diferente do que é. Isto é, que a melhoria que ele tenta impor a si mesmo, em função de haver reconhecido um desejável estado ético superior, deve ser desencadeada em todas as dimensões da sua vida. O esforço por atingir a melhoria não pode ser intermitente e falhar em circunstâncias específicas. É por isso que no ocidente democrático uma vontade vigorosa e rígida se transformou em virtude de primeira ordem. Aquela compulsão exige do sujeito uma atenção e uma pressão exercidas com constância sobre si mesmo, de tal forma que ele possa refazer-se na íntegra, sem nenhum tipo de concessão ao seu antigo eu natural. Por isso, os processos subjetivos de aprimoramento e de disciplinamento da personalidade são compulsivos: eles requerem energia constante para a subordinação de cada um dos aspectos da vida aos valores superiores. Esses aspectos dizem respeito tanto à produção de uma vontade eticamente superior quanto de uma ação consciente e regulada pela necessidade de posse e controle sobre si mesmo.

Assim, passamos a reconhecer na modernidade ocidental democrática que um sujeito ético é aquele que age segundo a determinação voluntária de sua vontade. Um sujeito democrático é um indivíduo que busca fazer-se à feição dos valores reconhecidamente superiores e inicialmente distintos de sua própria condição. Daí que uma vida democrática é uma vida de autovigilância permanente, em que cada aspecto natural da personalidade se subordina gradualmente a um valor superior.

Não entendo que essa naturalidade individual a ser colonizada pelo projeto, se refira a componentes eternos ou algo que seja semelhante a uma natureza humana fixa. Ela apenas indica aqui qualquer estado original de onde o sujeito se lança para o aprimoramento de sua personalidade. Seja qual for o conteúdo desse estado natural, o relevante é que ele deve ceder lugar a um estado mediado pelo projeto de aperfeiçoamento ético do sujeito, isto é, do homem democrático. Este último é um homem que tende a se colonizar, se apoderar inteiramente do ser que é com a finalidade de conduzi-lo a uma condição ética superior.

Dessa maneira, podemos constatar que o estilo de vida ocidental democrático solicita a elaboração de uma síntese cujos elementos constituintes são o estado natural do sujeito e os

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valores superiores que ele adota. Embora esse processo nunca possa ser plenamente reconhecido como encerrado, uma de suas características é a operação contínua de uma força unidirecional sobre o sujeito, solicitando a produção de uma síntese futura. Essa síntese conduz o sujeito a um estado de disciplinamento gradativo dos diversos aspectos da vida. A tendência é que se estabeleça uma crescente coesão entre o sujeito e os valores superiores que ele elegeu. Essa coesão implica, portanto, em uma crescente uniformidade na mesma proporção em que o sujeito for se apoderando de si mesmo e fazendo valer sua vontade.

3. Uma ilusão racional

A subordinação implicada na adoção de um modo de vida democrático possui certa sutileza. Isso porque ela deve evitar que a instauração do reino interior da subjetividade implique em assumir claramente uma postura de minoridade diante de valores mais elevados. Ou seja, ela deve evitar adotar a crença de que esse movimento é originário da assunção da inferioridade humana e do reconhecimento de sua miséria ontológica. E mesmo quando essa inferioridade é assumida, será o próprio dispositivo de subordinação da subjetividade que tentará reconstituir algum tipo de dignidade. Na modernidade, a salvação da dignidade humana se tornou possível lançando mão da noção de autonomia (SCHNEEWIND, 2005).

Essa última é a cúpula do edifício da vida democrática ou sua síntese mais elevada. Ela afirma que os valores superiores, que funcionaram como reguladores e moldadores da subjetividade, foram objetos de uma escolha livre do homem. Dessa forma, não haveria, propriamente falando, nenhum gesto de subordinação e, portanto, nenhum traço de uma sujeição que viria a rebaixar a dignidade humana. A autonomia consiste em afirmar que a subordinação a valores superiores e o reconhecimento de sua própria condição de vida inferior é feita livremente. Ela se torna possível por meio do convencimento individual e não constrangido de que se está dotado de características éticas originais indesejáveis, mas que se pode proceder a uma reformulação dessa personalidade originalmente inferior. Qualquer semelhança teológica com a figura do pecado original não é mera coincidência.

A noção de que esse processo se realiza livremente exige a valorização dos processos racionais de convencimento. Se o indivíduo não é forçosamente constrangido a admitir sua imperfeição, isso ocorre porque ele deve reconhecê-la como um fato. E para que isso ocorra, ele deve ser conduzido a tal tipo de evidência por meio de um procedimento que seria objetivo e que revelaria as coisas tais como elas são. Ou seja, a verdade com respeito à sua própria minoridade deve ser posta por algum tipo de demonstração racional. Por meio desse recurso, essa evidência perderia o aspecto de uma subordinação do indivíduo a valores superiores.

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Chamo a atenção aqui para a conexão íntima entre o rebaixamento do valor do indivíduo, contido no dispositivo democrático, e a valorização dos mecanismos racionais de demonstração – que tornam a operação toda aceitável. Para evitar fazer parecer que a subordinação e, portanto, o rebaixamento geral da dignidade humana, é uma consequência esperada do modo de vida democrático, se apela para os processos racionais. A racionalização permite que a subordinação e a consequente perda de dignidade sejam convertidas em virtudes de um indivíduo que passaria, nesse novo contexto, a assumir corajosamente suas próprias deficiências. Isso é possível porque é a racionalização que garante o caráter supostamente livre desse gesto e elimina sua aparência de subordinação forçada. O ato de reconhecer racionalmente minhas deficiências passa a fazer parte de um processo de reconstrução autônoma de minha personalidade. Logo, isso dá à subordinação uma aparência de dignidade.

Assim, embora o resultado seja o rebaixamento e o reconhecimento da própria imperfeição ética, o processo se opera como uma elevação produzida pela razão, pela tomada de consciência daquilo que efetivamente constitui a condição do homem. Isso garantiria que a subordinação seja conduzida pelo próprio indivíduo, de tal forma que ela aparece como subordinação a si mesmo, como algo que se operou integralmente pelo sujeito livre e consciente. Podemos observar, então, que é a adoção dos processos racionais de convencimento que transforma a adoção da minoridade democrática em um gesto de tomada de poder sobre si mesmo. Esse é o processo que transforma a água em vinho e o homem inferior e subordinado em um ser superior e autônomo, logo digno.

Há uma conexão estreita aqui entre a liberdade e a razão que não pode passar despercebida nesse contexto. Eu diria que há uma tentativa de tornar um processo de subordinação e de controle do homem palatável em função da forma racional que ele adquire. Assim, já que a imperfeição do homem é um resultado racionalmente válido, parece que devemos aceitá-lo de maneira necessária. Sendo convencido disso pela força da evidência racional, o processo que gera a subordinação é conduzido de maneira autônoma, logo livre. Dessa maneira, cria-se a ilusão racional de que se preserva a dignidade humana, de que não se é simplesmente forçado a adotar uma condição existencial de minoridade e indignidade. Assume-se a minoridade porque há provas racionais que indicam que Assume-se é menor – e nisso consiste toda a maioridade produzida pela razão: na coragem de se reconhecer como um ser menor, na coragem de se saber indigno!

Observe que a racionalidade desempenha aqui o papel de salvadora das aparências, na medida em que ela permite criar a ilusão de que o homem democrático não se subordina justamente enquanto se subordina. É ela que permite a sensação de que não se é inferior quando

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se produz a inferiorização - porque essa última é gerada por meio da razão. Por meio dessa prestidigitação, se oculta que inferiorizar-se por meio da razão não é substancialmente diferente de inferiorizar-se por qualquer outro motivo.

A única diferença é que os processos racionais possuem a aparência de serem naturais em um sentido metafísico. Isto é, de que eles são, afinal, a única coisa sólida e objetiva nesse mundo – de tal forma que somente eles podem gerar resultados reconhecidamente válidos. Sendo assim, são eles que poderão fornecer apoio para qualquer postura que diminua o homem diante de si mesmo sem parecer que isso ocorre.

A autonomia é um truque ocidental sutil, baseado na racionalização da vida, que permite compreender a redução humana a uma condição ética inferior, como se isso redundasse em um gesto de ampliação da sua dignidade. A síntese democrática é uma prestidigitação de valores que sugere a possibilidade de se considerar a indignidade humana como uma característica de engrandecimento moral, porque seria feita sob a regência de procedimentos racionais. A autonomia e a razão são balões de ar que se enchem mutuamente a si mesmos dentro de uma atmosfera geral de inferiorização do homem.

4. A Síntese Carnavalesca

O carnaval brasileiro atual produziu uma síntese sem traços dessa subordinação moderna. Essa síntese é substancialmente diferente do arranjo democrático que implica na aceitação de um conjunto de regras e na inferiorização inicial do homem. Vimos que a obtenção gradativa de domínio sobre vários aspectos da vida por parte dos valores superiores constitui o processo de modernização. Nesse sentido, a síntese carnavalesca não é moderna, pelo menos não no sentido expresso acima. Vejamos, com mais cuidado, como ela se apresenta.

O desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro é expressão mais acabada dessa modalidade de síntese. Um de suas características mais evidentes diz respeito à própria natureza do desfile. Ele se configura como uma disputa e, simultaneamente, como uma festa. Assim, os objetivos de ganhar e de brincar encontram-se fundidos no desfile. Além desses dois, há certamente o objetivo de mostrar um espetáculo, de se tratar de um evento voltado a um público que o assiste (CAVALCANTI, 1995). Então, temos em um único acontecimento a conexão de três tipos de objetivos: um agonístico (a disputa entre as escolas), um performático (a diversão imediata de quem brinca) e um teatral (o espetáculo que é assistido).

A questão de identificarmos o ponto de vista determinante aqui é central. Quando nos perguntamos o que ocorre em um desfile competitivo entre escolas de samba, temos que levar em

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consideração que ele é organizado para que uma escola vença as adversárias, que as pessoas que participam se divirtam e que se gere prazer para quem assiste. Nenhuma boa resposta pode desprezar um desses elementos. Se quisermos obter um apanhado geral do significado do carnaval brasileiro, temos que nos dispor a compreender um evento multifacetado ou “polissêmico” (DA MATTA, 1978, p. 46) que não admite explicações singelas. O Brasil não é mesmo para principiantes. Por si só, a adequação a critérios de julgamento predeterminados não expressa a totalidade do carnaval, nem a alegria de quem pula, nem o prazer de quem assiste. O ponto de vista geral que define o carnaval deve compreender esses três elementos, sem subordinar um deles aos demais.

Alguém pode suspeitar que exagero aqui e desequilibro a equação com intenções não confessas. Por exemplo, pode ser que eu esteja minimizando os elementos competitivos do carnaval e que seria, de fato, a disputa que viria em primeiro lugar. Se fosse assim, o carnaval já teria se modernizado naquele sentido convencional da vida moderna. Isto é, seus demais elementos (o performático e o teatral) já teriam sido devidamente subordinados a papeis secundários, com uma disputa sob regras objetivas exige. Entretanto, isso não aconteceu no carnaval brasileiro.

Grandes sociólogos têm interpretado nesta perspectiva as manifestações carnavalescas, e acreditaram que industrialização e urbanização lhes daria um golpe mortal. Se fosse verdade, o Carnaval no Brasil teria sido profundamente abalado e começaria a desaparecer sob o impacto destes dois processos, que se iniciaram timidamente em fins do século XIX, se intensificaram durante a Primeira Guerra Mundial, desencadearam-se com toda a força depois da Segunda, subvertendo gêneros de vida e mentalidades (QUEIROZ, 1992, p. 68).

No meu entendimento, se o carnaval brasileiro não desapareceu diante desses eventos modernizadores é porque possui uma capacidade original de conviver com esses valores que seriam ameaçadoras em circunstâncias diversas das nossas. A modernização pode explicar porque o carnaval praticamente desapareceu em outros ambientes. Por isso mesmo, a situação brasileira merece atenção. Ela tem resistido à plena modernização que, se fosse totalmente efetiva, já teria subjulgado inteiramente aqueles elementos não competitivos.

Há, na história do carnaval brasileiro, certamente um inegável processo de modernização. Por exemplo, a organização da competição parece ter atingido um patamar em que as regras são respeitadas e os critérios são considerados como objetivos. Não ocorrem viradas de mesa, típicas de um estado de indefinição jurídica em que as normas pouco valem por si mesmas. A unificação da competição sob uma coordenação única expressa respeito por parte dos seus membros. Porém, essa modernização não obteve um domínio pleno sobre o carnaval brasileiro. Pelo contrário, na síntese carnavalesca a modernidade é que se encontra subordinada a objetivos diversos daqueles que constituem o elemento competitivo dessa forma de vida.

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Uma das evidências mais óbvias da não modernidade da síntese carnavalesca é o papel que nela desempenha o patronato do jogo do bicho (ENEIDA, 1987). Nenhuma das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro parece poder sobreviver em longo prazo sem essa forma

alternativa de financiamento. Entretanto, ao contrário do que poderia parecer, a ilegalidade da

forma de financiamento do carnaval também não contagia inteiramente o desfile. Por exemplo, cada escola possui uma administração centralizada responsável pela gestão racional dos recursos disponíveis. O quadro geral, então, é o da validade da lógica empresarial dentro de um arcabouço de práticas de financiamento ilegal e pré-modernas. Portanto, em uma escola de samba, se administram modernamente os recursos oriundos de um mundo pré-moderno. Notamos aqui a convivência dessas duas lógicas muito distintas, justamente porque o jogo do bicho representa a falência do estado de direito pleno e, portanto, da modernidade.

O resultado é uma empresa parcialmente submetida à lógica do patronato, tão típico da cultura brasileira (FAORO, 1975). De determinado ponto para frente, digamos assim, a escola é gerida pela lógica empresarial. De certo ponto para trás, ela mergulha suas raízes na ilegalidade do jogo do bicho e na pré-modernidade do Brasil.

Observe também que a lógica dúbia presente nas escolas de samba é também a mesma existente no jogo do bicho: uma ilegalidade caracterizada pela honradez com que se pagam os prêmios de maneira religiosa. Ninguém em sã consciência suspeitaria da correção ética do jogo do bicho. Em um caso como no outro, a modernidade da boa administração e da razão instrumental está concertada com as relações pessoais, com o patronato e com a ilegalidade.

Os carnavalescos são os artistas responsáveis por elaborar um projeto de desfile a cada ano. São eles que dão início ao processo de confecção do desfile. Embora sejam considerados como personagens que encarnam a profissionalização do carnaval brasileiro, na prática eles não conseguem estabelecer relações decididamente impessoais com as suas respectivas escolas de samba. Assim, os contratos de trabalho que conseguem estabelecer mantêm “a relação no domínio da patronagem, da pessoalidade e do favor” (CAVALCANTI, 1995, p. 65). Então, embora eles sejam contratados, como se fossem profissionais regidos por relações objetivas e legais de trabalho, não escapam do mundo da cordialidade brasileira. É normal que eles recebam salários que não constam explicitamente desses contratos – a menos ou a mais.

O mesmo ocorre com relação à maneira de realização do projeto artístico elaborado pelos carnavalescos. Na confecção de um desfile de carnaval, o carnavalesco não possui pleno domínio sobre a totalidade dos elementos envolvidos. Isto é, não se estabelece uma subordinação de todos os detalhes do desfile, de todas as suas facetas, a um conceito fundamental sob a responsabilidade artística do carnavalesco. Há, de fato, um conceito fundamental que é postulado

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como uma guia geral para a confecção do desfile. Entretanto, o desenvolvimento posterior, a prática efetiva da encarnação dessa ideia, não é operada com base em uma colonização consequente de diferentes extratos da realidade.

Se o carnavalesco propõe um enredo, isso não significa que o samba-enredo - que é a primeira etapa da aquisição de vida por parte de um projeto de desfile – reflita necessária e integralmente essa ideia básica. A consecução e a escolha do samba-enredo pode alterar, inclusive, o projeto original proposto pelo carnavalesco. Tanto é que o samba-enredo é objeto de uma eleição por parte dos membros da escola de samba. Há uma negociação em curso aqui entre a suposta superioridade do projeto e sua realização musical. Essa relação não expressa uma simples colonização de um nível inferior por parte de um significado superior. O samba-enredo não é uma instância prática que cede terreno diante do valor superior do projeto. Ele não se subordina simplesmente à ideia básica do carnavalesco, ele dialoga, de maneiras diversas e de acordo com cada caso, com o projeto inicial.

O mesmo ocorre na fase de confecção das alegorias por cada uma das alas da escola. Embora a confecção seja orientada pelo projeto elaborado pelo carnavalesco, tendo em vista a totalidade do desfile, se estabelece uma negociação com relação ao material a ser utilizado, eventuais melhorias estéticas e custo das alegorias. Lembremo-nos que as despesas de confecção dessas alegorias são financiadas pelos seus usuários – membros orgânicos da comunidade ou consumidores que as adquirem dos chefes das alas, sem possuírem qualquer vínculo com a escola. Há, aqui na ponta da confecção das alegorias, dentro de uma mesma ala, tanto elementos típicos das relações de consumo como de relações comunitárias de pertencimento existencial a uma coletividade. Essas duas formas de relação com a escola articulam-se para tornar o desfile viável do ponto de vista financeiro.

De um ponto de vista geral, o que me parece importante destacar na elaboração de um desfile é que não se trata simplesmente de colocar em prática um projeto artístico, que lançaria mão de instrumentos neutros para realizar seu conteúdo e adquirir vida. Trata-se, antes, de que cada nível de execução demanda uma renegociação do próprio conteúdo do projeto, de tal maneira que se estabelece um debate permanente sobre o seu próprio conteúdo.

No ambiente do carnaval brasileiro, o significado está continuamente em questão. O conceito inicial não muda de nível, do mais abstrato a um mais concreto, simplesmente como se a questão fosse apenas do melhor modo de se realizar no mundo. Ele negocia seu significado a cada uma dessas passagens, de tal forma que a ideia original pode ser completamente alterada, de acordo com essas renegociações que são feitas ao longo do trajeto. Observe que aqui não há uma compulsão diretora capaz de impor aos diferentes níveis um mesmo significado pré-determinado.

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A síntese carnavalesca é, portanto, uma síntese que não envolve a subordinação dos elementos sintetizados. Ela é uma operação em que o motor principal precisa negociar seu próprio significado com cada elemento que é integrado no processo de sua encarnação prática. Essa integração não subordina seus elementos, não fornece a eles uma forma que eles não possuíam originalmente e não os instrumentaliza como meros meios. De fato, os elementos que dão vida e carne ao projeto de um desfile de carnaval não se submetem como se fossem meios. O mundo do carnaval não é regido pela lógica instrumental que submete meios para a realização de fins pré-selecionados. Isso porque cada um dos meios se converte, nessa relação, em um negociador autônomo que pode auxiliar na realização da forma original, porém sempre segundo suas características, interesses e particularidades. Não há neutralidade ou subserviência nas relações de síntese do carnaval brasileiro.

Talvez alguém possa argumentar que não se pode denominar de síntese essa confusão de vozes dissonantes em um diálogo contínuo (e nunca equilibrado) que, apenas por milagre, chega a algum tipo de desfecho. Não pretendo aqui discutir por palavras. Porém, o carnaval é uma realidade, uma forma existente de expressão humana. Logo, não me parece fazer sentido discutir se ela é ou não uma síntese, como se isso fosse uma questão meramente conceitual. Há uma realidade complexa que é o carnaval, ela é um conjunto mais ou menos articulado de expressões humanas diferenciadas. Logo, entendo que ela é uma síntese porque existe.

Talvez pareça um milagre, do ponto de vista moderno, que o carnaval brasileiro ainda exista. Isso porque, dessa perspectiva, tudo leva a crer que não é possível realizar uma síntese de elementos rebeldes, de elementos que não se comportam como se fossem meios para a realização de um fim e que requerem continuamente o reconhecimento de sua existência como particularidades válidas por si mesmas. Isso é mais um motivo para tentarmos compreender a lógica da síntese carnavalesca.

A liberdade poética dos enredos do carnaval brasileiro também expressa essa síntese de maneira clara. Em um enredo, não se trata de seguir um roteiro, de executar um conjunto de regras predeterminadas, de respeitar um significado já constituído e estendê-lo a uma nova dimensão da realidade – aos carros ou às alegorias, por exemplo. Por isso, em uma mesma noite de um desfile de carnaval podemos presenciar referências ao Japão, à Índia, ao Budismo, ao Hinduísmo, à Mesopotâmia, à África, ao Brasil, aos Incas, ao Mar, ao Éden, ao Teatro de Revista, à Morte, ao Palhaço etc. (MILAN, 1986). A relação lógica que se estabelece no carnaval é uma relação poética, de uma permanente negociação de significados a cada etapa da realização do desfile. O carnaval é uma atividade em que o significado está se definindo na prática de sua execução, de acordo com os talentos e limitações de cada participante e de cada circunstância.

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Talvez isso expresse a maneira como o significado da própria vida é estabelecido a partir do pressuposto da existência de diferentes seres humanos. Ele é, para o bem e para o mal, “uma solução estética onde todos podem se manifestar ativamente” (GOÉS, 1982, p. 33).

Essa relação de insubordinação constante dos elementos constituintes gera extremas dificuldades quando pensamos na execução de um projeto. A síntese carnavalesca possui uma lógica muito distinta daquela que caracteriza a razão instrumental - aquela que submete meios para a realização de fins. Evidentemente, se todos podem se expressar é porque o estabelecimento do significado não obedece a uma pauta predeterminada que viria a se sobrepor às realidades existentes com o propósito de submetê-las à sua maneira de ser. Não há aqui um projeto que viria a colonizar distintos extratos com o objetivo de fazer valer seus próprios valores nessas novas instâncias de significado, como no dispositivo democrático e moderno.

Obviamente, mais uma vez de um ponto de vista moderno, essa modalidade de síntese pode se compreendida como expressando uma incapacidade da vontade de impor-se sobre a totalidade do mundo. Isto é, a síntese carnavalesca seria uma espécie de forma mal sucedida da modernidade – como o Brasil também o é. Essa é certamente a interpretação hegemônica do carnaval da parte dos intelectuais contaminados até a raiz dos cabelos pelo conjunto de valores modernos. Isso porque é justamente esse conjunto de valores que constitui o ambiente natural desses intelectuais e, portanto, o que determina seus critérios de julgamento. Então, é compreensível que eles interpretem o carnaval a partir da modernidade. Quer dizer, é compreensível que eles interpretem erradamente o carnaval a partir dos seus próprios pressupostos – embora não seja aceitável. Apresentei, em outra circunstância, as contradições em que os intelectuais brasileiros estão metidos quando avaliam o país com os olhos da modernidade. Isto é, quando eles julgam o país de acordo com critérios alienígenas (SILVEIRA, 2016).

No âmbito das interpretações enviesadas relativas ao carnaval brasileiro há muitas variações. A principal é sempre olhar o carnaval – e tudo o mais – de dentro daquilo que constitui o cerne do ocidente contemporâneo: os valores modernos. Não creio, como Da Matta (1981, p. 29), que o carnaval consista em um “estilhaçamento de um mundo altamente ordenado, centralizado, hierarquicamente definido.” Nem me parece fazer sentido identificá-lo a um “princípio social de inversão” (PINHEIRO, 1995, p. 17).

Essas leituras padecem do inconveniente de ser a expressão de um ponto de vista exterior ao próprio carnaval. Elas fazem parecer que o carnaval possui intenções anti-modernas e críticas com relação à razão instrumental. Nunca houve no Brasil um mundo “altamente ordenado,

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centralizado, hierarquicamente definido”. Portanto, não faz sentido interpretarmos o carnaval como se ele se constituísse em tentativa de crítica a um mundo que ele desconhece.

Se o carnaval fosse uma tentativa de resistência, estaria preso ao objeto que critica, atado ao que procura destruir – como todas as demais formas de crítica. Essa é uma interpretação intelectualizada do carnaval que o converte em um elemento que desempenha um papel tipicamente intelectual: o do enfrentamento racional crítico. O carnaval é um fenômeno popular e, como tal, ele não é movido por interesses intelectuais. Ele só pode ser interpretado assim de maneira ad hoc, para compensar a própria impotência dos intelectuais diante de um mundo que não segue as normas da modernidade. Um mundo ordenado e hierarquizado só pode ser um problema para os intelectuais brasileiros que habitam o mundo moderno dos valores intelectuais, mas certamente não se constitui em objeto de crítica por parte da síntese carnavalesca. Ressalto, inclusive, a presença dos valores modernos como elementos da síntese carnavalesca: da racionalização da gestão financeira, do respeito às regras da disputa etc.

Como vimos, a síntese carnavalesca submete a lógica da subordinação moderna. De certa forma, ela se entrega à lógica da modernidade, porém de tal maneira que desubstancializa o conteúdo específico e a compulsão que caracterizam essa última. Assim, podemos perceber que há modernidade no desfile das escolas de samba, mas não aquela modernidade que se expande continuamente e busca subordinar todas as formas de vida a si própria. No ambiente do carnaval, a modernidade encontra-se subordinada como um de seus elementos, como uma das vozes atuantes que pode falar. Entretanto, ela não se apresenta aqui como um conteúdo que busca apenas efetivar-se em vários níveis de realidade, dada sua validade incontestável. A síntese carnavalesca domou o touro da modernidade.

A relação real que se estabelece aqui é a de uma espécie de esquiva carnavalesca da seriedade presente na lógica colonizadora da modernidade. Não se trata, portanto, de estabelecer um conflito entre duas lógicas em que uma delas deverá ser destruída ou ceder terreno diante da outra. Trata-se, antes, da aceitação da lógica da modernidade no interior do carnaval, porém eliminado o poder colonizador e a compulsão pela homogeneidade daquela.

Há uma sutileza aqui que me parece importante não perder de vista porque não há intenções críticas na síntese carnavalesca, não há a afirmação de uma forma exclusiva de se fazer valer determinado núcleo de significados a despeito dos demais elementos. Se o Brasil é o país do futuro, o é também porque o carnaval é uma atividade que demanda a elaboração continuada de novos sentidos e a abertura renovada da participação ativa dos seus atores. Essa é uma condição de vida e não uma posição teórica. Quero dizer que isso faz parte da maneira como se

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estrutura a síntese carnavalesca na prática de organização e realização de um desfile de carnaval no Brasil.

Claro que nem tudo são flores. É exatamente em função da falta daquela compulsão ordenadora que é tão difícil colocar projetos em prática no Brasil. Todas as ideias norteadoras aqui precisam ser renegociadas com os diversos extratos de sua própria realização. Cada instituição social, embora possua uma finalidade específica definida desde o início, é continuamente redefinida em função das circunstâncias e particularidades de sua realização prática. Uma lei não entra em vigor simplesmente. Ela entra em vigor de formas diferentes, depois de negociadas as suas possíveis interpretações e segundo cada caso. Ela não torna o mundo homogêneo como se ele fosse um meio neutro sobre o qual ela afirmasse sua validade superior.

É por isso que temos a sensação de que o Brasil é um país jovem, porque ele ainda não se encontra definido e centrado em um núcleo identificável de valores. Ele é, de fato, um país ainda por se definir – e talvez essa seja sua melhor definição. O Brasil não incorpora um conceito, uma ideia, um projeto de maneira integral, ele não permite que uma forma se imponha à totalidade do país, como se fosse um meio receptivo. Por isso, os Agassiz (2000, p. 281) disseram, em 1865, que a Constituição Brasileira “se assemelha a uma vestimenta arranjada que não foi feita sob medida para o tamanho de quem a usa e lhe fica sobrando por todos os lados”. O que se define aqui por “feita sob medida” significa a possibilidade de se chegar a um ajuste final, uma homogeneidade plena, uma síntese moderna.

O carnaval brasileiro expressa nossa capacidade, para o bem ou para o mal, de gerar uma síntese que não subordina. Não creio que isso implique necessariamente que essa síntese seja superior à síntese moderna. Ela seguramente é outra forma de síntese em que os próprios elementos modernos encontram-se subordinados. Seja como for, me parece importante começarmos a considerar a especificidade dessa síntese brasileira que afirma uma maneira de ser diferente daquela é tipicamente ocidental e moderna. Me parece que precisamos começar a olhar nos olhos de um país que não é moderno e nem ocidental.

REFERÊNCIAS

AGASSIZ, L.; AGASSIZ, E. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Brasília: Senado Federal, 2000. CAVALCANTI, M. L. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro:

MinC/Funarte, 1995.

COSTA, H. Trinta anos depois... Posfácio a ENEIDA. História do Carnaval carioca. São Paulo: Record, 1987.

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DA MATTA, R. Universo do carnaval: imagens e reflexões. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981.

____. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

ENEIDA. História do carnaval carioca. Rio de Janeiro: Record, 1987.

FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre/São Paulo: Globo/Editora da USP, 1975.

GOÉS, F. O país do carnaval elétrico. São Paulo: Corrupio, 1982.

MERQUIOR, J. G. Saudades do carnaval. Rio de Janeiro: Forense, 1972. MILAN, B. Brasil: os bastidores do carnaval. São Paulo: Grafibrás, 1986.

PINHEIRO, M. S. A travessia do avesso: sob o signo do carnaval. São Paulo: Annablume, 1995.

QUEIROZ, M. I. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Editora da UNISINOS, 2005. SILVEIRA, R. A. T. A brasileiríssima filosofia brasileira. Síntese, 2016 [manuscrito não

publicado]

____. Apresentação do Brasil. Santa Cruz Cabrália: Ronie Alexsandro Teles da Silveira, 2015. Disponível em roniefilosofia.wix.com/ronie

WEBER, M. Sociologia das religiões. São Paulo: Ícone, 2010.

Ronie Alexsandro Telles da Silveira

É graduado em Filosofia pela Universidade Fede-ral de Goiás, possui mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e dou-torado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É professor adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia. Tem ex-periência na área de Filosofia e Psicologia Cogniti-va, com ênfase nas questões epistemológicas liga-das à memória. Atualmente se interessa pelas con-sequências da intensificação dos valores democrá-ticos no mundo contemporâneo - epistemológicas, estéticas, éticas e políticas. Além disso, desenvolve uma linha de pesquisa sobre as relações entre a Filosofia e a Cultura Brasileira.

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