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A Noção de Destino em Cândido ou Otimismo e em Jaques, o Fatalista e seu Amo

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Academic year: 2021

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A NOÇÃO DE DESTINO EM CÂNDIDO OU

OTIMISMO E EM JAQUES, O FATALISTA E SEU

AMO

Paulo Abe1

Resumo: Neste trabalho, se procurará analisar os célebres romances epistolares de Voltaire e Diderot, respectivamente Cândido, ou o Otimismo de 1759 e Jaques, o fatalista e seu Amo de 1796. Em especial, focaremos na noção de destino e de otimismo tão atreladas às suas narrativas e como são argumentadas e criticadas no decorrer das obras. Cientes das simplificações e exageros impostas ao gênero do romance epistolar, ainda assim, propomos analisá-las neste microuniverso isolado da ficção sua estrutura filosófica interna. Para tanto, no propormos a nos debruçar primeiro sobre a obra de Diderot, para então a de Voltaire, construindo os devidos e possíveis paralelos no decorrer do próprio texto.

Palavras-chave: destino, literatura, romance, Cândido, Jaques.

Asbstract: On this work, we will analyze the celebrated novels written by Voltaire and Diderot, respectively Candid, or the Optimism of 1759 and

Jaques, the fatalist and his Master of 1796. It will be focused on the

notion of destiny and of the optimism so attached to the novels and on how they are elaborated and criticized throughout the books. Aware of simplifications and exaggerations in the genre approached, we still propose to analyze the inner philosophical structure of this isolated micro-universe of fiction. Aiming that we will go first through Diderot’s book, then Voltaire’s, building up possible parallels throughout the text.

Key-words: Destiny, literature, novel, Candid, Jacques.

1 Paulo Abe é escritor, bacharel e mestrando em Filosofia pela USP. Email: pauloaltro@hotmail.com

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No decorrer do livro Jaques, o fatalista e seu Amo, há uma clara amostra do como ambos, Jaques e seu amo, veem o mundo. Diderot não poupa esforços para salientar que há um plano divino para todos desde o início dos tempos e que apenas somos personagens nessa história, onde, ainda assim, temos que tomar decisões que em última instância já foram tomadas pela divindade, ou ao menos, pelo “grande pergaminho”.

Logo no começo o escritor francês nos apresenta o fatalismo de tal visão de mundo: "Se estiver escrito em mim, ou lá em cima (...) nada

poderei fazer".(DIDEROT, 1993: 19) No entanto, não tarda para tal visão de mundo achar suas primeiras contradições. Quando Jaques toma a arma de seu amo para enfrentar um grande número de bandidos, sua força de vontade parece dobrar a própria escritura divina: “Que fossem cem: o

número não faz diferença, já que está escrito lá em cima que eles não bastam para me deter”.(DIDEROT, 1993: 19) De modo que, quando a

convicção do homem é grande, nesta parte, parece-nos que se constrói o próprio destino. Mas apenas ilusoriamente.

Uma vez tomado novamente da razão – após a briga --, Jaques, na contramão de seu prévio ataque de cólera, reafirma a relação humana com o "grande pergaminho". Isto é, mostra que sua colocação de que soubesse o que estava escrito era apenas uma mera esperança, pois, nas suas palavras:

[Uma vez que] não sabemos o que está escrito lá em cima, não sabemos o que queremos, nem o que fazemos; não sabemos se seguimos nossa fantasia que se chama razão ou se seguimos nossa razão que, frequentemente, é somente uma fantasia perigosa que ora termina bem, ora termina mal.(DIDEROT, 1993: 22-3)

Aqui, desnorteia-se qualquer vontade humana. Nesta parte, Jaques justifica sua ação de trancar seus perseguidores para ganhar tempo, ainda

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que não soubesse se era realmente necessário poupá-lo, com a prudência, ou ainda, com a esperança ou o medo de que algo aconteça. Na sua perspectiva, apenas podemos presumir que nossas ações tenham o objetivo desejado. Todavia, estamos de alguma forma alheios tanto ao que está escrito, quanto às nossas ações ou aos efeitos destas. Afinal, ele próprio se pergunta:

Alguém é capaz de saber toda a extensão de suas circunstâncias presentes? O planejamento que fazemos em nossas cabeças e a que já foi feito no céu são Duas coisas diferentes. Nós controlamos nosso destino ou o destino que nos controla? (DIDEROT, 1993: 23)

Essas questões permeiam toda a narrativa, se tornando o pano de fundo das aventuras absurdas de Jaques e seu Amo. Contudo, neste recorte já observamos os argumentos contra uma visão de mundo onde o destino já esteja traçado desde seu primeiro instante. A luta de Jaques e sua convicção de que venceria, assim como essas questões então apresentadas, já iniciam um golpe contra a posição – ou ao menos a certeza – do grande manuscrito do destino humano. O primeiro exemplo da briga mostra que a vontade poderia influenciar no destino, dando, assim, caráter de livre arbítrio ao evento; o segundo põe em xeque se realmente toda história dos homens corre de acordo com o céu ou com a própria humanidade. Em suma, se discute a validade da noção de destino, ainda que o próprio Jaques assuma que o destino que nos governe posteriormente.

Em uma das inúmeras tentativas de se fazer Jaques contar sobre seus amores, o amo é replicado com a frase: "O destino não quer". (DIDEROT, 1993: 52) Logo adiante o protagonista diz que tem a impressão de que o destino lhe fala. Neste trecho, observa-se o caráter dúbio da interpretação do destino. Jaques argumenta que o destino não o permite, pois até então não o pode contar sobre seus amores. Utiliza-se

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da causalidade para explicar seu silêncio, ainda que fale tanto. As absurdas outras incontáveis interrupções também põem seu peso no argumento do destino, assim que parece-nos querer conectar com este instante a citação de seu próprio capitão:

"Ponde uma causa, um efeito se segue; de uma causa fraca, um efeito fraco; de uma causa momentânea, um efeito momentâneo; de uma causa intermitente, um efeito intermitente; de uma causa contrariada, um efeito retardado; de uma causa cessante, um efeito nulo."

O amo: parece-me que, dentro de mim, sinto que sou livre, assim como sinto que penso. (DIDEROT, 1993: 234)

Todavia, apesar de todo seu sentido, Jaques se utiliza da frase de seu capitão apenas para operar uma indução. Isto é, diante de um dado número de experiências X, em toda situação terá X, o que não poderia provar. Em outras palavras, o que quer dizer é a máxima de seu fatalismo: “Tinha de acontecer, estava escrito lá em cima”. (DIDEROT, 1993: 249) Tal perspectiva e, no fundo, modo de vida serve-se de qualquer desenvolvimento da vida, seja para a graça ou para a desgraça. O fatalismo e a noção de destino em Jaques é uma aceitação cega de toda ação, o que não o impede de agir – incerto de seu destino. Porém, curiosamente, também de um desejar.

O que chamaremos de desejo2 se mostra em duas formas, por

assim dizer. Primeiro, no pressentimento (DIDEROT, 1993: 242-3) e numa suposição (DIDEROT, 1993: 251). Interpretamos estas duas situações como análogas, pois são uma forma de vontade que vem de seu poder de observação e indução que não tem o apoio da causalidade como a priori, mas apenas a posteriori. Segundo, a reza. Nela, Jaques encontra outra

2 Consciente de que não se trata de uma obra filosófica, tentaremos, ainda assim,

criar paralelos e possíveis desenvolvimentos do pensamento da própria ficção e dos personagens envolvidos, nos apoiando em certa medida em que Jaques, como o próprio diz, "não é um romance".

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forma de sua máxima fatalista: “Rezo pelo que quer que me aconteça”. (DIDEROT, 1993: 152) Parece-nos que o que Diderot procura com Jaques é esse entregar-se ao destino. Como com a suposição, supõe-se que algo esteja escrito, pois primeiramente pressupõe-se um Deus. Esta é a causa. De maneira que esta aceitação de um fato não poderia ser outra coisa que uma fidelidade às escolhas da divindade cristã. Ou seja, um extremo “seja feita a Sua vontade”.

Entretanto, nesta parte das preces, Jaques é questionado por seu amo se não seria melhor se ele próprio se calasse. Jaques responde tanto que talvez sim, quanto que talvez não, além de que não se alegraria nem se lamentaria pelo que ocorre a si, pois precisamente não é senhor de si. Sob o fatalismo, nada pode fazer, ainda que sua vida mude para a melhor, ou mesmo para a pior, a causa seria a mesma: o grande manuscrito, isto é, Deus. Sua situação, então, é a incapacidade de entender onde se encontra e por que se encontra onde está. No fundo desta incompreensão, resta-lhe apenas confiar na vontade de seu Criador, a causa, apenas por supor-se ter escrito o efeito em todo o tempo e ser ele apenas parte dessa grande estrada da causalidade.

Quando Jaques pergunta-se o por que da existência de pernilongos e moscas, seres que abomina, é retrucado por seu amo: “A natureza nada

faz de inútil ou supérfluo (…) [E Jaques responde] já que existe uma coisa, é porque é preciso que ela exista”. (DIDEROT, 1993: 233) Assim, parte-se do princípio de que tudo o que já existe tenha sua necessidade causal já em-si. Nada há de em vão no mundo ou na própria história. Ainda que haja coisas estranhas escritas lá em cima e Jaques julgue Deus ser uma criança incompreensível (DIDEROT, 1993: 242), sua posição diante disso é uma certa indiferença com o mundo que não pode prever, assim como uma vida ilusoriamente livre que é marcada pela necessidade e pelo destino, dada à necessidade de existir um Deus. Isto é, existir uma

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causa para todo bem e mal na vida, ou então, um fluxo eterno de eventos operando sob a causalidade (COWARD In DIDEROT, 1999: 8) desde o início dos tempos, como David Coward afirma na introdução da tradução inglesa, o que espelharia a própria narrativa constantemente interrompida.

Em meio a isso, sabemos que Jaques e seu Amo não têm qualquer destino nomeado no livro. De modo que pressupõe-se uma viagem misteriosa, como o próprio manuscrito. Não se sabe o que está no manuscrito ou mesmo quem o escreveu, o que Diderot procura mostrar é que, concordando com David Coward, um “fatalista convencido pode viver

com o conhecimento de que ‘tudo está escrito lá em cima’ sem cair no desespero e na imoralidade”. (COWARD In DIDEROT, 1999: 11) Ou seja, é

possível – ao menos com Jaques – viver acomodadamente sem liberdade sob o determinismo.

2.

Em Cândido, ou o Otimismo, vemos uma noção de destino de alguma maneira distinta da de Jaques, o fatalista e seu Amo. Ela se configura pelo personagem Pangloss, que representa em linhas gerais a visão de mundo de Leibniz, Pope e Wolff, adeptos do otimismo cosmológico – apesar de que, como Auerbach afirma, “Voltaire não faz

justiça de alguma forma ao pensamento de Leibniz, nem, em geral, ao pensamento da harmonia universal metafísica”. (AUERBACH, 2011: 365)

Esta metafísica da qual trata o filósofo é a de que este mundo é o melhor dos mundos possíveis.

Pangloss ensinava a metafísico-teológico-cosmologia. Ele provava admiravelmente que não há efeito sem causa, e que, no melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belos dos castelos e senhora, a melhor das baronesas possíveis.

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de outro jeito: pois tudo sendo para um fim, tudo é

necessariamente para o melhor fim. (VOLTAIRE, 2012: 32, grifo nosso)

No entanto, contrariando Leibniz e seu porta-voz fictício, Pangloss, a narrativa mostra desde seu início uma expulsão do “Paraíso” – ou ao menos a ilusão deste –, numa sucessão absurda de horrores, tragédias e desgraças para todos os personagens. Seu erro era colocar valor na mera causalidade. Isto é, de que todo efeito tenha necessariamente uma causa, é uma coisa, mas de que esta causa tenha necessariamente de ser boa, isto não pode provar – ou melhor, já perdeu tal discussão. De modo que a história, ainda que ficcional, tenta argumentar contra isso nas viagens de Cândido e, em certa medida, também na de Pangloss.

Em suas jornadas, é possível ver como para toda desgraça, no intuito de provar o próprio argumento, encontram também uma “razão suficiente” para que tenha acontecido. Em outras palavras, “os males que vêm para o bem”. Ou seja, como se não bastasse que tudo fosse o melhor, quando não, irá, posteriormente, para o melhor, pois foi esta é desde o princípio sua finalidade necessária. A exemplo, temos o marinheiro diante do catastrófico terremoto de Lisboa a dizer: “Haverá alguma coisa a se ganhar aqui” (VOLTAIRE, 2012: 42), assim como Pangloss na mesma situação: “‘Porque’, disse ele, ‘tudo isto é o que há de melhor. Pois, se há

um vulcão em Lisboa, ele não podia estar noutro lugar. Porque é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem”.

(VOLTAIRE, 2012: 43)

Desta maneira, é possível observar o determinismo dos personagens já neste momento inicial, que percorrerá todo o enredo. O otimismo caracteriza metafisicamente o mundo por necessidade, por uma “razão suficiente”. Contudo, diante das tragédias que Cândido e Pangloss testemunham, apenas podem conjecturar e interpretar de acordo com esta visão. De maneira que justificam em clichês otimistas que o mal só

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possa ser necessário pois faz parte da constituição da harmonia universal, além de que desgraças particulares façam o bem geral. Assim, tudo há de se justificar em termos gerais e em produtos ainda a ser vistos ou de difícil comprovação.

Mesmo a Queda, o pecado e a punição ou recompensa cristã ficam anulados frente ao melhor dos mundos possíveis, já que não há razão de um redentor, ou seja, de uma melhoria. Pangloss tenta casar livre arbítrio – a tradição católica – com a necessidade absoluta – Leibniz –, pois também, como diz Theo Cuffe, “ao tornar Deus o responsável direto pela

miséria do mundo, elimina a possibilidade da liberdade humana”. (CUFFE

in VOLTAIRE, 2012: 140) Mas sua breve formulação apenas se põe em contradição no termo “liberdade determinada”.

Logo posteriormente ao terremoto e a esta contradição, Pangloss é enforcado e morto – ainda que não fosse o costume –, o que possivelmente simbolizaria este fim de suas palavras e sua visão de mundo, onde não haveria mais sustentáculo frente a um mundo de atrocidades. De uma mesma forma que a liberdade e o determinismo não poderiam andar de mãos juntas, o mal e o trágico também não o poderiam com a visão do melhor dos mundos, ainda que com os argumentos abstratos do bem geral e da harmonia universal. Até que em dado ponto, Cândido se encontra dizendo: “Pangloss então me enganou

cruelmente quando me disse que tudo vai pelo melhor do mundo”.

(VOLTAIRE, 2012: 49) No entanto, ainda não liberto das raízes do pensamento panglossiano, o protagonista ainda se vê procurando por um mundo que seja “o melhor dos mundos possíveis”. Este seria o Novo Mundo.

De fato, encontra o melhor de todos os mundos – pois nem a Europa, nem o Novo Mundo o eram. Este é El Dorado, a cidade mítica que se assemelha à utopia de Thomas Morus. Ou seja, em outro sentido, o

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melhor de todos os mundos é tão utópico, quanto ilusório. Lá Cândido se daria conta de que as coisas iam bastante mal na Westfália, além de que, na religião de El Dorado, só havia agradecimento e nada de pedidos, pois já possuíam tudo o que era necessário. Cândido ainda pensaria que se Pangloss tivesse visto El Dorado, ele nunca teria afirmado que o castelo de Thunder-ten-tronckh era o que havia de melhor no mundo. De modo que indica que este melhor é apenas uma perspectiva subjetiva e sem experiência suficiente, ainda que El Dorado seja completamente ficcional/utópico. Contrariamente a isso, todavia, o próprio Cândido, adquirindo consciência da escravidão, em lágrimas descreve o otimismo: “é a fúria de sustentar que tudo está bem quando se está mal”. (VOLTAIRE, 2012: 83)

Desta maneira, o otimismo nos parece ser uma forma de desespero com o intuito ou ao menos o anseio de que tudo tenha uma razão de ser, um objetivo maior e melhor que justifique as desgraças do mundo e possa, assim, equilibrar tais forças, encontrar uma harmonia cósmica. Concomitante a isso, Martinho só vê na finalidade do mundo, a raiva humana; assim como Cândido só vê no riso eterno em Paris, o riso de raiva. O próprio erudito que Cândido encontra e que nomeia precocemente de segundo Pangloss diz: “Acho que tudo vai de

atravessado entre nós; que ninguém sabe nem qual é a sua posição social, nem qual é o seu cargo, nem o que faz, nem o que deve fazer (…) todo o resto do tempo se passa em querelas impertinentes (…) é uma guerra eterna”. (VOLTAIRE, 2012: 97) Em suma, neste argumento não haveria algo como o desígnio ou destino, tudo se resumiria a esta batalha de homem contra homem e, como dito no livro, se as desgraças do mundo fossem apenas terremotos, estaria tudo bem. Ou seja, nas palavras de Starobinski, se houvesse apenas males inevitáveis, e não supérfluos. (STAROBINSKI, 2001: 126) Mas quanto a isso, não houve,

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para Voltaire, uma época de ouro, onde o homem primitivo fosse bom e tivesse sido corrompido pela sua liberdade, pois “o caráter essencial do

homem permanecia inalterado”. (CUFFE in VOLTAIRE, 2012: 160) Assim, esta condição de males supérfluos nunca cessou também.

No entanto, o que se percebe no decorrer da história é que: “Tudo

não é senão ilusão e calamidade (…) havia pouca virtude e felicidade na terra” (VOLTAIRE, 2012: 103), além de que o mundo é: “Algo de bem

louco e abominável”.(VOLTAIRE, 2012: 101) Trilhando para o fim do livro, Pangloss é enfrentado e responde que não convém a um filósofo desdizer-se, assim como Leibniz, mesmo frente a toda prova contrária a seu sistema, que há mal por toda a parte. Por fim, absurdamente, o trabalho é o único meio de tanto tornar a vida suportável, quanto de afastar pelo menos três males: o tédio, o vício e a necessidade.

3.

Ambos os autores discutem a noção de destino e o determinismo às suas maneiras. Diderot questiona com Jaques a impossibilidade de conhecer o seu destino, ou melhor, o que está escrito no pergaminho. No entanto, isso consequentemente leva a que, uma vez sem saber o que está escrito e ainda assim acreditando no determinismo, o indivíduo possa ser fatalista tanto para o bem quanto para o mal. Este último muitas vezes sendo a impossibilidade da vontade própria pelas mãos de forças maiores, um grupo de homens, a sociedade ou a natureza de alguma forma. A própria narrativa de Jaques repleta de interrupções por um lado mostra a impossibilidade por muitas vezes da causalidade, uma vez que as histórias apenas começam e não terminam – assim como a história dos amores de Jaques; por outro lado, mostra que há um excesso de causas que se chocam como as ondas de um lago sob a chuva. De modo que de

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uma maneira ou de outra, a noção de destino de que algo pudesse ser escrito e esquematizado por uma causa primeira ou entidade divina indica-nos na medida do possível sua própria impossibilidade.

Já em Cândido, Voltaire procura questionar um destino e determinismo, onde já se sabe metafisicamente tal resposta3. “Tudo é

para o melhor”, seja para um futuro bem, o bem geral ou a harmonia universal. No entanto, este é o único mundo vivível e existente. Desta maneira, a afirmação otimista de que nada poderia ser diferente é simplesmente, como diz Michael Wood, tautológica (WOOD In VOLTAIRE, 2012: 9), não se sustentando. Sobretudo porque também o a posteriori prova o contrário do a priori otimista. Por outro lado, o argumento de que “as sombras realcem as cores”, como diz Leibniz em sua Da Teodiceia, poderiam ser vistas como um passo na defesa de um otimismo, porém, como continua Wood:

O que afastou Voltaire dessa forma mais complexa do otimismo não a recusa de sua lógica nem a convicção de sua falsidade, mas a percepção de sua crueldade potencial e a certeza de que a afirmação, mesmo que verdadeira, não podia ser testada e, pior, era impossível articulá-la sem incorrer numa espécie de cumplicidade com o inaceitável, na adesão excessivamente entusiasta à ideia de que certos horrores, além de inevitáveis, são necessários. “Eu respeito o meu Deus”, escreveu Voltaire no “Poema sobre o desastre em Lisboa”, “mas amo o universo”. (WOOD in VOLTAIRE, 2012: 10)

Desta maneira, Voltaire foi no sentido contrário a um fatalista, pois o melhor dos mundos possíveis – e também único mundo possível – apenas representava uma passividade e aceitação desumanas, de maneira que sua filosofia, assim como sua ficção com Cândido, teriam de mostrar um impulso à atividade na vida. Em outras palavras, ao livre arbítrio. Para o filósofo francês, o “melhor” expressado na ficção, apesar de advindo de

3 Claro que para isso Voltaire teria de adaptar absurdamente a realidade de sua

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um conceito, só pode nascer dos homens, de sua própria experiência, no sentido de que o castelo é o mais belo, Cunegunda é a mais bela e Pangloss é o mais sábio apenas devido à própria ignorância do mundo. O mesmo se dá com a própria maldade que até a “expulsão do paraíso” não era conhecida. Esta, diferentemente de em Jaques, não é apenas aceitada num “seja feita a Sua vontade”, mas num desejo de equilíbrio cósmico de um “Deus proverá”. Este leva à passividade, que configura de alguma maneira para o pior dos mundos possíveis – ainda que só seja possível um – dado seu efeito psicológico paralisante no indivíduo.

O sofrimento sob esta noção de destino é constante, pois não se pode ver os frutos que o equilíbrio cósmico lhe dá na ilusão de necessidade que lhe emprega. Como em Jaques, se pode apenas interpretá-los a bel prazer, porém de mãos dadas com a esperança e o desejo de um equilíbrio por vir que nunca se sabe ou se testemunha realidade; que é representada de alguma maneira pela utopia de El Dorado em Cândido, a expressão da perfeição na ficção, conceito que Voltaire critica. Isto, pois, uma vez alcançada a perfeição, não se tensionaria o interior humano para agir. Paralelamente se um dia houve perfeição no Éden, não haveria por que ser expulso do paraíso.

Em ambos os mundos de Jaques e Cândido, nos deparamos com um misterioso e inexplicável; por muitas vezes horrível, mas habitável universo. Nas duas ficções, vemos que o esforço em entender o sistema do destino apenas leva a contradições. Paralelo a isso, para Starobinski – ainda que diga apenas para Cândido –, “é uma parábola que ensina a

desconfiar dos ensinamentos”. (STAROBINSKI, 2001: 120) Em Voltaire,

decide-se por cultivar o jardim e a terra por fim, pois, como Martinho diz, trabalha-se sem pensar e porque “é decidir não procurar respostas a

perguntas que não as têm; recordar as ‘metas’ concretas que espreitam cada grande abstração”. (WOOD in VOLTAIRE, 2012: 22) Ou ainda: “É

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uma vã tagarelice pretender determinar o lugar de cada acontecimento no plano divino: a perfeição do todo não passa de um consolo enganador, obstinadamente surdo aos desmentidos, rebelde ao “princípio de realidade”. (STAROBINSKI, 2001: 133) De modo que, como o amo para Jaques e o dervixe, o último líder religioso, para Pangloss, talvez quanto a isso fosse melhor seguir seus conselhos: calar-se. O mundo funciona – perfeita ou imperfeitamente – sem o compreendermos.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Mimesis – A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DIDEROT, Denis. Jaques, O fatalista e seu Amo. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

DIDEROT, Denis. Jacques, the Fatalist and his Master. Oxford: Oxford World’s Classics, 1999.

Mésavage, Ruth Matilde. Beginnings and the Represantation of time in Jaques le Fataliste. Florida: Orbis Literarum (1984), 39, p. 14-23. STAROBINSKI, Jean. As Máscaras da Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

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