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A ambiguidade da não-subjetividade (Muga 無我 ) no Budismo japonês da Terra Pura: transcendência e amor

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(Muga 無我) no Budismo japonês da

Terra Pura: transcendência e amor

Elton Sada Tada* RESumo

O presente artigo tem como objetivo analisar as ambiguidades da não--subjetividade (Muga 無我) no Budismo japonês da Terra Pura. Para tanto, serão analisados tanto a tradição Mahayana em geral, quanto as particularidades do budismo amidista japonês. Depois, em processo de afunilamento, serão questionados os sentidos da não-subjetividade para a Escola da Terra Pura, a JodoShu, fundada por Hōnen Shonin.

Palavras-chave: Não-subjetividade; Amidismo; Ambiguidade

ThE non-SubjEcTivE ambiguiTy on ThE japanESE puRE Land buddhiSm: TRanScEndEncE and LovE

abSTRacT

This paper aims to analyze the ambiguities of selflessness (Muga 無我) on the Japanese Pure Land Buddhism. Therefore, Will be analyzed the Mahayana tradition in general and the particularities of the Japanese Amidist Buddhism. Then, in process of funneling, will be questioned the meaning of selfelessness to the Pure Land Sect, the JodoShu, founded by Hōnen Shonin.

Key-words: selflessness; Amidism; ambiguity introdução

O budismo amidista é uma das religiões mais tradicionais e po-pulares no Japão. O amidismo1 é centrado na figura do Buda Amida,

(amithayus e amithaba) o buda da luz infinita. Essa é a principal di-ferença de outras escolas budistas, normalmente centradas na figura do Buda Shakyamuni.

* Doutor em Ciências da Religião pela UMESP. Professor na Famma - Faculdade Metro-politana de Maringá.

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O budismo amidista chegou ao Japão no séc. XII, como uma re-forma de pensamento e de prática religiosa que acabou sendo bastan-te útil para as camadas mais populares da sociedade. Essa forma de budismo foi levada da China pelo monge Hōnen Shonin, patriarca da Escola budista da Terra Pura, a JodoShu. O amidismo se subdividiu na primeira geração dos discípulos de Hōnen Shonin, especialmente a partir de seu discípulo Shinran Shonin, patriarca da Escola JodoShinShu. Ambas as escolas tem suas práticas centradas na recitação do nome do Buda Amida, a partir do mantra “Namu Amida Butsu”, conhecido como Nembutsu.

Alguns dos conceitos mais centrais do budismo em geral são a doutrina do Karma, a impermanência e a vacuidade/não-subjetividade (anatman/muga). Esses conceitos são facilmente vinculados aos ensi-namentos do Buda Shakyamuni, mas são um pouco mais difíceis de serem entendidos a partir da centralidade do Buda Amida.

O presente texto dará mais atenção ao conceito de não-subjetivida-de (anatman/muga/selflessness), pois pretennão-subjetivida-de entennão-subjetivida-der a ambiguidanão-subjetivida-de desse conceito e suas consequências para o sistema religioso do budismo amidista japonês, especialmente para a JodoShu.

o muga (無我) da tradição mahayana

Iniciaremos a presente análise entendendo a base do pensamento que sustenta o budismo amidista. Historicamente, o budismo se divide em dois movimentos básicos, que são fortuitamente chamados de ca-minhos, o budismo Theravada e o Budismo Mahayana. Essas divisões não são instantâneas e definitivas, pelo contrário, elas se dão ao longo do desenrolar histórico e geográfico do budismo em sua trajetória rumo ao leste. Entender os motivos e consequências dessas divisões seria um empreendimento a parte, sendo que para os objetivos do presente trabalho, basta situar o budismo da Terra Pura na tradição Mahayana e entender sua particularidade doutrinária e filosófica.

Julia Ching sintetiza bem o conceito budista de anatman, bastante caro ao budismo Mahayana:

No que tange ao self, a doutrina budista é formulada em termos negativos. Ouvimos a doutrina do não-self (Pali: Anatta, ou sânscrito: Anatman). Essa doutrina é fruto do esforço de analisar a existência individual – não

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apenas humana, mas todos os dharmas ou elementos da existência – a partir de seu vazio2 (sunyata). De acordo com essa teoria todas as coisas

e eventos (dharmas) devem ser “vazios” ou “esvaziados” de realidade, e o reconhecimento de sua vacuidade pode trazer o entendimento real (CHING, 1984, p.2).

O anatman budista não é apenas um elemento doutrinário impor-tante, mas também uma diferenciação interessante em face de outras religiões e culturas, pois exatamente esse elemento dá ao budismo uma de suas principais singularidades como religião mundial, a crença na subjetividade como ilusão:

o budismo permanece único na história do pensamento humano ao negar a existência de uma alma, um self, um atman. De acordo com o ensi-namento de Buda, a ideia de self é uma crença falsa, imaginária, sem realidade correspondente (Rahula in CHING, 1984, p.4).

Para os estudos de religião, é relativamente comum encontrar dou-trinas que sejam correlatas em termos estruturais ou funcionais. Nas mais diversas religiões ao redor do mundo, alguns aspectos são repetiti-vos. Entretanto, a não-subjetividade budista lhe dá uma particularidade forte, pois por mais que o tema da diminuição do eu seja presente em outras religiões, nenhuma delas traz o assunto com tamanha centralidade e de maneira tão definitiva. O conceito de anatman não é interpretado de maneira unânime nas diversas escolas budistas. Antes de qualquer coisa, a interpretação sobre a utilização do conceito de não-subjetividade pelas diversas escolas budistas é algo amplamente estudado e debatido. No presente texto, como já mencionado, nos preocuparemos com a compreensão da não-subjetividade no budismo japonês da Terra Pura, especialmente a JodoShu.

Primeiramente, para situar historicamente e budologicamente o problema estudado, devemos entender que o budismo da Terra Pura é derivado do budismo Mahayana. Sobre a linha Mahayana:

Daisetz Suzuki, o grande intérprete japonês do budismo Mahayana no ocidente, afirmou que apenas o primeiro budismo negou a existência de 2 O termo “vazio” utilizado na tradução da citação, trata-se da tradução do termo inglês emptiness. É importante ressaltar esse detalhe por conta do termo emptiness ter sido escolhido pela autora como tradução do conceito de sunyata.

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um “ego-substância” chamado atman e aplicou um método rigorosamente analítico para a existência individual que inflou a teoria do não-ego, mas o budismo recente afirma a existência do atman por meio de sua teoria do ego metafísico que causa a reflexão sobre a consciência ordinária (CHING, 1984, p.6).

Esse assunto é amplamente discutido pela escola de Kyoto, ini-cialmente por Tanabe Hajime (田辺 元) (1885-1962) e posteriormente por seus discípulos. É interessante notar desde já que há uma tentativa de jogar a problemática para o âmbito da filosofia metafísica. Nesse sentido, vale a pena entender que talvez a questão supere os limites disciplinares dos campos da filosofia, teologia, budologia e ciências da religião, pois, de algum modo, o discurso a ser feito é grandemente derivado da lógica e da epistemologia ocidental, de herança grega e judaico-cristã. Entretanto, o objeto não se assenta em tais delimitações, de modo que por vezes se faça o processo de aproximação e afastamento do ponto de vista hermenêutico, bem como a suspensão fenomênica ou o englobamento sociocultural.

Atualmente, o grande problema a ser resolvido é até que ponto o budismo, ao propor uma noção de atman ou anatman está fazendo uma atividade metafísica. Do ponto de vista da filosofia ocidental, sobretudo da objetividade moderna, não há duvidas de que há discussão sobre o ser e sobre a consciência do ser a partir do ente em sua individualidade. Todavia, ao lembrarmos que o budismo não se construiu a partir de tal concepção, mas sim a partir de uma diversidade cultural de base bastante variável e adaptável, parece ser mais assertivo crer que a atual reflexão sobre a não subjetividade é um empenho metafísico, sendo que o ato de crença religiosa no princípio do anatman pode ser considerado muito mais naturalista.

Partindo dessa problemática mais geral, veremos agora o problema da não-subjetividade no contexto particular da crença no Buda Amida, figura centra do budismo da Terra Pura.

a não-subjetividade no budismo amidista

Passemos agora a entender o problema que está propriamente em discussão. Paul Tillich, em sua conhecida viagem ao Japão, se encon-trou com diversos estudiosos do budismo. Ele próprio tinha o interesse

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de sanar algumas dúvidas e propor algumas leituras sobre o budismo a partir de seu método da correlação. Do período que ficou no país, reservou cerca de uma semana para um diálogo com monges e estu-diosos da universidade de Otani, em Kyoto, centro intelectual do Shin budismo, linha amidista do budismo. Quando esteve em Tóquio, dia-logou principalmente com filósofos e monges do Zen budismo. Nesse diálogo com intelectuais do Shin budismo, Tillich questiona a validade da oração budista:

Posso entender como um judeu, um cristão ou um muçulmano ora, porque a oração sempre nos leva a “outro ego”, um alguém, e então se faz uma relação ego-outro. Para que alguém ora no budismo? Entendo muito em que um budista pode meditar [...]mas, por outro lado, na doutrina oficial e no pano de fundo teológico do budismo o elemento pessoal é quase engolido pelo elemento suprapessoal – seja esse o princípio buda ou o princípio Amida, mas não é uma figura que pode ser olhada como uma pessoa. Mesmo assim, há muita oração acontecendo. Como isso pode se unir aos princípios fundamentais do budismo? Ou, para formular a questão mais precisamente, “para quem um budista ora se ele ora ao invés de meditar? (TILLICH in BOSS).

Foi justamente esse questionamento que gerou a dúvida inicial da presente investigação. Tillich questiona sobre a possibilidade da oração levando em conta a supra-pessoalidade do budismo. Entenda-se desde já que Tillich parte do pressuposto que uma oração depende de uma relação entre um “eu” e outro “eu”, de um encontro de subjetividades. Parece haver no budismo, mesmo no budismo Amidista, um ele-mento suprapessoal. Ou seja, não há uma negação total do sujeito, da subjetividade, mas a subjetividade é substituída pela coletividade. Isso se insere na cultura japonesa de maneira significativa, e se dá por meio da construção do pensamento japonês ao longo de sua história. A primeira constituição japonesa, a constituição de Shotoku (十七条憲 法, jūshichijō kenpō), na primeira frase de seu primeiro artigo diz que “A harmonia deve ser valorizada e as discussões devem ser evitadas”. Soma-se a isso a forte influência animista e naturalista do xintoísmo e do confucionismo e temos a cultura japonesa constituída com uma ideia de sujeito fraco, ou de sujeito facilmente superável em prol da coletividade e até mesmo da vacuidade.

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A partir desse ponto a questão passa a ser entender se o Nembutsu, a recitação do nome do Buda Amida, é uma oração e, caso seja, qual o seu sentido se não há um “outro ego” a ser alcançado em seu esforço. Ao fazer o questionamento supracitado, Tillich primeiramente rece-be a resposta de que o Nembutsu não é uma oração e não intenta sê-lo. Mas, esse é um argumento fraco, haja visto que os próprios mestres Hōnen Shonin e Shinran Shonin ensinam largamente sobre o sentimento que deve estar contido na recitação do Nembutsu. A segunda resposta, entretanto, é mais conclusiva. Entende-se que o Nembutsu é uma espécie de oração, mas que não atinge o totalmente outro, pois quando se recita o Namu Amida Butsu, na verdade se clama pela natureza búdica do princípio Amida. Como essa natureza está presente em todos os seres sencientes, então não é uma oração para outrem, mas para o si próprio que é tomado pela natureza búdica e pelo princípio Amida.

Quando se fala do Buda Amida, há de se entender que o concei-to mais central seja o de sua compaixão. Isso se dá por conta de sua mitologia. Amida é um Buda que atinge sua iluminação por conta dos méritos de sua vida como Dharmakāra bosatsu (bodisatva), que faz seus votos, dentre eles o voto central que afirma que só gozará de sua ilumi-nação após ter auxiliado todos os outros seres a alcançarem a mesma condição. Sobre a compaixão do Buda Amida, Paul Tillich afirma que:

Seu mito e sua doutrina nos dão a imagem poderosa de uma pessoa que, renunciando ao Nirvana, estabelece um juramento. Se tivermos essa ima-gem poderosa como pano de fundo, se nela estiverem implícitos todos os ensinamentos e todos os atos dessa pessoa, eu poderia imediatamen-te compreender que esse Nome do Buda Amida contém um conimediatamen-teúdo semântico suficientemente forte para despertar em alguém a sensação de ter sido salvo e para se constituir num poder salvífico. Se não tiver-mos um sistema simbólico, o Nembutsu será, então, uma simples magia (TILLICH, 2002).

A questão que aqui se põe não é sobre o poder salvífico do Buda Amida, pois o autor o reconhece muito bem. O que se questiona são os meios e as consequências da crença em Amida. Entenda-se que a “salvação” pelo buda Amida está restrita ao fato do mesmo permitir que aqueles que chamam pelo seu nome possam nascer na Terra Pura

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e lá, em contato com esse Buda e tendo-o como mestre, alcançarem também a iluminação.

Nesse ponto que trazemos o conceito tillichiano de ambiguidade para a presente discussão. Em diálogo com Carl Rogers (1902-1987), Tillich afirma que mesmo quando estamos em contexto de liberdade, estamos em situação de predicamento, lutando na mistura ambígua de essência e existência.

E visto que chamo essa mistura de natureza essencial do homem e sua alienada natureza ambígua – o domínio da ambiguidade da vida – eu diria sob essa condição de ambiguidade, que ninguém é capaz de criar essa esfera de liberdade. [...]

Então continuaria dizendo que o indivíduo que vive em tal grupo social no qual a liberdade é dada, permanece uma mistura ambígua entre ser essencial e existencial. Ele está, como a linguagem inglesa expressa de forma tão bela, “in a predicament”, e esse problema é uma alienação universal e trágica do verdadeiro ser de alguém. (TILLICH/ROGERS, 1965-1989).

Há ainda o problema da alienação existencial. Para o budismo, a alienação existencial, ou aquilo que mais se aproxima dessa ideia, seria causada justamente pelas ilusões, sendo que uma das mais pode-rosas dentre elas é a ilusão da subjetividade. Uma leitura mais atenta do budismo Mahayana permitirá notar que o mesmo em suas raízes doutrinárias afirma que nascimento, morte e temporalidade são meras noções ilusórias estabelecidas como se fossem centrais, de modo que as mesmas atrapalham o olhar correto sobre a plena condição de exis-tência, a não-subjetividade.

Um problema grave a ser compreendido é que se é verdade que o crente do budismo da Terra Pura recita o Nembutsu com esperança de ser salvo pela força exterior (outro poder) do buda Amida, então ele se distancia – ou chega a negar – a natureza buda que há em si.

Para entender a importância do Nembutsu para o budismo japo-nês, devemos ir para trás e entendermos o contexto do surgimento do amidismo no Japão.

Na história do budismo entende-se a existência de três eras. A primeira seria o Shōbō, que seria a fase em que os discípulos de buda

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ainda transmitiam seus ensinamentos. A segunda seria o Zōhō, perío-do em que a lei perío-do Dharma era mais escassa. A última seria o Mappō (Chinês: 末法; pinyin: Mò Fǎ; mòfǎ; Jp: mappō), ou o período do fim do Dharma. Foi nesse período que monges como Hōnen Shonin busca-ram formas de ressignificar o budismo para a população feudal. Nesse sentido, os esforços da JodoShu e da JodoShinShu foram muitíssimo bem sucedidos. Os populares se viram aliviados com a possibilidade da prática do budismo em seu cotidiano, através da recitação do Nembutsu. Desse modo, o budismo deixaria de ser elitizado e monástico e voltaria para a prática cotidiana do povo trabalhador.

É aqui que surge nossa primeira ambiguidade prática. Ao mesmo tempo em que se aproxima o budismo do povo através da crença no Buda Amida, afasta-se da imanência da natureza búdica. Quando se aceita que o poder outro do buda Amida pode agir em seu favor, senten-cia-se concomitantemente que é impossível que se atinja a manifestação da natureza búdica.

A partir do surgimento da reforma amidista, parece haver no budis-mo japonês um deslocamento da proposta religiosa budista. A religião que até então se encontrara basicamente em um estado mais semelhante ao panenteísmo, passou a expressar de maneira sutil um esboço de teísmo. De todo modo, esse teísmo continua sendo doutrinariamente negado, mantendo o status de ateísmo/panteísmo(elemento marcante no Japão até os dias de hoje)/panenteísmo do budismo.

Hōnen Shonin e a JodoShu

A partir de agora veremos as particularidades do problema da não--subjetividade para a escola da Terra Pura, a JodoShu (浄土宗). Essa

escola foi fundada no Japão em 1175 por Hōnen Shonin. É um dos ramos mais tradicionais do budismo japonês e até hoje é grandemente praticado no país.

No campo intelectual, Hōnen Shonin deixou um legado vasto e significativo, tanto do ponto de vista doutrinário quanto da percep-ção filosófica. Doutrinariamente, o pensamento de Hōnen Shonin é constantemente confrontado com o pensamento de Shinran Shonin, seu discípulo, que acaba fundando sua própria linha de prática do budismo da Terra Pura, a JodoShinshu, ou a Verdadeira Escola da Terra Pura.

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A doutrina da salvação de Hōnen Shonin é particularmente estu-dada e debatida nos círculos de estudos do budismo. Isso se dá princi-palmente porque há uma tensão com as demais doutrinas budistas da salvação. Para uma manifestação religiosa que se institui popularmente com base no culto aos antepassados e com o rito centrado no evento da morte, a JodoShu acaba tendo que debater amplamente a questão da salvação. Vale lembrar que apesar da utilização do termo “salvação”, bastante usado na teologia cristã, a noção de salvação de que se trata é correlata, mas não idêntica.

Existe uma ambiguidade básica no sentido empregado ao termo japonês Ojo (往生) quando utilizado por Hōnen Shonin.

Uma leitura alternativa é notar que Hōnen usa a palavra Ojo (salvação) em dois sentidos. Por um lado, Ojo é o fim da vida no qual as chamas da paixão são extintas, e por outro lado, Ojo é a convicção, enquanto alguém ainda está vivo, que a morte trará tal repouso absoluto. (MA-CHIDA, 1999, p.93)

Do ponto de vista da religiosidade popular, as duas possibilidades de leitura do termo Ojo são válidas, mas deve-se frisar a necessidade de aceitação da condição de repouso junto ao buda Amida, que tem seu nome proferido constantemente pelos fiéis no formato Namu Amida Butsu. Assim, a única condição para que o fiel seja salvo é clamar pelo nome do buda, tendo certeza que ele honrará seu voto, e que buscará aqueles que o chamam para viver em sua Terra Pura, onde terão con-dições adequadas para romper o ciclo de Samsara.

Nishida Kitaro (1870-1945), proeminente filósofo japonês, fez uma leitura bastante interessante da relação entre a subjetividade e a prática do Nembutsu.

Nishida acreditava que o ser humano (aquele que entoa o Nembutsu neste mundo) e o absoluto (Amida no outro mundo) poderiam se encontrar ape-nas a partir da morte do self. Por morte ele não queria dizer apeape-nas morte física, mas a negação absoluta da subjetividade (MACHIDA, 1999, p. 101).

Se a leitura de Nishida Kitaro está correta, há ainda um problema grande a ser resolvido. Partindo do pressuposto que a condição para o encontro entre o crente praticante do Nembutsu e o Buda Amida seja

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a morte do self, ou seja, a extinção da subjetividade, então, há de se explicar como há uma relação eu-outro sem que haja um eu. Esse poder outro (Jiriki 他力) estaria direcionado a quem?

Talvez, o problema esteja no entendimento do que é o fim da subjetividade. Nesse sentido, seria interessante notar a possibilidade do fim da subjetividade ser parcial, no sentido de ser mais o fim da consciência de subjetividade do que da subjetividade propriamente dita.

Soho Machida faz a seguinte leitura:

Para ganhar “vida absoluta”, ou na frase de Hōnen shoji o hanareru: esta consciência no pensamento de Hōnen seria o retorno à ignorância, sem o qual o contato com a misericórdia incorporada ao nome do buda Amida não poderia ser feito (MACHIDA, 1999, p.102).

Se a condição para o contato com a misericórdia do Buda Amida for a ignorância, então não há a necessidade de um não-eu completo, mas apenas de uma ausência de consciência de si.

Voltando ao sentido mais amplo da não-subjetividade própria da tradição Mahayana, a morte pode continuar sendo vista como elemento central do budismo da JodoShu, mas seu sentido é bem menos trágico do que se possa imaginar.

A morte era muito mais relativizada pela noção do constante aparecimento e cessação dos agregados psico-físicos e pela crença que a verdadeira pausa no fluxo da consciência era o resultado do despertar. Reforçando a teoria do não-self do budismo primitivo, a doutrina mahayana, como exemplificado no sutra do coração, ainda atenuava o escândalo da morte negando sua realidade ontológica: no vazio (sunyata) não há nem nascer nem morrer, não há vir ou ir. Desse modo, temporalidade e finitude foram negadas em sentido último como ilusões karmicas. Os budistas da linha Mahayana poderiam ter tomado para si o lema romano: “Non fuit, fuit, non sum, non curo (Não fui, fui, não sou, não me importo) (FAURE in Machida, 1999, p. 152).

A morte como ilusão kármica vinculada à ilusão da temporalidade, acaba sendo apenas uma teatralidade ante ao sentido principal, que é a superação da barreira de Samsara pela via do Ojo, do nascimento na Terra Pura do Buda Amida. Isso pode ter tido significado importante na formação do pensamento japonês a respeito da morte, e na constante

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ritualização da mesma na escola JodoShu como forma de tocar a Terra Pura do Buda Amida, mas não telos absoluto da existência.

a perspectiva tillichiana

Paul Tillich afirma que a fonte da coragem de ser é o Deus para além de deus.

A fonte básica da coragem de ser é o “Deus acima de Deus”; este é o resultado de nosso empenho em transcender o teísmo. Somente trans-cendendo o teísmo pode a ansiedade da dúvida e insignificação ser in-corporada à coragem de ser. O Deus acima de Deus é o objeto de todo anelo místico, porém o misticismo também deve ser transcendido a fim de alcança-lo (TILLICH, 1976, p.143-144).

Se, para Tillich, é necessário que o caminho que aponta para o Deus que está para além do Deus metafórico/mitológico seja transcendido em prol da coragem de ser, então seria válido o questionamento que o amidis-mo fortalece a divindade metafórica/mitológica na figura do Buda Amida e de sua Terra Pura. Não podemos julgar ao certo se o fortalecimento dessa imagem aproxima ou afasta o crente da vacuidade nirvânica. O sōtēr (σωτήρ), ou o elemento soteriológico do budismo se fortalece, mas aumenta também a possibilidade da idolatria, da transformação inapro-priada do meio em fim. Esquece-se do Nirvana e da vacuidade posterior ao Samsara por conta da esperança na Terra Pura do Buda Amida, local de onde o karma jamais poderá jogar alguém para trás.

Outra ambiguidade que queremos trazer para a presente discussão é a ambiguidade que cerca os conceitos de amor e compaixão. É curioso pensar que no universo cristão, locus a partir do qual Tillich fala e cria seu sistema, a salvação é derivada do amor do Cristo, enquanto que no budismo da Terra Pura, o que salva não é o amor, mas a compaixão de buda Amida.

O buda Amida se compadece, sofre (pathos - πάθος, gr.) junto. Ele sofre em comunhão porque o estado natural é o estado de comunhão. Cristo “sofre por”, ele substitui o sacrifício individual por seu sacrifício definitivo. Cristo é totalmente outro, inclusive em sua dupla natureza. Ao budista que acredita que clama ao Buda Amida porque o faz tomando refúgio na natureza búdica que é comum, dá-se a

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impossibili-dade de amar. Amor, no conceito tillichiano de ágape, é uma aceitação exterior, uma reconciliação.

Você também indicou algo a esse respeito: a saber, de se tornar social. Acredito que isso é parte de um conceito mais amplo. Eu o cha-maria de amor, no sentido da palavra grega ágape, que é uma palavra singular no Novo testamento e que significa o amor descrito por Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios 13, e que aceita o outro como uma pessoa e então busca reconciliar-se com ela e a vencer as barreiras da separação, da separação existencial, que existe entre as pessoas (TILLI-CH/ROGERS, 1965-1989).

Na verdade, entender o abismo existencial que existe entre as pes-soas no cristianismo que propõe o amor e entender a harmonia que existe entre as pessoas do amidismo compassivo é uma tarefa extremamente complexa e exaustiva. Todavia, seria interessante notar que a ausência da noção de “queda” e “pecado” faz com que harmonia seja pressuposta, mas impede a expressão do sentido estrito de amor. Talvez, isso seja um elemento destrutivo acoplado ao elemento positivo da natureza búdica.

Considerações finais

O presente texto fez o trajeto de apresentar e questionar a presença da não-subjetividade no budismo e suas consequências. Esse trajeto partiu de um panorama mais amplo do budismo, passando pela discus-são da tradição Mahayana e chegando até a particularidade do budismo amidista japonês da Terra Pura. Ao chegar à Terra Pura, buscou-se o entendimento da presença de ambiguidades na proposta de salvação de tal linha, tendo como base a questão da não-subjetividade.

A questão sobre a relação do fiel com o Buda Amida foi uma ques-tão elaborada pelo próprio Paul Tillich em sua visita ao Japão. Apesar de ele ter direcionado tal questão a intelectuais do Shin Budismo, a mesma questão se torna válida, por extensão, à doutrina da JodoShu, pois o princípio salvífico é o mesmo.

Como tentativa de se responder ao problema da não-subjetividade para a JodoShu, o conceito tillichiano de ambiguidade foi trazido para a discussão, de modo que foram evidenciados ao longo da discussão alguns pontos onde se notou uma ambiguidade mais latente.

Primeiramente, a própria noção de salvação é ambígua no budis-mo. Sempre que se pensa em salvação, é necessário que se pergunte

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“salvação do quê?”. Em religiões como o cristianismo, a salvação está relacionada a uma condenação igualmente estabelecida. Portanto, salva--se da possibilidade de condenação. No budismo, por outro lado, não há alguma condenação propriamente dita que ultrapasse os limites do próprio existir. Desse modo, a pior possibilidade seria continuar no ciclo de Samsara, ou seja, no ciclo do nascer e morrer enfeitado pelas flores da ilusão e do sofrimento. Atingir a salvação, para o budista, não é nada além de romper esse ciclo, sair do domínio de Samsara e chegar ao domínio do nirvana, na condição búdica, desperta, iluminada. Em particular, para a Terra Pura, a salvação passa pelo estágio do nasci-mento na Terra Pura do Buda Amida, que se dá para todo aquele que chama o nome do buda a partir da prática do Nembutsu. Lá, na Terra Pura do buda Amida, o fiel encontrará as condições que não encontrou nessa vida para iluminar-se. Mesmo assim, a Terra Pura ainda não é a salvação propriamente dita, mas é uma garantia de salvação, pois, estando nessa terra, não é possível gerar uma condição kármica que faça com que a pessoa volte a viver a vida aqui no mundo impuro. A primeira grande ambiguidade reside no fato de que para o budismo a salvação é a salvação de si mesmo, de sua própria condição humana e da crença nas ilusões dessa condição, como o próprio nascer e morrer. A segunda grande ambiguidade é que o termo Ojo, muito utilizado no budismo da Terra Pura para indicar o momento em que alguém morre na vida ordinária e nasce na Terra Pura do Buda Amida, significa ao mesmo tempo morte e salvação. Essa noção advém do fato de que não há retrocessos kármicos na Terra Pura, sendo que o sentido único da caminhada a partir de então está em direção ao nirvana. Além disso, ao mesmo tempo em que a doutrina de Hōnen mostra que Ojo é essa morte/salvação, ela indica que não se trata apenas da morte física, mas da aniquilação total do self. Para Hōnen Shonin, existe a simplificação de um processo bastante complexo, que é o processo de esvaziamento do ser a partir do enfraquecimento da força própria a partir da confiança na força exterior. Quem chama pelo nome do Buda Amida não apenas cumpre um requisito básico para alcançar o nascimento na Terra Pura e sua consequente salvação. O indivíduo que pratica o Nembutsu ad-mite intrinsecamente que não possui força própria para livrar-se de sua condição existencial. Por isso, clama pela compaixão do buda Amida. A

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curiosidade é que é necessário que alguém admita sua própria fraqueza para conseguir libertar-se do seu eu.

A terceira, e talvez mais forte ambiguidade encontrada na presente discussão, é que a salvação com a ajuda do Buda Amida não pode ser derivada de uma relação de amor, mas tão somente de uma relação de compaixão. O amor, de acordo com a leitura tillichiana, deriva da identificação da separação básica entre os indivíduos e da tentativa de anelo pela via da superação de condicionalidade, ou de elementos parciais de separação. Para o budismo, por outro lado, o que separa não são as particularidades de cada um, mas as ilusões geradas pela equivocada condição existencial nesse mundo. A verdadeira natureza presente em todos é a natureza búdica, mas a mesma é atrapalhada pela ilusão da natureza humana. Para o budismo, a natureza humana não é a condição a partir da qual pode-se alcançar o amor “ao outro”. A na-tureza humana é justamente a ilusão que impede que se note que nem mesmo é necessário chegar ao outro para amá-lo, mas simplesmente enfraquecer a sua subjetividade para perceber compassivamente que a natureza real tanto do eu como do outro é a mesma.

Essas três ambiguidades básicas ficam como questionamentos ini-ciais para uma discussão que pode ser feita de maneira muito mais ampla, pois a cada uma delas pode se dar a atenção de uma pesquisa inteira, entendendo assim os problemas não a partir de sua percepção, mas também a partir de seus pormenores doutrinários e filosóficos.

Referências

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ROGERS, C; TILLICH, P. TEXTOS CLÁSSICOS Carl Rogers Dialogues. Diálogo entre Carl Rogers e Paul Tillich (1965). Tradução: Marcos Ricardo Janzen. Revisão Técnica: Gustavo Vieira da Silva e Adriano HolandaRev. abordagem gestalt. v.14 n.1 Goiânia jun. 2008.

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