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ABRE ALAS: SUBVERSÃO E INOVAÇÃO EM CHIQUINHA GONZAGA 1

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Academic year: 2021

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ABRE ALAS: SUBVERSÃO E INOVAÇÃO EM CHIQUINHA GONZAGA1

Janaína Pereira Viana2 Daniela Pedreira Aragão3

Ó abre alas! Que eu quero passar Eu sou da lira Não posso negar Ó abre alas! Que eu quero passar Eu sou da lira Não posso negar!

(Chiquinha Gonzaga) RESUMO

Chiquinha Gonzaga é uma dessas personagens ousadas que surgem de tempos em tempos para romper barreiras e abrir caminhos que marcam a história de uma nação. Ao construir, com talento e originalidade, uma vasta e significativa obra musical, ela ocupa um lugar de destaque na história da música popular brasileira, na luta pelas causas sociais e pela emancipação feminina. Este artigo pretende investigar a contribuição da compositora e maestrina no desenvolvimento da música popular brasileira e sua influência nas mudanças sociais e culturais no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Pretende-se demonstrar a habilidade com que Chiquinha Gonzaga criava suas composições através de um processo de ruptura de paradigmas, a partir do seu caráter musical e comportamental na sociedade conservadora e preconceituosa da época. Para tanto, busca-se analisar algumas composições de Chiquinha Gonzaga que especificam o caráter iconoclasta da compositora. A pesquisa, de cunho qualitativo, foi desenvolvida a partir da leitura da obra “Chiquinha Gonzaga – uma história de vida”, de Edinha Diniz (2009), uma das maiores pesquisadoras da vida e da obra da compositora em questão. Para embasar teoricamente a investigação, utilizaremos alguns aspectos dos estudos sobre a condição feminina apresentados por Simone de Beauvoir (1980), em seu livro “O Segundo Sexo” e quanto ao estudo sobre a música popular brasileira, tomaremos como suporte o livro Pequena história da música popular (s/d), de José Ramos Tinhorão.

Palavras-Chave: Gênero. Chiquinha Gonzaga. Música Popular Brasileira.

1Artigo apresentado ao curso de Especialização em Literatura, estudos culturais e outras linguagens como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Literatura, estudos culturais e outras linguagens.

2Graduada em Letras pela Universidade Federal do Piauí, em 2003. Especialista em Língua Portuguesa pela Faculdade Avantis, em 2009.

3 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1999. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2003. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, em 2013.

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INTRODUÇÃO

“Ó abre alas, que eu quero passar...” assim começa a música mais famosa de umas das maiores compositores brasileiras, Francisca Edwirges Neves Gonzaga, ou simplesmente Chiquinha Gonzaga. E esse verso cai muito bem como lema de vida da autora. Chiquinha Gonzaga é uma dessas personagens ousadas que surgem de tempos em tempos para romper barreiras e abrir caminhos que marcam a história de uma nação. Nascida numa época em que a mulher não tinha voz e nem vez, Chiquinha audaciosamente “abre alas” tanto no terreno musical quanto social. E foi justamente o modo como viveu e quebrou os paradigmas femininos, sociais, políticos e culturais que motivou o objeto desta pesquisa.

Corajosa, Chiquinha ousou viver uma liberdade impensável para as mulheres do seu tempo e foi de fundamental importância na luta pela emancipação feminina, tornando-se uma mulher vanguardista, numa época em que às mulheres cabia o papel secundário de esposa e mãe. Recusou esses papéis tradicionais da mulher e criou um novo papel social: de profissional da música.

Chiquinha Gonzaga viveu num período em que a identidade musical brasileira estava nascendo. Trabalhou incansavelmente na criação de um ritmo que fosse considerado autenticamente brasileiro. Deixou como obra fundamental para formação da música brasileira, de caráter popular, cerca de 2.000 composições em gêneros variados, como: valsas, polcas, tangos, maxixes, lundus, marchas carnavalescas, choros, quadrilhas, mazurcas e modinhas, além de quase 70 peças musicadas para o teatro, tornando-se pioneira nessa área.

Ao analisar o caráter subversivo e inovador de Chiquinha Gonzaga, a partir do viés musical e comportamental, torna-se imprescindível relatar fatos que marcaram a sua longa trajetória de vida.

1 CHIQUINHA GONZAGA – “ALMA BRASILEIRA”

Francisca Edwiges Neves Gonzaga, mais conhecida como Chiquinha Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1847 e faleceu em 28

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de fevereiro de 1935, véspera do carnaval. Durante seus 87 anos, ela viveu intensamente atuando em várias áreas, como compositora, pianista e pioneira em vários aspectos, sendo a primeira brasileira a viver profissionalmente da música, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil e a musicar para o teatro. Atuou também como abolicionista e republicana, numa época em que a mulher “de família” não podia sequer sair às ruas, a não ser para ir à igreja. Chiquinha Gonzaga foi, sem dúvida, uma das maiores representações femininas do Brasil. “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980), a famosa frase de Simone de Beauvoir poderia muito bem ser aplicada à história da compositora Chiquinha Gonzaga que durante toda a sua vida buscou mergulhar no verdadeiro significado da condição feminina, não se deixando intimidar pela ideologia masculina dominante. O foco da assertiva beauvoiriana está, pois, na transformação da mulher limitada para a mulher capaz de construir uma identidade própria, independente e livre. Chiquinha libertou-se pelo trabalho, pela sua arte, numa época em que ser uma artista era motivo de vergonha para a família e compor músicas era um ultraje à austeridade dos costumes e aos rígidos conceitos patriarcais. Segundo Beauvoir “foi pelo trabalho que a mulher cobriu em grande parte a distância que a separava do homem; só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta.” (BEAUVOIR, 1980, p. 449). Chiquinha já vivia essa liberdade mais de cinquenta anos antes desta publicação.

Inovadora, Chiquinha ousou misturar ritmos europeus e africanos para criar uma música popular brasileira ao mesmo tempo em que abria caminhos para a independência da mulher no final século XIX e primeiras décadas do século XX. Foi discriminada e condenada pela sociedade pelo simples fato de desejar viver livremente sem seguir as convenções sociais de seu tempo. Contudo, jamais se deixou abater diante dos obstáculos. Ao contrário, sempre determinada e altiva, trabalhou incansavelmente para realizar-se como a grande compositora que sempre sonhara ser. Prova disso é a anotação feita pela compositora na partitura de uma de suas músicas mais célebres, Gaúcho ou “Corta-jaca”, na qual escreve, em agosto de 1895, “Arre!! São 3 e um quarto da manhã! Estou cansada, vou dormir...felizmente acabei – os galos cantam” (DINIZ, 2009, p.225).

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Ressaltamos que o nascimento de Chiquinha Gonzaga configura-se uma ruptura com uma tradição familiar, já que a menina nasce da relação amorosa entre Rosa, filha de uma ex-escrava, e José Basileu, um militar de família importante da Corte Imperial, motivo pelo qual ele não oficializa a união. Chiquinha, portanto, nasce bastarda, de mãe solteira e mulata, isso tem um sentido importante no contexto social de uma época marcada por uma sociedade escravista e colonizada. No entanto, seu pai se preocupa em lhe dar uma educação refinada, como qualquer sinhazinha da Corte, pois deseja arranjar-lhe um bom casamento. Chiquinha aprende a ler, a escrever, a fazer cálculos, a tocar piano, estuda línguas francesa e italiana, além das prendas domésticas, como bordados e costuras. Ao ser apresentada aos salões da Corte, a mulher precisava ter um nível cultural razoável.

O piano é o grande símbolo da cultura refinada europeia que o Brasil quer imitar e passa a ser objeto de status social. “De início um indiscutível distintivo de classe social, no fim do século, ele já ultrapassava os salões imperiais, atingindo bairros mais modestos...” (DINIZ, 2009, p. 35). O som do piano ecoava pela cidade do Rio de Janeiro, que chega a ser chamada de “cidade dos pianos”. Chiquinha tem aulas com o requisitado maestro Lobo, contratado por seu pai, porém, ele não imaginava que a filha se apaixonaria perdidamente pela música produzida por este instrumento. Chiquinha compõe sua primeira música aos 11 anos de idade, a “Canção dos Pastores”, apresentada à família no natal de 1858. Para a biógrafa da compositora:

É fácil supor que nessa fase de sua formação Chiquinha estivesse exposta à moda musical da época e ao repertório popular. Além do convívio com o maestro professor e o tio, músico amador (tio paterno e flautista), seguramente lhe chegavam os sons das ruas, que, nesse período especialmente, são carregados de sugestões musicais; do assobio ao pregão, o carioca não dispensava a musicalidade que o acompanhava nas atividades mais prosaicas e cotidianas. (DINIZ, 2009, p. 51)

Em 1863, Chiquinha, aos 16 anos, é obrigada pelo pai a casar-se com Jacinto Ribeiro do Amaral, um jovem e rico comerciante carioca, com quem teve três filhos. Chiquinha não se adapta às imposições do marido, que a proíbe de tocar piano, e, alegando maus tratos, como consta nos autos do

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Libelo Cível de Divórcio, de 1876 (Diniz, 2009, p. 72), separa-se de Jacinto, demonstrando uma coragem incomum às mulheres daquele tempo.

Considerando a natureza de sua personalidade, a música representava um meio de manifestar e extravasar seu temperamento e manter sua vontade própria. Compreensivo, portanto, que provocasse ciúmes ao marido e chegasse mesmo a desafiá-lo. Jacinto o encarava (o piano) como um forte rival; proporcionava a sua mulher devaneio, alegria e uma forma de afirmação de sua vontade. E isso era incompatível com o comportamento austero, submisso e abnegado que ele lhe exigia. (DINIZ, p. 61-62)

Isso causa um escândalo para a sua família, que “reage com todo o rigor que lhe competia: declara-a morta, e seu nome, impronunciável” (Diniz, 2009, p. 68). O comportamento de Chiquinha era um mau exemplo e considerado uma afronta àquela sociedade patriarcal e preconceituosa. Para uma mulher, a separação significava um estigma, a marginalização.

Entretanto, Chiquinha provoca novo escândalo ao se juntar com engenheiro João Batista de Carvalho que, segundo a pesquisadora Edinha Diniz, era amigo da família Gonzaga e frequentador da casa dos Amaral. Há suspeitas de que a compositora se apaixonara por ele ainda no tempo de casada. Para Simone de Beauvoir

“o casamento, frustrando a mulher de toda satisfação erótica, denegando-lhe a liberdade e a singularidade de seus sentimentos, a conduz, através de uma dialética necessária e irônica, ao adultério.” (Beauvoir, 1980, p. 317).

O casal, após viver um tempo fora (devido ao trabalho de João Batista), retorna ao Rio de Janeiro e se apresenta em toda parte como casados. Eles têm uma filha. Tais relatos comprovam o comportamento considerado subversivo na época, porém, não menos corajoso, de Chiquinha Gonzaga. O primeiro marido, sentindo-se desonrado, procura condenar a mulher, de forma pública e legal, movendo contra ela um Libelo Cível de Divórcio, acusando-a de abandono do lar e adultério. A união com João Batista também não dura muito tempo, pois Chiquinha não aceita seu comportamento sedutor e mulherengo e não admitia ser traída. Em 1876, o casal se separa. Um ano depois sai a

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sentença do divórcio movido por Jacinto, condenando a ré, D. Francisca Edwiges Neves Gonzaga do Amaral, à separação perpétua. Essas informações tornam-se relevantes no que tange a mais um pioneirismo da compositora, pois, segundo Diniz: “Chiquinha Gonzaga foi uma mulher divorciada um século antes de o divórcio tornar-se um direito civil no Brasil. Um século exato: 1877-1977.” (Diniz, 2009, p. 75)

Chiquinha Gonzaga vai morar numa casa modesta, levando consigo somente o filho mais velho. Maria e Hilário, os outros dois filhos do primeiro casamento moram com o avô materno e com o pai, respectivamente. Alice, filha da união com João Batista de Carvalho, fica morando com o pai. A compositora não tem recursos financeiros e nem condições morais (segundo sua família) para criar os filhos. Para sobreviver, Chiquinha faz do piano seu instrumento de trabalho e com a ajuda do renomado flautista e amigo Joaquim Callado, ela começa a dar aulas de piano e a conviver com a boemia carioca, frequentando a roda dos chorões e tocando em bailes justamente quando a música começa a se abrasileirar. A música de salão que predominava naquele período era a polca, a valsa, a mazurca, as quadrilhas, enfim, o que se ouvia nos salões da Europa.

José Ramos Tinhorão afirma que, a partir da segunda metade do século XIX, a polca vence as barreiras da censura familiar e contagia a classe média urbana brasileira e, que a semelhança do seu ritmo com o lundu permite uma fusão que garante ao gênero de dança saído do batuque a possibilidade de ser, afinal, admitido livremente nos salões sob o nome de polca-lundu (Tinhorão, s/d, p. 56). Chiquinha conhecia esses ritmos desde cedo e passou a mesclá-los ao ritmo africano que ouvia nas ruas, buscando, de forma bastante original e inovadora, a sua identificação musical com os ritmos mais populares.

Contrariando o destino das mulheres divorciadas daquele período, cuja vida estava fadada à marginalização e ao esquecimento, Chiquinha compõe seu primeiro sucesso musical, a polca “Atraente”, em 1877, e torna-se uma pianista famosa. Conforme afirma Edinha Diniz, “a composição foi feita durante um choro em casa do maestro Henrique Alves de Mesquita...ao chegar à casa do amigo, dirigiu-se ao piano e aos poucos foi tirando a melodia obstinada até que ela cresceu, dominou e arrastou os músicos presentes...Callado” (2009, p. 108) e seus chorões. A música atraía as pessoas da vizinhança e das ruas que

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paravam para ouvir a buliçosa polca. “Curiosidade, atração e aplausos consagraram a música de imediato. E desta forma a polca estava naturalmente batizada de “Atraente”” (2009, p. 108). O nome de Chiquinha Gonzaga era comentado em toda cidade. Nas ruas do Rio de Janeiro, o povo assobiava a sua composição por todos os lados. No entanto, para a sociedade conservadora, Chiquinha escandalizava mais uma vez, ao colocar um título tão “indecente” nessa composição.

O comportamento atrevido de Chiquinha – que não apenas colocava títulos de cunho sensual em suas músicas (“Atraente”, “Sedutor”), mas circulava pelas rodas boêmias, fazendo música em qualquer ambiente, convivendo com chorões e notívagos de toda espécie, vestindo-se na contramão do que ditava a moda – acabou por deixá-la mal afamada, principalmente entre 1877 e 1885... (http://ims.com.br/ims/explore/artista/chiquinha-gonzaga)

Após tanta ousadia, qual a reação da sociedade diante de uma mulher que se rebela contra o machismo e as convenções da época? O sucesso musical de Chiquinha provoca a ira de sua família, que compra as partituras para depois destruí-las. Sua popularidade incomodava alguns, que, maldosamente, começaram a escrever quadrinhas satíricas que atingiam a dignidade da compositora. Chiquinha não se deixava abater e fazia novas composições. Aos 29 anos de idade, a compositora esbanjava beleza e sensualidade, e como registram alguns de seus conterrâneos seus atributos femininos eram: sedutora, formosa, insinuante, brejeira, faceira. Ainda neste ano de 1877, Chiquinha publica outras composições de sucesso, entre elas, seu primeiro tango, o qual, audaciosamente (como sempre), intitula de “Sedutor”. Vale ressaltar que Joaquim Callado publicara sua primeira composição com o título de “Querida por todos” em homenagem à compositora, depois compusera uma polca intitulada “Sedutora”. O tango de Chiquinha seria uma resposta à polca de Callado? Esses títulos de cunho sensual seriam uma provocação intencional de Chiquinha? “Uma mulher de má fama, metida em rodas de boêmios, compositora de músicas indiscutivelmente saltitantes e com títulos atrevidos era provocação demais para a sociedade.” (DINIZ, 2009, p. 116)

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Chiquinha respondia compondo músicas cada vez mais ao gosto popular (polcas, valsas e tangos), rompendo barreiras e inovando com sua arte. Determinada e persistente, a compositora descobre no teatro um meio de divulgação e popularização de sua música. Compõe música para a peça “A Corte na roça” (1885), grande sucesso teatral de Palhares Ribeiro, que tem como ápice a escandalosa dança do maxixe, musicada por uma mulher. Feito raro na história da música e inédito no Brasil. Chiquinha Gonzaga foi a primeira mulher a musicar para o teatro. É importante esclarecer que o maxixe corresponde à dança, distinguindo-se do gênero musical, que é o tango.

O maxixe nasceu “da maneira livre de dançar os gêneros de música em voga na época – principalmente a polca, a schottisch e a mazurca – o maxixe resultou do esforço dos músicos de choro em adaptar o ritmo das músicas à tendência aos volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos das danças de salão.” (TINHORÃO, s/d, p. 59)

Para Tinhorão, a polca foi transformada em maxixe através do lundu dançado e cantado por meio “da estilização musical efetuada pelos músicos dos conjuntos de choro para atender ao gosto do povo” (Tinhorão, s/d, p. 64).

Em 1889, no Imperial Teatro São Pedro de Alcântara, a inquieta e inovadora Chiquinha, já consagrada como pianista e compositora, quebra mais um tabu e abre caminhos ao ser a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil, um original concerto de violões em homenagem ao maestro Carlos Gomes, promovendo este instrumento ainda estigmatizado. Estava criado o adjetivo feminino “maestrina”.

Em 1895, Chiquinha lançou uma de suas composições mais célebres, o tango brasileiro “Gaúcho” ou dança do “Corta-jaca”, que seria um maxixe disfarçado de tango. O “Corta-jaca” também se tornou famoso, em 1914, pelo escândalo que provocou ao ser tocado no Palácio do Catete, pela primeira-dama do país Nair de Teffé, que introduz, ao som do violão, a música popular nos salões da elite carioca. A música brasileira, de caráter popular, era marginalizada, assim como o violão. Este famoso tango é um exemplo do traço inconfundível da sensualidade tropical marcante nas composições de Chiquinha Gonzaga.

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Além das atividades artísticas, participou ativamente de momentos históricos como a abolição da escravatura e a Proclamação da República. Num tempo em que o lugar da mulher era no lar, Chiquinha fazia das ruas um espaço de lutas, tornando-se grande ativista nas causas sociais.

Nos últimos anos do séc. XIX, os sucessos de Chiquinha com tangos, valsas, polcas, habaneras e maxixes tomam conta dos bailes e salões de toda cidade. São de sua autoria também modinhas sentimentais como “Plangente”, “Harmonia do coração” e a clássica “Lua branca”, que traduziam um sentimento de tristeza e dor.

Os títulos das composições são uma peculiaridade da obra musical de Chiquinha Gonzaga, pois a compositora se diferencia pela maneira de observar o que a rodeia, de captar o que é próximo, assim ela produz com originalidade. Estendendo-se do campo literário para o campo da música, pode-se dizer que Chiquinha também foi uma cronista do seu tempo ao colocar em suas composições, títulos que representavam fatos marcantes da época, a exemplo do tango “Água do vintém” (1897, o título refere-se à famosa água do chafariz do Vintém, vendida em domicílio e muito apreciada na cidade),”Animatógrafo” (1897, como era conhecido o cinema nos seus primórdios), “Aperte o botão” (1894, Revolta da Armada, a música foi considerada irreverente e subversiva, tendo sido censurada pelo governo Floriano Peixoto e a compositora teve ordem de prisão decretada, mas não chegou a ser presa, devido a seu parentesco com o Marechal Duque de Caxias). Cleusa de Souza registra em seu livro A memória social de Chiquinha Gonzaga:

que Chiquinha Gonzaga dedicou muitas de suas composições a parentes e amigos, pessoas influentes dos meios de comunicação de massa, agremiações e clubes, exercitando, assim, a estratégia social que possibilitava a ela um trânsito livre em vários ambientes sociais e uma grande receptividade. (MILLAN, 2000, p. 117)

Dentre os homenageados pela compositora estão personalidade como os maestros Henrique Alves de Mesquita (tango “Só no choro”) e Carlos Gomes (Valsa “Carlos Gomes”), a princesa Isabel (“Hino à Redentora”), Marechal Osório Duque Estrada (“Marcha fúnebre”), e tantos outros.

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O carnaval chegou ao Brasil no séc. XVII, trazido pelos portugueses. No fim do séc. XIX, surgem as sociedades carnavalescas com os cordões, ranchos e blocos que desfilavam pelas ruas cantando e dançando. De acordo com Tinhorão, “os cordões constituíam uma sobrevivência das alas de certas procissões... foram os primeiros núcleos de criadores da autêntica música de carnaval” (Tinhorão, s/d, p. 113-114). Mas, para ele, “foram os ranchos que, ao adotarem a formação das procissões religiosas, instituíram um mínimo de disciplina em meio ao caos do carnaval, sugerindo desde logo à maestrina Chiquinha Gonzaga, em 1899, motivo para a marcha “Ó abre alas”, declaradamente inspirada na cadência que os negros imprimiam à passeata, enquanto desfilavam suas músicas “bárbaras”. (TINHORÃO, s/d, p. 119)

Chiquinha acompanha a evolução do Cordão Rosa de Ouro, e inspirada pelos requebros e contorções dos foliões, compõe a sua mais célebre criação, “Ó abre alas”, a primeira marcha de carnaval brasileira. Outra inovação de Chiquinha Gonzaga. Aquela que iria eternizá-la. “Diante da enorme bagagem musical da compositora, essa marchinha...é a que melhor sintetiza seu talento e seu espírito determinado...e expressa, com a simplicidade das grandes criações, o sentimento do “povo da lira” em sua passagem para a vitória” (DINIZ, 2009, p. 177). Até então, o carnaval, que viria a representar a nacionalidade brasileira não tinha música própria. Outras marchas carnavalescas somente seriam gravadas em 1917, o que torna o pioneirismo de Chiquinha em evidência novamente, antecipando-se, portanto, em 18 anos dos demais.

Vale ressaltar outros fatos marcantes na vida pessoal da compositora que a diferencia das mulheres comuns: ainda em 1899, ela conhece o jovem João Batista Fernandes Lages, seu companheiro por toda a vida. Ela, com 52 anos, ele, com 16. Chiquinha mais uma vez transgride a ordem dos costumes sociais vigentes, chocando a sociedade da época, e quem sabe até a atual.

Nos primeiros anos do novo século, a compositora viaja com Joãozinho para alguns países da Europa para conhecer de perto os grandes centros culturais que importaram por tanto tempo os ritmos musicais. Para sua surpresa, Chiquinha encontra partituras de suas composições editadas sem a sua autorização em algumas lojas europeias, percebendo o quanto os artistas são vulneráveis quanto aos seus direitos autorais.

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Ao voltar ao Brasil, Chiquinha compõe a opereta “Forróbodó”, sucesso absoluto com mais de 1.500 apresentações. Porém, todo esse sucesso serve para enriquecer os empresários, enquanto os autores recebem muito pouco por seu trabalho, ainda mais sendo mulher. Indignada com tal exploração, a compositora resolve reunir os artistas para criar uma associação para proteger seus direitos autorais. Em 1917 é fundada a SBAT, Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, sendo Chiquinha a sócia-fundadora. Essa associação é um dos maiores legados deixado pela visionária Chiquinha para a classe artística.

Essa mulher corajosa e independente é um símbolo na luta da mulher para conquistar seu espaço na sociedade e na cultura de um povo, através de seus ideais na arte, nos amores e nos movimentos sociais. Ela imprimiu em suas notas musicais a sedução poética através da sensibilidade e do vigor, da originalidade e da graça, tão encantadoramente populares. Para Edinha Diniz, Chiquinha Gonzaga foi uma mulher que “não estava a serviço da pátria, nem da humanidade, nem de um marido. Estava a serviço de si mesma, de suas vontades e desejos. Só que isto não era permitido a uma mulher.” (Diniz, 2009, p. 17)

Foi pioneira e abriu alas para a emancipação feminina, servindo de exemplo a tantas outras mulheres do seu tempo que começaram a vislumbrar um futuro com possibilidade de realização de seus sonhos pessoais e libertação dos limites das regras sociais. A partir de Chiquinha Gonzaga, tornou-se cada vez mais comum ver mulheres desacompanhadas em eventos e encontros culturais ou artísticos, debatendo política e economia, inseridas em movimentos, partidos e causas. Já dizia o revolucionário republicano Lopes Trovão, a quem acompanhava com frequência: “Aquela Chiquinha é o diabo! Foi a nossa companheira de propaganda na praça pública, nos cafés!” (SCHUMAHER, 2000, p. 183)

Neste trabalho, buscamos analisar o processo de tradição e ruptura da compositora Chiquinha Gonzaga, a partir do caráter musical e comportamental. De maneira específica, pretendeu-se identificar algumas composições de Chiquinha Gonzaga que especificam o caráter iconoclasta da compositora, bem como analisar seu comportamento transgressivo diante das prerrogativas de comportamento feminino na época.

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Este trabalho torna-se relevante à medida que nos apresenta a figura iconoclasta da compositora Chiquinha Gonzaga e sua nova forma de compor e apresentar a música, tornando-a genuinamente brasileira. Que Chiquinha Gonzaga era da lira não se pode negar.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: A experiência vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980.

DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LAZARONI, Dalva. Chiquinha Gonzaga: sofri e chorei, tive muito amor. Rio de Janeiro: Editora Entrelinhas. 2005.

LIRA, Marisa. Chiquinha Gonzaga, grande compositora popular brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978.

MILLAN, Cleusa de Souza. A memória social de Chiquinha Gonzaga, a autora, Rio de Janeiro, 2000)

SCHUMAHER, Schuma. Dicionário Mulheres do Brasil. Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 2000.

TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular. Círculo do Livro. São Paulo. s/data.

Sites de internet:

www.chiquinhagonzaga.com – dia 15/06/2015

www.dicionáriompb.com.br/chiquinha-gonzaga/obra - dia 21/06/2015 http://pt.wikipedia.org/wiki/Chiquinha_Gonzaga - dia 07/06/2015 http://ims.com.br/ims/explore/artista/chiquinha-gonzaga - 08/09/2015

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