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Arqueologia do sujeito moderno

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Academic year: 2021

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A arqueologia do sujeito moderno. Por uma crítica não

metafísica da identidade.

Fábio Fonseca de Castro

Doutor de Sociologia,

Professor da Faculdade de Comunicação da UFPA

Resumo: O problema da identidade é um dos grandes temas da cultura contemporânea. De

acordo com certos autores, as sociedades atuais estariam vivenciando uma experiência de “descentramento” de suas identidades tradicionais, num processo que surge com a substituição dos paradigmas de uma sociedade moderna pelos de uma sociedade “pós-moderna”. Este artigo propõe que o problema não é exclusivo de nossos tempos e que ele estaria, na verdade, no bojo das preocupações do homem moderno e na própria constituição da modernidade enquanto processo social intersubjetivo de grande dimensão histórica. Propõe-se que seria impossível pensar em identidade e em crise da identidade sem levar em conta a tradição filosófica moderna e que o núcleo dessa reflexão estaria na noção de subjetividade. O que se chama identidade seria uma preocupação ao mesmo tempo estratégica e moral do homem moderno. Não seria a identidade que se estaria descentrando, mas certa ordem no que tange ao dizer o que é, onde está, o que quer a identidade.

Palavras-chave: Identidade, Subjetividade, Modernidade.

1. Sobre a identidade imperfeita do homem

contemporâneo

A imagem persistente de um homem sem face atravessa a cultura contemporânea. Tratar-se-ia de um homem sem identidade, marcado pelo desejo de ter identidade. Sem face, ele transita facilmente entre os diversos grupos ao seu redor, buscando assimilar e ser assimilado, procurando obter uma identidade. Porém, em nenhum desses grupos ele se sente à vontade. Há como uma culpa por não ter uma face. Não exatamente a culpa por tê-la perdido – ele, simplesmente, não se recorda de ter possuído uma face algum dia, mas tem a certeza de que seu pai a possuía – mas a culpa por a não encontrar. Essa culpa se agrava com o acúmulo das experiências frustradas de uso das máscaras que vai encontrando em seu caminho. Impossível para ele, simplesmente, não ter uma face. O mundo, tal como admite, o obriga a tê-la: impossível ao ser, simplesmente, não ser. Numa reprodução do esquema de Parmênides, fundamento do conhecimento do ser tal como o ocidente o concebe, estrada sem retorno e sem perdão, o ser é na medida exata em que o não-ser não é.

O homem sem face altera-se nesses dois estágios sem admitir um terceiro. Ele não é e é em simultâneo. Em sua angustiante moral, ele se sabe sendo imperfeitamente, porque o ser que ele é, desaparecido, perdido eternamente, coincide com o não-ser engendrado pelas máscaras que usa em seu caminho.

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Se a modernidade tem uma de suas fontes mais profícuas na imagem unificada do Eu, estabelecida com a noção de Cogito em Descartes, a pós-modernidade – ou pós-modernidade tardia, como se quiser, enfim, denominar o estágio atual da modernidade - se engendram, não menos proficuamente, com a noção de uma subjetividade dividida em muitas instâncias – por exemplo, em Ego, Super Ego e Inconsciente -, introduzida pela psicanálise.

Paul Ricoeur denominou Cogito brisé – o Cogito cartesiano estilhaçado - a essa subjetividade característica do mundo contemporâneo (RICOEUR 1990), um processo tanto individual como coletivo, de forma que a fragmentação do Eu individual corresponderia a uma concomitante fragmentação do Eu social.

O que esse processo denota é uma espécie de descrença em relação à coerência identitária – a qual pode ser considerada como um dos pilares da modernidade. O Cogito estilhaçado equivaleria, de certa maneira, à denúncia feita por Heidegger (1993) à ontologia essencialista que caracterizaria o pensamento ocidental e pertenceria à mesma família crítica que inclui Nietzsche e Foucault, a qual se esforça por observar as fissuras do espírito moderno.

O homem contemporâneo é o homem sem face. Seu Cogito estilhaçado conflita com uma coerência ancestral que lhe confere existência – ou melhor, com a qual se confere existência. A contemporânea tematização da identidade, perceptível em uma série de práticas sociais, parece indicar uma espécie de temor, individual como social, diante desse problema aparentemente sem solução que é a revelação da incoerência essencial de toda identidade. Como que pressentindo essa espécie de perda de substância, vivenciando certamente o Cogito estilhaçado que poderia demarcar o espírito do tempo contemporâneo, pessoas e grupos articulam-se na busca por uma constituição demarcatória. Entrevê-se uma zona fronteiriça, onde uma lacuna moderna procura se preencher com estratégias não-modernas. Parece que convivem um desejo de ter identidade (herdado da modernidade) e uma verificação da incoerência desse projeto, politicamente situado num mundo em globalização acelerada.

Na verdade, o estilhaçamento do Cogito, desse Eu integral e pleno, simbólico, não leva a uma superação da modernidade, mas a um paradoxo, pois o logos social exige, como antes, a nomeação, a implementação das idéias sobre o Mesmo como sobre o Outro. O logos social conforma a prática social. Ele garante a presença duradoura das práticas anteriores nas práticas contemporâneas. Observemos que não é a história que se divide em fases ou épocas, pode-se dizer, mas sim a compreensão da história que o faz. É assim que a pós-modernidade não é um sucedâneo da modernidade, mas sua continuação – um rótulo com o qual se assinala “o estado das coisas”, ou melhor, certas dinâmicas contraditórias que sugerem uma espécie de transição.

Espaço de transição, a cultura contemporânea tematiza o homem sem face. A exigência de ter uma face desponta como um eco da modernidade. Um eco tardio, porém. Essa exigência – de integridade, de limpeza, de essencialidade, de substancialidade -, como todos os fenômenos políticos do mundo contemporâneo o demonstram, parece se gerar com a consciência de que esse processo – a Nomeação do ser - institui-se por meio de alegorias.

Na ausência de toda coerentia identitatis supõe-se a nulidade de todos os processos de coerentia identificandis. Tal incoerência evocaria, supomos, o

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alegórico. Pois, se uma ordem simbólica equivaleria ao sentido perfeito, íntegro, coerente – um movimento pendular de significação, que se encontra nas próprias raízes etimológicas do termo símbolo, onde syn evoca sentido e ballein equivale a um movimento de ida e retorno - uma ordem alegória equivaleria a um movimento permanente, mas dúbio, estigmatizado pela percepção do processo verbal de nomeação do sentido. Assim, alegoria viria de allos (outro) agorein (falar de), falar sobre o outro, e não sobre o si mesmo, numa operação que demarca espaços lacunares como espaços constituintes

No mundo atual, a alegoria é um Cogito estilhaçado. Tal como a identidade também o é. Dessa maneira, não se apontaria uma tendência à anulação da identidade, mas uma tendência à modificação do regimento da identidade: esta perderia, tendencialmente, seu caráter simbólico em prol de um caráter alegórico. Em termos nietzcheanos, ela adquiriria uma consciência da linguagem.

Paul Ricoeur introduz um outro termo, igualmente feliz, para referir essa alegorização do mundo: identidade narrativa. Observando que, não obstante o estilhaçamento do Cogito cartesiano – e, em conseqüência, de certa noção de subjetividade – o mundo que se inicia com o século XX engendrou, evidenciou, a necessidade humana em estabelecer uma certa unidade para sua existência. A essa unidade, que toma a forma de um discurso que os indivíduos podem construir sobre si mesmos, Ricoeur chama de “identidade narrativa”.

Se regida por um status simbólico, a identidade seria equivalente à própria essência do ser. Ao contrário, regida por um status alegórico, ela seria, mormente, uma existência do ser. Recuperemos as fontes desse longo debate. O termo de referência para a noção de identidade é a noção de subjetividade, porque a identidade seria vista como a subjetividade essencial do ser, de um lado, ou como a subjetividade projetada do ser, por outro lado.

Porém, que subjetividade? A dimensão psíquica do individuo? A dimensão interpsíquica do corpo social? Sobre que subjetividade estar-se-ia falando? Necessário explorar esse conceito, a fim de compreender os fenômenos sucedâneos da representação e da identificação.

A divisão do mundo em duas esferas - uma objetiva e outra subjetiva – é um pensamento pregnante no senso comum construído pela modernidade. A esfera objetiva englobaria o “mundo propriamente dito”, em sua totalidade histórica e natural, enquanto que a esfera subjetiva seria privativa do Sujeito – constituindo o subjectum referencial e constituidor da privacidade do Ser. Em outros termos, sua própria subjetividade, compreendida como uma substância que lhe é própria. A linha semântica que reúne os termos sujeito, subjetividade, subjetivo, substância, com as suas demais variações, acaba por instituir um universo paralelo ao mundo : o mundo do Ser, cujos vínculos com o mundo objetivo são interpretados, por longa tradição metafísica, enquanto relações de concorrência e oposição.

Assim, o subjetivo constituiria a substância individualizada exclusiva do sujeito – em termos mais simples o pensamento, noção cujas fontes estão no conceito grego de hypokeimon, que em latim será traduzido como subjectum e, por vezes, como suppositum, ou seja, como senso lógico. Por tal, se deseja referir o sujeito enquanto substância, enquanto substrato aos acidentes do mundo,

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noção que se configura como uma das etapas centrais do pensamento da modernidade.

2. A subjetividade como o fundamento da identidade

moderna

Isto posto, podemos dizer que, no bojo da modernidade, o debate sobre a Identidade impõe o debate sobre a Subjetividade. Por isso, é impossível pensar em Identidade sem levar em conta a tradição filosófica que pensa a Subjetividade. A princípio, porque é a Subjetividade que institui, em todos os planos, a noção de Identidade, podendo-se dizer mesmo que a Identidade constitui uma experiência subjetiva do sujeito, seja ele um sujeito individual, seja um sujeito social.

Para que o ser seja o que é, impõe-se como sua propriedade a identidade. O ser (e não um ser) não se é senão sob a condição de sua própria identidade. Supor o contrário equivale a supor que ele é outro – ou, simplesmente, que ele não é. No senso absoluto do termo, ser equivale a ser-idêntico-a-si-mesmo. Não se pode pensar o ser sem colocar, ao mesmo tempo, a necessidade da identidade (COURNARIE 2001: 24).

Assim funda-se a chamada ontologia ocidental – no ato mesmo em que funda-se a filosofia. Trata-se do princípio de Parmênides segundo o qual o ser é, apenas, e não pode, simplesmente, não-ser. Pode-se compreender esse raciocínio como um primado ontológico e lógico. Ao inaugurá-lo, Parmênides se tornou o pai, a um só tempo, da ontologia e da lógica, estabelecendo entre as duas uma relação de contingência que longamente perdura no mundo ocidental. Em Parmênides, pensar e pensar no ser são a mesma coisa (1996).

Pode-se mesmo dizer que o ser é, segundo Parmênides, opositor ao existir, na medida em que, para aceitarmos que o ser possui essa coerência absoluta, precisamos repudiar a idéia de que o ser está sujeito às experiências de estar-no-mundo e, portanto, às transformações que essa experiência impõe. A experiência do mundo sensível (o encontro com o mundo) está na existência e não, portanto, no ser, sendo necessário pensar, se de acordo com a lógica parmenidiana, que o ser é, enquanto que a existência é ausente ao ser. E, assim, se o ser é, ele não existe. Se ele é absoluto, autológico, ele, simplesmente, não é.

A tese de Parmênides foi continuada por Platão, cuja busca pelo “ser verdadeiro” (ontôs on) - aquele que pode ser eternamente o mesmo – conclui-se, por exclusão, na idéia de que tudo o que é passível de se transformar em outro não é ele mesmo. Platão chama a essa permanência (continuidade, definição) do ser de ousia (essência. Seu esforço culmina no Phédon (1960: 36), onde o termo ousia evoca as funções de unidade e de identidade absolutas que se tornarão características do ser platônico. A ele, Platão opõe a noção de idéia – eidos – com os quais identifica as funções de variação e de multiplicidade presentes no indivíduo – no indivíduo, bem entendido, distanciado do ser. A função da idéia, em Platão, seria a de tornar possível a visão da essência. A idéia (forma: eidos) poderia ser, assim, compreendida como a evidência, o prenúncio, como a libação da essência. A idéia abriria ao espírito o conhecimento da coisa.

Aristóteles redimensionou o pensamento platônico, porém preservando, e mesmo ampliando, o estatuto ontológico que definia a identidade

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em correspondência com o ser. Uma tese sobre a persistência e a demarcação das entidades está presente na noção aristotélica de hypokeimon, acima referida. Traduzida na Idade Média por substrato, hypokeimon passará a constituir um termo fundamental no pensamento ocidental, ainda que encoberto pela leitura que dele prestaram os pensadores cristãos. Substrato, particípio passivo neutro do verbo sub-sternere (enterrar-se) é um termo escolástico usado para designar as qualidades de um ente qualquer – as coisas internas e próprias ao ser, uma forma, portanto, de essência. Tomás de Aquino o empregará (1978) para esclarecer a noção de materia signata, ou seja, a característica que confere a um ser uma singularidade única.

O termo não é concorrente da palavra substantia, usada por Santo Agostinho para traduzir ousia, e, na verdade, ambos acabam por evocar um principium individuationis caracterizador da sua metafísica comum.

A cristianização dos filósofos gregos pelos pensadores medievais corresponde, como se sabe, a um dos momentos decisivos da história humana. A razão moderna, diretamente tributária desse processo, deriva, pois, de uma metafísica transcendental que compreende o sujeito como um derivado do ser. Não obstante, será em oposição ao pensamento cristão, que a razão moderna irá constituir o tema do ser enquanto sujeito, fazendo o caminho inverso ao hypokeimon que antes regia as normas do pensamento.

É assim que Leibniz, nos albores dessa modernidade, conferia à esfera do Sujeito uma dimensão histórica que, antes de si, não era atribuída senão ao mundo natural: “Subjecti enim est praeter presentem involvere et futuras

cogitationes praeteritasque”1. Ou seja, preservado o principium individuationis

medieval, abre-se espaço, entretanto, para que o tema o subjectum, ou seja, do sujeito e da subjetividade, seja abordado com mais liberdade e profundidade.

No caminho aberto por Leibnitz, Descartes conferiu ao termo subjetividade sua verdadeira consistência teórica. Atribui-se-lhe, efetivamente, o que em filosofia se tem chamado de a descoberta da metafísica da subjetividade, com o que se quer referir a propriedade do homem em portar – ou melhor, em saber-se portador - de uma consciência sobre si mesmo. Descartes o faz por meio da noção de Cogito, que é a primeira grande teorização do espírito moderno sobre a Subjetividade e, portanto, sobre a Identidade. O Cogito constitui uma experiência fenomenológica pela qual o Ser se descobre existindo – o Existo se experimenta, inicialmente, sob a forma de Cogito, com o resultado de que o limite entre ambos é visto por Descartes como a própria fronteira entre o Ser e o Mundo. Assim, a noção de Cogito seria a aparição pura do conceito de subjetividade. O Cogito desvenda ao Ser a sua Substância essencial.

O termo é estrutural, e conforma o núcleo da metafísica refundada por Descartes. Para Descartes, o Ser possuiria uma Substância e a experiência do Cogito permitiria a sua descoberta.

A substância, em Descartes, é o que é próprio ao Sujeito: Ego autem substantia. A substância reporta ao Sujeito, constitui-o; porque é a positividade de ser que fornece substância a ser. Deduzimos que a substancialidade é a condição da subjetividade: a natureza particular do homem reside na

1

«Cabe ao indivíduo desenvolver, para além de seu pensamento presente, também seus pensamentos passados e futuros». Carta a Volder, de 20 de junho de 1703. In Die philosophischen Schriften, Frankfurt, Gerhardt, 1990, Tomo II, p. 249.

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peculiaridade da sua substância, a qual difere, necessariamente, da substancialidade das coisas do mundo, onde a Substância é imanente ao Ser, numa relação de contigüidade.

A noção de subjetividade – e, por extensão, também a de Identidade – conformarão o ethos central da modernidade, em tudo o que a sociologia clássica atribui-lhe como características: os princípios da individualização, da unidimensionalização, da autonomização e da objetivação.

3. A crítica da subjetividade como crítica da modernidade

Porém, a complexidade da modernidade produz, em paralelo, uma autocrítica corrosiva. Contra uma compreensão metafísica da subjetividade se voltam as críticas elaboradas por Kant, Nietzsche, Husserl e Heidegger ao projeto cartesiano.

Kant procurou dissociar Sujeito e Substância – núcleo do pensamento cartesiano – observando que, não sendo o Sujeito dado a si mesmo como Substância, não há, aí, senão uma operação de transcendência. Kant critica, em Descartes, a falsa evidência da imediatez (da imanência) dizendo que o sujeito é sujeito, apenas, por meio da operação lógica de constituir-se enquanto sujeito - ou seja, de constituir-se transcendentalmente em sujeito.

Husserl aproveita em Kant a noção de transcendência e, tal como ele, se lança à procura das estruturas primárias, apriorísticas, da Subjetividade. Porém, enquanto Kant percebe essas estruturas como condições de possibilidade da experiência, Husserl as compreende como a constituição de uma objetividade enquanto doação – expressão com a qual refere a capacidade do Sujeito em doar-se o mundo, ou melhor, sua capacidade em saber-se no mundo por meio de sua experiência de estar no mundo. Compreender o mundo, não sendo um ato de pura subjetividade, como quer Kant, se torna, para Husserl, um ato que se gera na capacidade em que tem o Sujeito de se auto-doar a realidade efetiva (Wirklichkeit) das coisas do mundo.

Ambos os filósofos compreendem a Subjetividade enquanto construção transcendental do Sujeito, mas há diferença entre eles no que se refere ao próprio estatuto do transcendental. Para Kant, o transcendental decorre do fato de que o objeto gira em torno do Sujeito, e não o contrário, como postulariam os autores que o antecederam, dentre os quais Descartes. Husserl critica essa visão como algo muito voltado para si mesma, em detrimento da coisa em sua dimensão ôntica. Ou seja, Husserl confere à realidade objetiva seu papel na constituição do conhecimento. Enquanto Kant opõe o transcendental ao empírico, Husserl pensa o transcendental como um objeto que é dado a Ego por meio de uma experiência que em si mesma é transcendental. A perspectiva fenomenológica, inaugurada por Husserl, observa justamente essa relação de completude – transcendental – entre o Sujeito e o mundo material por meio da experiência – uma experiência de redução do mundo, que permite que se veja o Sujeito como um Ego transcendental.

Como Kant, Husserl parte da perspectiva egológica aberta por Descartes – ou seja, da idéia de um Ego Cogito sobre o qual se assenta todo fundamento do pensamento (cogitatio) e, portanto, toda a construção da Subjetividade. Porém, em Husserl, esse Ego Cogito submerge face à flexibilidade da interpretação do

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mundo – e de si próprio, e das próprias condições de interpretação - pelo Sujeito. Husserl opõe-se, assim, ao formalismo simbólico, o qual se rege pela crença na autocoerência das significações. O Sujeito husserliano encontra o mundo por meio dessa experiência de redução, intuição e evidência.

Uma variação da perspectiva husserliana é encontrada em Nietzsche, que considera o Cogito como um “Cogito sur parole”: o homem acredita ser um Sujeito, mas o Sujeito só existe em sua função gramatical, ou seja: a elaboração do pensamento exige-lhe a construção de um Sujeito – de um Sujeito que lhe represente, em toda organização do pensamento, em primeira pessoa. Para Nietzsche a Subjetividade é o produto de uma interminável confusão entre coisas e palavras.

Heidegger reprova Descartes, Kant e Husserl por não terem aprofundado o caminho que iniciaram, deixando ininterrogada a Subjetividade do Sujeito enquanto tal. Para Heidegger a verdadeira Subjetividade estaria além da mitologia lógico-metafísica que conformou a história do pensamento sobre o Sujeito. Kant e Husserl ainda estariam contaminados por essa tradição, com o resultado de que suas investigações sobre a Subjetividade teriam ficado incompletas. Caberia, segundo Heidegger, radicalizar a dúvida sobre quem é o Sujeito, a despeito da dúvida sobre o que é o Sujeito.

O projeto de Heidegger é por à luz a ipseité (être-soi) constitutiva do Sujeito. Efetivamente, a primeira parte de Ser e Tempo (a única publicada) problematiza a questão da ipseidade, indagando sobre o que significa ser um sujeito? No § 25 dessa obra, Heidegger elabora, em conseqüência, uma crítica radical da noção de Sujeito, propondo-lhe uma definição: “aquilo que, nas variações de atitude e de vivência se mantêm idêntico e, assim, refere-se a essa multiplicidade” (1990: 165).

Em síntese, pode-se ver, entre Descartes e Heidegger, passando por Kant, Husserl e Niezsche, dentre outros, um trajeto de compreensão da Subjetividade que vai do ancoramento transcendente do Sujeito a sua Substância fundamental (compreensão metafísica do Sujeito e de sua Subjetividade) à completa corrosão, em Heidegger, dessa visão.

Enfim, tal como a subjetividade cartesiana conforma o ethos central da modernidade, também uma crítica dessa subjetividade está presente na sociedade ocidental. A partir de Nietzsche e de Heidegger abriu-se caminho para o processo que Paul Ricoeur, como falávamos no início deste artigo, denominou de cogito brisé.

O cogito estilhaçado, ou melhor, a identidade descentrada de que desejamos falar corresponderia, mais apropriadamente, à percepção da própria inocuidade da noção de sujeito conformada na modernidade. Essa noção de descentramento situa-se nos termos do debate filosófico sobre a ontologia do conhecimento, na evidência da contradição da noção de subjetividade. Segundo esse modo de pensar, o cogito estilhaçado não corresponderia a uma crise da subjetividade, mas à própria reversão da idéia de subjetividade, à contrariedade do hypokheimon grego e do subjectum medieval.

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4. A identidade como commercium libertatis do sujeito

moderno

O que podemos deduzir dessa explanação é que a modernidade é um veneno que contém seu próprio antídoto. Se a noção de subjetividade – e de sujeito – constitui o veneno dessa fórmula, o antídoto está, igualmente, na recolocação da problemática do sujeito – e da identidade. Não obstante, antes de procurarmos expor a natureza dessa questão – e não, propriamente, colocá-la, tarefa que exigiria um esforço maior de coesão que o que nos propomos - é preciso referir, de forma mais centralizada, a maneira como esse núcleo central da modernidade, que é a noção de sujeito, se relaciona com o tema da identidade.

Que é o sujeito, afinal, do ponto de vista da modernidade? Um ser que tem consciência dos processos da linguagem que fazem dele um ser. Ou melhor, um ser que se sabe ser porque conhece a linguagem por meio da qual se realiza enquanto ser. Do ponto de vista moderno, o sentido, a coerência verbal, corresponde, eqüi-originariamente, ao ser: ali onde a linguagem nomeia o ser, o ser se totaliza e se cala. O sujeito moderno constitui uma operação transcendental que relaciona o ser e o sentido, ou melhor, o seu sentido. Essa operação é, na verdade uma tautologia: o logos é verdadeiro porque o sentido o é. O ser é um ser porque há uma maneira pela qual define-se enquanto tal. Dessa maneira, pode-se dizer que há uma “lingüisticidade” originária na nomeação do ser, que equivale à operação de fazer sentido para si mesma. O ser da modernidade é o ser que se nomeia. O ser que tem identidade. O ser que tem nome.

Há uma pretensão fundamentalista nessa operação. Por meio dela, o sentido – equivalente ao ser verdadeiro – cobre, simultaneamente, os domínios lógico-epistemológico e real-sistemático, desse modo coincidindo com o mundo (ou seja, a um só tempo, com os campos psicológicos, sociológicos, antropológicos, matemáticos, biológicos, religiosos, etc, do ser no mundo). O sentido, instrumentalizado pela linguagem, equivale à medida do ser, mesma operação transcendental absoluta.

Porém, ao mesmo tempo em que se define por meio da linguagem e dentro dela, propriamente, o sujeito moderno define o não ser, considerando-o, pelo uso da lógica, como uma extensão absurda do seu estar no mundo. A alternativa ao primado do ser é a gênese, a linguagem, a não-manifestação do sentido. Porém, a tautologia metafísica da modernidade observa que, para enunciar-se, o não-ser também deve recorrer ao sentido, numa amarra circular que lhe prescreve o ônus de ser, igualmente, para, simplesmente, não-ser.

Ou seja, há, pretende-se, uma não-absurdidade em todo absurdo. Há um ser em todo não-ser. Por meio dessa operação tautológica a modernidade se converte numa prisão kafkiana. Seu movimento é a conversão equânime. Seu processo é o infinito. Sua coerência é a totalidade. E o resultado dessa operação de interminável conversão do mundo em coisa, do estar no mundo em sentido, é a perda do horizonte do mundo da vida.

Há, porém, um processo ilógico nessa lógica tautológica: a manutenção da relação eqüi-originária do ser com o sentido, por meio da linguagem, exige a perda da relação eqüi-originária do ser com a liberdade.

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Se não com a liberdade de, simplesmente, não-ser, com a liberdade de ser, simplesmente, de outra forma.

Essa situação gera, ao menos, dois paradoxos, ambos constitutivos da modernidade. O primeiro é o paradoxo da retenção do potencial sentido da expressão liberdade, a qual se vê convertida na possibilidade de uma escolha tautológica: a possibilidade de escolher dentro de um plano que faz sentido. Ou, mais radicalmente colocando, a liberdade de escolher ou não-escolher (que, portanto, é a mesma coisa que escolher). Ora, a liberdade de escolher entre escolhas pré-determinadas, simplesmente, é uma não-liberdade.

Dentro da lógica moderna, em função de sua natureza logocêntrica, a expressão liberdade se converte numa retórica artificial, acionada para apaziguar a intranqüilidade gerada pelo dispositivo de transcendência que associa o sujeito ao sentido. Para apaziguar o absurdo que, mesmo reconvertido em não-absurdo pela lógica tautológica, persiste na modernidade como sua mauvaise conscience.

O segundo paradoxo gerado pela relação eqüi-originária do ser com a liberdade diz respeito à identidade. Pois a identidade é a forma como, normalmente, se apresenta o ser. Como tal, pode-se dizer, a identidade corresponde a um sentido.

Compreendamos, antes, o processo desse sentido para, em seguida, compreender o paradoxo que lhe é interposto.

Pode-se compreender a identidade, segundo o próprio ponto de vista da modernidade, como uma situação configurada por três características básica:

a) equivale a uma totalidade semântico-pragmática;

b) subsiste na dinâmica relacional estabelecida entre sua própria finitude e sua própria situcionalidade;

c) conforma um movimento transcendente de dizer-se, a si mesma, enquanto relação: a relação entre o que é e o que não-é.

Essas três dinâmicas, internas à noção de identidade completam-se mutuamente. O sentido produzido leva a uma identidade absoluta, conformada pela operação transcendental que reúne o ser ao sentido.

Porém, cabe ver que a condição de ser-absoluta num procedimento de auto-refletir-se (o simples dizer-se é uma reflexão sobre o ser, no caso da identidade) em permanente medição com o outro (o não-ser) constitui, igualmente, uma quebra na relação eqüi-originária do ser, que tem a identidade, com a liberdade de ser o outro ser – com o qual se mede, ininterruptamente, no seu processo de ser-o, de ser-a, de ser-em, de ser-de, de ser-para... de, enfim, ter identidade.

Poder-se-ia falar, por essas razões, sobre um commercium libertatis para caracterizar o ser moderno. Ao definir-se com a consciência da linguagem – com a consciência de que se realiza através do emprego da linguagem – ele se submete à coerência da totalidade que persiste, no logos moderno, como a única consciência possível. Ao fazê-lo, reduz sua potência de ser no mundo da vida, num espaço que se caracteriza pelo simplesmente, pelas experiências parciais, contíguas a um no-mundo-imediatamente, a um ser-aí – não pelo estar-no-mundo totalmente.

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Ao proceder transcendentalmente, o ser moderno faz o comércio da sua liberdade.

5. Conclusão: a inocuidade da identidade - tanto como

cogito como também como cogito estilhaçado.

O que se chama de identidade é uma preocupação eminentemente política do indivíduo social. Ela constitui uma preocupação ao mesmo tempo estratégica e moral, baseada na necessidade em centrar seu ser, dotando-o de uma coerência reflexiva, subjetiva, útil para intermediar a sensação de estar-no-mundo constituída em todo imaginário sobre o ser. Com efeito, a identidade é um problema de ordem ontológica, e não, efetivamente, de ordem ôntica, como se propõe. Não é a identidade que se está descentrando, mas uma certa ordem no que tange ao dizer o que é, onde está, o que quer a identidade.

Assim, o problema do centramento e do descentramento da identidade não é um tema privativo da pós-modernidade, como desejam certos autores2. Ele se coloca com a própria modernidade, na medida em que a necessidade de “centrar” o sujeito em escolhas identitárias precisas surge, já, como uma resposta ao problema do descentramento do indivíduo no enleio dos próprios processos históricos da modernidade. A diferença tange, exclusivamente, ao modo como as respostas a essas questões são encaminhadas: na modernidade, ao problema do descentramento do sujeito, se impunha a necessidade em recentrá-lo, por meio de escolhas a serem feitas necessariamente; por outro lado, na pós-modernidade, essas escolhas deixam de ser exigidas aos indivíduos e as diversas forças e estruturas reguladoras do social deixam de impô-las.

Nos dois casos a identidade é colocada como resposta, como nome, como linguagem com a qual se intermedia uma relação política com o social e, num plano mais abstrato, com o sobrenatural. Nos dois casos o problema da identidade é colocado ontologicamente; diante da sua impossibilidade ôntica, o tema da identidade diz respeito, exclusivamente, às dinâmicas do ser, e não às do existir. Diz respeito às dinâmicas do ser-no-mundo e não àquelas do estar-no-mundo. Ela conforma-se, portanto, como uma indagação de natureza essencialista.

Ou melhor, como a resposta para um questionamento; como assinalamos, como resposta para um questionamento sobre o estatuto do ser num mundo marcado pelos processos históricos da modernidade. É a crise social gerada pela transformação do mundo ocidental pela modernidade que gerará o tema da identidade. É a modernidade que descentra o sujeito, bem mais que a pós-modernidade. A única diferença entre esses dois momentos é o fato de que a modernidade, ao contrário da pós-modernidade, empenha-se na elaboração de mecanismos capazes de engendrar respostas positivas para a questão e de cercear a vida social e obrigar os indivíduos a vincularem-se a essas escolhas.

2Cf. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2003; MAFFESOLI, Michel. Du

nomadisme. Vagabondages initiatiques. Paris, Le Livre de poche, 1997 ; LYOTARD, Jean-François. Moralités posmodernes. Paris, Galilée, 1993 ; JAMENSON, Frederic. Postmodernism and consumer society, in FOSTER, Hal (ed.) The anti-aesthetic, essays on postmodern culture. Port Towsend (Whashignton), Bay Press, 1984, pp. 113-118, por exemplo.

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É preciso compreender que a noção de identidade só é evocada diante de uma situação de perigo, de corrosão da idéia em vigor sobre o ser, diante da ameaça de corrosão ontológica de uma referência que, a si, se pretendia ôntica. Pois, como assinala Kolbena Mercer, “A identidade somente se torna uma questão quando está em crise, quando algo que se supõe como fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza” (MERCER 1990: 43).

Ora, é precisamente a crise gerada pela passagem da sociedade medieval para a sociedade moderna – ou, mais especificamente, de passagem do ancien régime para uma sociedade burguesa e proletária que gerará a necessidade de compor referências capazes de assegurar às pessoas o sentimento de pertenciamento e segurança gerado pelas imposições do primado metafísico – todo ele ontológico – da cultura ocidental.

Sendo a modernidade um veneno que contém seu próprio antídoto, tratar-se-ia de desconstruir a própria metafísica como operação fundamental para a compreensão do problema do ser – e da identidade – e, por meio dessa operação, de criticar a idéia mesma de subjetividade – em prol, provavelmente, da construção de um argumento em favor da intersubjetividade. Desse modo, tal como a intersubjetividade seria não uma dinâmica modal da subjetividade, mas, verdadeiramente, o seu oposto, evocando a idéia de uma consciência viva e processual, socialmente produzida, a identidade seria não um subjectum estilhaçado, desmontado pela tecnologia pós-moderna, mas sim, verdadeiramente, um processo residual intersubjetivo: um constructo, uma identificação. A crise ontológica que Paul Ricoeur aponta ao discutir o cogito estilhaçado na cultura contemporânea não estaria na decomposição das identidades pelos processos sociais de nosso tempo, mas na desmontagem da forma como se pensa em coisas como consciência, subjetividade e identidade.

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