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O silêncio eloqüente. Irene Franco (UNICAMP) Temas Eternos e o Tempo Histórico

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Academic year: 2021

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O silêncio eloqüente

Irene Franco (UNICAMP)

“Temas Eternos” e o Tempo Histórico

As Metamorfoses são um dos livros mais bem realizados de

Murilo Mendes. Escrito entre 1938 e 1941 e publicado em 1944, pertence ao reconhecido período de utilização mais acirrada de procedimentos surrealistas, como a montagem. Naqueles anos do segundo grande conflito mundial, o referencial bélico esteve bas-tante entranhado nas composições do poeta. Aviões, fuzis, “tanks”, bombardeios e metralhadoras foram incorporados a imagens inqui-etadas e inusitadas, ao lado dos quatro elementos cósmicos, de pai-sagens naturais e de referências textuais ao Apocalipse joanino.

Um dos resultados de todas essas convergências é o grande índice de idílios e pastorais. Mas a poesia é em As Metamorfoses es-tranhamente bucólica, pois o locus amoenus de paisagens atemporais é invadido maciçamente por invenções humanas típicas de nosso tempo histórico, alcançando-se assim uma atualidade desconcertan-te:

A grande dignidade das pedras Exclui arcos de triunfo.

(“Estudo nº 3”, Poesia Completa e Prosa1, p. 321).

A manhã suspende guizos

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Cordélia semeia pés de nuvem, Colhe miosótis, gramofones.

(“Abismo voador”, PCP, p. 342).

Auroras se levantam de muletas Sobre imensas planícies em formação.

(“Estudo nº 2”, PCP, p. 320)

Há uma convergência de presságios Nos jardins cobertos de rosas migradoras E nos berços onde dormem crianças com fuzis.

(“História”, PCP, p. 330)

É grande também a incidência de elementos pinçados da mi-tologia grega, substrato importante da formação de Murilo. O Mi-notauro, Prometeu e a genealogia dos Átridas, por exemplo, com-parecem de forma expressiva em imagens atualizadas.

“Temas eternos” é um poema belíssimo que reúne algumas dessas imagens. Em princípio, parece dos mais descomprometidos com a História e ligado exclusivamente ao universo mítico. Até porque mimetiza, pelo tom enigmático, as predições de um orácu-lo:

1 Há sempre um amor procurando seu nome 2 Na solidão do livro dos tempos.

3 Há sempre uma veste nupcial 4 Pendendo da guilhotina da noite.

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5 Há sempre restos do Minotauro 6 A escurecer os campos tranqüilos.

7 Há sempre um olhar espiando o horizonte 8 Um olhar que não foi visto.

(“Temas eternos”, PCP, p. 345).

Os quatro pares de dísticos lembram os epigramas recorren-tes em toda a produção poética de Murilo Mendes, que continuam a marcar presença nos escritos em prosa. José Guilherme Merquior faz essa observação numa leitura pouco conhecida do “Setor texto délfico” de Poliedro. Característico de toda a obra de Murilo Men-des, o epigrama, segundo o crítico, veio desde o início muito a ca-lhar para um poeta que desenvolveu de forma tão feliz, em etapas mais tardias, a prosa altamente fragmentária de Poliedro e A Idade do

Serrote. Merquior mostra que no aforismático “Setor texto délfico”

eles continuam predominantes. Mas enquanto se estruturam sobre-tudo em dísticos nos poemas (como em “Temas eternos”), ali “a frase epigramática é esculpida em ritmo monolítico2”.

No poema em questão o efeito de construção não é humo-rístico como em estruturas epigramáticas. Ao contrário, o parale-lismo evidente entre os primeiros versos de cada par (graças à repe-tição da expressão “Há sempre”, responsável pela atemporalidade ou universalidade do que é afirmado), confere um certo tom solene ao que é dito. Toda a composição parece ser, à primeira vista, a anunciação de mistérios ou enigmas jamais claramente enunciados e decifrados, à maneira dos oráculos gregos antigos. Também suas profecias, enunciadas numa atmosfera de silêncio sagrado, eram normalmente ambíguas e precisavam ser posteriormente interpre-tadas...

A forma do poema parece endossar esse paralelo, uma vez que o agrupamento dos versos em dísticos obriga também a uma

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leitura pausada. As estrofes muito curtas e o breve silêncio instau-rado entre elas mais sugerem que descrevem as paisagens. Mas há uma diferença fundamental entre os enunciados do poema e as predi-ções oraculares: aqueles não são, como esses, simples ponderapredi-ções lingüísticas. As imagens, em sua sugestão visual, são formadas por elementos que não perdem seu caráter concreto.

É o que propõe Antonio Candido em sua leitura de “O pas-tor pianista”, outro poema de As Metamorfoses. O crítico aponta pa-ra uma certa resistência dos elementos da paisagem insólita e irreal da composição, que permanecem “coisas”; que não se convertem em mera “linguagem abstrata”.

a despeito das palavras do poema terem sentidos figurados (...) os elementos centrais oferecem resistência se os quisermos traduzir em significado abstrato. A planície deserta, os pianos gritando ao luar, as sombras sem pássaros, as rosas andejas são isso mesmo, permanecem

tais, vinculados pelos nexos arbitrários da visão surreal. O que há neles de

abstração foi reduzido à dimensão concreta (...)3”.

Ademais, exatamente como em “O pastor pianista”, a at-mosfera sugerida em “Temas eternos” é também de “fantasmago-ria lúcida, no descampado noturno que lembra perspectivas metafí-sicas de Giorgio De Chirico ou Salvador Dalí.”. Mas creio que essa aproximação deva ser bem delimitada. Murilo não pode ser rotula-do poeta metafísico, pelo menos à maneira rotula-dos rotula-dois artistas plásti-cos. Isso pela poética “antimodernista” que os caracteriza, no dizer de Giulio Carlo Argan, marcada ainda por grande ambigüidade, e que “evita deliberadamente as inovações técnicas e formais, fruindo a obviedade e mesmo a banalidade dos meios de representação, para ressaltar a incongruência e o absurdo dos conteúdos represen-tacionais4”.

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Aqui, a paisagem evocada no primeiro dístico não quer questionar a representação tradicional. Pelo contrário, a forma se empenha com sucesso em mimetizar a queda gradual da noite. O “descampado noturno” se instaura progressivamente, invadido como é, pouco a pouco, pelas sombras, o que é sugerido pela utili-zação do verbo no gerúndio (“procurando”), o único da estrofe, afora o da já citada expressão “Há sempre”, instauradora de um presente atemporal. Adiante-se que todos os dísticos apresentam formas verbais nominais, ou gerundivas ou infinitivas5:

“procuran-do” (verso 1), “Penden“procuran-do” (verso 4), “A escurecer” (verso 6) e “espiando” (verso 7). Todas acenam para uma certa intensificação de movimento ou, ao menos, para a sua continuidade. Apenas o verso 8, com a expressão “foi visto”, quebra o paralelismo entre essas formas verbais, encerrando o poema.

Leia-se agora cada par de versos isoladamente. Se o primeiro dístico não alude textualmente ao anoitecer, ou melhor, não des-creve a caída da noite, a pouca luz ou a “chegada das sombras”, passando a escuridão total ou quase total nas outras estrofes, ela será sutilmente sugerida pelo desencontro ocasional de amantes. Afinal, não vem ele da dificuldade de visão, de “leitura” ou de bus-ca dos “nomes do amor”, pela penumbra que já se instaura? Essa sugestão cromática, muito sutil, é pertinente para a primeira estro-fe, pois os versos 1 e 2 são os mais amenos do poema. As imagens dos outros dísticos serão muito mais incisivas e diretas.

A solidão aludida, por exemplo, parece reversível e provisó-ria; mais um entre os inúmeros desencontros e contratempos escri-tos no livro da história da humanidade decaída. Pois é nesse “livro dos tempos” que se inscrevem, de acordo com a visão cristã, as páginas imperfeitas e superáveis dos acontecimentos históricos, enquanto o Livro da Vida mencionado no Apocalipse, a ser aberto no Fim do mundo (Ap V, 1-3 e XXII, 7. 10), concluirá os séculos conturbados e instaurará a atemporalidade perfeita da Vida Eterna.

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Os tempos, intercambiáveis, quase equivalentes no continuum histó-rico, encadeados como peças de um jogo de armar por DEUS6,

darão lugar ao encaixe perfeito de todos os fatos e criaturas. Todas as correspondências se farão, finalmente, visíveis. No Livro da Vi-da os bem-aventurados acharão seus nomes e não haverá mais de-sencontros e sofrimento individual, até porque casos de amor par-ticulares provavelmente se tornarão irrelevantes diante da harmonia da comunidade eterna.... Por tudo isso o poema “Bola de cristal”, de Os Quatro Elementos, perora:

Uma tarde do fim do mundo (.... )

Procurarás o teu nome e o nome de tua amada No monumental livro da vida.

(PCP, p. 276-7).

Mas é do “livro dos tempos”, e não do Livro da Vida, de que fala “Temas eternos”. O poema está mergulhado nos aconte-cimentos temporais e os temas eternos não são simplesmente míti-cos. São aqueles que atordoam desde sempre a história humana, porém abrangendo igualmente a época imemorial dos mitos, atuali-zada nos versos pela figura do Minotauro, como se verá. Os temas eternos são, portanto, também históricos. Até porque os mitos têm mesmo a dimensão de figuras, sendo por isso sempre passíveis de atualização. Nesse aspecto o poema também se afasta da pintura metafísica. É que essa escola desvincula-se assumidamente da His-tória e também da Mitologia, ao utilizar-se de signos esvaziados de sentido, mesmo no caso daqueles tradicionalmente carregados de referências míticas. Isso porque não quer manter relações com o mundo presente, não quer combater por causa alguma e nem espo-sar qualquer ideologia7.

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Veja-se o segundo dístico. A solidão sugerida pelos desen-contros ocasionais dos dois primeiros versos torna-se, agora,

errân-da fatal, no duplo sentido de inexorável e de letal: a veste nupcial,

símbolo por excelência do amor entre homem e mulher (estamos ainda na esfera da paixão individual, portanto), pende. A roupa, ain-da meio suspensa na paisagem, mesmo “morta” (sua personificação é evidente e a sugestão imagética parece ser a de um cadáver de mulher pendendo de uma forca), permanece errante. Essa idéia de continuidade é mais uma vez reforçada pelo uso do verbo no ge-rúndio e, talvez, se possa entender que o desencontro amoroso apontado na primeira estrofe persiste, o que se acentua pelo con-traste discreto da cor branca do traje em relação à noite já cerrada. De fato, não há mais penumbra ou jogo de luz e sombras. O mo-vimento abrupto da “guilhotina da noite” indica que a escuridão acabou de se instalar, completamente. E é como se a veste branca, detalhe quase insignificante, viesse destoar ou tirar a tranqüilidade (ao menos aparente) da paisagem.

O quadro delineado, trevoso, é sintomático do Fim dos tempos. Diz o poeta em “Estudo para um Caos”, poema pleno de imagens apocalípticas: “Depois a treva foi ajuntada à própria treva”. Esse verso é muito próximo, aliás, deste outro de “As penas do vento”: “Uma sombra impaciente/ Anula seu par8”.

Nesses poemas se indica que a escuridão é capaz de devorar a própria escuridão, de forma invisível, mas atuante e implacável, por trás da mesma tranqüilidade enganadora, talvez, de “Temas eternos”. A guilhotina, máquina que se destaca de sua própria sombra em “Novos tempos”...

Tua filha inicia o corpo À sombra das guilhotinas

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... passa a ser, ela mesma, uma sombra imensa em outro momento de As Metarmorfoses:

Olhai a sombra da terra Uma enorme guilhotina.

(“Abismo voador”, PCP, p. 342).

A idéia é a de que age sem ser vista. É curioso que em “Te-mas eternos” atue também de forma discreta e insuspeitada. Sua atividade de horror é denunciada, como se viu, apenas pela veste nupcial pendente.

Igualmente camuflada é a ação do Minotauro, que se desen-rola no terceiro dístico. E notável que, num poema denominado “Alcance”, “Monstros, deuses, turbilhões” (entre eles o Minotauro) sejam sombras a circular pelas épocas. (PCP, p. 341). E, no poema “Novos tempos”:

(...) A cada passo no escuro Topamos com o Minotauro Que rumina impaciente O resto da nossa sombra.

Do mesmo modo, “restos” do monstro (sua sombra?) vêm “escurecer os campos tranqüilos”, já previamente imersos em escuri-dão, como se mostrou para o segundo dístico de “Temas eternos”. Murilo Marcondes de Moura, em leitura do poema “Abis-mo”, também de As Metamorfoses, comenta que Murilo Mendes, ao dar sombra ao monstro (como sugerem os versos “Abri um pé de magnólia/ Dando sombra ao Minotauro”), neutraliza o mal, já que esse mito é um de seus grandes arquétipos9. Em “Temas eternos”,

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(fenômeno inconcebível no mundo ordinário, diga-se de passagem) parece intensificar o terror. E a idéia de um escuro cada vez mais negro é também sugerida pela forma verbal infinitiva do verso 6 (“a escurecer”).

Esses campos “intranqüilos” opõem-se diametralmente ao

locus amoenus de poemas como o já citado “Mulher no campo”

(PCP, p. 318). A lâmina escura da guilhotina é substituída ali por diáfanas “cortinas azuis” (verso 24), num cenário em que “A ma-nhã suspende guizos” (v. 1) e “flores” (v. 20), enquanto aqui a “gui-lhotina da noite” obviamente desce. Em outra composição, próxima no livro a “Temas eternos” (na qual, inclusive, o Minotauro marca mais uma vez presença), voltam as cortinas azuis, ainda que menos transparentes. Isso porque, num mundo todo mais opaco ou escu-ro, é cada vez mais difícil perceber correspondências entre todas as coisas:

Da cortina azul da nuvem Os deuses fazem sinais, Eu confabulei com eles  De nada vale o diálogo (“A bela e a fera”, PCP, p. 347)

Mas essa composição, em que o poeta oscila entre engaja-mento e desânimo, continua de modo mais otimista: “O mundo inteiro se tinge/ Do sangue do Minotauro / Até que branca Poesia/

Lhe mostre o dedo mindinho”. O interessante é que, como em “Temas

eternos”, um detalhe (branco) vem desconcertar a hegemonia da escuridão neste poema sintomaticamente intitulado “A bela [a Poe-sia] e a fera [o Minotauro]”.

É também Murilo Moura que comenta, ainda na análise de “Abismo” (poema que “propõe uma encenação de guerra”,

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segun-do ele), que ao Minotauro opõe-se a “magnólia”, flor branca repre-sentante de forças positivas, importantíssima em vários poemas e escritos em prosa de Murilo Mendes. O crítico lê “a branca poesia” de “A bela e a fera” como uma recorrência, mais abstrata, da mes-ma mes-magnólia10. Essa imagem confirmaria então o profundo e

posi-tivo poder da poesia muriliana: se não pode deter a guerra o autori-tarismo, é capaz de se afirmar apesar deles, preservando um espaço de dignidade e liberdade ao homem, por menor que seja (daí o “dedo mindinho” da imagem).

Tal visão positiva da Poesia traz para Murilo Mendes, ainda na formulação de Moura, “inevitáveis punições”, “representadas pela proximidade excessiva do silêncio e pela impossibilidade de cantar11”. O crítico entende a rebeldia como o grande impulso do

poeta, que persegue o lirismo mesmo quando ele não é mais possível (seria esse impulso, por exemplo, que faria o poeta incorporar “o negativo como contraste à luz que inspira o canto”). Afinal, “Os poemas positivos de Murilo seriam desafiadores até o limite da pe-tulância.” Para o crítico o engajamento de sua poesia é contínuo e sua palavra final é sempre de otimismo.

Mas não quero antecipar conclusões. Ainda quanto a “Te-mas eternos”, é importante notar, por fim, que no terceiro dístico amplia-se a esfera de interesse do poeta. Viu-se que na primeira e na segunda estrofes a solidão e o sofrimento individuais são mais enfocados, mas a imagem dos versos 5 e 6 se refere em contrapar-tida a um martírio coletivo: a guerra, certamente, a qual remetem todas as imagens em As Metamorfoses em que o Minotauro aparece. Assim, “Escurecer os campos tranqüilos” pode sugerir também “tingi-los de sangue”.

O último dístico do poema (“Há sempre um olhar espiando o horizonte/ Um olhar que não foi visto”) parece, à primeira leitu-ra, levar de volta ao âmbito pessoal do início e a seus desencontros. Atente-se, porém, para a especificidade desse olhar, que não busca

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o amor próximo; antes, procura o horizonte, sempre distante. E mais: sua tutela é dificultada pelas sombras e também por elas en-coberta (pois “não foi visto”).

Num mundo de correspondências turvas e opacas, o poeta parece querer dizer, como em “A bela e a fera”, que de nada vale tentar o diálogo com os deuses. Não consegue ser ativo guardião da vida e tampouco uma peça passiva qualquer. Talvez por isso o horizonte não seja contemplado ou observado, mas apenas espiado. O uso do verbo “espiar”, pouco previsível de início, é justificado, assim, por um certo desânimo. Embora costume sugerir a olhadela rápida e sorrateira do que está perto (como no voyauerismo de certas situações amorosas), parece convir bem a um horizonte negro, on-de os on-destinos do mundo não poon-dem mais ser lidos.

Faço referência ao “Livro da Vida” do Apocalipse, que só o Cordeiro é capaz de ler e que contém em si todos os destinos (Ap V). É em Ap IV, 1 que Deus entrega os destinos do mundo a Ele, e é também dito ao Vidente, supostamente São João: “Sobe até aqui, para que eu te mostre as coisas que devem acontecer depois destas” (o grifo é da edição). A nota relativa ao versículo, na edição consultada de

A Bíblia de Jerusalém , esclarece ainda que o trono do Senhor está,

neste momento, sobre o horizonte. Enquanto no “Prelúdio ao Grande Dia” videntes e anjos são intermediários de Deus e o hori-zonte é local privilegiado de visão de todas as coisas, em “Te mas eternos” o poeta não é tão bem sucedido como veículo divino ou demiurgo. O horizonte é turvo e o enigma prevalece.

Na escuridão fúnebre das paisagens de guerra, Murilo Men-des oscila entre uma espécie de missão divina (a de vate ou Poeta-apóstolo, responsável pela transmissão da Verdade) e o abandono pessoal de qualquer empreendimento. Afinal um olhar que não foi

visto (o tempo usado é o pretérito perfeito, em lugar do presente,

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se desviou; não mais “espia” ou busca demiurgicamente corres-pondências entre todas as coisas.

De qualquer forma, oscilando mais ou menos entre engaja-mento e desânimo, tanto em “Temas eternos” quanto n’As

Meta-morfoses de modo geral, Murilo Mendes ajuda a pôr em evidência as

atrocidades dos anos de Segunda Guerra. Os horrores que, caindo no fluxo contínuo dos acontecimentos de então, tenderiam a ser cada vez mais facilmente aceitos como fatos cotidianos ou “nor-mais”. Não sem razão Walter Benjamin ensina que o saturamento do terror pode ser uma forma de facilitar seu inconcebível esque-cimento12.

Assim, chega-se a uma conclusão importante: o não contar é um modo alternativo de se falar de um horror que não cabe em qualquer palavra de denúncia. Também nesta espécie de silêncio eloqüente a poesia supera qualquer submissão referencial ao real. Ou seja, aquilo que não é relatado diretamente, parece comunicar mais e vincular maiores cargas de significação.

A sugestão poética de recriação de um oráculo , com toda sua atmosfera algo enigmática, solitária e atemporal, pode dar conta melhor das atrocidades reais do que o mero registro jornalístico dos eventos bélicos. Pois o fato de permanecer muito colado a re-ferências diretas pode solapar o discurso e torná-lo banalizado em certa medida.

Portanto “Temas eternos” exemplifica aquilo que Murilo Marcondes de Moura postula para toda a poesia muriliana: seu ca-ráter afirmativo. As oscilações do poeta entre contar e não contar são espécies de estratégias poéticas, para que se mantenha a fulgu-ração e o choque do que se diz. O não contar também conta.

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“O GOLPE DA MANHÔ OU A AURORA DE MULETAS

Leio agora uma página de Poliedro (1972), livro em prosa poética, dos últimos publicados em vida por Murilo Mendes.

Dividido em quatro setores (“Microzoo”, “Microlição de coisas”, “A palavra circular” e “Texto Délfico”), destaco de saída sua estrutura arquitetônica ou planejada, que permite a integração perfeita de suas partes, aparentemente desconexas e bem diversas entre si. Na verdade, as quatro se ligam por ângulos surpreendentes e insuspeitados, construindo assim o multifacetado poliedro murili-ano.

As páginas dos setores “Microzoo” e “Microlição de coisas” lembram os fragmentos memorialísticos de A Idade do Serrote, auto-biografia de 1968. Animais e coisas como a preguiça, a girafa, o cavalo e a baleia; o serrote, as frutas, o queijo Minas e o cinema, que povoaram o imaginário infantil de Murilo, emergem e são re-dimensionados pelas lentes de sua poesia.

Já os textos de “A palavra circular” reverenciam certas per-sonagens caras ao poeta. A intenção parece ser, quase sempre, a de fixá-las, fazendo-as menos esquecidas ou transitórias. Proliferam portanto textos elegíacos, dentre eles uma bonita homenagem a Marilyn Monroe, que será lida adiante. Há outros de formato bas-tante diferente, como é o caso de “Santa Filomena”. Esse texto ocupa-se de uma santa cuja inexistência tinha sido recentemente decretada, e que o poeta deseja evocar e cultuar. No mesmo senti-do caminha a página “Segunda-feira santa” (“Quem se lembra da segunda-feira santa?”, pergunta-se Murilo).

Há também a página “Os índios”, que comenta o fato de o Poeta nunca ter visto um índio brasileiro de carne e osso; “Iéti”, página belíssima, espécie de homenagem ao “abominável homem das neves”, cuja existência, ao menos imaginária, parece depender mesmo do mistério em torno de si; e, finalmente, “Terenzio

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Mami-ani Della Rovere”, texto que tira do esquecimento uma importante personagem da história política e literária italiana, convertida numa mera estátua corroída pelo tempo.

Também é comum em “A palavra circular” o registro de episódios da vida adulta, sobretudo em Roma, cidade em que Muri-lo viveu seus últimos anos. É o caso da página lida a seguir, “O golpe da manhã”, em que o silêncio estará mais uma vez a serviço da eloqüência, num escrito de forma e conteúdo bastante diversos dos de “Temas eternos”13.

Abrindo o ponto de interrogação da janela, acuso com os ouvidos um pássaro próximo pela sua relativamente pouca musicalidade. Trata-se de uma longa manhã idiota: moscas, projeto de nevoeiro, recordações negativas de 1942, fotografias repetidas de baleias sem nenhuma nota didascálica de Melville, e jornais ameaçadores.

Minha acidez de estômago acena ao fato de eu persistir, queira ou não queira, cotidiano. De resto nem mesmo uma estrela fixa ou um plane-ta móvel resistiriam ao choque de qualquer notícia de guerra. Então, quase me consolando (!), reabro com atentos dedos litúrgicos o Jour-nal de Jules Renard, uns talvez fragmentos de Oblomov, Hamleto, até o Rei Lear, um dos poucos reis toleráveis. (Que pena, no fundo o que eu viso mesmo é a substância do futuro. De resto a morte, com ou sem direito a uma segunda vida, é sempre o futuro). Ler: continuar a passar fome. O verdadeiro leitor: nunca saciado.

Até que chega Franz Kafka, murmura: Alguns negam a existência da miséria apontando o sol; mas um outro nega a existência do sol apon-tando a miséria.

Desponta no fim da rua um homem de chapéu verde. Que espera ele? Uma sereia das Antilhas travestida de mulher? A notícia de um súbito

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ataque de juízo dos americanos no sudeste asiático? Uma vaca de dois andares? Um quadro de Crivelli?

Silêncio amorfo. •

P.S. — Última hora. Segundo Picasso, Ofélia atira-se num copo d’água, afogando-se.

(“A palavra circular”, PCP, p. 1028-9):

A manhã que se inicia, apesar do ponto de interrogação na janela, não anuncia o novo: é meramente “quantitativa” (expressão utilizada na página “Terenzio Mamiani Della Rovere”, a penúltima de “A palavra circular”) e não, digamos, qualitativa. Tanto que o poeta começa a caracterizá-la pelo que lhe falta; por exemplo, o pássaro que escuta à janela é pouco musical.

O canto dos pássaros, especialmente da cotovia, é um ele-mento tradicional que integra a figura do topos locus amoenus  não tanto quanto o riacho, a sombra das árvores, pastores e ovelhas, é verdade, mas como mostra Curtius em Literatura Européia e Idade

Média Latina, é incorporado também por muitos autores.

Curtius se ocupa também de um outro topos, esse de conclu-são ou remate, que pode ser assim formulado: “Convém acabar, porque anoitece”. Esse topos relaciona a atividade da criação poética com o dia, a luz, o período solar. O curioso é que, quando passou da Antiguidade à Idade Média, tenha sido com roupagem pastoral (a mesma dos principais exemplos de locus amoenus), depois deixada de lado, quando esse lugar comum se tornou mais convencional. Se se pensa nesse locus de remate, vê-se que também ele é atualizado às avessas em “O golpe da manhã”. Porque o dia nevoento parece hostil à qualquer criação. Insinua-se aqui uma possível paródia para

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o locus, algo como “Convém não começar, porque não amanhecerá completamente; a manhã não será radiosa”.

E o prosseguimento do texto apenas confirma tudo isso. “Trata-se de uma longa manhã idiota”: “moscas” (índices não de renovação, mas de acúmulo de restos; de podridão ou mesmo mor-te), “projeto de nevoeiro” (novo índice de que o dia não se iniciará devidamente. A idéia é quase a da continuação da noite em pleno dia), “recordações negativas de 1942” (não se pode precisar exata-mente tais recordações, mas 42 é provavelexata-mente o ano em que Mu-rilo descobre sua tuberculose pulmonar, já que se interna em um sanatório no ano seguinte).

De qualquer modo, “recordações” também sugerem

recorrên-cia, tais quais as triviais fotografias, sem qualquer grandeza épica à

la Melville. São por si só já meras reproduções, ainda por cima

repe-tidas. Quanto aos jornais, que bem poderiam ser veículo de

novida-de, são apenas ameaçadores. Tratam portanto de fatos que já vêm se impondo como provável ameaça, alongando-se pelo presente e comprometendo o futuro.

Assim é que o “ponto de interrogação” que se abre na janela não pode dizer respeito ao novo e a qualquer boa surpresa, mas às dúvidas de alguém que se mantém apenas sob as expectativas de ameaças já conhecidas, sujeito “aos coices do século e à guerra do Vietnã”, como diz também a página “Terenzio Mamiani Della Ro-vere” (PCP, p. 1030).

Portanto, o “grande golpe” da manhã consiste em não trazer qualquer renovação. Nada de novo acontece e tampouco os assun-tos do poeta se renovam. Na verdade a página atualiza, também às avessas, o topos “trago coisas inéditas”, que já aparece na Antiguida-de grega como “repúdio à matéria épica repisada” e que continua sendo utilizado no Renascimento. A promessa de seguir por “on-das nunca sulca“on-das antes por nenhum outro engenho” foi um lugar comum exordial importante, comumente apresentado como

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moti-vo para a criação de uma obra. Ora, o caso de Murilo, em “O golpe da manhã”, é exatamente oposto. Daí o penúltimo parágrafo ter-minar com a expressão “Silêncio amorfo”, isolado no canto da pá-gina14. Depois dele, apenas um “P.S.” em que lembra Picasso e

Shakespeare (através da personagem trágica Ofélia, de Hamlet). Continua então a página:

Minha acidez de estômago acena ao fato de eu persistir, queira o não queira, cotidiano.

Assim como a manhã não anunciava qualquer fulguração ou novidade, o poeta simplesmente persiste. Tampouco ele se renova, espécie de anti-herói que é, sentindo-se inapto a golpear a manhã, em contrapartida, com a arma de que dispõe: a escrita. A ele, mais uma vez, só resta o silêncio amorfo e a insaciabilidade de leitor.

Daí construir seu texto baseado em citações. A baleia de Melville (como na página “A baleia”), traria ao dia alguma fulgura-ção, pela literatura (“A baleia: auto-suficiente, melvilleana, inexpug-nável”, diz o texto de “Microzoo”); e é pois quase se “consolando (!)” que consulta com dedos litúrgicos  como se integrasse um ritual sagrado  Hamleto, Oblomov, Kafka. O ponto de exclama-ção entre parênteses indica o absurdo, para o poeta, de se pensar em qualquer consolo diante da cena do século. Ele que, ainda na página “Terenzio Mamiani Della Rovere” denomina-se um “des-consolado habitante da Via del Consolato”. (PCP, p. 1031).

Chamei o poeta anti-herói porque é pela dor (e não por qualquer êxito; dor que é um pouco de morte em plena vida) que ele simplesmente permanece cotidiano. Ou seja: igual, “rotineiro”. Tra-ta-se de uma espécie de integração forçada não ao ciclo da vida natural, mas à vida mecanizada ou autômata. Como o dia, como a “manhã idiota”, o poeta também não se renova. E é interessante que esse herói às avessas reproduza exatamente o quadro de um dia

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que não chega como novidade, mas sim como uma espécie de “au-rora de muletas”, para usar uma bela imagem do poema “Estudo nº 2”(PCP, p. 320).

Estamos muito perto das histórias arquetípicas ou mitológi-cas, em que os heróis, como ensina Northrop Frye, espelham as diversas fases dos ciclos naturais, pelo caráter circular de suas pró-prias trajetórias. Às fases de nascimento e ressurreição de um herói correspondem a aurora e a primavera, já que as estações do ano formam também ciclos, apenas mais longos que o de um único dia. Embasam principalmente as histórias romanescas, de lendas, fadas e princesas. Às de apogeu, união, reprodução e triunfo heróicos, correspondem o verão e o zênite; são encontradas na comédia, na poesia pastoral e idílica. Já à fase de decadência, doença, sacrifício ou isolamento do herói, liga-se o crepúsculo, o outono e a morte dos seres da natureza, que aparecem sobretudo na tragédia e nas elegias. Finalmente, à fase de dissolução total correspondem a noi-te, as tempestades, o inverno, as trevas, o retorno do caos. Essa fase aparece sobretudo na sátira.

O que justifica essas correspondências entre fases literárias das narrativas que tenham alguma ligação com a mitologia e os ci-clos da natureza é o fato de toda literatura ser seqüencial ou rítmi-ca. Se fosse possível existir uma narrativa como pura seqüência de fatos ou desenrolar de ações no tempo, sem qualquer significação subjacente, tratar-se-ia de uma narrativa pura; nessa origem hipoté-tica estariam os rituais. Isso porque um ritual é sempre um esforço humano de integração à natureza, um conjunto de atos e práticas cuja significação a mera observação externa dificilmente pode de-preender. Mas há sempre um fragmento de significação imbricado a qualquer narrativa, relacionado à dimensão não mais temporal das obras literárias, mas espacial. Em outras palavras, toda obra literária desenha ou configura um determinado sentido, relacionado à sua dimensão reflexiva. Ou à dianóia, para falar em termos aristotélicos.

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Se fosse possível isolar, em outra situação hipotética, frag-mentos de sentido de qualquer narrativa, chegar-se-ia à origem da significação de qualquer obra, pura, abstraída de qualquer ação. Nessa origem estariam as epifanias oraculares, núcleos de consci-ência que não se desenvolvem no tempo15.

O que quero reter da tipologia estipulada por Frye é a cor-respondência entre fases heróicas e ciclos naturais, bem como sali-entar os principais gêneros literários em que aparecem essas rela-ções. “O golpe da manhã” trata de uma manhã sem aurora, em que a miséria, como sugere a citação de Kafka, é capaz de negar a exis-tência do sol. Pois o mundo dos anti-heróis kafkianos se alonga entre o crepúsculo e a treva intensa; é o mundo de homens isola-dos ou dilaceraisola-dos; do outono ou do frio inverno; da desordem ou do caos. Mundo como aquele em que vive Murilo, em que não ca-be “uma estrela fixa” ou um “planeta móvel”, que não “resistiriam ao choque de qualquer notícia de guerra.”

A atmosfera sombria de um poema como “Temas eternos” e a aurora crepuscular de páginas como “O golpe da manhã” são imagens do mundo caótico em que vive o poeta, onde valores são invertidos e também transitórios. A inconstância e precariedade de seu tempo assustava-o terrivelmente. Seu horror pelo passageiro e inconsistente se manifestava, por exemplo, em um forte repúdio a cultura de massas. E, se é verdade que essa repulsa é por vezes de-clarada textualmente, alguns textos de Poliedro vinculam outras for-mas de crítica aos valores transitórios da vida atual. É o caso da página “Algólida” e da elegia “Marilyn”.

Murilo, que desde criança era “obsedado por certos nomes de plantas, minerais, lugares” (“Dores do Indaiá”, PCP, p. 1023), vai buscar num verbete de dicionário um mote para sua escrita. “Algólida”, segundo o verbete, incorporado à página como se ti-vesse sido elaborado pelo próprio poeta (pois é separado do

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restan-te do restan-texto por uma bolinha preta), “é um tipo de estrela de curto período, que varia bruscamente de magnitude” (PCP, p. 1026).

Por um lado o poeta a personifica, atribuindo-lhe sensuali-dade e, sobretudo, volubilisensuali-dade tipicamente femininas:

Quem te viu e agora, algólida, quem te vê, se és brusca e variável, se imprevista cambias de atitude, altitude e magnitude, com teus olhos de rainha-cláudia16, raivosa no teu chapéu de vento, se opões à eter-nidade o efêmero (PCP, p. 1026-7).

Por outro, considera a estrela destoante do terrível cenário de trevas do século. Daí imaginá-la a “fechar a janela da incômoda madrugada, apenas ao longe columbras o penacho de um cosmo-nauta, por agora pacífico”. A mesma disparidade o faz pensar em sua “metamorfose  talvez em cacto ou sol de bolívia” em meio a uma verdadeira cena bélico-apocalíptica: uma “descarga de milhões de ratos brancos” antecedendo o “operador da bomba”.

A página, como é corrente em “A palavra circular”, remete mais uma vez para um cenário caótico, de tempestade e trevas, se se quiser retomar a terminologia de Frye relativa às narrativas mito-lógicas que tratam da completa dissolução do herói.

Leia-se agora a página “Marilyn”. O texto se inicia com uma observação em caixa alta:

TEMA: A IDÉIA DE TENTAR FIXAR QUALQUER COISA ME IMPELE, ME FASCINA, ME ESPAVENTA.

A elegia a Marilyn Monroe, longe da canonização que o gê-nero geralmente veicula (“Guarda uma tal figura que súbito sumira, já sumiu, sem auréola”  grifo meu), tem algo dos sonetos barrocos de Góngora, especialmente o famoso “Mientras por competir com tu cabello”. Também aqui partes do corpo de uma das maiores

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mu-sas de cinema do século são evocadas em separado (prática comum e constante de Murilo, aliás, na construção de imagens que cele-bram o feminino):

Frágil-formidável no sexo, paisagem da coxa ao seio, do ventre ao lá-bio debruado

(...)

aquela que estendia o corpo público a tantos olhos erécteis  mesmo escondendo-lhes o immortel pubis;

Outra aproximação com Góngora é a constatação do poeta acerca da efemeridade e transitoriedade das formas de Marilyn, que “foste e já não és, voluntariamente subtraída à Bomba”. Como em Góngora, em que as partes femininas se transformam “en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada”, aqui Marilyn é reduzida a uma superfície de partículas de poeira que se vão depositando em uma projeção de cinema: o écran, espécie de antecipação da morte:

próxima poeira signo de morte preto e branco ou tecnicolor já con-sumido antes da morte;

No fundo, mais que constatar a fugacidade da vida, como em Góngora (em que as mudanças, embora rápidas, ainda são sen-tidas como processo), a página sugere transformações de outra or-dem, operadas num barlume18; mudanças regidas pelo inesperado e

pela surpresa  e não pelos ciclos naturais  como a modernida-de, o cinema e mesmo a morte de quem se “subtrai voluntariamente à bomba”.

Eis uma diferença importante desta página em relação a “O golpe da manhã”. Ali o nascer de um dia putrefato corresponde naturalmente ao estado de isolamento e queda do sujeito. Aqui, a correspondência não é natural, mas forçada ou voluntária.

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A ligeira leitura de outros títulos do setor “A palavra circu-lar” já mostra o quanto se explora essa correspondência entre a dissolução do herói e as duas fases mais obscuras que Frye detecta nas narrativas mitológicas: “O temporal”, “O trovão” e “As núp-cias falhas” (já que o casamento é típico da fase de apogeu e união harmônica do herói, espelhado pelo verão e pelo zênite). Há tam-bém a alusão a um recém-nascido repelido pelo poeta que é quase uma antítese dos heróis desejados, prometidos, missionários ou ressurrectos da fase da aurora ou primavera:

uma larva chorando por todos os lados, chatíssimo no seu babador, limpo mas parece sujo, não posso tolerar sua presença, lá vem outro para complicar ainda, mais ainda os problemas imediatos do mundo! (...) (“O recém-nascido”, PCP, p. 1028).

A amargura, o desconsolo e a dissolução do sujeito em “O golpe da manhã” são mantidas até o desfecho. Mesmo o chapéu verde que desponta no fim da rua não consegue colorir a paisagem com cores mais, digamos, idílicas. Não indica esperança; antes, dú-vida:

Desponta no fim da rua um homem de chapéu verde. Que espera ele? (...)

Diferentemente do que se tem no já aludido poema “A bela e a fera”, de As Metamorfoses,

O mundo inteiro se tinge Do sangue do Minotauro, Até que branca Poesia Lhe mostre o dedo mindinho. (“A bela e a fera”, PCP, p. 347).

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... em que as “trevas vermelhas” ligadas ao monstro encon-tram resistência e combate no poder máximo de uma Poesia “mí-nima”. Como se viu, a convicção aí é a do poder combativo da po-esia.

A eloqüência com que Murilo supõe as expectativas do pas-sante de “Chapéu verde” (todas infladas por um certo visionaris-mo-realista típico do próprio poeta em momentos de maior oti-mismo17) contrasta com o “silêncio amorfo” em que ele mesmo,

por agora, mergulha, espécie que é de Ofélia suicida: “o que viso mesmo é a substância do futuro. De resto a morte, com ou sem direito a uma segunda vida, é sempre o futuro”.

Já o “P.S.” final introduz, como é comum em Poliedro, a nota de um certo humor amargo. Isso porque a Ofélia redimensionada por Picasso confere sem dúvida um toque humorístico à página (até porque se lembra aqui inevitavelmente da expressão “fazer tempestade em copo d’água”, ou seja, tornar catastrófico o que não é tão terrível). A sugestão, melhor dizendo, é a de que o cenário da morte da personagem é geometrizado. Seguindo os procedimentos cubistas, assume as formas e as dimensões limitadas de um copo.

Por outro lado, pode-se entender que a dimensão trágica da personagem, dissolvida pela morte, acaba por não ser dirimida. Tal leitura remeteria novamente às fases trevosas das narrativas mitoló-gicas. Ao fim, o tom trágico, que se opõe aqui a qualquer expectati-va cristã a ponto de abafá-la (chega-se a pôr em dúvida a existência de uma segunda vida), é o predominante. À maneira de Jó, cuja tragicidade é inquestionável, o sofrimento e a angústia parecem por vezes intransitivos, sem que acenem para qualquer compensação misericordiosa. É o próprio Murilo Mendes, aliás, quem diz em um aforismo de O Discípulo de Emáus:

A tragédia grega, embora fortíssima, empalidece diante do Livro de Jó.

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É notável a atenção ao transitório e passageiro em várias pá-ginas de Poliedro. Em “Algólida”, o poeta já assinalara, com certo fascínio: “opões à eternidade o efêmero”.

Diante de tais observações talvez caiba a pergunta: será que em Poliedro se pode opor, ao poeta cristão de outros momentos, um sujeito poético constituído por traços mais pagãos, cuja dimensão trágica se justaponha à cristã? Um sujeito poético que, redimensio-nando o sujeito biográfico, o próprio poeta Murilo Mendes, faça da

via crucis pessoal (a angústia dos últimos anos) matéria de uma

espé-cie de tragédia universal?

Não que a poesia muriliana não tenha sempre sido marcada pela universalidade, como toda grande poesia. Mas o substrato cris-tão, em maior medida que o pagão, sempre informou (tanto no sen-tido de fornecer conteúdo quanto no de erigir a forma) a poesia de Murilo Mendes. A “palavra final” foi comumente cristã, pela voz do poeta-apóstolo. Mesmo na poesia de guerra, as imagens do caos que aproximam elementos bélicos e apocalípticos acenam, como a Escritura joanina, para a redenção próxima. Pois o Apocalipse é uma espécie de ante-sala imagética do Juízo Final, o “espetáculo dos espetáculos”; a manifestação por excelência da misericórdia divina e a resposta definitiva da Eternidade aos males dos tempos. Ou, nas palavras de Murilo Mendes:

A criação é a tese. O pecado original, fundador do tempo e da histó-ria, é a antítese. O juízo final é a síntese. (aforismo 251, O Discípulo de

Emaús, PCP, p. 840).

Em outras páginas de Poliedro, porém, a solução cristã super-põe-se à agonia trágica. A página “Santa Filomena”, de “A palavra circular”, termina com uma prece (o que é bastante previsível, se se pensa no poeta-apóstolo ou porta-voz):

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Santa Filomena, livra-nos da superstição da verdade histórica absolu-ta, que até hoje ninguém conseguiu desvendar. Livra-nos da fome, do neofascismo, da peste atômica; dá-nos a força e a técnica necessárias para a comparecermos em breve ao julgamento universal, espetáculo dos espetáculos. Amém. (PCP, p. 1015).

Em Poliedro o trágico seria o que permanece temporal e his-tórico, sem a síntese redentora da visão cristã. Pensar nessa nova postura ética, em que todos os dilemas são colocados e resolvidos no tempo e na História, tem alguma pertinência. Até porque pági-nas como “O golpe da manhã”, como se mostrou, apresentam di-mensão mitológica: o Mito é incorporado ao fazer poético. Para a decadência humana espelhada pelo outono, inverno, crepúsculo e trevas dos ciclos naturais, não parece haver saída ou misericórdia possíveis. O divino não vem em socorro do herói combalido pelo século.

Em suma, há sem dúvida um projeto cristão importante a embasar Poliedro. O que não é novidade em Murilo. Ao longo de seus quase cinqüenta anos de produção poética, o catolicismo sem-pre marcou sem-presença, de forma mais ou menos incisiva, através de práticas essencialistas (em livros como O Visionário) ou por uma espécie de pregação da doutrina católica ortodoxa (como ocorre em Tempo e Eternidade). Mas nos livros finais, notadamente em

Polie-dro, a mensagem cristã parece sofrer grande influência da cultura

grega pagã, cara também a Murilo, desde a infância. O que torna a dimensão religiosa da obra de 72 bastante marcada pelo signo do trágico. Isso é condizente com um poeta angustiado por seu tem-po, para quem as soluções históricas precisavam surgir com urgên-cia.

Assim, o projeto ético ou religioso de Poliedro faria parte de sua

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vontade de recuperação dum mundo onde a crueldade, se não desapa-recer de todo, ao menos não se torne organizada como neste século sinistro-grandioso; cientificamente organizada.

(“Colagens”, PCP, p. 1020).

E então o recurso ao Mito, aos oráculos e ao silêncio elo-qüente (que marca presença também em poemas como “Temas eternos”) aparece como principal estratégia de que o poeta lança mão para dar conta da tragicidade de sua época.

Notas

1 As citações deste ensaio foram todas retiradas de MENDES, Murilo. Poesia Completa e

Prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. Doravante,

PCP.

2 Cf. MERQUIOR, José Guilherine. “Le ‘Texto Délfico’ de Murilo Mendes”. In:

Bulle-tin des Études Portugaises. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, vol. IX, p.

235-245.

3 Cf. CANDIDO, Antonio. “Pastor pianista/ pianista pastor”. In: ___. Na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 1995. p. 95. (O grifo é meu).

4 Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Trad. Denise Bottman e Federico Carotti. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. p. 336 e 364  grifo do autor.

5 A propósito, em “Fernando Pessoa, o poeta gerúndio de Murilo Mendes”, Luciana Stegagno Picchio comenta a notável sensibilidade de Murilo Mendes que, excelente leitor de poesia, percebeu a ocorrência significativa e o alcance do uso freqüente do gerúndios na obra de Fernando Pessoa. Murilo se utiliza muito deles também em seus textos-homenagens ao poeta. Ver “Murilograma a Femando Pessoa” (Convergência, PCP, p. 681) e “Fernando Pessoa” (Janelas Verdes, PCP, p. 1443). O texto de Picchio está em

Persona, nº 4, Porto, jan. 1981. p. 3-9.

6 Cf. os versos “Reconhece o teu limite e adora a mão do Senhor que te remove/ Co-mo um menino reCo-move as peças do seu jogo de armar.” (“Poema bíblico atual”, As

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7 Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Op. Cit., p. 364.

8 Os primeiros versos estão em As Metamorfoses, PCP, p. 334; os últimos, na página 343. Grifei-os.

9 “Abismo” está em Poesia Completa e Prosa, p. 350. Quanto à observação de Moura, transcrevo-a a seguir: [O poeta] “dá sombra ao inimigo, mas dar sombra às trevas signi-fica neutralizá-las.” Quero frisar que a presente análise deve muito a essa leitura, que está na tese de doutorado do crítico. (Cf. MOURA, Murilo Marcondes de. “Três poetas brasileiros e a Segunda Guerra Mundial  Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Murilo Mendes”. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1998. p. 149). 10 Cf. MOURA, Murilo Marcondes de. Op. Cit., p. 151.

11 Ibidem., p. 132.

12 Ver quanto a isso GAGNEBIN, Jeanne-Marie. “História e cesura”. In:___. História e

Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva: FAPESP: Campinas: Ed. Unicamp,

1994. p. 107-131.

13 Quanto ao último setor do livro, “Texto délfico”, ver meu texto “O oráculo do presente”. In: Suplemento Literário Especial. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cul-tura de Minas Gerais, julho/2001.

14 Desde o final da antiguidade pagã a escritura é definida como “silêncio eloqüente”, oxímoro muito usado bem depois, por exemplo, por Calderón de la Barca, no dezessete: o retórico silencio. (Cf. CURTIUS, E. Op. Cit., p. 382). Ora, o silêncio amorfo citado por Murilo ao final de “O golpe da manhã” é literalmente sem forma. Logo, mais uma vez, o poeta atualiza um topos pelo seu avesso. Se a escrita é silêncio eloqüente é provável aqui a alusão à impossibilidade de qualquer criação literária.

15 Cf. FRYE, Northrop. “Os arquétipos da literatura”. In:___. Fábulas de Identidade  estudos de mitologia poética. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Nova Alexandria, 1999. p. 13-27.

16 “Cláudia” é o nome de uma das musas da infância do poeta; menina que, como a estrela Algólida, cedo morre.

17 O termo “visionário” aparece comumente na obra de Murilo Mendes, rotulando geralmente artistas. Não sem razão o poeta intitula um de seus primeiros livros de O

Visionário, justo o mais influenciado pelo Essencialismo de Ismael Nery. Nele já se

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Mesmo quando se refere aos alienados, como no texto “Clínica de nervosos”, de

Polie-dro, a palavra será valorizada positivamente. O poeta aproxima, por exemplo, loucos e

poetas: “Felizes os visionários: deles é o reino infinito da visão”. (PCP, p. 1018). 18 Uma nota do poeta ao final de Janelas Verdes informa que o italianismo muriliano “barlume” (usado também nesta obra) significa “vislumbre”. (PCP, p. 1445).

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