Conhecimentos, opiniões, atitudes e práticas de homens de classes populares de Recife/PE: rupturas e permanências das desigualdades de gênero no cuidado das crianças e na divisão do trabalho doméstico
Resumo
Apresentamos a análise preliminar de parte das análises produzidas no bojo da pesquisa Paternidade e cuidado nos serviços de saúde1 realizada por pesquisadores/as vinculados/as ao Instituto Papai (PAPAI)2 e pelo Núcleo Feminista de Pesquisas sobre Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)3. Inserida nos campos de estudos sobre o exercício dos Direitos Reprodutivos e da Saúde Coletiva e orientada por uma perspectiva feminista de gênero, de orientação psicossocial, esta pesquisa buscou responder à seguinte questão: Qual o lugar dos serviços de saúde no envolvimento dos homens no cuidado das crianças? Para tanto foram empreendidas diversas estratégias de produção de informações junto à homens e profissionais de saúde que atuam em Unidades de Saúde da Família de Recife/PE, a partir da triangulação de métodos. Apresentamos aqui algumas análises das informações produzidas a partir de entrevistas dirigidas junto a uma amostra significativa de 388 homens com idades entre 18 e 59 anos, residentes em um bairro popular da cidade de Recife. Apesar do processo de coleta respeitar rigorosamente os critérios e procedimentos de uma pesquisa quantitativamente orientada, a interpretação aqui desenvolvida foi de natureza qualitativa, fundamentada na perspectiva da produção de sentidos em práticas discursivas, sob um olhar feminista das relações de gênero por elas engendradas. Os resultados indicam avanços do ponto de vista da equidade de gênero no que tange às opiniões dos homens em relação ao exercício dos Direitos Reprodutivos de homens e de mulheres e também em relação à divisão igualitária do trabalho doméstico, incluindo aí o cuidado de crianças. Entretanto, sinalizam também uma significativa distância entre os conhecimentos e opiniões e as atitudes e práticas, persistindo uma flagrante desigualdade especialmente em relação à divisão sexual do trabalho doméstico e de cuidado das crianças.
1 Pesquisa realizada com apoios da Bernard Van Leer Foundation, via Instituto PAPAI e do Edital CNPQ - CHAMADA UNIVERSAL – MCTI/CNPq Nº 14/2014 - Processo: Nº 448390/2014-0. 2 O Instituto PAPAI é uma Organização Não governamental, fundado em 1997, sediada em Recife/PE, com a proposta de refletir a invisibilidade da experiência masculina no contexto da vida reprodutiva e no cuidado com as crianças. Iniciativa pioneira na América Latina, a instituição teve como base o modelo dos núcleos acadêmicos de estudos sobre a mulher e relações de gênero. Mais informações: <http://institutopapai.blogspot.com.br/>
3 O Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (Gema/UFPE), com sede na UFPE e cadastrado no CNPq desde 1998, tem por objetivo desenvolver ensino, pesquisa e extensão universitária, a partir do enfoque feminista de gênero, atuando no campo da saúde e direitos humanos, especialmente em temas relativos aos direitos sexuais e reprodutivos. Mais informações: <http://gema-ufpe.blogspot.com.br/p/sobre-o-gema.html>
Introdução
A necessidade e importância de envolver os homens no cuidado - seja de si, dos espaços domésticos, seja de outras pessoas, especialmente de crianças – como forma de avançar do ponto de vista da equidade de gênero não é mais novidade no campo dos Direitos Reprodutivos e remete à demandas históricas dos movimentos feministas. Estas demandas foram incorporadas às recomendações da Organização das Nações Unidas em suas Conferências Internacional sobre População e Desenvolvimento de 1994 e da Mulher de 1995. Em que pese a existência anterior de iniciativas que já apontavam tal necessidade (ARILHA, 2010), as recomendações provenientes de tais Conferências constitui-se em um marco fundamental no campo dos Direitos Reprodutivos, especialmente no que tange o debate sobre as masculinidades.
A partir de então, surgiram diversas inciativas governamentais e da sociedade civil que tem buscado avançar no desenvolvimento de estratégias que promovam um maior engajamento dos homens no cuidado. No Brasil, o principal marco no campo das Políticas Públicas voltadas à população masculina, no campo da saúde, foi a aprovação em 2009 da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde dos Homens (PNAISH), que tem como um dos seus cinco eixos norteadores a “paternidade e o cuidado”, cujo objetivo é “sensibilizar gestores(as), profissionais de saúde e a população em geral sobre os benefícios do envolvimento ativo dos homens em todas as fases da gestação e nas ações de cuidado com seus(uas) filhos(as)” (BRASIL, 2009). Do ponto de vista da produção de conhecimento temos visto um crescente interesse de pesquisadores/as sobre o processo de implementação da PNAISH. Muitos estudos tem se preocupado em compreender os fatores que tem possibilitado ou dificultado o acesso dos homes aos serviços de saúde - especialmente à Atenção Básica – (SOLANO et al, 2017; FARIA et al, 2015; XAVIER et
al, 2015; MOURA et al, 2017), seja do ponto de vista dos usuários dos serviços como dos
profissionais de saúde que atuam nos mesmos. Entretanto, nestes últimos 20 anos poucos estudos (ALAN GUTTMACHER INSTITUTE, 2003; BEMFAM, 1997; BRUSCHINI, RICOLDI, 2012; CAETANO, 2018; LYRA, 2008; SCOTT, 2010) tem se preocupado em investigar quais são as opiniões e práticas dos homens acerca da divisão do trabalho doméstico e de cuidado das crianças bem como sobre suas práticas reprodutivas. Sendo assim, a pesquisa Paternidade e Cuidado nos Serviços de Saúde buscou produzir informações não apenas acerca da relações dos homens com os serviços de atenção básica de saúde, mas também sobre como os homens tem se posicionado em relação ao cuidado de maneira ampla.
Métodos
Foram realizadas entrevistas estruturadas com uma amostra significativa de 388 homens com idade entre 18 e 59 anos em bairros de classe populares da cidade de Recife, entre os meses de outubro e dezembro de 2015. O roteiro da entrevista era extenso e bastante diverso, seu conteúdo passou por temas como, cuidado com crianças, autocuidado, relação com a família, violência, entre outros. As entrevistas foram realizadas no domicílio dos entrevistados seguindo os padrões da pesquisa por amostragem de domicílio adotado pelo Censo/IBGE. Para o presente trabalho foram selecionadas as respostas dos blocos de perguntas que se referiam às experiências, opiniões e práticas dos homens em relação à divisão das tarefas domésticas. As perguntas acerca das práticas em relação à divisão das tarefas domésticas foram realizadas apenas junto aos homens que declararam coabitar com suas esposas e companheiras. Os blocos de perguntas relativos aos cuidados com as crianças foram divididos segundo a faixa etária dos filhos, 0 a 4 anos e 5 a 13 anos e foram respondidas apenas pelos homens pais. Foram selecionadas ainda as respostas das perguntas sobre o conhecimento e uso por parte dos homens da licença paternidade e a lei do acompanhante (11.108/205) e sobre conhecimento e uso dos métodos contraceptivos. Em relação à metodologia de análise das informações, sendo o nosso instrumento a entrevista diretiva, entendemos que a produção discursiva configura-se como pistas, rastros e traços que nos possibilitam aproximações aos repertórios discursivos produzidos por esses interlocutores, “enunciados”, que suscitaram respostas inscritas em “vozes”, garantindo a “interanimação dialógica”, segundo a abordagem da produção de sentidos e práticas discursivas (SPINK, MEDRADO, 1999).
Resultados e Discussão
Não sendo possível apresentar todos os resultados nos limites deste resumo, apresentamos alguns achados que serão aprofundados e ampliados quando da elaboração do texto completo. A partir dos enunciados dos entrevistados, percebemos que as atividades envolvidas em situações eventuais tem a participação do homem, como atividades de lazer e ficar com a criança quando a criança está doente. Ao passo que atividades cotidianas, como buscar na escola e cuidar diariamente não estão no mesmo nível de envolvimento que a parceira. Dois aspectos se destacam neste resultado: o primeiro de que, de fato, segundo os participantes, eles não estão envolvidos, em sua maioria, nos cuidados diários; o segundo, de que as ações que envolvem lazer não são entendidas como cuidado. Estas respostas se confrontadas com algumas opiniões sobre a divisão dos cuidados das crianças mostram a lacuna ainda existente entre o que é tido como ideal ou desejável e a própria percepção dos homens sobre a divisão das tarefas
de cuidado. Por exemplo, apenas 15% dos entrevistados concordaram com a afirmativa de que cuidar do filho é responsabilidade da mãe ou ainda, 98,7% concordam a responsabilidade do filho é dos dois. Nesse sentido, cabe aprofundar a compreensão dos homens acerca do que é cuidado e responsabilidade. No momento em que são provocados a expressar a relação entre o cuidado exercido e as demandas de trabalho, é possível identificar que os homens sabem que não estão envolvidos suficientemente nesta tarefa, ao mesmo tempo que desejariam estar. Outra informação que chama atenção é o fato de que participantes que responderam que se acham coadjuvantes em relação ao cuidados dos filhos também afirmaram o fazer com frequência, mas, apesar de efetivamente realizarem diversas atividades de cuidado com as crianças, os participantes permanecem se reconhecendo como secundários neste contexto. Na forma de contradição, nas práticas discursivas dos participantes, ao afirmarem realizar determinadas tarefas, ao mesmo tempo que desejam maior participação no cuidado com filhos\as ou não reconhecem o que vivenciam, como práticas de cuidado. Ou seja, existe um movimento de produção de sentidos que reposiciona os homens na vivência da paternidade, mas que ainda não encontram legitimação no tempo vivido. Portanto, no processo da produção de sentidos, o que é experenciado por eles, na ordem do pragmático, está em direção das relações equitativas. Os posicionamentos também indicam este movimento, porém com obstáculos, que impulsionam para rupturas do que para a reafirmação do lugar secundário, no cuidado. Percebemos que a dinâmica está em processo, através das ditas contradições, caminhando para o encontro entre “a palavra e o gesto”, entre o sentido e a vivência.
Referências Bibliográficas
ALAN GUTTMACHER INSTITUTE. Their own right: addressing the sexual and reproductive health needs of men worldwide. New York: Alan Guttmacher Institute. 2003.
ARILHA, Margareth. Nações Unidas, População e Gênero: homens em perspectiva. Jundiaí: In-House, 2010. 160 p.
BEMFAM. SOCIEDADE CIVIL BEM-ESTAR FAMILIAR NO BRASIL. Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde. Rio de Janeiro: BEMFAM, 1997.
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BRUSCHINI, Cristina; RICOLDI, Arlene. Revendo estereótipos: o papel dos homens no trabalho doméstico. Estudos Feministas. Florianópolis, v. 20, n. 1, pp. 259-344, 2012.
CAETANO, Patricia V. B. Homens e a divisão sexual das práticas de cuidado com crianças: uma análise a partir da perspectiva feminista. Dissertação - Mestrado em Psicologia - Universidade Federal de Pernambuco, 2018.
FARIA, Mateus A. de; PAULA, Douglas M. P. de; MARTINS, Alberto M.; MIRANDA, Jhonatan J. de; NEVES-SILVA, Priscila; RODRIGUES, Thalita; MODENA, Celina M. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: percepções de gestores de unidades básicas de saúde de Belo Horizonte-MG. Espaço para a saúde (Online). 3(16): 5-13, jul.-set.2015.
LYRA, Jorge. Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gênero no campo das políticas públicas (2003-2006). 2008. 262 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) - Departamento de Saúde Coletiva, Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Oswaldo Cruz, Recife, 2008.
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MOURA, Erly C. de; GOMES, Romeu; PEREIRA, Georgia M. C. Percepções sobre a saúde dos homens numa perspectiva relacional de gênero, Brasil, 2014. Ciência & saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 291-300, Jan. 2017.
SCOTT, Pary. Homens, domesticidade e políticas públicas na saúde reprodutiva. Em: Homens e masculinidades: práticas de intimidade e políticas públicas. Orgs. Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo e Jullyane Brasilino. Instituto Papai, Recife, pp. 79-93, 2010.
SPINK, Mary Jane; MEDRADO, Benedito. Produção de sentido no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In: SPINK, Mary Jane (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999.
SOLANO, Lorrainy da C.; BEZERRA, Marco A. de C.; MEDEIROS, Renata de S.; CARLOS, Eumendes F.; CARVALHO, Francisca P. B. de; MIRANDA, Francisco A. N. de. O acesso do homem ao serviço de saúde na atenção primária. Revista de pesquisa: cuidado é fundamental (Online). 9(2): 302-308, abr.-jun. 2017.
XAVIER, Sheila Q.; ECHEVARRÍA-GUANILO, Maria E.; MENDIETA, Marjoriê da C. Grupos de educação em saúde: aproximação da população masculina à unidade básica de saúde. Revista de pesquisa: cuidado é fundamental (Online). 7(2): 2372-2382, abr.-jun. 2015.
