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“Namorei Não, Peguei”: o pegar como uma forma de relacionamento amorosa-sexual entre os jovens

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Academic year: 2021

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“Namorei Não, Peguei”: o pegar como uma forma de relacionamento

amorosa-sexual entre os jovens

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Suely Aldir Messeder

UNEB

Palavras haves: pegar, ficar com, namorar, jovens negros de setores populares, modelo de gênero ativo e passivo.

“Ficar já é uma coisa de estar mesmo, pegar é pegar, pegar é por horas”: o pegar como uma forma de relacionamento amorosa e/ou sexual entre os jovens

.

Com os jovens, negros, de estratos pobres, baixa escolaridade, com práticas hetero, homo e bi-eróticas, moradores do Nordeste da Amaralina e Candeal Pequeno freqüentei, ao longo da pesquisa um dos seus espaços de lazer e paquera, a praia, lá, privilegiei o corpo como o locus central de investigação. O corpo e seus atos são constamentes lidos como um produtor de sinais a respeito da sua própria identidade de gênero e é a partir dele também, que se constrói um tipo de relacionamento chamado "pegar".

Este artigo está voltado para compreender o “pegar” como um tipo de relacionamento amoroso/ sexual entre os jovens que convivi ao longo do trabalho de campo. Embora já seja prática geracional corrente há mais tempo que o “ficar com”, não tem merecido atenção como esta última, em pesquisas que versam sobre as práticas sexuais dos jovens. Estes estudos têm investidos na sexualidade dos jovens, partindo da idéia de que nos últimos 20 anos, a sociedade brasileira mudou seus valores em relação à sexualidade, por várias e complexas razões.

Nas pesquisas que versam sobre o “ficar com” destaco o estudo pioneiro desenvolvido por Chaves (1995) considerando os princípios que o constituem, tais

*

Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.

1 O conteúdo deste artigo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu ator, cujas opiniões aqui

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como: a falta de compromisso, a ética do desejo, a busca do prazer, o distanciamento entre norma/compromisso e prazer, a comutatividade do objeto, a negação da alteridade e a ausência da obrigatoriedade da transcendência. No estudo de Rieth (1998), ela advoga que seus pressupostos teóricos estão em conflito com o de Chaves. Rieth discorda com Chaves, porque não se pode analisar o “ficar com” como um código de relacionamento que “nada tem de romântico e que beira a antipaixão (1994, p.36), colocando-se como um princípio fundamental a comutatividade do objeto vista como negação da alteridade. (1998, p.113).

Nestas pesquisas fica claro que o namoro é pensado como uma díade do relacionamento ficar com, quer seja para ser a sua antítese, quer seja para ser paradoxalmente complementar. O pressuposto central nesta discussão é que o pegar é um relacionamento que se configura na tríade entre o pegar, ficar com e o namorar.

A partir desta tríade assinala-se que os princípios que constituem o ficar com, encontra-se no pegar, e através dos depoimentos dos pegantes, propõe-se discuti-lo como um relacionamento que apesar de se revelar num tão demarcado modelo do ativo e passivo, atravessa um momento de reflexão por parte dos jovens, sobretudo pela inserção desse novo repertório ficar com.

Questões metodológicas

O trabalho de campo foi desenvolvido em espaço de lazer e paquera que os próprios informantes da pesquisa indicaram. Devo acrescentar que a pesquisa foi desenvolvida em dois bairros considerados de pobres, Nordeste da Amaralina e Candeal Pequeno. A escolha desses bairros não se deu por acaso, o primeiro refere-se ao longo período que mantive como bolsista de iniciação em pesquisa vinculada ao ECSAS (Núcleo de Estudo em Ciências Sociais e Saúde), desde 1993, iniciei o trabalho de campo nesse bairro. O segundo foi escolhido, considerando a violência deflagrada no Nordeste da Amaralina, tráfego de drogas intenso. Fui forçada a sair desse bairro, e escolher um novo bairro, sobretudo por acreditar que o trabalho de campo ainda não estava encerrado. É quando relacionei Candeal Pequeno.

Lógico que a mudança de bairro .trouxe algumas implicações para a pesquisa. Por um lado, há semelhanças, já que o Candeal Pequeno é um bairro que praticamente

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faz fronteira com o Nordeste da Amaralina e, como este último, caracteriza-se por estar cercado de bairros de classes médias e altas. Portanto, a mudança de bairro não estaria contrariando pressupostos de estudos de comunidades2, quanto à conjunção entre um espaço territorial e uma certa cultura. Por outro lado, ambos os bairros desta pesquisa situam-se na chamada “cidade alta” em Salvador. A feição urbana da Cidade do Salvador está marcada por uma polaridade espacial na qual se apresentam, com certa nitidez, as relações entre a organização do espaço e o fluxo de turismo. Na verdade, a topografia da Cidade do Salvador – cidade alta/baixa – serve de divisor entre o forte investimento nas obras para turista ver e nenhum investimento. Os moradores da “cidade alta” convivem, constantemente, com o alto fluxo de turismo. Assim, tanto os moradores do Nordeste quanto os do Candeal vivenciam o contato com o turismo.

Selecionados os espaços de sociabilidade dos jovens com jovens, fui iniciada a observação participante, em que o foco foram os aspectos que, a partir do corpo, revelassem as experiências de gênero e/ou sexuais na vivência quotidiana dos rapazes. Durante o decorrer do trabalho de campo, sempre me coloquei como antropóloga, portanto a pesquisa não foi conduzida, em nenhum momento, pela observação dissimulada. Tal condução salvou-me, em alguns momentos, dos assédios que uma mulher sofre ao pesquisar homens, pelos menos, ser antropóloga foi utilizado como uma arma para os mal-entendidos ocorridos, uma vez que precisava olhar para estes rapazes, e olhar fixamente, em nossa cultura, significa o interesse por outrem, desde que, para eles, o olhar constitui de fato uma forma de paquera.

Miguel Almeida (1995), em nota de rodapé, comenta que Gregory acredita que a dificuldade decorrente do gênero do antropólogo é um mito e que com o esforço pessoal e correção metodológica, pode-se obter acesso ao mundo feminino. O autor aceita tal afirmação, mas acrescenta que, em contextos de forte divisão sexual, fatalmente as informantes não assexuam o antropólogo, e comenta que as investigadoras indicam que elas são facilmente assexuadas pelos informantes, atribuindo esta assexuação aos estereótipos de gênero associados à divisão do trabalho, ao poder simbólico da ciência. No meu caso, especificamente, acredito que, mesmo impondo o poder simbólico da ciência, não obtive êxito neste processo de assexuação

2 Sobre estudo de comunidade ver o artigo de Albert J. Reiss “The Sociological Study of Communities”,

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diante dos informantes. Eles continuavam a querer seduzir a mulher investigadora, talvez por esta pesquisa se desenvolver em espaços de lazer e os garotos não conhecerem o significado do meu trabalho como algo ligado à ciência. Inclusive, em certos momentos, tive que me utilizar do status de morar com o meu namorado.

A escolha da concentração nas técnicas de entrevistas e observação participativa ocorreu nas discussões realizadas no curso em Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, que decorreu entre 6 de julho e 8 de agosto de 1997, com duração de 180 horas. Em dezembro de 1997, então bolsista desse Programa, mantive contato com Michel Bozon, relatando-lhe as dificuldades do trabalho de campo e, sobretudo, o tempo escasso para a realização da pesquisa. Convenceu-me que teria de decidir entre o universo feminino e o universo masculino. Reduzir o universo de pesquisa seria de fato o mais sensato, daí a decisão de investir no universo masculino, observando rapazes com diversas práticas sexuais, considerando já ter mantido contato com alguns rapazes, quando feita uma entrevista sobre a história de vida de Boga. Além disso, impressionavam-me dois fatos na minha jornada no campo, enquanto bolsista iniciante: a) as mães (e as avós) não se preocupavam com a prática sexual do filho, mas sim com o fato de eles não serem “bichas”; b) a existência de um número expressivo de rapazes que tinham relações sexuais com o pai-de-santo local.

Com os rapazes moradores do Nordeste, a investigação foi centrada nas praias e, com os moradores do Candeal, nas festas, nas feiras e no lado de fora do Gueto Square de Carlinhos Brown. Com eles, tive conversas espontâneas que me davam o tom de suas vidas. A grande maioria tinha como desejo o estrelado, quase todos participavam de bandas de pagode ou axé-music e, quando não tocavam instrumentos, diziam ser compositores. Interessante é que, se eles pareciam construir-se em torno da musicalidade, o grupo musical no qual eles estavam inseridos parecia não oferecer uma fidelidade de grupo, ou seja, não parecia possuir uma identidade, na qual eles se reconhecessem como um projeto coletivo. As relações que mantinham com os componentes dos grupos só ocorriam nos momentos de ensaio, sendo seus amigos, normalmente, um vizinho ou um primo. Não coube, no limite desta pesquisa, problematizar sobre as formações de tribos a partir da musicalidade.

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No desenrolar da observação participante, nas conversas informais e na leitura das primeiras entrevistas, fui percebendo a necessidade de acrescentar, no roteiro da entrevista, uma nova temática que se apresentava, de fato, como um código de relacionamento entre esses jovens o pegar. O investimento neste vocabulário acentuou-se de maneira mais reflexiva nas entrevistas realizadas no Candeal Pequeno.

Os quadros 1 e 2, a seguir, demonstram a quantidade de idas a campo (cada ida a campo teve, em média, 4 horas de duração).

QUADRO 1

IDAS ÀS PRAIAS DO OI E DO BURACÃO

ANO/MÊS Jan Fev Mar Abr MaiI Jun Jul Ago Set Out Nov Dez SUB

1997 10 6 8 10 12 46

1998 16 7 4 4 31

TOTAL 16 7 4 10 10 8 10 12 77

QUADRO 2

IDAS AO CANDEAL PEQUENO

ANO/MÊS Jan Fev Mar Abr MaiI Jun Jul Ago Set Out Nov Dez SUB

1998 4 8 10 10 8 40

1999 8 5 13

TOTAL 8 5 4 8 10 10 8 53

Os quadros demonstram que o tempo gasto em observação é superior ao tempo utilizado nas entrevistas, pois, no Nordeste, foram feitas 4 entrevistas, sendo somente 3 delas gravadas. Estas entrevistas tiveram em média duas horas e meia de duração, e que perfaz um total de 25 horas de entrevista.

Sobre as entrevistas

As entrevistas foram realizadas com 10 jovens3, objetivando remontar as experiências sexuais e/ou amorosas desses sujeitos, recolher dados acerca da sua percepção da masculinidade a partir da forma de uso do corpo, ou melhor, da leitura dos

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gestuais, de como eles se percebiam enquanto jovens negros e explorar o uso do termo “pegar” como uma forma de relacionamento.

Debert (1996) discute problemas relativos à utilização da história de vida e história oral e indica que, em pesquisas voltadas às classes populares, este instrumental possibilita o estabelecimento de uma conversação entre informante e analista. A autora assinala dois aspectos importantes nestas discussões: a) a violência implícita no procedimento que envolve a imposição, aos informantes, de categorias que não lhes dizem respeito, vindas de uma teoria exterior a eles ou a um conjunto de valores próprios do pesquisador; b) a importância de darmos condições aos informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analisar. Foi pensando desta forma que, na maior parte das entrevistas, me mantive silenciosa, apenas incentivando o uso dos seus próprios termos. Em alguns momentos de deslize, fui imediatamente corrigida por um dos informantes, alertando-me que eles não utilizam o termo gay ou homossexual, mas sim “viado”. É importante salientar que o convívio prévio com eles facilitou-me no momento da entrevista, porque pude inserir, no decorrer desta seus próprios termos.

Sobre o conteúdo explorado

O curso de metodologia já mencionado serviu-me como fonte de inspiração para elaborar a pergunta de partida para a entrevista com os jovens: - Como foi a sua primeira experiência amorosa? Devo esclarecer que ponto de partida não significa necessariamente que esta foi a primeira questão a ser colocada na entrevista, mas sim o ponto de partida no que se refere ao tema que envolve a experiência sexual e/ou experiência de gênero. Esta pergunta foi a mesma elaborada na pesquisa comparativa que versa sobre a primeira experiência amorosa em jovens brasileiros e franceses, desenvolvida por Michel Bozon e Maria Luiza Heilborn (1996), publicada na revista

Terrain, sob a forma de artigo intitulado “Les caresses et les mots: initiations

amoureuses à Rio de Janeiro et à Paris”. A questão possui uma ambigüidade intencional, visto que a resposta esperada tem justamente a expectativa de deixar por conta do informante o significado de uma experiência amorosa.

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Revistando a literatura sobre o “ficar com”

Em seu livro intitulado, “Ficar com: um novo código de relacionamento", Chaves esta interessada em conhecer as condições que propiciam o surgimento do "ficar com" no Brasil, assim como se configura esse código de relacionamento em jovens das classes médias e médias altas de grandes centros urbanos. Esse estudo centrou-se numa metodologia qualitativa, quer seja na observação participante, quer seja em entrevistas temáticas. A pesquisa desenvolveu-se em espaços destinados à diversão destes jovens como "bares, boates, festas, shows, praias, etc." (pg.111), foram entrevistados 18 jovens, divido em seis grupos que tem como critério de diferenciação entre eles a faixa etária e o sexo.

A autora sentencia que o “ficar com” surgiu no início da década de 80, e ela mesma se autodefine como um jovem pertencente a esta geração, e por isso, ao longo do seu estudo manteve-se numa postura de “estranhar o que lhe é familiar”. Chaves afirma que esse novo código de relacionamento só pôde crescer numa sociedade urbana contemporânea, marcada pelo individualismo e pelo igualitarismo, mas ao mesmo tempo sinaliza para os valores contraditórios existentes na sociedade brasileira entre o tradicional, hierárquico e o moderno. No entanto não leva a cabo esta a idéia, como pode ser visto mais adiante.

Para ela, o código do “ficar com”, “só é possível dentro de uma ideologia individualista, igualitária, levado ao extremo, e como em tal contexto esse código de comportamento vai ao encontro do processo de individualização" (pg.77). A autora reporta-se as idéias de Simmel sobre individualismo quantitativo e qualitativo que desemboca em uma atitude blasé dos indivíduos. A atitude blasé significa que objeto algum merece preferência sobre o outro, é como se os significados e valores diferenciados das coisas, fossem destituídos de substância. Para a autora, os princípios que constituem o código “ficar com” faz com que “ficante” possa ser identificado como um sujeito blasé.

A discussão proposta pela autora sobre a distinção entre as sociedades tradicionais e a sociedade moderna, recaiu na oposição entre o holismo-hierarquia, de um lado, e do outro individualismo- igualdade-liberdade. É “partir do momento em que o individualismo se afirma como o modelo, o corpo de representações dominantes sustentados por instituições oficiais e apoiados por agências legitimadas de

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conhecimento, inicia-se um processo contínuo e incessante de fragmentação, de autonomização de esferas sociais" (pg.80).

Para a autora no Brasil, o campo da sexualidade revela a autonomização e afirmação de uma igualdade individual, sobretudo no que tange a ideologia erótica4 expressa pela capacidade dos indivíduos de interpretar a ideologia de gênero e discursos sobre a sexualidade em função do seu próprio prazer. Com isto, percebe-se que o sistema social brasileiro é caracterizado pelo cruzamento entre os códigos modernos e os tradicionais, uma vez que se a ideologia erótica é também expressa pela interpretação dos indivíduos sobre o sistema de gênero, e este é pautado pelos valores hierárquicos do macho e a fêmea, do ativo e passivo. Para a autora, o movimento feminista, o movimento homossexual e o código “ficar com”, ao se apoiarem na lógica reivindicativa e igualitária, denunciam a precariedade do igualitarismo e as desigualdades que tradicionalmente têm estruturado o universo sexual brasileiro.

A autora defende que o código “ficar com” existe por si só; independe do namoro, da amizade ou de qualquer outra forma de vínculo. É um código organizado por princípios que existe de forma estável, é a menor forma possível de relacionamento. Estes princípios são fixos: a falta de compromisso, a ética do desejo, a busca de prazer, o distanciamento entre norma/compromisso e prazer, a comutatividade do objeto, a negação da alteridade e a ausência da obrigatoriedade da transcendência.

Todos estes princípios são erigidos e construídos, segunda a autora, pela matriz individualista. Para ela, o “ficante”5 é um indivíduo que está inserida numa cultura sexual erotizada, caracterizada pelo esvaziamento da ética, pela influência da mídia, pela banalização do sensível, pela espetacularização da vida cotidiana, pela estereotipia e pela estetização generalizada.

Enquanto, Chave indica o “ficar com” como um átomo de uma forma de relacionamento entre os jovens, no qual o que importa é a satisfação do próprio desejo e não a singularidade do outro, e conseqüentemente a comutatividade do objeto é vista

4 Aqui prevalece a idéia dos três sistemas culturais de referência sobre o universo sexual demonstrado em

Parker. A autora acredita que o código “ficar com” está para além da ideologia erótica, uma vez que o peso da transgressão se dilui, na ideologia do erótico, valoriza-se as regras uma vez que esta devem ser transgredidas “entre quatro paredes pode tudo”, no “ficar com” não existem regras de comportamento bem delimitadas e rígidas.

5 Apesar desse código “O ficar com”, ser utilizado por pessoas mais velhas, ele se constitui como uma

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como negação da alteridade. Rieth (1998) discute o código de relacionamento ficar, não como um átomo, mas sim como uma díade ficar/namorar enquanto constitutiva do código de relacionamento, usado para discriminar as experiências sentimentais e/ou sexuais em sua construção amorosa. Neste contexto o “ficante”, em suas primeiras experiências amorosas, descobre-se através do outro, do seu corpo, que excede a uma alteridade, de sentir, pensar e agir no mundo (Bozon, Heilborn, 1996 apud Rieth).

A autora assinala que a sexualidade ao ser vista como um fato social inscrito na modernidade introduz o erotismo como fator de validação dos relacionamentos amorosos. Observa que o processo de individuação que vem ocorrendo nos sujeitos não deve ser tratado como um processo de “destradicionalização” das relações.

Este estudo desenvolvido por Rieth (1998) tem como locus um grupo de jovens, 12 homens e 12 mulheres, entre 15 – 20 anos, residentes na cidade de Pelotas (RS) e estudantes de 2 º Grau da Escola Técnica Federal de Pelotas. A pesquisa privilegiou como ”técnica de investigação entrevistas em profundidade, objetivando remontar a história familiar de cada sujeito, recolher dados sobre a rotina diária e lazer, sua história sentimental e sexual e suas concepções de amor, fidelidade, intimidade, virgindade e sexualidade na adolescência”.)(pg.117).

A autora propõe que a discussão desta díade deve partir de um contexto que abarca a transmutação do amor romântico para o amor confluente. O amor romântico é a idealização de si e do outro visto de forma projetiva, é a valoração da alteridade. Enquanto que o amor confluente presume igualdade na doação e no recebimento emocionais, no qual o prazer sexual recíproco se transforma em um critério de avaliação de relação. Em vez da busca da pessoa especial, procura-se um relacionamento especial.

A autora conclui que a busca pela pessoa e pelo relacionamento não se exclui, “mas que, ao contrário articulam-se nas transmutações romântica e confluente do amor”. (Rieth, 1998; 130).

Arilha & Calazans, no artigo “Sexualidade na adolescência: o que há de novo” acreditam que mudanças significativas no tocante à atitude dos jovens diante da sexualidade aconteceram, mas, ressalva que tais mudanças não devem ser pensadas

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como uniformes para todo o país, e sim como experiências moldadas pelas perspectivas de gênero, raça, idade e classe social.

Segundo as autoras, a “prática sexual” do ficar ainda causa um certo impacto por ter, de certa forma, modificado a seqüência linear que ia um primeiro envolvimento afetivo a um envolvimento físico, até comprometimento de um casamento.

As autoras citam dois estudos, realizados em capitais brasileiras, que versam sobre o “ficar com” como uma forma de relacionamento entre os jovens.

O estudo desenvolvido em Belo Horizonte, por Afonso(1997) indica que os aspectos enfatizados no ficar são a instabilidade, a eventualidade e o não compromisso entre os parceiros, e que além do ficar existe um outro tipo de relacionamento, o “rolo”, que diferencia do ficar porque no rolo há uma certa repetição de práticas sexuais, mesmo que sem compromisso. Neste sentido o rolo, seria então uma menor forma de relacionamento do que o “ficar com”. Esta pesquisa foi desenvolvida com estudantes de escolas públicas e privadas, com faixa etária de 14 a 20 anos, e tinha como objetivo “investigar o dilema sobre sexualidade, a vida reprodutiva e as relações de gênero vividas pela atual geração de adolescentes, verificando-se até que ponto os jovens apresentavam representações sobre a vida afetiva--sexual considerada modernizantes ou inovadoras, associadas ao desejo individual na relação afetivo-sexual, afrouxamento da necessidade de vínculos entre as famílias, à defesa da igualdade entre homens e mulheres e da experiência sexual dos jovens, maior tolerância com o aborto e com a homossexualidade, em contraposições a representações caracterizadas como tradicionais.

No Rio de Janeiro, Lavinas(1997) em pesquisa desenvolvida em escolas particulares com jovens de classe média alta coloca que o ficar é experienciado como uma prática geracional e não específica de um dos sexos. A inovação dessa prática refere à não atribuir valores negativos às mulheres em função da experiência de algum tipo de envolvimento erótico e sexual de pouca duração.

Arilha & Calazans (1998) assinalam que esses trabalhos revelam que, sobretudo as mulheres é que estariam apresentando variações nas práticas sexuais, durante as últimas décadas no Brasil. As autoras ainda alertam que estudos desenvolvidos com adolescentes, rapazes e moças, das camadas populares também indicam que mudanças

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ocorridas nos repertórios usados para a construção da cultura sexual desses jovens têm revelado um impacto muito pequeno no caso dos jovens do sexo masculino. Mas, apesar dessas mudanças culturais no plano da fala e vivencia da sexualidade terem uma vigência maior entre as mulheres, nas camadas populares são, ainda assim, poucas significativas.

Desnecessário dizer que, a forma de relacionamento ‘pegar "que se pretende compreender na próxima seção, tem uma estreita relação com o" ficar com ", antes, porém, de esclarecer esta identidade entre os termos, e às vezes fazer valer a própria ambigüidade sugerida pelos os rapazes, faço algumas ponderações, tais como:

• A carência de estudos no campo da sexualidade 6no tocante a jovens de classes médias e altas e populares na Bahia impediu a possibilidade de uma perspectiva histórica, geracional, comparativa sobre a vivência e fala do pegar;

• Os estudos desenvolvidos sobre o “ficar com” demonstram um certo impacto ou mesmo a surpresa causado no campo da sexualidade dos jovens, mediante esta prática, desconfio que este impacto iniciou a partir do estudo de Chaves, pela sua própria condição de ser mulher, jovem, de classes médias, no interior de um contexto ambíguo;

• Todos os estudos citados sobre o “ficar com” não problematizam as relações raciais, nem sequer indicam a cor dos informantes, nem tampouco as práticas eróticas deles e delas, enquanto bi, hetero, homo-erótica, nem as diferenças entre os alunos de escola pública e privada;

• A polissemia das palavras, que nos alerta que a palavra somente é entendida a partir do contexto que está sendo usada, como pode ser observado neste próprio estudo, onde o “pegar jacaré” significa também uma modalidade de surfe com uso do próprio corpo;

• Cumpre dizer que o uso do termo não se restringe aos rapazes das classes baixas, e nem tampouco é exclusivo dos rapazes baianos, como se pode notar no livro Corpos, prazeres e paixões, através do depoimento de um dos informantes: “Sabe, às vezes é melhor paquerar do que pegar. A excitação está na paquera, na

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sedução...”(Paulo, homem, heterossexual de 26 anos, classe média) ( Parker, 1990:170), nos episódio da Malhação programa baseado no estilo da vida de jovens de classe média alta veiculada pela Rege Globo, na música de Roberto Carlos regravada pelo Barão Vermelho, na música de Caetano Veloso, Gatas Extraordinárias, gravada por Cássia Eller em 2001.

• Assim como Chaves, afirma ser pertencente à geração do “ficar com”, surgida nos anos 80. Eu pesquisadora jovem, com 27, quando iniciei esta pesquisa, consigo lembrar e também com lembranças de colegas7 e amigos, sem sistematizar estes dados, que a forma corrente na fala somente dos rapazes sobre o relacionamento sem compromisso, era o “pegar”, neste sentido a minha postura enquanto na escuta deste termo foi “estranhar o que é familiar”;

Ciente destas ponderações, tento compreender como, através do termo pegar, esses rapazes apesar de ainda estarem preso aos valores tradicionais como representações de gênero mais hierárquicas sinalizam, ao mesmo tempo, como estão negociando com as mudanças que vêm ocorrendo, tanto no repertório feminino, quanto no repertório gay.

Esta pesquisa circula no universo de rapazes de estratos pobres que, apesar de não se caracterizarem pela adoção de registros mais difundidos entre classes médias e altas quanto à identidade por direitos à igualdade e diferença, não estão isentos da publicização dos movimentos por afirmação de identidade como a étnica e a sexual, e tão expostos à mídia envolta na disseminação de categorias homossexual e heterossexual, bem como do novo repertório dos jovens, “ficar com”.

Na minha vivência “quase” cotidiana com os jovens que constituem o universo desta pesquisa, comecei a perceber que a forma de expressar verbalmente os seus relacionamentos revelava-se com palavras que mantinham uma estreita ligação com o corpo, tais como: dar, comer, queixar, embarreirar, bouquete, fazer coxinha, pegar entre outras. A linguagem afetiva/sexual vinculada com a percepção do corpo, não é uma

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Devo acrescentar que como professora de iniciação a metodologia científica na cidade do interior da Bahia, Itaberaba, alunas começaram a fazer uma pesquisa sobre sexualidade entre os jovens de escolas úblicas, e nas entrevistas perceberam que é corrente o uso da palavra “pegar” como um tipo de relacionamento.

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novidade nos estudos que versam sobre sexualidade no Brasil, (Gilberto Freire, 1998; Richard Parker, 1990; Bozo & Heilborn, 1997).

A identidade do ficar com e o pegar

Para uma melhor compreensão do pegar como código de relacionamento, advogo que os princípios constitutivo do “ficar com” apresentado por Chaves, estão presente no “pegar”. Com isto, sustento o argumento de que o ficar com é uma maquiagem para o pegar. Contudo, esta maquiagem não beira a superfície, o ficar com torna a experiência de gênero menos agressiva se o foco é a violência simbólica, uma vez que este vocabulário exprime um estado, e não mais uma ação. O vocabulário

pegar, por outro lado, atravessa uma fase transitória no discurso de jovens classes

populares que convivi durante a pesquisa.

Esta transição pode ser percebida pelas hesitações nos discursos elaborados pelos rapazes quando são inquiridos a responder sobre o que é ficar com e o pegar. Se para alguns dos rapazes, “Ficar já é uma coisa mais de estar mesmo, pegar é pegar,

pegar é por horas”. (Beto, 19 anos). Para outros, uma palavra substitui a outra “é pegar,

é o mesmo significado, você pegar, você fica, você armar...” (Drico, 19)

Em seus estudos Lavinas (1997) assinala que o ficar com é uma prática geracional, neste sentido tanto os rapazes, quanto às garotas fazem uso deste vocabulário, e com isto o ficar com abri um espaço de igualdade entre sexos, mas que mesmo assim não somem a idéia dos garanhões e das galinhas. Apesar do “ficar com” apresentar por parte dos usuários uma aparente tranqüilidade, a prática do pegar para os rapazes das camadas populares parece ser ainda uma forma de poder exclusivo do mundo masculino, ainda que está prática esteja sendo feita e falada por muitas mulheres.

Nesta pesquisa pude perceber que todos os princípios assinalados por Chaves que constituem o ficar com estão presente no pegar, a diferença é que o “ficar com” parece desliga-se um pouco mais da linguagem do corpo. A linguagem do corpo deve ser compreendida segundo a perspectiva de Richard Parker.

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Parker(1990) assinala que é nas expressões, termos e metáforas utilizados para falar do corpo e suas práticas, que as relações da criança com a realidade começam a tomar forma e que os sentidos associados ao gênero na vida brasileira são mais poderosamente expressos. Fatos da natureza – tipo físico masculino e feminino- o pênis e a vagina, primeiro passo de elaboração cultural – o pênis e a vagina tomam significados não simplesmente como marcadores de ordem natural, mas como representações de um conjunto particular de valores culturais. Desse modo, no jogo de palavras o falo se torna, figurativamente, se não literalmente, uma arma, um instrumento de agressão metafórica, ou uma extensão da expressão de Pierre Bourdieu, de violência simbólica.

É na linguagem do dia a dia, que se pode ligar noções de virilidade e potência em diferentes graus de entendimento consciente e inconsciente. No corpo do homem, o falo toma forma de uma arma, um instrumento de força e violência potencial. Em contrapartida, o corpo da mulher, tem uma associação lingüística, tanto como objeto dessa violência quanto, paradoxalmente, um local de perigo por si só.

A realidade física do próprio corpo divide assim o universo sexual em dois. Os papéis culturais definidos como ativo e passivo: comer, dar, entregar, foder, ficar por cima e abrir as pernas. Desse modo, a linguagem do corpo na vida contemporânea brasileira desempenha assim um papel crucial na construção do gênero como um fato social, mais que estritamente como um fato biológico.

O vocabulário pegar significa uma ação ativa, em si mesmo, ele carrega a relação entre o ativo, aquele quem pega, e passivo, aquele que é tocado. A prática do pegar inclui carícias, carinhos, toque nos seios, beijos, abraços, “fazer coxinha” (passar o pênis nas pernas da moça, sem haver penetração) e relação sexual. É possível que todos esses tipos de contatos ocorram ou somente um deles para se ter realizado a prática.

O vocabulário ficar configura-se como uma forma de suavizar a experiência vivida na prática do pegar, como pode ser revelado através da fala de Drico : “Pegar, eu

acho que essa palavra não é legal, pegar não é legal, ficar entendeu...É, melhor né , você falar ficar de que porra pegou entendeu, peguei, peguei , pegou o que como

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porque pegar a gente pode pegar , eu posso pegar aqui em você, você pode pegar em mim, eu peguei, eu fiquei com a pessoa , se pronuncia melhor né"

Desenrolando o pegar

Citarei dois episódios que ocorreram no trabalho de campo, que ajudaram a compreender como a prática do “pegar” é falada e vivenciada pelos jovens. O primeiro momento demarca a diferença que alguns dos jovens estabelecem entre o namorar e o pegar. O segundo revela a comutatividade do objeto como a negação da alteridade, mas sinaliza para tensão que existiu entre um jovem de 19 anos e um outro jovem adulto de 31 anos.

Narro o primeiro episódio, estávamos, eu e Dido, numa barraca da Praia do Oi. Conversávamos sobre o encontro que tinha tido no dia anterior na praça do Vale das Pedrinhas, quando lhe perguntei: -E aí Dido, você namorou com a menina? Ele retruca-me enfaticaretruca-mente: “Namorei não, peguei".

Seguem, abaixo, depoimentos que desenham as diferenças:

A diferença entre namorar e pegar

Peli : Pegar é assim uma armação, uma armação assim rapidamente. Já peguei outras meninas namorando com ela, mas só isso, armação; é de vez em quando. Peguei mesmo, só armação mesmo: assim uma hoje, outra no dia seguinte. É diferente de namorar? É, é, porque namoro é , hoje você tá namorando, eu tou com a menina, namorando normal, tou com ela. Aí, você vai, pega uma figura por um tempo, mas pega uma hoje pra transar pra um dia, o dia seguinte. Mas namorar é diferente, você tá firme com sua menina; mas pegar é outra coisa, pegar já é diferente, namoro é uma coisa, pegar é outra.

Dido: Não, eu não tenho uma coisa duradoura com ela, não é namoro firme

com ela, já é uma coisa diferente. Eu pego hoje, se eu quiser pegar amanhã... e vai assim, sucessivamente.

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Tom : Pegar é....como diz, assim...Você tá namorando com uma menina, aí você

vai todo dia namorar, quando você vê ela, você, vai namorar, você vai namorar diariamente. Já pegar é ... tá afim de ficar com você um dia, não tá afim de namorar com você, você também não tá afim de namorar com ela. Você não tá afim de ficar com ela, rola um clima assim e a gente pega uma vez assim, só rola uma vez, duas, no máximo três. Aí peguei, acabou, não rola mais nada.

Dessa forma, entender o pegar em contraste com o namorar. Para eles, o pegar é uma forma de privilegiar o presente, não pressupõe nem compromisso, nem a consideração da alteridade do outro, nem a fidelidade, nem tampouco a dificuldade de trocar de par a qualquer momento. Neste sentido, abarca os diversos princípios que constituem o ficar com. No entanto, estes princípios não se revelam simplesmente como um desdobramento do individualismo, mas também como uma fórmula de esquivar-se do receio de ser “corno” ou “viado”, como pode ser visto pelo neste relato extraído do diário de campo:

O segundo episódio aconteceu no mesmo cenário, na praia, mas em outra barraca, estávamos eu, Tiano, Pereira e duas amigas, uma negra jovem e uma senhora. Quando incentivei a falar sobre o uso do pegar. Pereira, negro, com 31 anos de idade, começou a falar, ele direcionava o diálogo para Tiano, parecia que queria estabelecer um “papo” entre homens. Falou que tinha ido para uma festa, chegando lá, encontrou com alguns amigos, e comentou que um deles nunca “pegava ninguém”, mas que naquela noite decidiu que não passaria a “zero”. Daí começou a investir nas “meninas”, aí então, conseguiu pegar uma, “até bonita e ele é muito feio”. Quando foi lá na cozinha, buscar uma cerveja, quando retorna, olha lá bicho, a menina se agarrando com outro cara. Fizemos uma hora retada com a cara dele. Logo depois que Pereira termina de narrar sua história, Tiano retruca: “- Mas o que tem, era sabia que era só para pegar”

Estratégias para o uso do pegar

Em relação à figura do “corno”:

Ion: “Porque a minha não é namoro é só armação mesmo: pegou hoje e

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curtir como a de todo mundo. Não é só o jovem, todo mundo agora parou com essa onda de namoro, só atrai infelicidade porque um acaba traindo outro.

Suely: Você já namorou alguém que te traísse?

Ion: (Risadas). Olhe, difícil dizer...já, já, a partir do momento que aquela pessoa

é insegura e que me traz uma sombra de dúvida com certeza ela já me traiu. E é por isso que eu extraí o namoro da minha vida, certo? Porque o ser humano o que tem mais de ruim é a mentira a falsidade, a traição né, resumindo .

Em relação à figura do “viado”:

Dido: Uma vez mesmo eu no banheiro, tomando banho, quando não tinha

ninguém em casa, ela entrou assim. Aí, eu virei com a bacia que tava lá com roupa pra poder cobrir aqui na frente, aí eu disse: Menina, sai daqui, o que isso? Aí ela saiu. Aí quando foi de noite [ela disse:] eu quero conversar com você, sério. Aí eu: é o quê, rapaz, que você quer conversar comigo, aí é o quê. Aí ela: É sério. Aí ela lá no fundo do quintal. Aí eu: ”Oxe”, por que a gente não conversa aqui, não lá no fundo do quintal. Aí tá certo. Quando chegou lá no fundo do quintal, ela: Dido, por que a gente não namora escondido sem minha tia saber? Aí eu digo: Não, não dá, não. Aí ela: Por que não dá Dido, tá vendo aí, quando eu digo que você é “viado” mesmo. Aí, eu disse: Que “viado”, rapaz? É, Suzane tava dando bola pra você, você não pegou ! Eu disse: “Opaí”! Aí a gente começou a namorar escondido, o primeiro dia, o segundo dia o terceiro, quando demorou...

No sistema de gênero, nota-se que tanto a figura do “viado” quanto à figura do “corno” desconstroem a imagem do homem verdadeiro como referência. O “viado” e o “corno” são visões perdidas ou extraviadas de tudo que o verdadeiro homem não pode ser nunca (Parker, 1990: 76). Aqui se percebe a estratégias do uso do pegar para livrar-se dos estigmas de livrar-ser “viado” e de “livrar-ser corno”.

Quem é o “pegante” ?

Para muitos dos rapazes, ainda que as jovens empreguem o termo pegar, quem

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Ion: Sim, as meninas são dois mundos: o mundo masculino e o feminino. No

nosso mundo a gente “pega”, “come”, “fode”. Alguma coisa assim. Elas também usam essas palavras, eu quero dizer que mulher não come homem, não fode, é o homem que come a mulher, entendeu?

Suely: E pegar, por que a mulher não pode pegar?

Ion: Porque não pode pegar, porque não pode. É tudo muito relativo, não dá

pra explicar assim, às vezes me foge a palavra na cabeça, mas acredito que a mulher não pode pegar.

Suely: Então me diga o que é pegar?

Ion: Se a gente quiser pegar elas, a gente pega, mas se elas quiserem pegar a

gente, no caso: tem menina que é parada na gente, mas a gente vai pegar ela quando a gente quiser Mas ela não tem o mesmo direito, só vai pegar a gente quando a gente tiver afim, tiver abafado, nunca mais transo. Na verdade, o homem usa a mulher como objeto, entendeu? A mulher não tem o mesmo direito

Já os rapazes8 que tem a prática homoerótica não fazem o uso do termo de forma corriqueira. Percebe-se que eles utilizam muito mais uma das derivações do termo,

pegação. Por pegação, entende-se tocar ou masturbar o pênis de outrem. Certo dia,

perguntei para um dos rapazes com prática heteroerótica se os “viados” fazem uso do termo pegar. Respondeu-me que acreditava que não, e, se eles fizessem o uso, certamente isso seria entendido como uma afronta e eles seriam esmurrados.

Embora alguns deles sejam resistentes em afirmar que o pegar é exclusividade do mundo masculino, outros se sentem à vontade em afirmar que as meninas também pegam ou armam, conforme se pode ver :

Tom: Pode sim. Assim, a gente se armou né, geralmente a menina nunca quer

ficar com um cara sem ter ser armado. Ela quer saber quem é o cara, eu também quero saber quem é a menina. Ela se arma uma vez, se ela gostou, eu gostei, a gente vai aí namorar, aí rola o namoro

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Dido: Minha mãe diz que isso é de mulher ruim, que uma vez eu fiquei todo roxo

aqui assim, todo vermelho. Minha mãe: Menino, que, não sei o quê, você não liga pra sua filha e fica pegando a mulher da rua. Eu não, elas que me pegam, não é, não?

Alf: As mulheres pegam, sabe porque elas pegam, tem mulher que tem coragem

de chegar assim pro homem , pro homem e dizer que tá afim de sair com o cara ou eu tou lá com um rapaz assim chegando assim novo na área , ela fala assim pô vou pegar aquele cara , consegue um jeito ou então ela manda um recadinho parece que tá afim do cara quer conhecer o cara e aí pronto rolou. O movimento hoje em dia é que a mulher disse que vai pegar , porque hoje em dia a mulher tá com tudo, parece que está ficando com mais espaço que homem viu rei, né não , então é normal, tá tudo legal!

Drico: Às vezes, tem, é o seguinte na maioria das vezes quem ficam com as

meninas são os homens que tomam a iniciativa , chegar lá queixar pá pra ficar, mas às vezes rola o contrário , tem menina que fica afim do cara ou manda recadinho ou como eu já conheço varias gatas assim que chega assim pro cara po to afim de ficar com você e fica , normal, isso acontece isso eu acho que isso é tudo levado, tudo besteira assim , acho que isso é o maior preconceito que bota assim que sempre o homem tem que chegar intimar a mulher pá, não acho isso legal acho que são direitos iguais entendeu, acho que a maior caretice tem menina que fala assim pô acho é vergonha a mulher chegar pro cara e tou afim de ficar com você , acho que isso não tem nada a haver conheço varias gatas que já chegaram assim pra colegas meus , já chegou pra mim assim po tou afim de ficar com você , fica, normal, besteira , acho que são opiniões diferentes, mas na maioria das vezes o homem que toma a iniciativa de chegar e ficar com as meninas , eu acho isso normal , ficar, mulher quer ficar assim, fica , acho isso normal, acho que isso daí é besteira

Desenvolvo a partir de agora, a idéia da prática do pegar, mediante a reação que ela provoca nos rapazes quando as mulheres fazem o uso desta. Além disso, demonstro as imagens que eles constroem a respeito das garotas, em função do pegar e do

namorar.

Quando estava entrevistando Dido, passou uma garota por nós e ele mostrou-se irritado por esta presença, conforme depoimento a seguir:

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Dido : Você sabe que, hum.... Vou dizer agora aqui, aquela garota. Porque eu

não gosto de fazer fofoca de ninguém, olha, agora ela entrou. Uma menina que mora ali, está de camisa amarela, namora com um cara da Santa Cruz. Aí, eu fui para Amaralina namorar, aí tô vendo ela com um negão retado, aí eu olhei assim: aquela ali é Mariana. Olhei assim... Aí, eu sentei na balaustrada, quando pensou que não, vem ela de lá. Aí, quando passou, eu olhei assim, aí ela virou a cara, quando ela olhou assim, eu vi: Opa! Mariana, era ela mesmo. Ela e o negão, e até hoje ela namora com o cara da Santa Cruz. Uma daqui mesmo que tem essa barraca, chamada Nelma, aí o marido largou ela. Um rapaz chamado Lídio, que tem essa casa grande, ficava pegando ela direto.Oh1 Botava no fusca dele, saía com ela direto, e o marido ficando sem saber. Eu tenho pra mim que o marido dela botou ela pra fora por causa disso, porque toda vez eu via ela passando de carro e todo mais na Amaralina. Por isso que eu digo: Vacilar é essas coisas : tá com um namorado e depois pegando outro, dando bola pra outro, aí eu não vou mentir, eu nunca consigo”tá” namorando com a menina e terminar assim sem eu tampar a mão na cara....

A imagem das garotas que, para eles, deve ser restrita à forma de relacionamento apenas com a prática do pegar

Peli: A diferença é que algumas são vagabundas, tem umas vagabundas que

não vale a pena. São elas que digo que vou pegar hoje para fazer sexo e pronto: as outras é que eu tenho interesse por elas que vou namorar com ela, seriamente.

Peli : É uma no meu termo já é uma ...galinha, pra mim ...é uma ...conheço

vários colegas que já, vários colegas que já fizeram uma geral numa menina, e armar é uma coisa e namorar é outra.

Dido: Ela tava com um shortinho, porque eu não vou mentir: eu vou pegar uma

menina com shortinho do jeito que ela tava, ali eu só pego naquele dia. Que eu vejo que a menina não presta, aí ela chegou: Pá! Lá mesmo no Vale, no lugarzinho que tá pra ficar assim aí, a gente começou a namorar, foi ver que ela já tava no jeito muito fácil pra mim

Tom: Normalmente, eu pego as meninas que são direita assim, até no sentido

para namorar, mas para pegar, assim, eu já peguei meninas que não são muito direitas, mas já peguei sabendo que só era aquilo ali e acabou

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As garotas com que não se deve fazer a ponte para o namoro

Tom: – Quando eu vejo, eu mesmo conheço uma menina que eu devo namorar,

você logo vê, assim: Aquela menina você deve namorar, aquela que não dá pra mim namorar é aquela menina que não liga para ela mesmo, não se cuida, fica assim toda desarrumada, assim na rua, não se arruma direito, anda toda suja. Aí, a gente vê que aquela menina não dá para namorar .Mas a menina, você vê logo, uma menina asseada; uma menina que não anda asseada, anda descalça na rua, não dá para namorar com uma menina dessa, eu acho que não dá.

Chico: A menina para namorar tem que ser bonita, simpática, ter um corpo

bonito e ser limpa, toda mulher deve se cuidar, ser decente

Através dos depoimentos, nota-se que os rapazes selecionam as mulheres que se deve pegar, mas esses critérios são ambíguos, porque o pegar também pode ser uma ponte para o namoro. Pode-se pegar tanto uma jovem decente, ou seja, garotas que vivem em casa, ou que saem poucas vezes, são limpas (asseadas), quanto a “galinhas” e as “gostosas” (mulheres que normalmente possuem “bundas” grandes). Por outro lado, o pegar não se encontra puramente na ética do desejo, ele também está associado à pressão do grupo, seja pela insistência dos colegas, seja pela recusa a ser rotulado de “viado” ou “corno”.

Pegar como ponte para o futuro namoro

Ion: Veja bem, se eu conheço uma menina hoje, a gente se arma hoje ou

amanhã, se arma depois de amanhã. E, nessa armação, a gente sente que é armação não é namoro. Se eu quiser namorar com ela, a gente vai sentar e conversar, mas você vai ter que me considerar, assim como eu também vou ter de considerar, certo!

Tom:: O fato dela ser “galinha”, e ver que ela pode mudar, que ela gosta

mesmo de você... eu namoro com uma menina que eu vejo que ela gosta mesmo de mim... O fato dela ser “galinha” depende do jeito que ela esteja. Eu não vou ser, mas isso a gente pode conversar.Se eu ver que ela tá gostando de mim mesmo...

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Demonstrando que o pegar também pode ser visto como uma possibilidade de um namoro, neste sentido pode aproxima-se do estudo desenvolvido por Rieth (1998) sobre o contexto do “ficar com”, ou seja a transmutação romântica e confluente do amor.

Na trilha das problematizações

Através dos depoimentos dos rapazes percebe-se que o pegar atravessa um momento de não ser dito e vivenciado como simplesmente uma prática naturalizada deste tão demarcado modelo feminino e masculino. A inserção das mulheres no mundo masculino pelo vocabulário pegar provoca uma desestabilização deste modelo hierárquico mesmo nas camadas populares, onde o ficar com adquire lentamente o seu papel de substituir o pegar, ou pelos menos de promover a reflexão por parte dos “pegantes”.

Entender o pegar numa perspectiva masculina nos alerta para o uso de um vocabulário que nos revela a linguagem do corpo e a partir do corpo, e, por conseguinte, uma experiência de gênero e uma experiência sexual. E simultaneamente, nos oferece sinais das negociações dos rapazes em torno das mudanças que vêm ocorrendo, sobretudo no estilo de vidas das jovens.

Para deter-se nas mudanças mais significativas do uso do vocabulário pegar, e com isto compreender as mudanças que vem ocorrendo nas experiências de gênero e experiência sexual é preciso investir em pesquisas que possam realizar comparações entre a tríade pegar, ficar e namorar numa perspectiva geracional, de classes sociais e entre homens e mulheres com práticas homo, bi e hetero-eróticas .

Apesar desta pesquisa ter sido desenvolvida num contexto específico é preciso salientar que o termo pegar não se restringe a este universo, é possível que exista as diferenças regionais, mas esta diferença não invalida a possibilidade de uma pesquisa comparativa e geracional do uso do pegar e do ficar com.

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Referência Bibliográfica

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DADOS SOCIOCULTURAIS DOS RAPAZES ENTREVISTADOS

DADOS NOME

IDADE BAIRRO ESCOLARIDADE PROFISSÃO COR RELIGIÃO RESIDE IDADE

DA 1º EXP. SEXUAL

PRÁTICA SEXUAL

1-BOGA 16 NORDESTE PRIMÁRIO COMPLETO ESTUDANTE NEGRO CANDOMBLÉ COM A AVÓ/ PRIMOS 11 HOMO-ERÓTICA

2-DIDO 19 NORDESTE PRIMÁRIO DESEMPREGADO NEGRO CATÓLICO COM A MÃE/IRMAOS 14 HETERO-ERÓTICA

3-NIL 23 NORDESTE PRIMÁRIO DESEMPREGADO NEGRO CANDOMBLÉ COM A MAÈ/ IRMÃ 13 HOMO-ERÓTICA

4-BETO 19 NORDESTE GINÁSIO INCOMPLETO PEDREIRO NEGRO NÃO TEM COM OS PAIS/IRMAOS 15 HETERO-ERÓTICA

5-ION 21 CANDEAL SUPLETIVO GINÁSIO ESTUDANTE NEGRO CATÓLICO COM A MÀE/IRMÃ 15 HETERO-ERÓTICA

6-PELI 19 CANDEAL GINÁSIO INCOMPLETO PEDREIRO NEGRO CATÓLICO COM OS PAIS/IRMÃO 15 HETERO-ERÓTICA

7-GUTO 16 CANDEAL GINÁSIO INCOMPLETO ESTUDANTE NEGRO CATÓLICO COM OS PAIS/IRMÕS - HOMO-ERÓTICA

8-TOM 18 CANDEAL 2 ºGRAU INCOMPLETO PERCURSIONISTA NEGRO NÃO TEM COM A MÃE/IRMAO 14 HETERO-ERÓTICA

9-DRICO 21 CANDEAL 2 ºGRAU INCOMPLETO PERCURSIONISTA NEGRO CANDOMBLÉ COM OS PAIS/IRMÃO 14 HETERO-ERÓTICA

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