• Nenhum resultado encontrado

Coletivos de trabalho como um dispositivo de saúde dos ofícios

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Coletivos de trabalho como um dispositivo de saúde dos ofícios"

Copied!
133
0
0

Texto

(1)Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia. COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS OFÍCIOS Alda Karoline Lima da Silva. Natal-RN 2017.

(2) ii. Alda Karoline Lima da Silva. COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS OFÍCIOS. Tese elaborada sob orientação do Prof. Dr. Pedro Fernando Bendassolli e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito à obtenção do título de Doutora em Psicologia.. Natal-RN 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Silva, Alda Karoline Lima da. Coletivos de trabalho como um dispositivo de saúde dos ofícios / Alda Karoline Lima da Silva. - Natal, 2017. 131f.: il. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Pedro F. Bendassolli.. 1. Coletivos de trabalho - Tese. 2. Clínicas do trabalho - Tese. 3. Saúde do trabalhador - Tese. I. Bendassolli, Pedro F. Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva II. Título. CRB-15/710 RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9:331.

(4) iii. Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia. A tese COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS OFÍCIOS, elaborada por Alda Karoline Lima da Silva, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de DOUTORA EM PSICOLOGIA.. Natal, RN ____de_________de____. BANCA EXAMINADORA. Pedro Fernando Bendassolli (UFRN). ____________________________________. Jorge Tarcísio da Rocha Falcão (UFRN). ____________________________________. Isabel Maria F. Fernandes de Oliveira (UFRN). ____________________________________. Claudia Osório da Silva (UFF). ____________________________________. José Newton Garcia de Araújo (PUC-MINAS). ____________________________________.

(5) iv. Agradecimentos A Deus, mais uma vez pelos sinais, não mais sutis (como antes sentia), presentes em minha história de vida, e por reafirmar que as invisibilidades (amor, sabedoria, paciência...) ainda constroem os verdadeiros significados do real da atividade de viver. Aos meus anjos da guarda disfarçados de: pai, mãe, padrinho, madrinha, tio, tia, irmão, amigo, aluno, mentores/guias/cuidadores da terra e do céu, amor! Gratidão pela proteção e luz de vida! Amo todos! Ao Pedro Bendassolli, por aceitar o “desafio” de minha orientação, pelas ideias compartilhadas, pelas dúvidas e inquietações. Aos professores que aceitaram o convite para fazer parte da minha banca. À equipe do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) regional de Natal pela acolhida e acesso ao campo de pesquisa. Aos participantes-trabalhadores do estudo, que me fazem a cada encontro reafirmar meu lugar na vida! Aos meus alunos, que me ensinam o caminho da docência, gratidão por (re)revitalizar meu gênero profissional. Ao Universo, que me possibilitou novos encontros de vida! A todos deixo um presente escrito como forma de gratidão:. Não era um bonsai “Tudo começou no dia em que recebi em minha casa um lindo bonsai. Desde então, nunca mais fui a mesma. Recebi sob as cláusulas de contrato temporário, mas, quando a gente cria vínculo afetivo, de que valem os papeis, não é mesmo? A plantinha, mesmo com o batismo que ofereci, a água que reguei e a melhor posição sob o sol que a coloquei, retornou para seu lar. Como jabuticaba que é, gostava.

(6) v. de enxergar as coisas do alto. E se, por causa daquele vaso, não iria mais crescer, teve que dar seu jeito... Guardou seu lugar na janela de um alto andar e, apesar de suas pequenas raízes não a abandonarem, elas não foram suficientes para a manterem de pé depois de um louco vento. O bonsai caiu lá de cima, quebrou o vaso, feriu o caule, perdeu folhas, virou um montinho de galhos e terra que, fosse um bonsai comum, qualquer pequeno grupo de formigas poderia fazer dele alimento de uma estação. A pequena jabuticabeira chorou, chorou, que nem água de mar: para banhar e para salgar. Essa água regou tudo que estava morrendo. O chão que aparou a queda da jabuticabeira relembrou que não era um desconhecido, a firmeza que causou dor no primeiro impacto deu abertura para suas raízes lembrarem que ainda estavam vivas, e cresceram. Cresceram para baixo, para dentro, para o profundo. Cresceram. Cresceram tanto que a deixaram de pé novamente. E aí veio chuva, veio mais vento, vieram galhos arrancados, sementes roubadas, espalhadas. Nem entendia mais como continuava de pé. Foi aí que olhou para os lados e viu que, ao seu redor, nasceu um pomar de jabuticabeiras, crescidas a partir de tudo que lhe fora arrancado. Que doido? Como pode? – Questionou-se. Não sei se ela sabe, mas ela não é bonsai, ela é árvore ‘está associada à: vida, respiração, proteção e (re)oxigenação...’. E se um dia sua madeira for derrubada, tenho certeza que virará ‘lápis de cor’, para que com elas eu possa desenhar um mar, um sol, um arco-íris e um coração”. (Jéssica Luana F. Queiroz, 2017).

(7) vi. Hoje vamos desejar o bem Sem olhar a quem [...] Peça tudo que você quiser Acredite na sua fé [...] Tenha dentro do seu coração Pureza e verdade [...] Quando não souber o que pedir Peça felicidade Quando não souber o que doar Doe sua metade. [...] Vou fazer de um papel um avião [...] Quero presentear Com flores Iemanjá [...] (Grupo Melim).

(8) vii. Aos nossos coletivos de trabalha(dores) desmantelados ↔ empoderados na produção de vida e saúde! Cheios de paixão na ação, nos demais casos, o sofrer a ação dessa paixão. (Spinoza, 2003).

(9) viii. Sumário. Lista de figuras. ix. Lista de tabelas. x. Resumo. xi. Abstract. xiii. Introdução. 14. Artigo um: O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a. 36. perspectiva de trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro Artigo dois: Uma síntese do conceito de coletivos de trabalho nas clínicas do. 60. trabalho Artigo três: Coletivos de trabalho e a produção de saúde dos ofícios. 83. Considerações gerais. 110. Apêndices. 124.

(10) ix. Lista de figuras. Figura 1. Página As inter-relações dos elementos constituintes dos coletivos de trabalho. 90.

(11) x. Lista de tabelas. Tabela 1. Página Características da psicodinâmica do. 63. trabalho 2. Características da clínica da atividade. 65. 3. Características da psicossociologia do. 69. trabalho 4. Conceituação de coletivos de trabalho pelas clínicas do trabalho. 72.

(12) xi. Resumo Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa-intervenção realizada em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, localizado no município de Natal-RN, com trabalhadores-usuários do serviço. Objetivei analisar o papel dos coletivos de trabalho como dispositivo de saúde em trabalhadores em situação de adoecimento profissional. As clínicas do trabalho apropriam-se da categoria coletivos de trabalho como operador fundamental na relação saúde-trabalho-desenvolvimento. Essas têm estudado e advogado os coletivos de trabalho como dispositivo-chave para a compreensão, manutenção e afirmação da saúde dos ofícios. Após apresentar brevemente o modo como cada uma dessas clínicas define coletivo, ofereço uma síntese provisória que emerge a partir da observação de pontos gerais de convergência entre elas no tocante ao sentido dos coletivos. A partir dessa análise, via clínicas do trabalho, apresento um modelo como via de entendimento dos elementos-base de constituição dos coletivos (relações com o ofício, afeto, reconhecimento e dialogicidade). Conduzi as atividades em duas etapas: uma de aproximação do campo com as atividades em grupo na sala de espera do serviço e entrevistas semiestruturadas; e outra com entrevistas clínicas. Na primeira etapa do estudo identifiquei três dispositivos: o coletivo provisório, a relação do sujeito com sua atividade, e o assédio ao ofício. Também ilustrei o modelo por meio de casos clínicos reais, que permitem destacar de que modo o funcionamento dos coletivos pode os fazer mantenedor ou não da sobrevivência do trabalhador e fazê-lo desenvolver um ofício sadio. Por fim, alerto para a necessidade de os indivíduos estarem como organizadores do seu próprio trabalho, para que o coletivo de trabalho possa dar seus sinais de expressividade, colocando em ação ele mesmo (o coletivo de trabalho) e o ofício no processo de produção de saúde, sinalizando, mais uma vez, a necessidade de cuidar dos ofícios tanto quanto.

(13) xii. cuidar do trabalhador, numa perspectiva de reparação do bem-estar pelos próprios coletivos de trabalho, sobre os critérios e as tensões da atividade de trabalho. Palavras-chave: coletivos de trabalho; clínicas do trabalho; pesquisa-intervenção; saúde e trabalho..

(14) xiii. Abstract This study represents the results of a research-intervention realized in a Center of Reference in Worker Health, located in the city of Natal-RN, with workers users of the service. The aim was to analyze how the collective work appears as health workers in professional device sickening situation. The work clinics appropriate of the work collective category as fundamental operator in the health-work-development relationship, which traditionally have studied and advocated the work collective as a key device for understanding, maintaining and affirming the crafts health. After a brief presentation of the how as each one of these clinics defines collective, we offered a provisory synthesis that emerges from observation of general points of convergence between them regarding to the collective meaning. The activities were conducted in the fases: approach of the field with the group activity in the waiting room of the service and semi-structured interviews and clinical interviews. It was possible to identify three devices in the first fase: the provisional collective; the relation of the subject with his activity and the harassment to the job. The model was illustrated trough real clinical cases what allow us to highlight that the way of collective operation can make it maintainer or not of the survivor and develop a health craft. Finally, it alerts to the individuals need to be as organizers of their own work so the collective work Cn give its signs of expressiveness, putting in action itself (work collective) and craft in the process of health production. It is alerted to the need of care with the job with equal level of importance of the care offered to the worker, in a repairing perspective of the well-being by the collective about the criteria and the tensions of the work activity. Keywords: Work collective; work clinics; research-intervention; health and work..

(15) 14. Introdução A presente tese de doutorado é fruto de uma pesquisa-intervenção que desenvolvi em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) da cidade de NatalRN. Este espaço já era um campo de práticas de estágio e extensão das minhas ações acadêmicas – sem vínculo como servidora, e sim como docente-pesquisadora. Entrei no serviço um ano e meio antes do próprio ingresso no doutorado. Essa familiaridade com o campo fez com que meu acesso e permanência durante o período de quatro anos de doutoramento fosse facilitada pela acessibilidade ao local e, por conseguinte, aos participantes da pesquisa. Isso me possibilitou uma aproximação ao campo, aos profissionais do serviço, ao seu funcionamento, bem como aos usuários que ali frequentavam. Aliado a isso, também me aproximei a diversos temas no campo da Saúde do Trabalhador (ST). No tempo dedicado ao campo, compreendi, na práxis, a complexidade da relação saúde-doença e suas conexões com o trabalho, reafirmei a necessidade de destacar a atividade de trabalho como elemento central para a compreensão↔transformação da condição de adoecimento laboral. Alinhado a isto, ao final do meu mestrado, algumas inquietações surgiram em relação ao papel dos coletivos de trabalho como elemento fundamental na relação de produção de saúde pela atividade de trabalho. Percebi que, apesar de os coletivos de trabalho serem citados nos estudos das clínicas do trabalho, escassas são as sistematizações sobre seus elementos conceituais, constitutivos e de funcionalidade interativa com a saúde no trabalho. A produção acadêmica restringia-se ao olhar específico de cada clínica do trabalho quanto ao papel desses coletivos. Mesmo os coletivos de trabalho sendo considerados essenciais por uma linhagem das ciências do trabalho – parte das quais nesta pesquisa estão articuladas às clínicas do.

(16) 15. trabalho (Athayde, 1996; Clot, 2006a; Dejours, 1993; Guérin, Laville, Daniellon, Duraffour, & Kerguellen, 2001; Leplat, 1994), as quais arrolam o coletivo como fundamental para o desenvolvimento das competências de quem trabalha, assim como para a construção de saúde e identidade –, os estudos das clínicas do trabalho não se dedicavam ampla e profundamente a uma discussão conceitual mais sistêmica e integrativa desse constructo, um dos aspectos que justifica meu interesse neste estudo. As clínicas do trabalho compõem um rol de abordagens da Psicologia do Trabalho (Psicodinâmica, Clínica da Atividade, Psicossociologia e Ergologia), que apresentam convergências relativas às temáticas da relação trabalho-subjetividade frente aos processos emancipatórios dos trabalhadores. Nessas, a noção de trabalho amplia-se para além da relação contratual (emprego), concebendo-o como uma atividade pela qual o indivíduo se afirma na sua relação consigo mesmo, com seus parceiros de trabalho e, por conseguinte, contribui para a dinâmica e perpetuação de seu coletivo profissional (Bendassolli & Soboll, 2011). Mesmo com suas diferenças de bases epistemológicas e teórico-metodológicas, o compartilhamento do conceito de coletivos de trabalho pelas clínicas é observado ao longo dos estudos – que abordarei posteriormente. Bendassolli e Soboll (2011) destacam que as clínicas do trabalho não constituem uma escola de pensamento, tampouco as abordagens mencionadas são homogêneas. No entanto, os autores apresentam alguns pontos comuns. Um deles é o interesse pela ação no trabalho como poder de agir dos sujeitos e dos coletivos – o termo poder refere-se não às classes sociais, à posse de recursos escassos, à capacidade de influência ou à autoridade, mas àquele encontrado no nível do ato, como o poder sobre si mesmo (no sentido do poder do uso de si), o poder sobre a atividade (a maestria sobre meios e fins), o poder sobre a atividade de outros, e o poder sobre as.

(17) 16. resistências (na forma de enfrentamento a restrições e frustrações do real). Desse modo, ao ocupar um lugar central nessas clínicas, os coletivos funcionam como um mobilizador de potência política para a mobilização subjetiva. A noção de coletivo designa-se como um processo de construção de acordos normativos, técnicos e éticos entre os trabalhadores, sendo o coletivo de trabalho construído em torno das regras de trabalho comuns, derivadas do próprio coletivo. Na ausência disso, segundo Gernet e Dejours (2011), há apenas um grupo ou reunião de pessoas que podem compartilhar interesses. Destaco o modo como Clot (2006a) apresenta o conceito de coletivo de trabalho. Para esse autor, o coletivo tem uma função primordial na manutenção e no desenvolvimento de um ofício, sendo condição para realizar bem seu trabalho e aperfeiçoar seu estilo pessoal, incorporando e sendo incorporado pelo coletivo. Assim, ao se iniciar em um ofício, o novato procura realizar o trabalho a partir dos conhecimentos adquiridos durante os treinamentos formais, mesmo que insuficientes. Nesse momento, o ingressante circula em esferas mais externas do coletivo de trabalho. Ao perceber aquela insuficiência, procura nortes em direção ao núcleo do seu coletivo profissional, por exemplo, ao observar os trabalhadores mais experientes para copiar o que fazem, mas o iniciante percebe que tal estratégia é ainda insuficiente. Nesse processo, ele começa a incorporar o coletivo, mas este ainda lhe é externo, é algo que ele precisa, portanto, tentar copiar. Então, o iniciante parte para as trocas mais efetivas com os outros trabalhadores, para compreender as regras próprias daquele meio profissional e incorporá-las a seu modo. Assim, pode trabalhar da sua própria maneira, com seu próprio estilo pessoal no interior de um gênero profissional (Clot, 2006a), seguindo e eventualmente modificando as regras daquele coletivo. Dessa maneira, o coletivo de trabalho oferece instrumentos para que cada um supere as dificuldades encontradas no seu meio, servindo de zona de desenvolvimento potencial (Clot, 2006a)..

(18) 17. Neste estudo, o coletivo não se limita ao grupo, mas como recurso para o desenvolvimento da subjetividade individual, sendo considerada a premissa do coletivo no indivíduo. Nesse sentido, o coletivo é entendido como recurso para o desenvolvimento individual. Os autores das clínicas (Clot, Dejours e Lhuilhier) retomam Cru (1987), no que se refere ao conceito de coletivo de trabalho, quando apontam a exigência de uma obra e linguagem comuns a vários trabalhadores, que constituem e são constituídas pelas regras do ofício. Outro ponto que destaco é o conceito de gênero profissional. A clínica da atividade relaciona intimamente gênero profissional e coletivos de trabalho. O gênero profissional da atividade é um conceito usado por Clot (2006a) a partir do conceito de gênero usado por Bakhtine (Bakhtine, 1984). Para Clot, o gênero consiste em um sistema social aberto de regras impessoais não escritas de um ofício. Esse conjunto de regras (explícitas ou implícitas) é construído pelos próprios trabalhadores. Regulador das relações entre os profissionais de um mesmo ofício, o gênero marca o pertencimento a um grupo, orienta a ação, e constitui as atividades reconhecidas ou interditas em um meio profissional. O coletivo de trabalho carrega as características do gênero profissional, sendo o gênero o instrumento coletivo da ação, com o qual o sujeito, por meio de suas criações estilísticas, ultrapassa o prescrito, ampliando seu poder de agir. O poder de agir – relacionado à amplitude de ação sobre a atividade –, proposto por Clot (2006a, 2010), relaciona-se à perspectiva de Canguilhem (2009) para a diferenciação entre o normal e o patológico. A saúde, em Canguilhem (2009), refere-se ao empobrecimento dos meios de que o organismo dispõe para seu funcionamento, do que resulta uma diminuição da capacidade (da amplitude de ação) desse organismo, no sentido de se adaptar e, no limite, manter-se vivo..

(19) 18. Para Clot (2010), há uma equivalência entre atividade e saúde. A clínica da atividade adota a definição filosófica de saúde trazida por Canguilhem; logo, se se define saúde segundo a leitura dele, no mundo do trabalho atual, a saúde está gravemente em perigo. As pessoas usam seus recursos pessoais para preservar a saúde. A atividade não é operação (gesto visível, detalhe, etc.), mas sim o que é feito e o que ainda não foi feito. É assim que se desenvolve a produção subjetiva da experiência, por meio da atividade, que é sinônimo de saúde (Pacheco & Silva, 2014). Para Canguilhem (1966/2011, citado por Athayde & Rezende, 2015), a atividade é uma disposição do vivente para lidar com o meio e reorganizá-lo; refere-se à afirmação da vida em seu caráter enigmático, conflituoso e recriador, não se limitando ao já dado, ao prescrito. Já atividade de trabalho é tudo que o trabalhador faz para dar conta de uma tarefa previamente definida, incluindo todas as contradições e conflitos que emergem em sua realização, existindo, assim, um campo da atividade de trabalho que não se reduz ao comportamento, como a mobilização cognitiva, afetiva e corporal para cumprir a tarefa (Athayde & Rezende, 2015). A atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho; significa o trabalho real efetivamente realizado pelo indivíduo, a forma pela qual ele consegue desempenhar suas tarefas. A distância entre o prescrito e o real é a manifestação concreta da contradição presente no ato de trabalho (Guérin et al., 2001). Montmollin (1990) defende que a atividade é um processo complexo, em evolução, destinado a adaptar-se a tarefa, mas também com a função de transformá-la. Guérin el al. (2001) fazem uma distinção conceitual entre tarefa e atividade de trabalho. A tarefa não é o trabalho, mas o que é prescrito pela organização ao trabalhador; a tarefa é exterior ao trabalhador, apresentando-se como um conjunto de prescrições impostas a ele. Ao fazer uma distinção entre o prescrito e o real, Guérin el al. (2001) apontam que as condições reais de trabalho são diferentes daquelas condições determinadas; os.

(20) 19. resultados efetivos são, ao menos parcialmente, diferentes dos resultados antecipados. Logo, nesse espaço que vai do prescrito ao real, inúmeras renormalizações acontecem na atividade desenvolvida pelo sujeito, sendo essa atividade rica em alternativas e engajada em escolhas. Clot (2006a) acrescenta o conceito de real da atividade, que se refere à atividade do indivíduo sobre si mesmo, como uma espécie de filtro subjetivo que concede um sentido para a vida do sujeito. O real da atividade consiste naquilo que pode ser feito, mas se escolhe, em determinadas circunstâncias – que podem mudar – não o fazer. Distinguindo a atividade realizada do real da atividade, o autor menciona que a primeira é o que se faz, enquanto a segunda consiste no que não se pode fazer, mas gostaria de têlo feito, e até mesmo no que se faz para não fazer aquilo que deve ser feito. Canguilhem (1947/2001) aponta que toda atividade de trabalho tenta encontrar um núcleo de renormalização, ou seja, que há uma tentativa de a pessoa ajustar o meio às suas próprias normas, mesmo que no ínfimo, mesmo que, parcialmente, recentrando o meio. O trabalho, além de ser um meio de produção de sentidos, é uma forma de a pessoa se sentir útil e ativa, e afirmar sua própria saúde. Contudo, os efeitos das atuais configurações do trabalho intensificaram alguns elementos nocivos às relações de trabalho, como o individualismo e a competitividade – apontado por Sennett (1999) como uma corrosão de caráter nas relações de trabalho; por Antunes (2013) como o desmantelamento da classe trabalhadora; e, nos termos das clínicas do trabalho, como uma desestabilização/enfraquecimento dos coletivos de trabalho (Dejours, 2004); ou um enfraquecimento/amputação do poder de ação desses coletivos (Clot, 2010). Estudos que se propõem a fazer uma análise do trabalho, independente de qual clínica se filiem, tocam na questão dos coletivos de trabalho como um meio de reafirmar a relação com a saúde e a segurança do trabalhador em realizar sua atividade, ou mesmo.

(21) 20. para evidenciar sinais de fragilidade, perda de vitalidade ou adoecimento pelo trabalho (Moraes & Athayde, 2014; Silva & Ramminger, 2014; Silveira & Merlo, 2014). Com a fragilização dos coletivos de trabalho, o indivíduo perde a possibilidade de participar de espaços de debate e discussão (Clot, 2010). Bendassolli (2011) aponta que coletivos só são verdadeiros operadores de saúde quando permitem a livre fluência do conflito sobre critérios, quando estimula disputas e heterogeneidade. Portanto, o bloqueio do poder dos coletivos em articular estratégias compartilhadas de ação também consiste em um meio de impedimento da ação, o que pode ocasionar sofrimento/adoecimento. Na presente pesquisa, parto da premissa de que os coletivos de trabalho são um meio para a potência de agir (aumentada ou diminuída) do trabalhador no processo de produção de saúde dos ofícios. Ao adotar essa posição, alguns questionamentos são elencados como norteadores:  Qual é a função exercida pelos coletivos de trabalho no processo saúdedoença, em trabalhadores adoecidos em virtude do trabalho?  Como os elementos constitutivos dos coletivos de trabalho se articulam como bases de manutenção e evolução desses, e, por conseguinte, para produção de um ofício sadio?  Quais são os possíveis caminhos que os coletivos de trabalho podem construir para restaurar ou ampliar o poder de agir dos trabalhadores adoecidos, e, assim, atuar como dispositivo de saúde? Para compreender a ideia de coletivo como dispositivo, é essencial elucidar o que é dispositivo. Para Agambem (2005), trata-se de qualquer coisa que de algum modo tenha a capacidade de orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas e os discursos dos seres viventes, não sendo somente aquelas com conexões mais evidentes (manicômios, prisões, escolas), mas outros objetos/instrumentos (telefones.

(22) 21. celulares, computadores, canetas), e até a própria linguagem (o mais antigo dos dispositivos). Isto posto, considerar os coletivos como um dispositivo de saúde significa que esses asseguram os gestos, isto é, as orientações genéricas e os modos de fazer de um ofício. A ST no Brasil tem recebido diferentes contribuições teóricas das relações saúde, trabalho e subjetividade. No entanto, de uma forma geral, há uma centralização na noção de sofrimento psíquico, frente aos constrangimentos impostos pelas organizações e pelas condições de trabalho. Aqui, destaco também uma iniciativa mais recente: a contribuição de autores (Brito & Athayde, 2003; Clot, 2006a, 2010; Silva & Ramminger, 2014) que sublinham a importância de produzir caminhos para a ampliação do poder de agir dos trabalhadores diante das condições de produção desse sofrimento. O adoecimento pelo trabalho ainda é uma pandemia oculta. Cerca de 2,34 milhões de pessoas morrem todos os anos em virtude de acidentes e doenças relacionados ao trabalho (Organização Internacional do Trabalho – OIT, 2013). Neste estudo, escolhi o trabalhador adoecido pelo trabalho como representante desses coletivos de trabalho. Quando o trabalhador desenvolve alguma doença profissional, ele sofre um corte do convívio com seus pares, não simplesmente por seu afastamento laboral, mas pelas consequências desse adoecimento. Ao ser acometido por uma doença/sofrimento laboral, inicia-se uma luta do trabalhador, geralmente solitária, contra os sentimentos de impotência diante daquela situação, às vezes, expressa pela negação inicial da sua comorbidade e pela chamada fraqueza de ter adoecido. Contraditoriamente, pode-se caracterizar essa era contemporânea do mundo do trabalho como a que mais avançou nas questões tecnológicas e nas formas de gestão dos processos de trabalho, mas a que mais produziu sequelas significativas de desintegração da classe trabalhadora. Esse descompasso entre as transformações laborais e as ações em.

(23) 22. ST produz problemáticas de diversas ordens na relação trabalho-saúde, dentre essas, o adoecimento do trabalhador e o desmantelamento/enfraquecimento dos coletivos de trabalho. A ST propõe colocar o processo de trabalho (e não apenas o indivíduotrabalhador) no centro da análise dessa relação, defendendo mudanças em processos de trabalho potencialmente produtores de adoecimento, ao mesmo tempo em que valorizam a experiência do trabalhador sobre o seu trabalho, entendendo-o como sujeito ativo do processo saúde-doença (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Outro aspecto de relevância deste estudo é não reforçar o entendimento errôneo de que os processos de trabalho só são interessantes para saúde coletiva quando se vincula a uma patologização nítida – um enfoque já superado da saúde ocupacional (Brito, 2005). Esta proposta ultrapassa a concepção trabalho-saúde de viés negativo e patológico, na qual trabalho produz apenas adoecimento e alienação; ao contrário, proponho pensar como o trabalho também pode produzir saúde (Silva & Ramminger, 2014). Deste modo, objetivei analisar como os recursos dos coletivos de trabalho foram mobilizados como dispositivos de mobilização de saúde de trabalhadores em situação de adoecimento profissional. Para isso, especificamente, foi fundamental: a) investigar a dinâmica do processo saúde-doença sob a ótica do ofício, para além do nível do sofrimento capturado pela dimensão subjetiva individual; b) analisar as apropriações conceituais sobre os coletivos de trabalho na perspectiva das clínicas do trabalho; e c) apresentar um modelo compreensivo dos elementos-base de constituição dos coletivos, por meio de casos clínicos reais, que ilustrem analiticamente o funcionamento dos coletivos como dispositivo de um ofício sadio..

(24) 23. Pressupostos teórico-metodológicos Para um melhor acompanhamento dos resultados – que apresento no formato de três artigos –, é pertinente assinalar o tipo de pesquisa que desenvolvi e os pressupostos que adotei: uma pesquisa-ação/intervenção, cuja base teórico-metodológica propõe prover aos sujeitos vida e voz. A pesquisa-intervenção rompe os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as bases teórico-metodológicas para pesquisas participativas, propondo uma intervenção micropolítica na experiência social. Assim, esta é uma atitude de pesquisa que desarticula as práticas já instituídas, adotando certa concepção de sujeito e grupo, de autonomia e práticas de liberdade e de ação transformadora (Rocha & Aguiar, 2003). Nesse sentido, pesquisar é ação, construção e transformação coletiva, sendo a intervenção articulada à pesquisa, com o intuito de produzir outra relação entre teoria e prática, sujeito e objeto, não tendo, portanto, algo a ser revelado, descoberto ou interpretado, mas criado e construído. Para Lhuilier (2011) a pesquisa-ação é uma prática usual nas clínicas do trabalho, cujo propósito central é o empoderamento dos sujeitos nas situações de trabalho (considero que, mesmo afastado do trabalho, o sujeito sempre é um trabalhador em potencial para transformação do seu trabalho, não necessariamente atrelada à relação com o espaço físico, mas com o sentimento de pertença ao ofício). Na ST, o trabalhador assume um papel essencial no saber acerca do seu próprio trabalho, premissa que está alinhada aos pressupostos metodológicos do Modelo Operário Italiano – MOI (Oddone et al., 1986) –, no qual a experiência do trabalhador é colocada como elemento constitutivo capaz de produzir interferências nas suas condições de trabalho e saúde (Pessanha, Silva, & Rotenberg, 2013)..

(25) 24. Destaco, aqui, o princípio basilar da análise da atividade realizada pelos trabalhadores, utilizando os métodos de coanálise do trabalho, adotando uma metodologia de caráter clínico-qualitativo, que permita ao sujeito refletir sobre suas práticas profissionais. Houve, então, um processo de reflexividade, que se manteve presente em todo o percurso metodológico desta pesquisa-intervenção, que ao longo do tempo teve suas técnicas construídas com seus participantes, em um processo de co-construção – característica comum às clínicas do trabalho. A pesquisa-intervenção tem essa característica: teoria e intervenção se constroem simultaneamente; nesse caso, é aberta a possibilidade de construir, de uma abertura da relação participantes-pesquisador para que novas relações sejam engendradas, tornando possível um novo modo de estar com os outros. Estabelece-se uma relação responsiva, um diálogo que, segundo Bakthin (2008), é inconcluso, e conecta-nos inexoravelmente a muitos outros, para quem nossas respostas se dirigem, com quem estamos dialogando todo o tempo, com várias vozes sociais – compreendidas por Bakhtin como pontos de vista acerca do mundo –que compõem o universo do qual somos partícipes. Nossa própria presença no mundo é já uma resposta, um modo de nos posicionarmos em relação às vozes sociais com as quais concordamos, discordamos, aderimos parcial ou totalmente, refutamos (Brito & Zanella, 2017). Posicionar o trabalhador-participante nesse lugar de analisador, como um representante vivo do mundo do trabalho e de seus coletivos, alinha-se à premissa adotada em seu pressuposto basilar na ST, fundada e fortemente disseminada por Oddone et al. (1986) – que, com sua equipe de trabalho, exercitaram concretamente uma abordagem clínica do trabalho que serviu de instrumento para a ampliação da potência e do poder de ação de coletivos de trabalho sobre o seu trabalho e sobre cada um de seus protagonistas (Clot, 2010). Nesse desenho de pesquisa, os trabalhadores interessados em compreender.

(26) 25. ↔ transformar suas situações de trabalho são convidados a participar da análise do seu trabalho, considerando que a discussão da sua experiência pode ser um meio de sua transformação. Assim, estudos que se propunham a colocar o trabalho como o centro da análise, tendo o trabalhador como seu analista principal, apresentam ricas contribuições baseadas nos relatos e impedimentos vivenciados pelos próprios trabalhadores – iniciativa realizada por Oddone et al. (1986) e fortemente alinhada às clínicas do trabalho. No presente estudo, tomo como figura a questão dos coletivos de trabalho nos processos de saúde, o que não torna secundária a atividade de trabalho como elemento de análise essencial para compreensão dos coletivos e sua interação na própria atividade de trabalho. Espero que este tipo de intervenção que coloca a atividade como foco de análise permita a emergência, segundo Lacomblez, Araújo, Zambroni-de-Souza e Máximo (2016), de: (a) ligações entre trabalho e saúde, por vezes não aparentes, mas insuspeitas e impensáveis espontaneamente, que adquirem outra visibilidade e tornam-se “dizíveis” e compartilháveis pelos coletivos; (b) conceitos explicativos que, advindos das verbalizações dos trabalhadores sobre suas próprias práticas de trabalho e sobre suas repercussões, são desenvolvidos em função do avanço da reflexão coletiva, e não segundo um programa que eu predefino como pesquisadora; (c) uma co-construção de conhecimentos novos sobre a situação de trabalho e adoecimento do trabalhador e sobre si mesmo, em virtude do próprio exercício de reflexão e de expressão. Desse modo, objetivo prioritariamente a descoberta e a apropriação de um percurso pelos participantes, em benefício deles, e não unicamente o de uma contribuição ao progresso da pesquisa científica – mesmo que a riqueza desta experiência abra portas a projetos inéditos. Os conceitos e métodos de análise do trabalho que ora adoto passam, assim, a ser considerados como ferramentas cognitivas capazes de facilitar a iniciativa e a conduta da ação, ou, pelo menos, a intenção da ação dos trabalhadores. Essa ferramenta.

(27) 26. assume uma função mais ampla, de tipo desenvolvimental, permitindo adquirir um melhor domínio geral de um ofício ou de uma função, o que pode transformar igualmente a relação com o trabalho e favorecer a saúde, na ótica dinâmica da sua construção (Lacomblez et al., 2016). Nesta pesquisa, adoto um método clínico – cuja operacionalização explicitarei posteriormente. Para Amador, Rocha, Brito e Barros (2016), as metodologias clínicas são uma forma de tratar a produção de conhecimento atrelada às tomadas de posição por parte do trabalhador. Passos e Barros (2012), citados por Amador et al. (2016), apontam que é nos encontros gerados pelo trabalho que estão presentes as imbricações políticas, posições que fazem análise, intervenção e transformação – tríade significativa na produção de vida no trabalho. Portanto, a prática de pesquisa com trabalhadores encontra, no plano clínico, um mote metodológico para produzir nuanças inventivas do trabalho, reinvenções da atividade, e outros diálogos do gênero. Desse modo, ao fazer pesquisa‐intervenção, aposto: (a) no compartilhamento da produção de conhecimento; (b) na transformação do vivido no trabalho, o que significa reconhecer o trabalhador engajado na atividade de análise; (c) e na possibilidade de libertá-lo de modos habituais de pensar, gerando outros modos de ver, relacionar e conduzir-se junto aos demais trabalhadores, e diante do seu ofício (Amador et al., 2016).. Contexto e etapas da pesquisa Realizei este estudo no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) regional de Natal, via inicial de acesso aos trabalhadores, que, ao serem encaminhados ao Centro, geralmente, estão adoecidos, seja por algum tipo de comorbidade profissional ou por acidente de trabalho. O acesso aos serviços de saúde pelos trabalhadores ocorre pela Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), na qual o.

(28) 27. CEREST apresenta-se como um dos dispositivos de relevância e notoriedade em ST. Para Leão e Castro (2013), esses dispositivos de ST refletem o saber técnico-científico e a correlação de forças sociais em certos momentos históricos, como apontou MinayoGomez e Lacaz (2005). A articulação à rede de atenção à ST, via CEREST, é um meio de aproximação e integração do âmbito acadêmico com a rede. A ST convoca essas interlocuções a fim de contemplar diversos saberes e abordagens (Dias & Hoefel, 2005; Machado & Santana, 2011; Minayo-Gomez & Lacaz, 2005; Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Há a necessidade de iniciativas que acompanhem as mutações do mundo do trabalho e que possam contribuir para a construção de uma Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora – PNSTT (Portaria n. 1.823, de 23 de agosto de 2012). As ações na rede de ST ainda ocorrem de forma muito fragmentada, e mesmo considerando os avanços obtidos desde a concepção da política de ST até os dias atuais, ainda há muitos desafios, devido às dificuldades de implementação das políticas públicas e sociais, da desintegração dos setores público e privado (Lacaz, 2007; Minayo-Gomez, 2013), e pela própria dificuldade de organizar coletivamente os trabalhadores. São duas as etapas deste estudo. A primeira inclui atividades em grupo na sala de espera do CEREST, seguidas de entrevistas semiestruturadas (Apêndice A). A segunda se trata de entrevistas clínicas (Apêndices B e C). Na primeira etapa, criei o dispositivo sala de espera, com rodas de debates, conduzidas por mim e voluntários da pesquisa1. Nessas, abordamos temas relacionados à história do sofrimento/adoecimento relativa ao trabalho. Ao total, realizamos dez salas de espera, registradas em diário de campo. As salas de espera objetivaram a ruptura do silêncio do trabalhador, seus modos de. 1. Em função de eu ter realizado este estudo com contribuições de voluntários para a pesquisa-intervenção, os artigos e as considerações gerais estão redigidas na primeira pessoa do plural. Embora eu tenha feito esta escolha para o relato da pesquisa, são de minha responsabilidade as inflexões teórico-metodológicas que assinalo neste texto..

(29) 28. sofrimento e dialogicidade sobre o processo saúde-doença, e a ampliação do acolhimento estritamente clínico-especializado para uma ótica de análise do trabalho – ação não substitutiva dos grupos terapêuticos, mas um modo a ampliar a rede de apoio ofertada ao trabalhador (Da Silva, Queiroz, Caraballo, Torres, & Bendassolli, no prelo). Ainda na primeira etapa, realizei entrevistas individuais semiestruturadas com trabalhadores, de modo acidental e por conveniência, a fim de compreender globalmente o perfil de adoecimento dos trabalhadores usuários do CEREST. Nesse procedimento, os trabalhadores expressavam sua história de vida no trabalho, suas relações atuais com o trabalho (jornada, tipo da atividade, vínculo contratual, exigências físicas e psíquicas do trabalho), as atividades desenvolvidas, o processo de adoecimento e sua relação com o processo de trabalho, e seus modos de enfrentamento. Conduzi as 20 entrevistas nas salas de atendimento do próprio serviço; todas foram gravadas e duraram em torno de uma hora. O cargo ocupado pelo público-alvo desta etapa foi diverso: motoristas, cobradores, vigilantes, costureiras, bancários, professores, vendedores, sendo a categoria motorista de ônibus a mais recorrente nesta pesquisa. Ao fim da entrevista, convidei os trabalhadores para participar da segunda etapa deste estudo. Na segunda etapa, apenas cinco trabalhadores se disponibilizaram a participar das entrevistas clínicas (Apêndices B e C): bancários, motorista, vigilante e professor; todos estavam afastados do trabalho. Com cada trabalhador, realizei de cinco a seis encontros, no próprio CEREST, com duração de uma hora, em um período de até três meses, sendo todos os momentos registrados em áudio. Durante essa atividade, adotei muitas estratégias de adesão para que o trabalhador pudesse continuar na pesquisa, de modo que os encontros não se limitassem a um momento terapêutico – cuja importância é válida, mas não apropriada ao campo de análise do trabalho. Destaco, aqui, a criação de um caderno, que nomeei de caderno de memórias, compartilhado com os participantes, que.

(30) 29. o utilizava para registrar o conteúdo da conversa e/ou outros aspectos relevantes para expressão do seu fazer profissional. A conotação clínica das entrevistas ultrapassa a perspectiva de uma “Psicologia Clínica do Trabalho”; abarca uma “Clínica do Trabalho”, que visa a ação sobre o campo profissional e busca desenvolver a capacidade de agir dos trabalhadores sobre eles mesmos e sobre o campo profissional, atuando como um dispositivo de transformação da situação em que o trabalhador se encontra e de restauração de sua saúde. É por isso que é clínica, por buscar transformar a situação e a saúde; a clínica é a ação para restituir o poder do sujeito sobre a situação. Desse modo, a finalidade não é desenvolver diferentes modelos de interpretação do real, mas desenvolver a interpretação dos trabalhadores, para que estes reinterpretem a sua posição e desenvolvam a sua interpretação sobre o trabalho que fazem (Clot, 2006b). Clínicas do Trabalho foi uma terminologia recentemente proposta (Bendassolli & Soboll, 2011; Lhuilier, 2006) para caracterizar abordagens que, mesmo sem focar a questão psicoterapêutica, partilham características do paradigma clínico (Bendassolli, Borges-Andrade & Malvezzi, 2010), com o foco em uma metodologia qualitativa, o recurso à interpretação e a ênfase na profundidade da compreensão de casos específicos em detrimento de descrições ou descobertas de leis gerais. Essa perspectiva tem caráter emancipador, pois visa ao empoderamento do trabalhador, seja em situações de sofrimento ou vulnerabilidade, seja diante de bloqueios ou suspensões de seu poder de agir (Clot, 2006a). A fim de usar uma ferramenta que possibilitasse o movimento dialógico interpretar-reinterpretar do trabalhador, usamos um caderno ao longo dos encontros clínicos. O caderno foi uma ferramenta pensada por um dos trabalhadores da pesquisa, que, devido ao desgaste causado pelo sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, estava.

(31) 30. com sua memória afetada, sofrendo com lapsos de esquecimentos. A sugestão do trabalhador (anotar para lembrar) foi tomada como sugestão para os demais participantes, que a adotaram como ferramenta de mediação para a etapa clínica deste estudo. A articulação entre as duas etapas da pesquisa me possibilitou organizar os resultados em três artigos: (a) O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a perspectiva de trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro; (b) Uma síntese do conceito de coletivos de trabalho nas clínicas do trabalho; (c) Coletivos de trabalho e a produção de saúde dos ofícios. As revistas selecionadas para submissão dos artigos são, respectivamente: Revista Espacios (Qualis B2); Revista Psico (Qualis A2); Psicologia em Estudo (Qualis A1). Cabe ressaltar que a lógica de construção dos artigos baseou-se nas diretrizes das revistas escolhidas (por exemplo, no estilo APA), exceto quanto ao tamanho dos textos, para que mantenham a distinção e a originalidade solicitadas na tese de doutorado. Em virtude da similitude das temáticas tratadas nos artigos, do estilo de redação e da estruturação lógica da argumentação, o leitor pode se deparar com alguns aspectos com certa vocação repetitiva. Isto se deve às escolhas que fiz e a alguns limites de apresentação do conteúdo deste documento. Por fim, há uma seção de considerações gerais, nos quais retomo os principais analisadores do estudo, debatendo seu alcance e desafios..

(32) 31. Referências Agambem, G. (2005). O que é um dispositivo? Outra Travessia, 5, 9-16. Alves, E. A. P., & Silva, C. O. (2014). Clínica da atividade e oficina de fotos: eletricistas em. foco.. Revista. Psicologia. e. Saúde,. 6(2),. 62-71.. Recuperado. de. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2177093X2014000200009&lng=pt&tlng=pt Amador, F. S., Rocha, C. T. M., Brito, J. M., & Barros, M. E. B. (2016). A narrativa como dispositivo metodológico em Clínicas do Trabalho. In 5o Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa (Org.), Atas CIAIQ2016 (v. 2, pp. 420-428). Recuperado de http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2016/article/view/779/766 Antunes, R. (2013). The working class today: The new form of being of the class who lives from its labour. Workers of the World – International Journal on Strikes and Social Conflict, 1(2), 7-18. Athayde, M. (1996). Gestão de coletivos de trabalho e modernidade: questões para a engenharia de produção. (Tese de Doutorado em Engenharia de Produção, Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro). Athayde, M., & Rezende, M. S. (2015). Atividade. In J. Borges-Andrade & P. Bendassoli (Orgs.), Dicionário de Psicologia do Trabalho e das Organizações (pp. 101-109). São Paulo: Casa do Psicólogo. Bakhtine, M. (1984). Les genres de discours. In M. Bakhtine, Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard. Bakhtin, M. (2008). Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária..

(33) 32. Bendassolli, P. F, & Soboll, L. A. (2011). Introdução às clínicas do trabalho: aportes teóricos, pressupostos e aplicações. In P. F. Bendassolli & L. A. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para a gestão do trabalho (pp. 3-21). São Paulo: Atlas. Bendassolli, P. F. (2011). Mal-estar no trabalho: do sofrimento ao poder de agir. Revista Mal-estar e Subjetividade, 10(1), 63-98. Bendassolli, P., Borges-Andrade, J., & Malvezzi, S. (2010). Paradigmas, eixos temáticos e tensões na PTO no Brasil. Estudos de Psicologia, 15(3), 281-289. Brito, J., & Athayde, M. (2003). Trabalho, educação e saúde: o ponto de vista enigmático da atividade. Trabalho, Educação e Saúde, 1(2), 239-265. Brito, R. V. A., & Zanella, A. V. (2017). Formação ética, estética e política em oficinas com jovens: tensões, transgressões inquietações na pesquisa-intervenção. Bakhtiniana, 12(1), 42-64. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/2176-457326093 Canguilhem, G. (2001). Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições, 12(2-3), 109-121. (Texto original publicado em 1947) Canguilhem, G. (2009). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Clot, Y. (2006a). A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes. Clot, Y. (2006b). Entrevista: Yves Clot. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 9(2),. 99-107.. Recuperado. de. http://www.journals.usp.br/cpst/article/download/25969/27700 Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum. Cru, D. (1987). Collectifs et travail de métier, sur la notion de collectif de travail. In C. Dejours (Org.), Plaisir et souffrance dans le travail (pp. 43-49). Paris: AOCIP..

(34) 33. Da Silva, A. K. L., Queiroz, J. L. F., Caraballo, G. P., Torres, C. C., Bendassolli, P. F. (no prelo). Intervenções na sala de espera: rompendo o silêncio do trabalha(dor). Revista Brasileira De Saúde Ocupacional. Dejours, C. (1993). Coopération et contruction de l’identité en situation de travail. Recuperado de http://multitudes.samizdat.net/ Dejours, C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Production, 14(3), 27-34. Dias, E. C., & Hoefel M. G. (2005). O desafio de implementar as ações de saúde do trabalhador no SUS: a estratégia da RENAST. Ciência & Saúde Coletiva, 10(4), 817827. Gernet, I., & Dejours, C. (2011). Avaliação do trabalho e reconhecimento. In P. F. Bendassolli & L. A. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho (pp. 61-70). São Paulo: Atlas. Guérin, F., Laville, A., Daniellon, F., Duraffour, J., & Kerguellen, A. (2001). Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática de Ergonomia (G. M. J. Ingratta & M. Maffei, Trads.). São Paulo: Edgar Blücher. Lacaz, F. A. C. (2007). O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cadernos de Saúde Pública, 23(4), 757-766. Lacomblez, M. H., Araújo, A. J. S., Zambroni-de-Souza, P. C., & Máximo, T. A. O. C. (2016). Marianne Lacomblez e a construção de uma Psicologia da Atividade de Trabalho. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 19(1), 121-133. Recuperado de 10.11606/issn.1981-0490.v19i1p121-133 Leão, L. H. C., & Castro, A. C. (2013). Políticas públicas de saúde do trabalhador: análise da implantação de dispositivos de institucionalização em uma cidade brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, 18(3), 769-778. Leplat, J. (1994). Collective activity in work. Some ways of research. Le Travail Humain, 57(3), 209-226..

(35) 34. Lhuilier, D. (2006). Cliniques du travail. Paris: Erès. Lhuilier, D. (2011, março). A intervenção em clínicas do trabalho: as teorias de intervenção, contextos, objetos, processos, demanda, metodologia e métodos, saúde e trabalho. Comunicação apresentada na Jornada de Trabalho da profa. Dominique Lhuilier no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRN, Natal, Brasil. Machado, J. M. H., & Santana, V. (2011). 1º Inventário de Saúde do Trabalhador, 2009 – Avaliação da Rede Nacional de Atenção Integral em Saúde do Trabalhador, 20082009.. Brasília:. Ministério. da. Saúde/Fiocruz/UFBA.. Recuperado. de. http://renastonline.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/arquivos/recursos/invent%C3% A1rio_renast_2009.pdf Minayo-Gomez, C. (2013). Avanços e entraves na implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 38(127), 21-25. Minayo-Gomez, C., & Lacaz, F. A. C. (2005). Saúde do trabalhador: novas-velhas questões. Ciência & Saúde Coletiva, 10(4), 797-807. Minayo-Gomez, C., & Thedim-Costa, S. M. F. (1997). A construção do campo da saúde do trabalhador: percurso e dilemas. Cadernos de Saúde Pública, 13(Suppl. 2), S21S32. Montmollin, M. (1990). A ergonomia no trabalho. In M. Montmollin (Org.), Ergonomia (pp. 29-46). Lisboa: Instituto Piaget. Moraes, T. D., & Athayde, M. (2014). Dimensões do coletivo na atividade de trabalho dos motoboys. Fractal: Revista de Psicologia, 26(2), 327-348. Oddone, I., Marri, G., Gloria, S., Briante, G., Chiattella, M., & Re, A. (1986). Ambiente do trabalho – a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec. Organização Internacional do Trabalho. (2013). A prevenção de doenças profissionais. Lisboa:. Autor.. Recuperado. de.

(36) 35. http://www.ilo.org/public/portugue/region/eurpro/lisbon/pdf/safeday2013_relatorio.p df Pessanha, J., Silva, C. O., & Rotenberg, L. (2013). Uma experiência de restituição de resultados em saúde do trabalhador. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 3(1), 33-44. Portaria n. 1.823, de 23 de agosto de 2012. (2012, 23 de agosto). Institui a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. Recuperado de http://saude.es.gov.br/Media/sesa/CEREST/site%20%20Portaria_1823_12_institui_politica.pdf Rocha, M. L., & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4), 64-73. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141498932003000400010&lng=pt&tlng=pt Sennett, R. (1999). A corrosão do caráter (M. Santarrita, Trad.). Rio de Janeiro: Record. Silva, C. O., & Ramminger, T. (2014). O trabalho como operador de saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 19(12), 4751-4758. Silveira, A., & Merlo. A. R. C. (2014). O medo: expressão de um coletivo de trabalhadores. Fractal: Revista de Psicologia, 26(2), 349-364. Recuperado de http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/1238.

(37) 36. ARTIGO UM. O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a perspectiva de trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro. RESUMO Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa-intervenção que realizamos em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, localizado no município de Natal-RN, com trabalhadores-usuários. Nosso objetivo foi analisar o processo saúde-doença em diferentes ofícios, sob a ótica das clínicas do trabalho, notadamente por meio da análise do trabalho. Conduzimos as atividades em duas etapas: uma de aproximação do campo com as atividades em grupo na sala de espera do serviço e entrevistas semiestruturadas; e outra de entrevistas clínicas. Identificamos três dispositivos: o coletivo provisório, a relação do sujeito com sua atividade e o assédio ao ofício. Alertamos para a necessidade de cuidado com os ofícios, com igual nível de importância do cuidado ofertado ao trabalhador, numa perspectiva de reparação do bem-estar pelos coletivos, sobre os critérios e as tensões da atividade de trabalho. Assim, a busca pela manutenção de um ofício sadio apresentou-se como uma estratégia de promoção↔recuperação no campo da saúde do trabalhador. Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Ofício assediado; Clínicas do trabalho.. The health-disease process in different jobs according to workers users' perspective of a CEREST in Northeast Brazil This study represents the results of a research-intervention realized in a Center of Reference in Worker Health, located in the city of Natal-RN, with workers users of the.

(38) 37. service. The aim was to analyze the dynamic of the health-disease process taking into account the level of the job, based of the work clinics. The activities were conducted in the fases: approach of the field with the group activity in the waiting room of the service and semi-structured interviews and clinical interviews. It was possible to identify three devices: the provisional collective; the relation of the subject with his activity and the harassment to the job. It is alerted to the need of care with the job with equal level of importance of the care offered to the worker, in a repairing perspective of the well-being by the collective about the criteria and the tensions of the work activity. Therefore, the search for the maintenance of a "healthy" office was presented as a strategy of promotion <-> recovery in the field of worker health. Keywords: Worker heath; harassed job; work clinics.. Neste estudo, apresentamos os resultados de uma pesquisa-intervenção realizada em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), localizado no município de Natal, com trabalhadores-usuários do serviço. A pesquisa ocorreu com aqueles afastados em virtude de sofrimento e adoecimento psíquico ocasionado pelo trabalho. Por meio de diferentes dispositivos metodológicos, objetivamos investigar a dinâmica do processo saúde-doença que também leve em conta o nível do ofício, e não apenas o nível do sofrimento capturado pela ótica subjetiva individual. Antes de apresentar o método e os resultados, empreendemos uma circunscrição teórica de seu objeto, iniciando pela contextualização do campo da Saúde do Trabalhador (ST), tendo em vista que as características de sua institucionalização ajudam a compreender o ponto de partida deste artigo, centrado nos usuários do CEREST. Em seguida, detalhamos o conceito de saúde-doença adotado no estudo, que privilegia a.

(39) 38. discussão da atividade e dos ofícios, e sumarizamos algumas das principais abordagens teóricas sobre o tema.. O campo da ST: definição, influências e institucionalização A ST compreende um corpo de práticas teóricas interdisciplinares e interinstitucionais desenvolvidas por diversos atores situados em lugares e papéis sociais distintos (trabalhadores, empregadores, Estado, universidades, sindicatos). Constitui-se em um patrimônio acumulado da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina Social Latino-Americana e influenciado pela experiência italiana – como se detalhará na próxima subseção, tendo em vista sua importância até os dias atuais. Em suma, trata-se de um campo cuja construção ocorre pelo alinhamento de diversos interesses, determinado fortemente pela influência do momento histórico e pelas lutas políticas de cada contexto (Lacaz, 2016; Mendes & Dias, 1991; Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). A identidade desse campo tinha como referência inicial a abordagem da Saúde Ocupacional, por meio da qual os trabalhadores eram vistos como pacientes ou objetos da intervenção profissional. Na ST, eles constituem-se em sujeitos políticos coletivos, depositários de um saber emanado da experiência e agentes essenciais de ações transformadoras. O trabalho é entendido como uma arena composta por coletivos desiguais (articulados na díade capital-trabalho), estruturalmente determinada por conflitos e embates de concepções e práticas, que também são condicionados pelos recursos que agentes e instituições possuem (Bourdieu, 1996), e que mudam ao longo do tempo. A dinâmica do trabalho leva, pois, à necessidade de contínua reinvenção do campo (Minayo-Gomez, 2011)..

(40) 39. A experiência italiana O campo da ST sofreu – e sofre até os dias atuais – influência de diversos movimentos e atores sociais. Como dissemos na seção anterior, uma dessas influências em particular merece destaque. Trata-se da experiência proveniente da Itália na década de 1970, culminando no que foi então proposto como Modelo Operário Italiano (MOI). O MOI surge em Turim, promovido por um grupo composto de médicos, sociólogos, psicólogos, estudantes, trabalhadores e sindicalistas, articulados em torno de “comunidades científicas ampliadas”, que se desenvolveram em todo o território italiano (Brito, 2011). Uma figura central do movimento foi o médico e psicólogo Ivar Oddone, considerado um símbolo do caráter multiprofissional e inter/transdisciplinar do campo da ST (Athayde & Souza, 2015; Muniz, Brito, Souza, Athayde, & Lacomblez, 2013). As referidas comunidades ampliadas foram responsáveis pela criação de um novo modelo de conhecimento e de estratégia sindical a respeito das condições de vida e de trabalho. Elas recuperaram o valor científico da experiência dos trabalhadores, desenvolvendo uma forma original de pesquisa-ação, na qual todos os atores se tornariam coautores das iniciativas propostas (Oddone, 2007; Oddone et al., 1986). A herança deixada por Oddone é uma clínica do trabalho fundada na observação de fatos singulares, focalizando sua atenção na relação dialética entre a experiência e a aprendizagem na compreensão do comportamento, ambas mediadas pela consciência. Embora marcada pelo seu tempo e contexto, a herança de Oddone e de sua equipe possibilitou ao campo da ST no Brasil uma prioridade crescente dos coletivos de trabalhadores, que têm autonomia e saberes próprios para alargar o seu poder de ação sobre o meio de trabalho real e sobre si mesmos..

(41) 40. A rede de apoio ao trabalhador Até este ponto, destacamos algumas definições gerais sobre o campo da ST e a influência recebida do modelo italiano, centrado em torno das comunidades ampliadas e na recuperação do protagonismo do trabalhador. Porém, a dimensão conceitual que norteou e ainda norteia os atores do referido campo foi se materializando progressivamente, a partir de dispositivos institucionais variados. Em específico, detemonos brevemente à descrição da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), haja vista ser nesse contexto que os sujeitos da presente pesquisa foram inquiridos. A RENAST foi criada em 2002, por meio da Portaria n. 1.679/GM, objetivando disseminar ações de ST articuladas às demais redes do Sistema Único de Saúde (SUS). Para Dias e Hoefel (2005), a RENAST é uma estratégia bem-sucedida, embora com limites, entre eles as discrepâncias na área de cobertura dos CEREST; a frágil articulação intrasetorial; a falta de clareza na definição das instâncias de coordenação das ações e de direcionamentos para a pactuação entre os diferentes níveis de governo no planejamento regional, estadual e municipal. O CEREST foi desenhado para funcionar como unidade especializada de retaguarda para as ações de ST no SUS. As unidades mais consolidadas tornaram-se porta de entrada para trabalhadores com doenças ocupacionais ou acidentes do trabalho. Considerando o amplo escopo conceitual e mesmo político do campo da ST, esse tipo de atenção se torna assistencialista; portanto, romper com tal lógica é um desafio para a própria estruturação da rede. Tendo situado o campo da ST, a seguir, voltamo-nos à demarcação de um conceito central não só para o referido campo, mas também para a presente pesquisa: o conceito de saúde e sua interface com os ofícios e coletivos de trabalho..

(42) 41. Saúde e trabalho: um olhar pela Clínica do Trabalho O conceito de saúde foi, ao longo de muitos anos, pautado pelas diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), de acordo com a qual, saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não sendo caracterizado apenas como a ausência de doenças ou enfermidades (OMS, 1946). Contudo, para além desse marco legal, definir saúde não é uma tarefa fácil, e diversas são suas conceituações em outros terrenos teóricos. Globalmente, há pelo menos três correntes de pensamento nesse domínio: as enraizadas na teoria do estresse, as psicopatologias fortemente influenciadas pelo referencial psicanalítico e as fundamentadas no materialismo histórico, centradas em torno do operador desgaste no trabalho (e.g., Bernardo 2014; Franco, Druck, & Seligmann-Silva, 2010; Paparelli, Sato, & Oliveira, 2011; Seligmann-Silva, 2011, 2015). Uma quarta corrente, mais recente, sustenta nossa perspectiva neste estudo; refere-se às Clínicas do Trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011). Na sequência, debruçamo-nos sobre o conceito de saúde desenvolvido nessas clínicas, particularmente o que toma, em alguma medida, a compreensão do processo saúde-doença baseado na obra de Canguilhem (2009). Para Canguilhem (2009), saúde está relacionada à capacidade do ser vivo em estabelecer novas normas, tolerar e enfrentar as infidelidades e as agressões do meio – algo além de um mero processo de adaptação. Essa perspectiva está baseada no entendimento de que uma das características-chave do ser humano é a vitalidade, que se manifesta na tentativa permanente de adequar o meio às suas necessidades e anseios, ou, como coloca Canguilhem, às suas normas. Portanto, saúde está relacionada à atividade, ao poder de agir, à capacidade de transgredir o meio e suas normas vigentes, tendo em vista a criação de novos espaços de vida..

(43) 42. Ao mencionar que os indivíduos buscam modificar seu meio de acordo com suas próprias normas, Canguilhem corrobora com um dos caminhos propostos pela ergonomia da atividade, que inverte a lógica (taylorista) predominante de adequar as pessoas ao trabalho. Em vez disso, é o inverso que se persegue: adaptar o trabalho ao homem. Esse também foi o caminho escolhido pelo MOI, que visou compreender↔transformar as situações de trabalho, de modo que essas não gerassem danos à saúde e permitissem aos trabalhadores expressarem ao máximo sua capacidade produtiva como sujeitos pensantes (Oddone, 2007). Portanto, saúde corresponde, de um lado, a uma margem de tolerância que os seres humanos têm em relação às infidelidades do meio e, de outro, à capacidade de as pessoas (individual e coletivamente) criarem novas normas, ou seja, de agirem sobre o meio e o transformar (incluindo o trabalho). Sentir-se com saúde é, pois, ser capaz de criar novas normas de vida; é ser capaz de detectar, interpretar e reagir, mas também de renormalizar, inventar novas normas. Essa caracterização de saúde foi reapropriada e desenvolvida no interior das várias das Clínicas do Trabalho, como no caso de Clot (2006, 2010), Dejours (1986, 2004) e Lhuilier (2006, 2014). Lhuilier (2014) destaca que o ato de trabalhar implica a mobilização de recursos pessoais já desenvolvidos, mas também a criação de novos recursos. O que está dado, o que já existe, as normas antecedentes, sejam elas produzidas por quem prescreve a tarefa, pela profissão ou pelo coletivo de trabalho, são colocados à prova do real na atividade. Os imprevistos, os obstáculos encontrados, constituem as muitas solicitações à invenção e à transgressão. Só assim o trabalho se torna um operador de saúde, pois permite que, ao engajar-se na atividade (na ação), o sujeito transforme os obstáculos. Similarmente, para Clot (2013), saúde está ligada ao poder de agir, à potência transformadora por meio da atividade. Para Clot, a atividade realizada não possui o.

Referências

Documentos relacionados

O teste de patogenicidade cruzada possibilitou observar que os isolados oriundos de Presidente Figueiredo, Itacoatiara, Manaquiri e Iranduba apresentaram alta variabilidade

Detectadas as baixas condições socioeconômicas e sanitárias do Município de Cuité, bem como a carência de informação por parte da população de como prevenir

A prevalência global de enteroparasitoses foi de 36,6% (34 crianças com resultado positivo para um ou mais parasitos), ocorrendo quatro casos de biparasitismo, sendo que ,em

Os maiores coeficientes da razão área/perímetro são das edificações Kanimbambo (12,75) e Barão do Rio Branco (10,22) ou seja possuem uma maior área por unidade de

5.2 Importante, então, salientar que a Egrégia Comissão Disciplinar, por maioria, considerou pela aplicação de penalidade disciplinar em desfavor do supramencionado Chefe

Este desafio nos exige uma nova postura frente às questões ambientais, significa tomar o meio ambiente como problema pedagógico, como práxis unificadora que favoreça

Atualmente os currículos em ensino de ciências sinalizam que os conteúdos difundidos em sala de aula devem proporcionar ao educando o desenvolvimento de competências e habilidades