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Uma análise no feminino artes e ofícios de cura: benzedeiras e parteiras de Ituiutaba 1950/2006

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA ROSANE RIBEIRO BORGES. UMA ANÁLISE NO FEMININO ARTES E OFÍCIOS DE CURA: BENZEDEIRAS E PARTEIRAS DE ITUIUTABA - 1950/2006. UBERLÂNDIA 2007.

(2) ROSANE RIBEIRO BORGES. UMA ANÁLISE NO FEMININO ARTES E OFÍCIOS DE CURA: BENZEDEIRAS E PARTEIRAS DE ITUIUTABA - 1950/2006. Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em História Social. Área de concentração: História Social Linha de Pesquisa: História e Cultura. Orientadora: Prof.ª Drª. Vera Lúcia Puga.. Uberlândia 2007. 2.

(3) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP). B732a. Borges, Rosane Ribeiro, 1951Uma análise no feminino artes e ofícios de cura: benzedeiras e parteiras de Ituiutaba – 1950/2006 / Rosane Ribeiro Borges. – Uberlândia, 2007. 170 f. : il. Orientadora : Vera Lúcia Puga. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-Graduação em História. Inclui bibliografia. 1.História social - Teses. 2. Cultura popular - Ituiutaba (MG) Teses. 3. Religiosidade - Teses. 4. Parteiras - Ituiutaba (MG) - Teses. 5. Benzedeiras - Ituiutaba (MG) - Teses. I. Puga, Vera Lúcia. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título. CDU: 930.2:316. Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação mg- 11/07.

(4) 3.

(5) ROSANE RIBEIRO BORGES. UMA ANÁLISE NO FEMININO ARTES E OFÍCIOS DE CURA: BENZEDEIRAS E PARTEIRAS DE ITUIUTABA - 1950/2006. Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal de Uberlândia, como parte dos requisitos para obtenção do título de mestre em História Social. Área de concentração: História Social Linha de Pesquisa: História e Cultura Uberlândia, 30 de agosto de 2007. Banca Examinadora ____________________________________________________ Profª. Drª.Vera Lúcia Puga – UFU - Uberlândia _____________________________________________________ Profª. Drª. Maria Clara Tomaz Machado – UFU - Uberlândia _____________________________________________________ Profº. Drº Valdeci Rezende Borges – UFG - Catalão. 4.

(6) Você tem fé? Então uma lasca de porta velha vira uma Santa Relíquia. Você não tem fé? A Santa Cruz todinha não passa de uma porta velha. Nicos Kazantzakis. 5.

(7) Este trabalho foi motivado após caminho pelo limbo. Agradeço à Vida. Terra, que de tão dura, me obrigou subir para ouvir o vento.. Agradeço: À Universidade Federal de Uberlândia e ao Departamento de História pela oportunidade de realizar este curso. Agradeço em particular a vivência diária com professores, funcionários e colegas pós-graduandos, onde encontrei estímulo e cooperação.. Ofereço-o: À, mamãe, que nos estimulou nunca cair. Aos, Nanci, Elaine, Roseli, Deise e Weber, laços e enlaços vivenciados cotidianamente. Aos, Juliana, Fernando, Deborah e Leandro Filho, Amados frutos da doce vida. Aos, Carlos Eduardo, Kellen, Maria Aparecida,Agilda, Zizi, Zilca que comungaram comigo a esperança de recomeçar À Vera Lúcia, Amiga e Orientadora. Às Julieta e Nininha, Eliane, Dulcina, Kátia, Luciene, Rosângela, Zezé. Professoras que ficam. Representadas pela excelência de Maria Clara. Tenho gratidão: Às Benzedeiras, Parteiras, e outras vozes que me permitiram ( re)criar uma realidade.. 6.

(8) Ofereço: João Batista, e se nossas mãos se encontrarem em outro sonho, construiremos outra torre no céu. 7.

(9) SUMÁRIO Foto Mãos em Prece. ................................................................................ 09 Resumo........................................................................................................10 Introdução ................................................................................................. 11 Capítulo I .................................................................................................. 24 Retratos do Brasil. Foto. Uma casa com flores e ervas ...........................................................54 Capítulo II ............................................................................................... 55 Ituiutaba Caminha. Faz História. Mapa de Ituiutaba..................................................................................... 60 Obra de Mariotto Albertinelli – Visitação..............................................95 Capítulo III ................................................................................................ 96 Dádivas - Benzedeiras. Parteiras. Considerações Finais. ..............................................................................136 Fontes Documentais .................................................................................154 Fontes Orais ............................................................................................. 155 Referências............................................................................................... 159. 8.

(10) MÃOS EM PRECE. Mãos da Dona Luca - Wailde Domingues da Silva. Parteira, negra, falecida durante a construção desta Dissertação, com 80 anos. Foto de Fernando Borges Marquez de Andrade.. 9.

(11) RESUMO. Exponho as especificidades do mundo feminino, pesquisando as mulheres benzedeiras e parteiras em Ituiutaba-MG entre os anos de 1950 e 2006. Discuto o processo de individualidade dessas mulheres socialmente configuradas, cujos ofícios e artes de cura são sustentadores de tradições e costumes que se movimentam no flexível tecido social e são apresentados através da Teoria da História Social. As práticas femininas de cura são expressões das formas populares de tratamento dos mais variados males. Assim, elaboro uma compreensão do cotidiano vivenciado pelas mulheres que protegem e curam, uma manifestação social da dádiva expressa no ofício de benzer e partejar.. Palavras-chave: História Social, Feminino, Parteiras, Benzedeiras, Cultura popular. ABSTRACT. I expose the specificities of the feminine world, searching the women quacks and obstetricians in Ituiutaba-MG, between 1950 and 2006. I discuss the process of individuality of these women socially configured, whose labors and arts of cure sustain traditions and customs which moves in the flexible texture social and are presented through the Social History Theory. Practical the feminine ones of cure are expressions of the popular treatment forms of the most varied evils. Thus, I elaborate an understanding of the daily one lived deeply by the women whom protect and cure, a social manifestation of the express gift in the work to bless and to be midwife.. Keywords: Social, Feminine History, Obstetricians, Quacks, popular Culture. 10.

(12) INTRODUÇÃO. É do mundo de mulheres reais que se ocupa este texto. Mulheres que, apesar de oprimidas e abandonadas, souberam construir sua identidade. 1. Esta dissertação tem como tema central o estudo das práticas terapêuticas das benzedeiras e parteiras, em Ituiutaba-MG, entre os anos 1950 e 2006. A partir da representação do feminino, o propósito é descortinar as artes e ofícios de proteção e cura exercitados por mulheres, buscando a compreensão para a continuidade deste fenômeno, observado em várias sociedades ao longo dos séculos. Ao mesmo tempo, ocorre, nos dias de hoje, o desenvolvimento da medicina tradicional, acelerado e praticado por doutores, cuja legitimidade advém da ciência médica. A convivência social entre as benzedeiras e parteiras com a medicina tradicional nem sempre é tranqüila, uma vez que a medicina oficial não consegue, com seu cientificismo, fazer desaparecer as práticas da benzeção e o ofício da parteira. Por que estas mulheres pesquisadas representam socialmente o feminino associado à cura? A medicina, a benzedeira e a parteira, quando observadas sob a perspectiva teórica da história cultural, possibilitam a elaboração do problema orientador deste estudo: como entender a perpetuação das sendas do feminino enquanto veredas terapêuticas realizadas por benzedeiras e parteiras? Para responder a esta pergunta é necessário que trilhamos, analiticamente, os caminhos da História Social (ou da Cultura), os quais possibilitam subsídios para se recuperar a função social do feminino estudado, não nos limitando somente a descrever o cotidiano das relações sociais, mas sim para compreendermos as continuidades dos hábitos e crenças nas experiências populares desenvolvidas dentro da medicina popular, cuja permanência recria e impõe alternativas curativas à medicina acadêmica.. 1. VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo Feminino e o Santo Ofício. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Mulheres no Brasil. 8ª. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 116.. 11.

(13) Segundo Ginzburg,2 a cultura popular define-se pela oposição à cultura letrada ou oficial, tida como própria das classes dominantes. Entretanto, a cultura popular exprime-se, também, de outro lado, pelas relações que mantém com essa cultura letrada, de maneira tal que são filtrados os sentidos, as representações culturais, conforme seus próprios valores e condições de vida, em que há uma dinâmica entre esses níveis culturais: erudito e popular. Ginzburg, a partir desta compreensão dos fenômenos sociais, propõe o conceito de circularidade. Afirma que temos, por um lado, dicotomia cultural, mas, por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica. 3 Como exemplo para o estudo realizado, esta circularidade pode ser observada no processo de substituição da cultura de subsistência pela agricultura comercial em Ituiutaba, que se iniciou em 1940, completando seu circuito em 1960, no momento do grande fluxo migratório de trabalhadores vindo das regiões vizinhas e também do Nordeste do país. Este fato ocasionou assimilações de outros costumes, gerando variadas transformações na cidade, que adquire então características culturais mescladas de elementos urbanos e rurais. Desta maneira, a abordagem teórico-metodológica exposta pela história cultural pressupõe que não é possível entender os fenômenos sociais sem as observações das produções e recepções dos seus quadros sociais. De fato, são as várias faces das representações dos quadros sociais que oferecerão o caminho para o entendimento do fenômeno sócio-cultural: parteiras e benzedeiras. Roger Chartier,4 por sua vez, apresenta referenciais conceituais que auxiliam na observação das diversas facetas das representações culturais, possibilitando a compreensão do fenômeno social estudado. Neste viés, representação e apropriação são conceitos que permitem analisar uma prática cultural, que é, ao mesmo tempo, social, uma vez que ressalta personagens até então situados à margem da história. Ao evidenciarmos as representações e práticas do mundo cotidiano, percebemos o imbricamento de como a cultura popular se produz, se apropria e, ao se representar, se deixa ver e ser compreendida. Neste movimento, em que produção e recepção se realizam, notamos as apropriações que circulam em torno de uma dada prática cultural, o que pode desmistificar a idéia de que aos pobres e excluídos cabe 2. GINZBURG, Carlo. Queijo e os Vermes. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. Idem. 1987. p. 4 4 CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. In: Estudos Avançados. São Paulo: Vol.5, n.11, p. 173190; CHARTIER, Roger. Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: Artmed, 2001; CHARTIER, Roger. Do Palco à Página: Publicar Teatro e Ler Romances na Época Moderna (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002; CHARTIER, Roger. Beira da Falésia: A História Entre Incertezas e Inquietude. Porto Alegre: Universidade/ UFRGS, 2002. 3. 12.

(14) apenas um consumo imposto. Nesta medida, é possível observarmos não só as resistências, recusas e recriações, como também a circularidade cultural entre as culturas eruditas e populares. Daí o pressuposto de que o saber e o ofício de curas das benzedeiras e parteiras no Brasil não é apenas resultado das tensões e miscigenações de negros, índios e portugueses, nele está inculcado crenças religiosas e apropriações de uma medicina clássica e que desde resultado também incorporam suas práticas, e conhecimentos populares validados. Deste modo, a ênfase teórica recai sobre as particularidades. Exploramos uma questão sem obedecer ou centralizar uma geografia territorial e buscamos observar características – as regularidades de modos de vida – dado que todo grupo social não é homogêneo. Sendo assim, faz se necessário a verificação das subjetividades e das representações dos sujeitos históricos. Representação, portanto, é instrumental teórico fundamental para esta pesquisa, cuja abordagem teórica prioriza a observação das intenções, das estratégias de persuasão, das articulações reproduzidas nos vários discursos percebidos nas relações sociais, que nunca devem ser observados de forma simplista, já que mostram o quão relativas são as impressões que parecem, mas podem não ser. As representações coletivas só têm existência e só serão entendidas como tais quando moldam atos sociais, isto é, a representação cultural é observada em termos de ação e de relação social, as quais são apreendidas como estruturas básicas da sociedade. Daí que a teoria de Roger Chartier possibilita a compreensão do exercício do poder, suas formas geradoras de formações sociais, a partir das divisões impostas pelas relações de interdependência vivenciadas pelos seres sociais, proporcionando um modelo de análise útil para o tratamento teórico das configurações sociais. As relações sociais se estabelecem no universo da fé, das ervas e dos gestos mágicos, protegidos pelas crenças populares, fato relevante para o entendimento deste fenômeno social que perpassa gerações e se refaz. A pretensão é oferecer conhecimentos sobre a configuração social da benzedeira e da parteira. Ou melhor, a singularidade ou composição específica da sociedade ituiutabana na simbolização do feminino, explicitados nos atos dessas mulheres, ao longo dos últimos 56 anos. No decorrer desse estudo, os ofícios de partejar e de benzer foram observados, buscando expor o processo de individualização dessas mulheres. A intenção analítica é a de observar o cotidiano de suas vidas, por meio da história oral e do recolhimento da memória dessas mesmas mulheres, enquanto sujeitos históricos. Sendo assim, buscamos captar e registrar vivências, mesmo ocultas, entre as subjetividades, disfarçadas pelos desejos das não lembranças ou guardadas nos tempos da memória. 13. Trabalhar história oral e memória.

(15) requer perspicácia, aguçidade, honestidade; é necessário conhecimento técnico-metodológico, pois sabemos que depoimentos orais estão impregnados de sentimentos guardados num tempo passado. Não nos afastamos, portanto, das observações de estudiosos que perceberam as possibilidades imbricadas nesse campo de estudo, como nas advertências de Levi: A passagem silenciosa da mentira para o auto-engano é útil [...] como objetivo de defesa, a realidade pode ser distorcida, não só na recordação, mas no ato mesmo em que se verifica.5 Para compreender e analisar as mais variadas fontes trabalhadas utilizamos de conhecimentos interdisciplinares, reconhecendo que fazer pesquisa na área de história da cultura depende do conhecimento das outras ciências do social. Peter Gay. 6. ensina que. psicologia, antropologia, sociologia, ou melhor, que nenhuma ciência oferece todas as justificativas para todos os sentimentos e comportamentos do homem, mas que podem, sim, oferecer parcelas de contribuição para a compreensão do homem. Salienta, ainda, que a partir da psicanálise, podemos explorar melhor os depoimentos orais, os quais sempre deverão ser estudados com métodos históricos. A colocação de Peter Gay remete-nos ao discurso de Philippe Ariés, ao enfatizar que: Se um sujeito nasce historiador, ele se torna psicólogo à sua moda, que não é certamente a mesma dos psicólogos modernos, mas se junta a ela e a completa. Nesse momento de união, o historiador e o psicólogo se encontram nem sempre ao nível dos métodos que podem ser diferentes, mas ao nível do assunto, da maneira de colocar a questão, ou, como se diz hoje, da problemática. 7. Assim é que as análises dos depoimentos orais e escritos não foram fixadas somente nas palavras ouvidas, escritas ou impressas, mas buscaram ir além, procurando unir técnicas e métodos de historiadores associados à sensibilidade de observações. Na reflexão dos usos e costumes, adquiridos ou residuais de outros modos de vidas, pretendemos pelas persistências, resistências, recriações, assimilações e incorporações, compreender a intensidade desses valores: em que se modificaram ou se transformaram. Ituiutaba, é cidade com 105 anos, que, mesmo com a grande miscigenação do seu povo, mantém suas raízes e tradições diversas. As festas populares e folclóricas são parte dessa gente, manifestações estas impregnadas de religiosidade popular.. 5. PRIMO, Levi. Os Afogados e os Sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 11-15. 6 GAY, Peter. Freud para Historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. 7 ARIÉS, Philippe. A História da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 13.. 14.

(16) Estudar o cotidiano do homem, suas ações individuais e sociais, seus processos psicológicos, é estudar uma sociedade. Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos.8 Sendo assim, o indivíduo não pode ser visto apenas como um item, como um ingrediente sozinho que existe para formar a sociedade. Elias,9 ao fazer estas afirmações, lembra que o indivíduo não é só o meio nem a sociedade é só o fim e que, somente com a correlação entre os dois (estrutura social e indivíduo), será possível observar as relações e funções entre os sujeitos de uma sociedade de indivíduos. Entendemos que os indivíduos podem se mostrar mais livres nos seus impulsos mais primitivos, exatamente porque têm ambições individuais, desejos de se expandir, desejos ou impulsos que o autor descreve como a estrutura social de personalidade dos indivíduos,10 sendo estes impulsos de grande longevidade – pois são primitivos – , e são também os mais transmitidos, porque foram os mais longamente articulados. Isso explica que o indivíduo faz parte da massa, mas se diferencia dela, porque contêm em si inserido vontade e juízo, conscientes e inconscientes. Dessa forma, entendemos que na história social da humanidade, o indivíduo, tendo em si suas individualidades, sempre irá circular com resistências, lutas e conciliações . Acreditamos que a individualidade que o sujeito possui não é intacta, não é soldada definitivamente na sua constituição natural, pois existe uma auto-educação individual, que é o aprendizado pelo qual os indivíduos absorvem as interações externas e que, reformulando-as entre si, ajustam-se numa trama com os outros. É preciso ainda ressaltarmos que mesmo com as adaptações e reformulações captadas pelo processo de auto-educação, mantém-se no indivíduo resquícios profundamente arraigados, e, com isso as persistências. Ainda, como subsídios para análise das fontes, não perdemos o foco do mundo visível e subjetivo que se revelava, às vezes oculto, nesse ambiente de pesquisa. Para tanto, a imersão nesse universo social ocorreu: observamos atentamente benzeções e tivemos a experimentação de sermos benzidos, de olharmos minuciosamente os altares criados pelas benzedeiras. Examinar esse mundo feminino, vendo o que acontecia no em torno. Espiarmos seus jardins e quintais repletos de ervas medicinais.. 8. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos (Org.). Michel Schröter. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994. p. 16. Idem. 10 Idem., p. 174. 9. 15.

(17) Em suas casas simples, quase sempre os adornos se repetem: imagens de santos e divindades, quadros com motivos sincréticos, forros rendados, flores de plástico, gamelas com água limpa e sempre o cheiro de vela queimada. Acessórios utilizados nas rezas estão ali mesmo sobre uma mesa ou jirau, como os chamados Cordões de Lágrimas de Santa Luzia,11 fios longuíssimos de lustrosas sementes.12 Tudo indica a presença de mulher, numa espécie de permanência do feminino, numa forma que pode ser chamada de natureza básica, ou como ironizou Beauvoir13 – famosa sensibilidade feminina ou, ainda, como analisou Machado:. A benzeção, ao contrário do curandeirismo, é, quase sempre, uma especialidade feminina. É a mulher quem detém o segredo das palavras, dos gestos que exorcizam o mal. Mais detalhista e sensível, é atenta aos ritos, doadora por natureza, mais afeita às oferendas. 14. Aqui a tal especialidade feminina caracteriza-se com a percepção de que se tem um dom, o dom da cura por meio de orações, toques – poder centrado na fé –, partindo daí o processo do treinamento de rituais compostos por falas, gestos, além do aprendizado da fabricação de remédios curativos, retirados da natureza. O exercício da benzeção, que compreendemos como um ofício, passa por todo um processo iniciatório de aprendizagem. Contra a lógica do capital, se impõem a crença em um ‘dom’, o de curar, estabelecendo uma rede social de solidariedade e reciprocidade. 15 Lembranças de infância tomam forma e torna familiar as observações do presente. Torna-se mais vivo o passado que é chamado e entranha ao ser convidado. De fato, é assim que damos vida ao passado,. ao rememorarmos e. pensarmos historicamente. O passado nos cerca e nos preenche, é verdade, mas é repleto de memórias residuais, representando frações de urdiduras das vivências. A consciência do passado está fixada na memória, gerando uma realidade na qual a memória cria uma identidade que pode. 11. Cordões de Santa Luzia são uma espécie de rosários muito longos (3 metros aproximadamente de comprimento ), utilizados para contornar (cercar) o benzido durante as rezas. 12 Lustrosas sementes. Essas lustrosas sementes podem ser observadas na foto Mãos em Prece, que inicia a introdução Mãos de Dona Luca. Fotografia de Fernando Borges Marquez de Andrade. Ituiutaba. 2006. 13 BEAUVOIR. Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980. 14 MACHADO, Maria Clara Tomaz Cultura Popular e Desenvolvimento em Minas Gerais. Caminhos cruzados de um mesmo tempo. (1950/1985). Tese de doutorado em História Social pela USP. São Paulo. 1998. p. 243. 15 Idem. p. 236.. 16.

(18) virar história. É assim que, na realidade, o passado coexiste com o presente, ao mesmo tempo que se distingue dele. Portelli corrobora essa ponderação quando expõe que não se deve perder, ao longo de qualquer pesquisa histórica, que a recepção em si é uma interpretação; então, sempre há interpretação, que está sempre se processando, em movimentos constantes. 16 Daí que, fazer história oral, para Portelli, ou seja, manejar o testemunho, é mais do que ter a competência para manipular as técnicas estabelecidas, é um exercício consciente da intuição e do instinto. Por sua vez, Perrot17 entende que pesquisar a história das mulheres é muito mais um estudo em termos da história das representações, do que histórias das experiências de vida dessas mesmas mulheres. A historiadora confessa que, para construir a história de mulheres, é preciso garimpar: Em lugares escondidos, busco a mulher: cartas, diários, quarto, cozinha [...].18 Buscar compreender a história das mulheres, enquanto manifestação de práticas sociais, é uma atividade complexa, pois, segundo a historiadora, as mulheres foram representadas por imagens, antes de serem verdadeiramente interpretadas em suas práticas sociais cotidianas. Estudando memória, em Halbwachs,19 apreendemos que para confirmar uma lembrança, as testemunhas, no sentido comum do termo, isto é, indivíduos presentes sob uma forma material e sensível, não são necessárias.20 Daí que Perrot, quando orienta o estudo das mulheres a partir de representações sociais, buscando-as em lugares escondidos, está sendo conivente com a proposta de Halbwachs, em que não há necessidade da presença material para recordar ou reconstruir fatos. Principalmente a mulher, colocada à margem ou representada pelo olhar do outro, do mundo masculino, de fato não poderá ser visualizada sem estar despojada de rótulos, pois esta análise se fixará somente no senso já imposto. Por outro lado, acreditamos que, para fazer história das representações, é preciso saber fazê-la conjuntamente com a história dessas mesmas práticas. Sendo assim, decidimos pelo estudo das mulheres, representadas pelas parteiras e benzedeiras, compartilhando as duas propostas. É bem verdade que Halbwachs, quando explicitou que para confirmar lembrança não é só 16. PORTELLI. História Oral e Memórias. Entrevista com Alessandro Portelli – Profs. Paulo Roberto de Almeida e Yara Koury. História & Perspectivas. Uberlândia. jul. /dez. 2001. 2002, p.36. 17 PERROT, Michelle. É historiadora buscando construção na História das Mulheres - relação à vida privada, cidadania, espaço público e político. Veja mais: A Força da Memória e da Pesquisa Histórica. Projeto História. 17. Trabalhos da Memória.. São Paulo: nov./98 p.351-361. Minha História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2007 18 PERROT, Michelle. Estado de São Paulo. Caderno Aliás. 04/03/2007. Entrevista por Laura Greenhalg, p. JA/15. 19 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva.. São Paulo: Edições Vértice, 1990. 20 Idem., p. 27.. 17.

(19) necessária a presença da forma material mas, deixa implícito que não há necessidade somente de presença física, o que não impõe um único método de análise. O estudo das parteiras e benzedeiras será por nós trilhado, na busca pelas análises no cotidiano, como também pretendemos retirar o véu, olhando-as sob as representações. Para dar sentido a esse processo, a pesquisa oral será o método utilizado para compreendemos, mesmo através do não dito, seu mundo subjetivo. A coleta de depoimentos com vivências no cotidiano desses sujeitos históricos pode mostrar a auto-civilização ou a auto-regulação individual, exteriorizadas nos impulsos do comportamento, guardadas nas ações destas mulheres, em seus trabalhos de cura e de amparo. A História Oral visa, como salienta Portelli,21 por meio de conversas com pessoas sobre a experiência, aprofundarem essência, padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos. O historiador chama atenção para a importância do trabalho de campo, como caminho da História Oral. Segundo Perrot,22 e corroborando Portelli, quem faz história cultural é obrigado, enquanto praticante da pesquisa de campo, fazer as interconexões teóricas entre as histórias contadas pelas próprias mulheres e a sua representação dentro da sociedade à qual pertencem. Para tanto, ensina que é preciso, também, recorrer às fontes escritas, aos arquivos e às memórias das mulheres, às diversas visões do feminino, elaboradas por diferentes discursos e em variadas épocas. Seguindo essa lógica metodológica, procuramos inicialmente entender a representação social da mulher a partir da visão de Beauvoir,23 contida na afirmação: ninguém nasce mulher: torna-se. Percebemos ser esse o ponto nodal, a premissa básica útil à argumentação, ao longo dessa pesquisa sobre as benzedeiras e parteiras, já que o estudo sobre o chamado segundo sexo24 expõe uma configuração do cotidiano da mulher em termos de suas vivências no espaço público e no privado. Os caminhos percorridos por Beauvoir são de interesse para a reflexão em tela, oferecendo um fio condutor tecido com apreensões gerais e específicas, valiosas sobre o mundo social feminino, o que contribui para a condução da argumentação que está sendo elaborada ao longo desta dissertação. O mundo feminino centrado nas práticas de cura e amparo, representadas aqui pelo o ofício de benzer e partejar, é parte da composição de uma teia social, cujos princípios 21. PORTELLI, Alessandro. Tentando prender um pouquinho algumas reflexões sobre a ética na História Oral. São Paulo: Projeto História, n. 15, 1997.p.15. 22 PERROT, Michelle.1998. 23 BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 24 O Segundo Sexo. Título da obra de Simone de Beauvoir, numa referência ao modelo massificado da representação social do feminino. A alusão ao segundo sexo, indica um olhar de conceitos. Pré estabelecidos, amalgamados no senso comum de que ser mulher está biologicamente justificado nas fragilidades. 18.

(20) governantes estão amarrados nos desejos, conhecimentos e recepções do povo. São atos e sentimentos de solidariedade que, em exercício constante na busca de aliviar a dor do próximo, solidificam os laços de fraternidade e, portanto, de união, caracterizando o vínculo social. Nava25 analisa que a sabedoria popular é amalgamada pela prática intuitiva e instintiva. Salienta que a medicina popular, filha da medicina instintiva, é uma arte superior:. A medicina popular é filha da medicina instintiva [...] é, antes de mais nada, o instrumento do exercício das qualidades de comunicação inatas. [...] A sabedoria popular no tocante à medicina é formada pela prática intuitiva, análoga e empírica do diagnóstico, do prognóstico e dos tratamentos. 26. A medicina popular de fato guarda conhecimentos e retém práticas longamente experimentadas e cotidianamente vivenciadas. A transmissão, ao longo do tempo, de tais saberes terapêuticos, requer muita dedicação e longos períodos de observação empírica da natureza, quase sempre guardados por mecanismos conscientes e inconscientes transmitidos ritualisticamente. Tudo isso representa uma forte conotação religiosa e mágica. Em vista de não se considerar tais práticas como científica, a cura popular torna-se um ofício mais próximo da arte, da magia e da crendice popular. O pensamento mágico é de natureza religiosa e popular, oferecendo conotação mística às práticas terapêuticas utilizadas por benzedeiras e parteiras, inserindo-as num universo misterioso em contraste com a religião católica instituída. Na realidade, é crível que as práticas na arte de curas populares ocultam quase sempre procedimentos confirmados como corretos pela medicina científica. Isto tudo pode ser compreendido como formas, maneiras diferentes de acessar o mundo religioso. A religião instaura a distinção entre as esferas do sagrado e do profano. Daí que crenças e práticas populares pertencem ao universo do sagrado, como também o catolicismo. São crenças e práticas diferenciadas e ora compartilhadas pelo fenômeno brasileiro denominado sincretismo religioso. As benzedeiras e. 25. NAVA, Pedro. Capítulos da História da Medicina no Brasil. Cotia: Ateliê Editorial; Londrina: Eduel; São Paulo: Oficina do Livro. Rubens Borba de Moraes. 2003. p. 172- 173. 26 Idem., p. 172- 173.. 19.

(21) parteiras pertencem e exercitam as coisas sagradas. Criam práticas e oferecem crenças ao realizarem suas curas. Há, ainda, características importantes contidas nestas práticas, que são a doação e a solidariedade com os doentes, que são fundamentais nesta arte de cura e nas quais é possível perceber que o social tem regras próprias. O trabalho analisado por Mauss27 sobre o dar prazeroso, não ligado ao econômico; o dar em que o doador é generoso e solidário, mostra que há fracassos nas sociedades dirigidas somente pelo Estado, apostando que é preciso viver e é preciso dar para viver [...] desejando que a sociedade não se aprisione na fria razão do comerciante, do banqueiro e do capitalista.28 A teoria do sociólogo baseia-se no dom de dar: dom é um ato voluntário, individual ou coletivo, que pode ou não ter sido solicitado por aquele, aquelas ou aqueles que o recebem.29 Senhora Fátima, da Farmacinha da Terra,30 é exemplo de trabalho voluntário e coletivo que se enquadra no sistema analisado por Mauss, 31 dom de dar. Ela explica porque a sua Farmacinha faz tanto sucesso: meus remédios curam. Trato o espírito e o corpo, por isto utilizo florais e remédios ionizados. Não trato só a ‘casca’; não trato só fisicamente, não. O Médico... ele não tem mais tempo de conversar... as pessoas tão doentes de carinho, às vezes [...].32 Quando esta senhora diz meus remédios curam [...]. porque não trato só a. casca[...] as pessoas tão doentes de carinho, às vezes [...] demonstra solidariedade e vontade de ajudar, num sentido de obrigação de amparar o outro, oferecida a um outro que não é pessoa da família. Obrigação sentida como um dom possuído para ser dado, sintetizado aqui como uma vontade obrigatória de dedicar afeto, zelo ao outro, sensibilidade de cuidar de um mal que pode não estar no corpo e sim na alma. Eis aqui uma correlação forte entre configuração social do feminino e a dádiva em artes e ofícios de proteção e cura. As mulheres observam mais, são mais atentas, são 27. MAUSS. In: MARTINS, Paulo Henrique (Org.). A Dádiva entre os Modernos: discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Trad. Guilherme João de F. Teixeira. Petrópolis: Vozes, 2002. GODELIER, Maurice. O Enigma do Dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 28 GODELIER, 2001. p. 11, com citação de Mauss in: Essai sur le don. Paris. PUF. 1950. p. 270. 29 GODILIER. 2001. p. 23. 30 COSTA, Maria de Fátima . Criou em 1981 em Ituiutaba a Farmacinha da Terra e a dirige ainda hoje juntamente com o trabalho de grupos voluntários onde alguns dias da semana, principalmente aos Sábados, atendem de 80 a 100 pessoas distribuindo conforto e amenizando dores. 31 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac&naif, 2003. Segunda Parte: Ensaio sobre a Dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. Mauss desenvolve um trabalho sobre as formas arcaicas do contrato social baseado em prestação, dádiva e potlatch - modelo de economia por trocas e escambo, onde estas trocas não visam bens e riquezas mas amabilidades, ritos - formas voluntárias que ele denominou de Sistema das Prestações Totais. 32 COSTA,Maria de Fátima.. 20.

(22) representantes, em si, do aprendizado de amparar, de cuidar. Normalmente, trilham, cotidianamente, o caminho de rezadeiras, benzedeiras, parteiras, e, quase sempre, possuem pequenos altares em suas casas para o ofício da oração e contemplação. São religiosas, mas nem sempre mantêm vinculação com uma religião específica. Dizem-se católicas porque confundem o ato cristão com a religião – de ser do bem, fazer o bem –, e suas práticas estão ligadas aos sentimentos de solidariedade, e não têm vínculo comercial com nenhuma instituição, daí a correta definição de suas atuações, como sendo ofício, e não profissão. É, antes de mais nada, um exercício que pode ser qualificado pelo dom da dádiva. Marcel Mauss33 analisou essa forma de doação sem ligações econômicas como doações naturais ou doações de dons, denominando-as de dádiva de dar o que se recebeu de graça. Uma doação pura, com conotação mágica, num mundo capitalista. Mauss distingue religião de magia de tal forma que nos conduz à percepção de que as curas populares podem estar sim inseridas no mundo da magia. Ainda, o movimento M.A.U.S.S.34 propõe reflexões para análises da vida social, a partir das trocas simbólicas e de solidariedade e doação, próprias e originais de organização da vida social fora das regras dos sistemas, mercantil e estatal.35 Quanto aos valores de solidariedade e doação ao próximo, manifestações características nessas mulheres, mulheres nos seus ofícios de benzer, curar e partejar, as reflexões maussianas sobre trocas simbólicas e de doação explicam que estas não são entendidas no mundo de venda de valores. Percebemos ser de considerável importância a observação de todos esses fatos para o diálogo científico do comportamento social dessas mulheres, cujos caminhos são percorridos na arte de proteger, amparar e cuidar, e em que os estudos historiográficos permitem reconstruir no plano teórico suas experiências e vivências. Metodologicamente, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas como instrumento para coleta científica de dados sobre as parteiras e benzedeiras. A história de vida foi (re)construída por meio dos relatos dados em entrevistas, gravados em fitas cassetes e posteriormente transcritos. Deste modo, os dados foram depois de analisados, e reapresentados na forma de narrativas. 33. MARTINS, Paulo Henrique . (Org.). 2001. O autor salienta que Mauss entende que a magia está situada a meio caminho da ciência e da religião, acreditando que ela (a magia), não é apenas uma arte prática: é também um tesouro de idéias. Ressalta que o complexo, ciência-técnica é um bloco - a magia está ligada à natureza. Em outras palavras, é observadora, é empírica, é técnica. Neste enfoque assevera que o referido “bloco” é a forma que (...) uma sociedade dispõe para agir sobre seu meio. 34 Movimento M.A.U.S.S: - Mouviment Anti-Utilitariste dans lês Sciences Sociales ( Movimento AntiUtilitarista nas Ciências Sociais), Escola criada em 1981, filiada à tradição teórica do sociólogo francês - Marcel Mauss, fundador da sociologia moderna, cujas pesquisas centralizam em estudos sobre a Dádiva. 2002. 35 MARTINS, 2002.op. cit. p. 13.. 21.

(23) A cidade de Ituiutaba, escolhida como corte espacial desta pesquisa, aguardava estudo via história cultural das vivências do feminino, o qual expressasse o cotidiano das mulheres benzedeiras e parteiras, ao longo dos anos de 1950 até 2006. As pesquisas foram realizadas por meio da busca de fontes históricas secundárias e pela coleta primária de informações sobre o cotidiano vivenciado por essas mulheres via história oral. Tudo isso possibilitou a construção de informações fundamentais para a confecção detalhada do tecido social refletido nos atos particulares dessas mulheres. Sendo assim, confessamos ter sido uma oportunidade ímpar reviver antigas histórias da nossa infância e também da nossa história de vida adulta, ora trazendo boas lembranças, ora tristezas por descobrir ausências de entendimento quando, no passado, vivenciamos tão rica experiência social. Pesquisar cientificamente essas mulheres é também contar fiapos de nossa própria vida em Ituiutaba, cidade um dia denominada, pomposamente, o portal do triângulo mineiro. Permita-nos, ao finalizarmos esta introdução, fazer um depoimento que não se encaixa, na maioria das vezes, na metodologia exigida a um trabalho acadêmico. Todavia, como adverte Elias,36 apenas seres humanos formam figurações uns com os outros, exercitamos essa liberdade por entendermos que o caminho da rememoração experimentado por nós não expressa apenas investimento intelectual como história oral, mas de sentimento. Se é assim, na cidade de Ituiutaba, durante as caminhadas para a realização da pesquisa de campo, cada beco, cada vão de ruela que surgia era conhecido, assim como os paralelepípedos que sabíamos existir, escondidos sob o asfalto novo. A casa da Dona Sinhaninha, a mais velhinha de todas as benzedeiras que temos na memória não mais existe, mas sabemos seu rumo: - É lá no alto da Abadia! Ali, virou rua? Casas? Ou é parte do hospital Nossa Senhora da Abadia? Não sabemos ao certo, mas está na lembrança que lá fomos várias vezes para a benzeção. Estamos agora buscando lembranças daquele tempo, no qual aquela velhinha, delicadamente chamada de Sinhaninha (seria uma aglutinação de Sinhá Aninha?), benzia utilizando uma velha colher, quase sem ponta de tão gasta, com a qual pegava brasa no fogão, ali mesmo onde fazia a benzeção. Um raminho verde também era colhido bem ali. Tudo era parte do seu mundo, da sua vida. Dona Sinhaninha era assim: pequenina, encurvada e sem firmeza nas pernas, as quais a levava a degraus que ela descia trêmula, e que iam dar na cozinha. Essa benzedeira nos recebia ainda crianças, das mãos das tias Dirce e Lucinha.. 36. ELIAS, Norbert. Escritos e Ensaios. Rio de Janeiro: J. Zahar , 2006. p. 25.. 22.

(24) Dona Sinhaninha era muito clara, de olhos azuis quase escondidos atrás das incontáveis preguinhas que os contornavam – riscos que faziam desenhos, cruzando. seu. rosto todo, seu pescoço, seus braços – pintadinhos de manchas acinzentadas. Pele fininha, como um pergaminho antigo, cobria suas mãos que seguravam a colherinha com brasa. Olhávamos sem piscar, aqueles braços e mãos, com medo de que a brasinha caísse sobre nós. Nunca caiu! Ela rezava, murmurava, sacudia o raminho em nossa volta e a colherinha ia e vinha também fazendo voltas no nosso corpo. Ia diminuindo o tom de voz até o inaudível e, então, jogava o raminho num copo de água que ficava por ali e depois, suavemente, depositava a brasinha também na água. Ainda podemos ouvir o barulhinho de brasa caindo na água. Faz tanto tempo! Como é que lembramos de tantos detalhes agora? Quando voltamos (no tempo), já não estamos mais lá, mas o lá é o aqui de agora, é onde estão nossas raízes, guardadas em nós, e bastou chamá-las pela memória para revivê-las por meio da construção desse trabalho – efeito operacional e produtivo da apropriação das nossas lembranças pela história cultural. Logo, recapitulamos o já estudado: toda memória pode ser apropriada e historicizada e é assim que memória vira história. Enfim, entendemos que tudo o que é chamado hoje de memória não o é, portanto, memória, mas já história. Tudo o que é chamado de clarão de memória é a finalização de seu desaparecimento no fogo da história.37.. 37. NORA,Pierre.Entre Memória e História. A Problemática dos Lugares. Revista Pesquisa História.1993. p. 14.. 23.

(25) CAPÍTULO I Retratos do Brasil38 Vivência de um Povo As resistências, transformações e persistências da arte de curar. Ouro, Ouro, Ouro Nessa atmosfera de heroísmo ideal e de impaciente ambição e com pompa desusada, partiu do Rastelo em março de 1500, a esquadra de Pedro Álvares. Ao fundear diante do Caí baiano, em frente à serraria azul do litoral, a expedição teve a visão de uma vida paradisíaca, com a verdura do país tropical e a pujança pululante da terra virgem. A Carta de Caminha, na sua idílica ingenuidade, é o primeiro hino consagrado ao esplendor, à força e ao mistério da natureza brasileira. [...] Colombo, no seu diário, em 21 de outubro, registra a impressão de deslumbramento diante do esplendor tropical, do cantar dos pássaros, dos bandos de papagaios, ‘que escureciam o sol’, das árvores de mil espécies, dos frutos desconhecidos. Pero Vaz foi, para nós, o cronista do maravilhoso achado. No Brasil, a mata cobria as terras moles da bacia amazônica. [...] É a mata do pau-brasil que deu o nome à terra, e do seu maciço verde escuro alça-se a galhada do jequitibá, igual à dos veados, acima do finos palmitos e das imbaúbas de prata. A vegetação eleva-se por andares... O chão é um tapete de flores caídas... Mais adentro, além da antecâmara suntuosa da floresta, se estendia a vastidão da terra desconhecida – caatingas, catanduvas, cerrados, cerradões, carrascos campos gerais, pantanais - , donde desciam ou se afundavam pelos sertões os rios , cheios de promessas misteriosas... No Brasil, logo nos anos que se seguiram ao descobrimento, se fixaram aventureiros em feitorias esparsas pelo litoral. Eram degredados [...] ou gente mais ousadas [...] atraídas pela fascinação das aventuras [...]. À sedução da terra aliava-se no aventureiro a afoiteza da adolescência. Do contato dessa sensualidade com o desregramento e a dissolução do conquistador europeu surgiram as nossas primitivas populações mestiças.39. Paulo Prado, ao expor uma vista panorâmica da terra brasileira, construiu, como enfatiza, vida e agitação a um ensaio puramente filosófico,40 e nós, ao utilizá-lo como prefaciador desse capítulo, pretendemos, numa síntese bastante generalizada, agrupar fatos com certas particularidades que possam demonstrar uma visão da terra Brasil e, continuando o intento desse intérprete, intencionamos dar vida e agitação à nossa narrativa, focalizando tempo e lugar às resistências, transformações e persistências dessa população mestiça,. 38. Retratos do Brasil. Uma alusão à obra de Paulo Prado: Retrato do Brasil, numa incursão a partir da fusão das raças brasileiras - branca, índia e negra. PRADO, (1869/1944). Escritor considerado Teórico do Modernismo diante da forma de escrever, onde foge de uma história convencional, adotando um estilo mais reflexivo para uma interpretação de nossa história. 39 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira. In: Intérpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 29-44. 40 Idem.2002. p. 27.. 24.

(26) caracterizada por sua sensualidade, desregramento e. afoiteza,. aplicadas também na. religiosidade e inserida nas artes de curar na nossa terra. Lançando mão de outro Intérprete do Brasil, tornamos útil Gilberto Freyre na ótica da organização da família, no ponto onde salienta que a força de mando no Brasil Colônia esteve nas mãos dos senhores rurais. Tomando como pilar que os homens foram os donos e dirigentes da nossa construção social: Donos das terras. Donos dos homens. Donos das mulheres. Suas casas representam esse imenso poderio feudal.41 Donos das mulheres. Foram donos nos vários sentidos da repressão, da imposição, do mando, tanto que, sobre os desejos íntimos dessas mulheres pouco se soube. Seus sentimentos e seus desejos foram, como disse, certamente guardados em confessionários, já que suas vontades, suas histórias, nunca foram escritas:. Creio que não há no Brasil um só diário escrito por mulher [...] quase todas analfabetas, satisfaziam em contar os segredos ao padre. [...] Não há talvez fonte de informação mais segura que os livros de viagem de estrangeiros [...]. Durante quase todo o século XVI a colônia esteve escancarada a estrangeiros, só importando às autoridades coloniais que fossem de fé ou religião Católica. Do que se fazia questão era da saúde religiosa: a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entravam livremente trazidas por europeus e negros de várias procedências. 42. A mulher do Brasil patriarcal, ironicamente, tido como ganho de liberdade diante das amplas opressões sofridas pela presença do pai, avô, marido, usufruiu na figura do padre ou capelão da fazenda, uma saída, igualmente repressora, mas que lhe permitiu ter com quem falar, minimizando assim o sufocante sentimento do não ser nada além de esposa e mãe e, mesmo com severas cobranças, pôde falar um pouco de si. Mais adiante, um outro ponto de fuga – o médico da família -, ainda centrado num referencial masculino, pôde aliviar-lhe algumas angústias íntimas e físicas. O doutor foi uma figura que, de certa forma, conseguiu restabelecer-lhe um pouco de tranqüilidade. É bem verdade que para suas angústias de mulher, suas enfermidades da Madre,43 continuaram dependendo da mucama, da parteira e da benzedeira – estas grandes companheiras na dor, abnegadas na arte de proteger e curar. Ainda segundo Freyre, sob o ponto de vista da formação social do Brasil, a mulher índia foi o 41. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. In: Intérpretes do Brasil. v. 2. Rio de Janeiro: Ediouro , 2002. p. 132. 42 Idem., p. 138-175. 43 Madre. Doença da: Males do ventre feminino – útero, ovários, trompas.. 25.

(27) principal valor econômico e técnico. Um pouco besta de carga e um pouco escrava do homem. Mas superior a ele na capacidade de utilizar as cousas e de produzir o necessário à vida e ao conforto comuns. 44 No Brasil, os interesses da Casa-Grande superaram até a Igreja, pois foi aqui a grande proprietária, como disse Freyre, os donos das terras, donos dos homens, donos das mulheres. Impondo-se sobre os jesuítas, o senhor do engenho dominou, quase sozinho, toda a colônia; foi mais do que os vice-reis e os bispos, foi o verdadeiro dono do Brasil. A CasaGrande, reduto do patriarcalismo escravocrata e polígamo, o qual viria a expressar a configuração histórica do cotidiano da maioria dos brasileiros; é lá que foi construída e gerada a futura identidade do povo. Dentro de suas grandes paredes, essa largueza sem luxo, guardava sua vida doméstica, história íntima, o cotidiano, o cristianismo reduzido à religião de família e influenciado pelas crendices da senzala.45 Percebemos em leituras variadas, construções históricas ou descrições literárias46, referências a rituais quase sempre ligados a ofícios praticados pelo sexo masculino, enquanto que as magias e benzeduras, chás e ungüentos, os partos, sempre praticados no privado, tradicionalmente foram exercidos pela figura feminina. O senhor, dono dos homens e das mulheres, da casa-grande à senzala, também recebia, com arrogância, ainda assim, as bênçãos das mãos femininas. Fazia uso de ungüentos e emplastos, dos chás e ervas ministrados por essas mulheres. Nos três séculos do período colonial, o Brasil viveu sob a sombra da monocultura e do latifúndio e, mesmo rodeado de grandes riquezas naturais, os homens e as mulheres daquele período passavam agruras na falta de alimentos, resultado da utilização das terras para uma única plantação: os intermináveis canaviais. Segundo Mello e Souza,47 em Minas Gerais, a situação de falta de alimentação foi agravada ainda mais, provocada pela falta de roças de mantimentos e pela chegada de grande número de aventureiros atraídos pelas zonas da mineração.. 44. FREYRE, Gilberto.2002. p. 251. Idem. p. 137. 46 MELLO E SOUZA, Laura. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. ; MARQUES, Vera Regina Beltrão. Medicinas Secretas. Magia e Ciência no Brasil Setencentista. Cap. 5 in: Artes e Ofícios de Curar no Brasil. CHALHOUB, Sidney. (Org.) – Campinas: UNICAMP, 2003 ; FILGUEREDO, Betânia Gonçalves. A Arte de Curar. Cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais.Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002 ; DALL’AVA- SANTUCCI, Josete. Mulheres e Médicas: As pioneiras da Medicina.Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. 47 MELLO E SOUZA, Laura . Opulência e Miséria das Minas Gerais. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1994. 45. 26.

(28) [...] ocorreram crises de fome que chegaram a atingir proporções catastróficas, os mineiros morrendo à míngua ‘com uma espiga de milho na mão sem terem outro sustento’[...]. Em decorrência da terrível escassez de gêneros [...] a fome provocou o abandono de inúmero arraiais. 48. Além das doenças tropicais, a sífilis, depois da desnutrição, foi a representante, por excelência, das mazelas que povoavam as casas-grandes e as fazendas. Os homens desse tempo acreditavam que as doenças vinham do vento, atribuído ao clima tropical, e é certo que, indiretamente, várias doenças se associam às condições climáticas – a malária, a diarréia, a enterite, por exemplo. Anterior às crendices das senzalas, mas não superior aos mandos do dono da CasaGrande, os jesuítas foram grandes curadores do povo, idealizadores de remédios secretos, combinando neles aspectos religiosos e mágicos. Jesuítas e pajés exerciam cada qual o seu papel entre os guaranis e anunciando, ora o sagrado ora o demônio, foram-se adaptando, forçados a compartilhar certas práticas, às vezes estranhas aos seus costumes; assim houve dentro dessa dualidade de crenças religiosas uma aproximação, sobretudo, de trocas de conhecimentos entre seus representantes.. Os próprios jesuítas absorveram deles (índios) vários conhecimentos de plantas e ervas. É provável que nas mãos de um curandeiro indígena estivesse mais segura a vida de um doente, no Brasil dos primeiros tempos coloniais, do que nas de um médico do reino, estranho ao meio e à sua patologia. 49. Portanto, a medicina, a magia e a religião se tornaram indissociáveis e, desse modo, por meio de rezas, feitiçarias e ervas medicinais houve a tentativa de cura dos enfermos. Campos, em Tempo Antigo,50 confirma o comportamento dos jesuítas nas práticas místicas e, entre elas, as benzeções, as quais não foram sempre e não são somente de origem africana, acrescentando que atribuir-se a influência do feitiço no Brasil exclusivamente ao africano é torcer a verdade.51 O estudioso apresenta fatos e dados de maneira que se pode verificar que dos vinte e sete indivíduos denunciados em 1591 e 1593, em visitação do Santo Ofício ao Brasil, somente dois eram negros da Guiné, e um mulato. Complementa que deste 48. SOUZA, Laura de Mello e. 1994. p. 18-19. FREYRE, Gilberto.2002. p. 372. 50 CAMPOS, João da Silva. Tempo Antigo. In: Freyre, Casa Grande & Senzala 2002. 51 Idem. Nota n. 107, p. 492. 49. 27.

(29) total, vinte e duas eram mulheres portuguesas.52 Notamos também aqui o grande contingente representado pela figura feminina nos processos da Inquisição, e aqui propomos dois argumentos que podem justificar essa maioria: ou porque a mulher é mais dedicada à arte e ofício das curas, por ser mais observadora e mais doadora, ou a mulher era mais perseguida porque justamente atuava com maior freqüência em tais práticas, competindo acima com o mundo masculino. Estas duas hipóteses levam a uma explicação possível: por isto foi mais perseguida pelo sistema em que a Igreja era a lei primeira, e era uma lei de homens e para o benefício dos homens. A medicina praticada no Brasil no período colonial era confusa, sem direção e hierarquias: médicos, cirurgiões, enfermeiros, boticários, barbeiros, sangradores, parteiras, dividiam o mesmo espaço com curandeiros, feiticeiros e benzedores (eiras). Nesse tempo, os medicamentos não eram ainda fabricados em série – cada doente tinha seu remédio próprio, que era formulado especialmente para a pessoa necessitada. Havia, nesse período, inúmeras propagandas de remédios para diversos males, impressas em jornais das grandes cidades e receitas de médicos ou curandeiros. Exemplo característico desta argumentação é citado por Marques 53, impresso no jornal Gazeta do Rio de Janeiro, no ano de 1814:. Fazem-se salsichas e salames à moda da Itália, e juntamente há remédio para curar dor de dentes em caixinhas e também há certa qualidade de óleo, vindo da Itália, que só uma pinga encima (um pingo encima) do dente, imediatamente tira a dor.54. Ainda, no mesmo jornal, no ano de 1816, constava na coluna de Avisos: Ana Joaquina tem receita para curar a enfermidade das chagas no útero, como já o tem posto em prática. Como visto, parteiras também anunciavam seus serviços juntamente com remédios secretos ou com os de boticas. Havia receitas de canjas medicinais, e avisos de cirurgiões oferecendo, fazer todas as operações cirúrgicas, às pessoas pobres desta cidade até a. 52. FREYRE, 2002 MARQUES, Vera Regina. 2003. 54 Idem. p. 173. 53. 28.

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