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«Leben? Oder Theater?»: Experiência Estética, Arte e Vida na obra de Charlotte Salomon

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LEBEN? ODER THEATER?:

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA, ARTE E

VIDA NA OBRA DE CHARLOTTE

SALOMON

Nome Completo do Autor

Setembro de 2019

Margarida Assis Pacheco Bak

Gordon

Dissertação de Mestrado em Estética e Estudos

Artísticos

Ramo de Arte e Culturas Políticas

Versão corrigida e melhorada após defesa pública

LEBEN? ODER THEATER?: EXPERIÊNCIA ESTÉTICA, ARTE E VIDA NA

OBRA DE CHARLOTTE SALOMON

Nome Completo do Autor

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Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Estética e Estudos Artísticos, ramo de Arte e Culturas Políticas, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Maria João Mayer Branco.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Maria João Mayer Branco, por ter aceite apoiar-me neste percurso e por ter acreditado sempre neste estudo.

À Helena, por tudo, todos os dias. À Bárbara Assis Pacheco e à Ana Assis Pacheco, que me ouviram sempre que precisei de refletir acompanhada, que não desistiram de dizer-me de cada vez que este estudo valia a pena, enfim, que estiveram sempre lá, cada uma com o seu contributo único.

Ao Professor Doutor João Constâncio, por me ter aconselhado quanto a que percurso escolher depois da licenciatura que fiz noutra área de estudos, e por ter tornado possível o mestrado interdisciplinar de Estética e Estudos Artísticos que me parece que era absolutamente necessário numa faculdade como a nossa.

À Professora Doutora Julia Watson e à Professora Doutora Darcy Buerkle, por terem feito os possíveis para que eu tivesse acesso às suas publicações sobre a obra de Charlotte Salomon, embora não tenha sido possível em alguns casos.

Ao José Júlio Lopes, que me salvou de desistir e me arrepender, à Miriam Assor, por dar valor ao trabalho de investigação do seu modo particular incansável, e me ajudar sempre que precisei a encontrar fontes de conhecimento sobre questões relacionadas com o Holocausto. À Rosa V.A, que me acolheu na Holanda onde fui ver a obra de Salomon pela primeira vez. Às minhas avós Irene e Rosarinho, que me alimentaram, e aos meus amigos, em especial, à Rebeca e à Francisca.

Aos meus pais, que me acolhem sempre, por respeitarem e apoiarem as minhas escolhas, e por terem sido quem tornou possíveis as idas a Amesterdão, Berlim, Auschwitz-Birkenau e Jerusalém.

Por fim, à Charlotte Salomon, que nos deixou esta incrível obra, que sinto ser, mesmo depois deste percurso, misteriosa e obscura também para mim e que, parece-me, nunca deixará de sê-lo.

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LEBEN? ODER THEATER?: EXPERIÊNCIA ESTÉTICA, ARTE E VIDA NA OBRA DE

CHARLOTTE SALOMON

de

Margarida Assis Pacheco Bak Gordon

RESUMO: O presente estudo procura analisar a vasta e complexa obra

interdisciplinar Leben? Oder Theater? – em português, Vida? Ou Teatro? –, criada entre 1940 e 1942 no sul de França pela artista alemã Charlotte Salomon (Berlim, 1917 – Auschwitz, 1943) enquanto se encontrava refugiada em Nice para tentar escapar à perseguição nazi. A sua principal obra é composta por 769 páginas desenhadas que juntam guache e texto, e às quais acresce, por um lado, uma componente musical que se mostra indispensável como meio de criar significado dentro da obra, e, por outro lado, mais de 200 folhas translúcidas que se sobrepõem aos desenhos e que constituem um elemento original e único desta obra artística. A investigação que se realizou procurou, então, num primeiro momento, destacar traços distintivos que fazem desta obra um objeto original e misterioso, com destaque para aqueles traços já enunciados e também para outros pontos a ter em conta, a saber, a apresentação da obra como Singspiel e o enquadramento desta obra no seu tempo, nomeadamente, a sua afinidade com obras de outros artistas do final do séc. XIX e do início do séc. XX. A este respeito, e num segundo momento, tomou-se a obra de Edvard Munch, e, em particular, alguns trabalhos do pintor norueguês que permitem explorar o vasto tema da melancolia na iconografia ocidental numa comparação com o desenho final de Leben? Oder Theater?

Por fim, o terceiro momento da dissertação pretende propor uma interpretação do sentido último da obra, tendo em consideração e como exemplo a representação e descrição da melancolia em vários momentos da obra e procurando pensar Leben? Oder Theater? como autobiografia sem, no entanto, deixar que a biografia se sobreponha à dimensão ficcional e artística da obra em apreço. Para tal, foram convocados os contributos de vários autores que se mostraram significativos

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neste contexto, como de Thomas Mathien, Maurice Blanchot, Philippe Lejeune, Julia Watson, Griselda Pollock e do artista russo-americano Ilya Kabakov.

PALAVRAS-CHAVE: autobiografia, ficção, melancolia, interdisciplinaridade, desenho, Singspiel, expressionismo.

LEBEN? ODER THEATER?: AESTHETIC EXPERIENCE, ART AND LIFE IN THE

WORK OF CHARLOTTE SALOMON

by

Margarida Assis Pacheco Bak Gordon

ABSTRACT: The present study seeks to analyze the vast and complex

interdisciplinary work Leben? Oder Theater? – in english, Life? Or Theatre? – created between 1940 and 1942 in the south of France by the German artist Charlotte Salomon (Berlin, 1917 - Auschwitz, 1943) while she was taking refuge in Nice to try to escape Nazi persecution. Her main work consists of 769 drawn pages that combine gouache and text, and, in addition, on the one hand, a musical component that is indispensable as a way of creating meaning within the work, and, on the other hand, more than 200 translucent sheets which were placed over the drawings and constitute an original and unique element of this artwork. The research that was carried out then sought, at first, to highlight distinctive features that make this an original and mysterious artistic object, focusing on those already stated and also on two others, particularly the presentation of the work as a Singspiel and the framing of this work in its time, namely its affinity with works of other artists of the late 19th century and early 20th century. In this regard, and in a second moment, we looked at the work of Edvard Munch and, in particular, at some works by the Norwegian painter that allow us to explore the vast theme of melancholy in Western iconography and compared them with Leben? Oder Theater?’s final drawing.

Finally, the third moment of the dissertation intends to propose an interpretation of the ultimate meaning of the artwork as a whole, taking into consideration the representation and description of melancholy in various moments

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of the work, and thinking about Leben? Oder Theater? as an autobiography without, however, allowing the biography of the artist to superpose the fictional and artistic dimension of the work under analysis. In order to do this, several authors’ contributions were requisite, such as the ideas of Thomas Mathien, Maurice Blanchot, Philippe Lejeune, Julia Watson, Griselda Pollock and the Russian-American artist Ilya Kabakov.

KEYWORDS: autobiography, fiction, melancholy, interdisciplinarity, drawing, Singspiel, expressionism.

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ÍNDICE

Introdução………1

Capítulo I: Biografia de Charlotte Salomon e contexto histórico………9

Capítulo II: Leben? Oder Theater? Ein Singespiel [sic]……….20

II. 1. Singspiel – a escolha da forma artística………21

II. 2. Páginas Preliminares……….24

II. 3. Sobreposições ………..30

II. 4. A componente musical………33

II. 5. As referências artísticas de Leben? Oder Theater? ….………40

Capítulo III: Prelúdio, Secção Principal e Epílogo ... 46

III. 1. Prelúdio ... 46

III. 2. Secção Principal ... 55

III. 3. Epílogo ... 62

III. 4. Noite, melancolia e o “espaço da pintura” ... 76

Capítulo IV: A dimensão autobiográfica de Leben? Oder Theater?...87

Conclusão ... 108

Bibliografia ... 112

Índice de Figuras ... 120

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação toma como objeto de estudo a obra Leben? Oder Theater? – Vida? Ou Teatro? – da autoria da artista alemã Charlotte Salomon (Berlim, 1917- Auschwitz, 1943). A análise que se fez da obra prende-se sobretudo com o contributo da mesma para o enriquecimento dos estudos artísticos e com o seu papel como obra de arte moderna, e procura compreender de que modos vida e arte se relacionam no interior da obra, propondo uma interpretação do sentido último da mesma. Para tal, afigurou-se importante estudar Leben? Oder Theater? primeiro a partir de dentro, começando por observar e pensar os seus desenhos, textos e referências musicais, bem como a sua peculiar estrutura, e através dessa análise avançar para um segundo momento em que se pensa a obra na sua dimensão autobiográfica, evitando contudo pensá-la sob a sombra do Holocausto1, por se

considerar que essa abordagem, que já foi largamente explorada2, não é a única

forma de apresentar o objeto artístico em mãos.

Leben? Oder Theater? 3 apenas recentemente começou a ser estudada e exposta em circuitos artísticos, evidenciando-se, assim, o seu valor estético para lá da sua importância como testemunho do sofrimento e exílio vividos por judeus4, artistas

1 Como perguntava Griselda Pollock em 1998 e refere no seu recente livro intitulado Charlotte Salomon

and the Theatre of Memory (Londres: Yale University Press, 2018), p. 488, «Devemos ver esta obra sob a

sombra do Holocausto, ou devemos tentar escapar a esse atraso histórico?». Todas as traduções dos textos citados na presente dissertação que foram escritos ou publicados originalmente em língua inglesa ou francesa são da responsabilidade da autora deste trabalho.

2 O livro de Mary Felstiner intitulado To Paint Her Life: Charlotte Salomon in the Nazi Era (Berkeley: University of California Press, reimpressão de 1997) é um exemplo relevante de uma investigação que entrelaça a obra e a vida de Salomon, e ainda traça o percurso das circunstâncias políticas e sociais específicas em que esta viveu, numa abordagem a que autora chamou “história personificada” (p.xiii), estabelecendo uma linha cronológica paralela com a vida do oficial nazi Alois Brunner, um dos responsáveis pela deportação dos judeus que habitavam em Nice em setembro de 1943 (e que foi o caso de Salomon, como veremos). Também o filme Charlotte (1981), de Frans Weisz, utiliza a história e os desenhos de Leben? Oder Theater? para “reconstruir” uma biografia de Charlotte Salomon. Para outras leituras que se centram na relação da obra com o Holocausto, cf. Norman Rosenthal, “Charlotte Salomon’s Life? Or Theatre? – A 20th-century Song of Innocence and Experience”, em Charlotte

Salomon: life? or theatre? (Amesterdão: Waanders Publishers; Londres: Royal Academy of Arts, 1998);

Michael P. Steinberg, “Reading Charlotte Salomon – History, Memory, Modernism”, Monica Bohm-Duchen, “A Life before Auschwitz” e Shelley Hornstein, “Ornament, boundaries, and mourning after Auschwitz”, em Reading Charlotte Salomon, ed. Michael P. Steinberg e Monica Bohm-Duchen (Nova Iorque: Cornell University Press, 2006).

3 Doravante, passaremos a referir-nos a Leben? Oder Theater? pelo acrónimo LOT.

4 Algumas exposições dedicadas a Leben? Oder Theater? tiveram lugar em circuitos artísticos independentes do contexto do Holocausto, como na Royal Academy of Arts, em Londres (1998), no Museu de Belas-Artes de Boston e na Galeria de Arte de Ontário, em Toronto (2000), no Museum der

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ou não, por toda a Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. O presente estudo visa aprofundar a perspetiva estética a respeito da obra em estudo, sem, no entanto, pretender menorizar o lugar que as obras criadas entre 1939 e 1945 ocupam como fontes de conhecimento para a compreensão daquele momento histórico a vários níveis, e tendo em conta que em LOT estão presentes também contributos desse tipo5, como é o caso das referências aos desenvolvimentos do Kulturbund na Berlim dos anos 1930, ou à situação dos refugiados alemães no sul de França. Assim, e em consonância com a perspetiva aqui adotada, procurou-se neste trabalho partir de um contacto direto com a obra, tendo o primeiro passo nesse sentido sido dado com a visita à exposição “Charlotte Salomon. Vida? Ou Teatro?”, que teve lugar no Joods Historisch Museum, em Amesterdão. 6 O encontro presencial com a obra aqui em estudo foi determinante para suscitar a questão de saber qual o modo adequado de a apresentar ao espectador-leitor7. No seguimento dessa primeira etapa da investigação, procurou-se aprofundar um conhecimento contextual da vida de Charlotte Salomon, através de deslocações a Charlottenburg – o bairro berlinense em que cresceu a artista –, bem como ao Museu Judaico de Berlim, ao antigo campo de concentração e extermínio Auschwitz-Birkenau – em Oświęcim − e ao Memorial do Holocausto Yad Vashem – em Jerusalém. No decurso da preparação do projeto desta dissertação deu-se ainda a inesperada coincidência do anúncio e realização da exposição “Vida? Ou Teatro? Charlotte Salomon. Berlim, 1917 – Auschwitz, 1943”, no

Moderne, em Salzburg (2015), no Monestir de Santa Maria de Pedralbes, em Barcelona (2018-2019), e no Museu Coleção Berardo, em Lisboa (2019).

5 No material teórico disponibilizado no contexto da exposição “Art from the Holocaust”, que teve lugar no Deutsches Historisches Museum, em Berlim, em 2016, e que reuniu 100 obras de 50 artistas, incluindo um autorretrato de Charlotte Salomon realizado entre 1939 e 1941, lê-se que a exposição “é ao mesmo tempo um memorial e um imperativo para que nunca se volte a comprometer a dignidade da humanidade”. O carácter documental da exposição, bem como o discurso criado pela curadoria do mesmo, defendem que se considerem as obras partindo da sua condição de testemunho, ou seja, dotando-as à partida de uma funcionalidade documental. “Art from the Holocaust – 100 Works from the Yad Vashem Collection”, dossiê de imprensa do Deutsches Historisches Museum, https://www.yadvashem.org/yv/en/pdf/press_kit.pdf, acedido em 14 de agosto de 2019.

6 Patente de 20 de outubro de 2017 a 25 de março de 2018,esta foi a primeira exposição em que a obra foi apresentada na íntegra. Leben? Oder Theater? encontra-se preservada pelo Joods Historisch Museum após ter sido doada ao mesmo pela família de Salomon em 1971.

7 Como veremos no capítulo II desta dissertação, Leben? Oder Theater? é pela sua autora apresentada como obra de cariz teatral e musical, razão pela qual se optou por utilizar a expressão “espectador-leitor” ao invés de escolher apenas “espectador” ou apenas ““espectador-leitor”.

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Museu Coleção Berardo, em Lisboa, que ficou patente ao público entre abril e agosto de 2019, permitindo-nos um segundo contacto direto com LOT.8

No presente estudo, optou-se por começar com uma apresentação biográfica da vida de Charlotte Salomon, recorrendo, por um lado, a material teórico referente à época e aos lugares em que viveu, e por outro, ao contributo de Mary Lowenthal Felstiner, que em 1994 publicou aquele que é até hoje um documento biográfico indispensável ao estudo da vida da artista9. Em relação a este ponto, é importante notar que a decisão de dedicar um capítulo à biografia de Charlotte Salomon vem no sentido de tentar pensar, em primeiro lugar, a vida da artista, considerada de um ponto de vista estritamente biográfico e histórico, e esta obra em separado. Evitar entrelaçar as duas dimensão será, assim, o primeiro desafio da presente dissertação.

Uma vez expostos os dados biográficos que se considerou serem os mais relevantes para a discussão da obra em apreço, apresenta-se de seguida a obra propriamente dita, numa análise que tem em conta a sua estrutura peculiar – apresentada como Singspiel –, a sua extensão incomum, os cruzamentos artísticos que fazem desta obra uma criação interdisciplinar singular – entre desenho, texto e música –, e o contexto artístico da época em que foi criada. Nesse capítulo II, recorre-se aos estudos já publicados sobre a obra de Salomon, destacando autores cujo contributo tem sido crucial para abrir o trabalho da artista a outros olhares, permitindo considerar LOT já não exclusivamente como um diário visual ou ilustrado10, mas num âmbito de reflexão mais alargado. São, assim, convocadas as

8 Realizada em parceria com o Joods Historisch Museum, em Amesterdão, a exposição integrou 232 desenhos dos 769 que perfazem a seleção final de Leben? Oder Theater? A exposição no Museu Berardo deu lugar à publicação do catálogo Charlotte Salomon – Vida? Ou Teatro? As Duas Janelas de Charlotte Salomon (Lisboa: Stolen Books, 2019), para o qual contribuímos com o texto “Identidade e Memória em

Vida? Ou Teatro?”, pp.125-129.

9 Mary Felstiner, To Paint Her Life: Charlotte Salomon in the Nazi Era, (Berkeley: University of California Press, reimpressão de 1997). Também sobre a biografia de Salomon, cf. Judith Herzberg, Charlotte: life

or theater? An autobiographical play, trad. Leila Vennewitz (Nova Iorque: Viking Press, 1981) e Charlotte Salomon: life? or theatre?, ed. Judith C. E. Belinfante (Amesterdão: Waanders Publishers; Jewish

Historical museum; Charlotte Salomon Foundation, 1998).

10 A primeira publicação que apresenta uma seleção de desenhos retirados de Leben? Oder Theater? intitulou-se Charlotte: A Diary in Pictures by Charlotte Salomon (Nova Iorque: Harcourt, Brace & World, 1963) e foi publicada em 1963. No contexto desta primeira publicação, Leben? Oder Theater? foi abertamente comparada a O Diário de Anne Frank, cuja publicação era ainda relativamente recente naquela altura (publicado pela primeira vez em holandês em 1947 e em inglês em 1952). Já recentemente, ainda Irit Rogoff fala de LOT como diário, no seu livro Terra Infirma: Geography’s Visual

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análises de autores como Griselda Pollock, Julia Watson, Liliane Weissberg, Michael P.Steinberg e Carolyn F. Austin.

Dada a extensão da obra, por um lado, e, por outro lado, a complexidade narrativa que ela apresenta, optou-se por dedicar o capítulo III à apresentação das três partes que compõem a obra, a saber, Prelúdio, Secção Principal e Epílogo. Este capítulo tem o objectivo de apresentar os principais temas que atravessam LOT, bem como permitir ao leitor uma aproximação à obra que não implique um contacto direto com a mesma em toda a sua extensão, anterior à leitura desta dissertação. A este respeito, importa notar que utilizaremos a numeração dos desenhos estabelecida pelo Joods Historisch Museum11, e advertir o leitor de que foram reunidas imagens de alguns dos desenhos referenciados em anexo. Ademais, Leben? Oder Theater? encontra-se disponível para consulta online, com os textos traduzidos para inglês, holandês e francês. 12

Procurando esclarecer a relação arte e vida que se vislumbra, pictórica e textualmente, em momentos específicos da obra, dedicámos um sub-capítulo à análise de alguns desenhos na relação que estes estabelecem com a escultura Noite, de Michelangelo Buonarroti, e com o tema da melancolia, seguindo pistas que se encontram ao longo da obra e que poderão ajudar a responder à subsequente pergunta de saber se Leben? Oder Theater? poderá ser pensada como um projeto autobiográfico.

Como se disse, podemos olhar LOT a partir das circunstâncias em que a obra foi criada por Salomon. Mas uma tal abordagem não nos parece suficiente, ou, por outra, parece-nos que há outros modos de ver este projeto artístico. É certo que a obra em apreço tem vindo a ser estudada por vários autores abordando questões e momentos diferentes, mas a obra no seu todo acaba quase sempre por suscitar a pergunta de saber se é possível, ou de que modo é possível, pensar o papel “salvífico” da arte. Esta é também uma dimensão contemplada no presente estudo, onde se

11 Alguns estudos sobre a obra guiam-se pelas numerações inscritas por Salomon nos desenhos (que são mais que uma, por partes), mas, uma vez que o museu onde está conservada toda a obra criou um acervo digital de LOT onde utiliza uma numeração nova que estabeleceu, considerou-se útil utilizar neste documento sempre essa numeração.

12 É possível aceder ao acervo digital de Leben? Oder Theater? através do seguinte link: https://charlotte.jck.nl/ . Das imagens em anexo, muitas fazem parte de LOT e por isso têm cada uma na legenda o link específico, para que se possam consultar os textos completos.

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tentará mostrar que há momentos, ao longo da obra, que apontam para a defesa do gesto artístico como qualquer coisa que pode contrariar a tristeza ou a loucura. Porém, uma tal perspetiva distingue-se das muitas adoptadas até hoje por outros autores, nomeadamente por não pretender, através dessa pistas presentes na obra, partir para uma conclusão sobre a biografia nem sobre aquilo que estava em causa de facto na vida de Salomon, e muito menos visa ter um papel redentor. Queremos posicionar o presente estudo de acordo com as palavras de Griselda Pollock, quando diz que "o uso redentor de obras de arte perante o nosso sentimento de perda diminui a nossa capacidade de ler o que obras de arte como esta podem estar a fazer no seu próprio tempo, e também, ainda, no nosso”13. A nossa abordagem não pretende, no entanto, desvalorizar os estudos que procedem em direções diferentes daquela aqui tomada, pois sabemos que LOT tem sido objeto das mais variadas abordagens, e que já tem hoje um lugar como projecto de memória cultural. Dentro do conhecimento criado em torno desta obra, há estudos que consideram sobretudo a dimensão biográfica14 e traumática15, a dimensão histórica16, a dimensão judaica17,

13 Griselda Pollock, Charlotte Salomon and the Theatre of Memory (Londres: Yale University Press 2018), p. 20.

14 Por exemplo, Griselda Pollock, “Crimes, Confession and the Everyday: Challenges in Reading Charlotte Salomon’s Leben? Oder Theater? 1941-1942”, Journal of Visual Culture, vol. 13, nº 2, 2014, pp. 200-235, onde a autora analisa a obra a partir de novas pistas e aponta para a “narrativa de um crime” ou confissão; Raphael Rubinstein, “Charlotte Salomon: A Visual Testament”, Art in America, vol. 87, nº 1, 1999, pp. 76-83 e 114; Michael Kimmelman, “Shaping Stories, Shaping Herself”, New York Times, 29 de dezembro de 2000, A37-38; Irit Rogoff, Terra Infirma: Geography’s Visual Culture (Nova Iorque: Routledge, 2000).

15 Por exemplo, Ernst van Alphen, “Giving Voice – Charlotte Salomon and Charlotte Delbo”, Griselda Pollock, “Theater of Memory – Trauma and Cure in Charlotte Salomon’s Modernist Fairytale” e Reesa Greenberg, “The Aesthetics of Trauma”, em Reading Charlotte Salomon, ed. Michael P. Steinberg e Monica Bohm-Duchen (Nova Iorque: Cornell University Press, 2006).

16 Por exemplo, Darcy Buerkle, “Historical Effacements: Facing Charlotte Salomon”; Michael P. Steinberg, “Reading Charlotte Salomon – History, Memory, Modernism”, Monica Bohm-Duchen, “A Life before Auschwitz” e Christine Conley, “Memory and Trauerspiel: Charlotte Salomon’s Life? Or Theater? And the Angel of History”, Shelley Hornstein, “Ornament, boundaries, and mourning after Auschwitz”, em Reading Charlotte Salomon, ed. Michael P. Steinberg e Monica Bohm-Duchen (Nova Iorque: Cornell University Press, 2006); Mary Felstiner, To Paint Her Life: Charlotte Salomon in the Nazi Era (Berkeley: University of California Press, 1997); Ernst van Alphen, “Autobiography as Resistance to History”, no seu livro Caught by History: Holocaust Effects in Contemporary Art, Literature, and Theory (Standford: Stanford University Press, 1998), pp-65-92.

17 Por exemplo, Julia Watson, “Charlotte Salomon’s Memory Work in the ‘Postscript’ to Life? Or

Theatre?”, Signs – Journal of Women in Culture and Society, vol. 28, nº 1, 2002, pp. 409-420;Paul Tillich e Emil Straus, Charlotte: A Diary in Pictures (Nova Iorque: Harcourt, Brace & World, 1963); e Astrid Schmetterling, “Inscriptions of Difference in Charlotte Salomon’s Work”, em Reading Charlotte Salomon, ed. Michael P. Steinberg e Monica Bohm-Duchen (Nova Iorque: Cornell University Press, 2006).

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a dimensão formal ou da história de arte18, a dimensão do género ou feminista19, questões relacionadas com como mostrar ao público uma obra como esta20, ou, ainda, como faz Griselda Pollock, cada uma ou todas as anteriores21, admitindo que o facto de “serem possíveis tantos quadros de análise ou portas de entrada indica . . . a complexidade e fascinação desta obra excepcional”22. Importa ainda referir que, de um modo geral, nos vários estudos publicados, sobretudo no conjunto de ensaios Reading Charlotte Salomon, a natureza artística de Leben? Oder Theater? é valorizada, bem como o carácter singular da mesma, tão difícil de categorizar ou classificar.

É com vista a defender o valor estético da obra em apreço que propomos uma análise da dimensão autobiográfica da mesma, procurando saber se esta poderá ser assim entendida, e posicionando-nos sobre esta questão, entre perspetivas diferentes já defendidas.

O capítulo IV dedica-se então à dimensão autobiográfica da obra, por um lado repensando o que já foi dito a respeito da mesma, e por outro lado, procurando um espaço onde seja possível pensar essa dimensão que encontramos em LOT sem que isso implique, na apreciação da obra, uma subordinação do objeto artístico à vida da sua criadora. Ademais, e como veremos, a dimensão ficcional da obra é explicitada dentro da mesma. Assim, a vontade de analisar elementos autobiográficos e elementos ficcionais em simultâneo advém da discussão previamente existente a respeito do carácter autobiográfico da obra em apreço, e para a qual o contributo da teórica Griselda Pollock é fundamental e principal, pois a sua defesa de que LOT não deve ser lida como obra autobiográfica veio desafiar as análises à obra anteriores.

18 Por exemplo, Dalia Elbaum, “Analyse esthétique de l’oeuvre de Charlotte Salomon”, em

Charlotte Salomon (Berlin 1917 - Auschwitz 1943): "Leben oder Theater?” (Bruxelas: Centre Israelite de

Belgique, 1982), pp. 25-33; Éric Corne, “Vida? Ou Teatro? As Duas Janelas de Charlotte Salomon”, em

Charlotte Salomon – Vida? Ou Teatro? As Duas Janelas de Charlotte Salomon (Lisboa: Stolen Books,

2019), pp.7-43;Claudia Barnett, “Painting as Performance – Charlotte Salomon’s Life? or Theatre?”, The

Drama Review, vol. 47, nº 1, 2003, pp. 97-126.

19 Cf. Leah Ellen White, “’Life? Or Theater?’: A Text of Incongruity and Fragmented Subjectivity” [tese de doutoramento, Arizona State University, 1997].

20 Por exemplo, os ensaios de Mieke Bal, “Aestheticizing Catastrophe”, Mary Felstiner, “Create her world anew – Seven Dilemmas in Re-presenting Charlotte Salomon”, e Nanette Salomon, “On the impossibility of Charlotte Salomon in the classroom”, em Reading Charlotte Salomon, ed. Michael P. Steinberg e Monica Bohm-Duchen (Nova Iorque: Cornell University Press, 2006).

21 A multiplicidade de abordagens possíveis e válidas é visível em Griselda Pollock, Charlotte Salomon

and the Theatre of Memory (Londres: Yale University Press 2018).

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Assim, procurando aprofundar este assunto, o capítulo IV convoca os contributos de Maurice Blanchot, Philippe Lejeune, Julia Watson e Griselda Pollock, bem como considerações do artista plástico Ilya Kabakov sobre a relação entre ficção e autobiografia.

Por fim, é também importante notar que alguns assuntos foram deixados de fora desta reflexão teórica, nomeadamente, as recentes discussões em torno das revelações biográficas encontradas em algumas páginas do “Pós-escrito” 23 a LOT, a análise das obras artísticas inspiradas em Charlotte Salomon e na sua obra, que têm surgido em vários campos artísticos como o cinema, a ópera, a literatura, a dança e o teatro24, e ainda o vasto tema da compreensão do Holocausto através de fontes artísticas, como a questão de saber até que ponto é que os documentos visuais possivelmente representativos do Holocausto devem ou não ser apresentados. Este último assunto tem suscitado um debate aceso entre artistas e pensadores nas

23 Cumpre-nos assinalar, no contexto destas breves indicações preliminares acerca da relação entre a vida e a obra de Salomon, um facto recentemente vindo a público que tem contribuído para o debate das mesmas relações e alterado mais ou menos substancialmente os termos dessa discussão. Trata-se de um conjunto de 25 páginas que só recentemente foram conhecidas na sua íntegra, como coisa una. Antes de ser revelado o conjunto total, Mary Felstiner chamou às páginas então conhecidas “Pós-escrito” (em To Paint Her Life – Charlotte Salomon in the Nazi Era, Berkeley: University of California Press, 1997, pp. 150-151). Hoje sabe-se que esse conjunto é uma carta, alegadamente endereçada a uma personagem da obra (Daberlohn), e que foi adicionada a LOT sensivelmente seis meses depois da conclusão da criação da obra. Foi descoberta juntamente com LOT e com outros desenhos não numerados. A carta foi mostrada por Paula Salomon aos artistas Frans Weisz, realizador de cinema, e Judith Herzberg, poeta e dramaturga, os quais, com vista a realizar um filme sobre a obra de Salomon, puderam ver e transcrever o texto de toda a carta incluindo os excertos mantidos em segredo. Porém, não lhes foi dada autorização para utilizar nem divulgar o conteúdo dessas páginas. O filme saiu em 1981 e intitula-se Charlotte. Em torno deste novo material nasceu alguma polémica, uma vez que o texto parece sugerir que Salomon assassinara ou tentara assassinar o avô. Este assunto não será abordado neste trabalho pois não se considera a revelação do novo material suficientemente relevante para o ângulo desta abordagem que se deve circunscrever ao conjunto nomeado pela própria autora como LOT. No entanto, é evidente que fará sentido olhar a obra de uma forma diversa daquela aqui adotada, nomeadamente de uma forma que tenha em conta a carta para ajudar a refletir sobre o trabalho artístico. Pollock fá-lo em dois artigos: “Staging Subjectivity: Love and Loneliness in the Scene of Painting with Charlotte Salomon and Edvard Munch”, Text Matters - a Journal of Literature, Theory

and Culture, vol. 7, nº 7, 2017, pp. 114-144 (p.117), e “Crimes, Confession and the Everyday: Challenges

in Reading Charlotte Salomon’s Leben? oder Theater? 1941–1942”, Journal of Visual Culture, vol. 13, nº 2, 2014, pp. 200-235. Deste modo, naquilo que concerne a presente dissertação, optou-se por deixar de fora a discussão acerca das supostas confissões que a carta contém.

24Os filmes Charlotte (1981) e Leven? of theatre? (2012), ambos de Frans Weisz; o filme Charlotte, vie ou

théâtre? (1992), de Richard Dindo; a peça de teatro Lotte’s Journey (2007), de Candida Cave; a ópera Charlotte Salomon (2014), de Marc-André Dalbavie; o romance Charlotte (2014), de David Foenkinos; a

peça de dança Charlotte Salomon: Der Tod und die Malerin (2015), de Bridget Breiner; e foi anunciado um futuro filme de animação também inspirado em Leben? Oder Theater?¸a ser realizado por Bibo Bergeron.

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últimas décadas, e destaque deve ser dado à obra Imagens apesar de tudo, de Didi-Huberman, na qual se discutem a “irrepresentabilidade” e a “inimaginabilidade” do Holocausto.25

25No seu livro Imagens apesar de tudo (Lisboa: KKYM, 2012), p.203, Georges Didi-Huberman discute a ideia, defendida por Claude Lanzmann, Gérard Wajcman e Elisabeth Pagnoux, segundo a qual há experiências, como a do Holocausto, que são inimagináveis. Discordando dessa ideia, Didi-Huberman cita Robert Antelme em L’Espèce humaine, num excerto que importa lembrar: «Esta desproporção entre a experiência que tínhamos vivenciado e o seu relato possível apenas se confirmava à medida que avançávamos. Tínhamos, pois, em mãos uma dessas realidades acerca das quais se é obrigado a admitir que ultrapassam a imaginação. Era claro, doravante, que só por escolha, ou seja, ainda pela imaginação, podíamos tentar dizer alguma coisa.» Sobre este assunto, poderão ser consultadas as seguintes obras: Georges Didi-Huberman, Imagens apesar de tudo, trad.Vanessa Brito e João Pedro Cachopo (Lisboa: KKYM, 2012), Jean-Luc Nancy, “La représentation interdite”, Le Genre humain, vol. 36, 2001, pp.13-39, Claude Lanzmann, Shoah (co-produção Les Films Aleph, BBC, Historia films, La Sept ARTE, França, 1985), Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma (co-produção Canal+, La Sept, France 3, Gaumont, RTSR, JLG Films, França, 1985), Jacques Rancière, A Partilha do Sensível (Porto: Dafne Editora, 2010), Giorgio Agamben, Remnants of Auschwitz: The Witness and the Archive, trad. Daniel Heller-Roazen (Nova Iorque: Zone Books, 2012), Theodor Adorno, “Cultural Criticism and Society”, em Prisms, trad. Samuel e Shierry Weber (Cambridge: MIT Press, 1967), pp. 17-34, Hannah Arendt, Auschwitz et Jérusalem (Paris: Deux temps Tierce, 1991).

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I. BIOGRAFIA DE CHARLOTTE SALOMON E CONTEXTO HISTÓRICO

Charlotte Salomon foi uma artista alemã de origem judaica. Nascida no princípio do século XX, veio a falecer durante a Segunda Guerra Mundial, vítima do Holocausto, no início da década de 1940. A artista nasceu em Berlim no dia 16 de abril de 1917, e cresceu na Alemanha da ascensão do Nacional-Socialismo. Como se sabe, foram tempos conturbados, em que a violência para com os judeus vinha crescendo rapidamente, e por isso também Charlotte viveu a maior parte da sua juventude num ambiente social e político de medo e incertezas. Morou em Berlim entre 1917 e 1938, até aos 21 anos, e após o episódio sinistro da Kristallnacht e consequente prisão temporária do pai, a jovem Charlotte foge para a Riviera Francesa onde se junta aos seus avós maternos que se encontravam exilados perto de Nice. E é aí, no sul de França, entre 1940 e 1942, durante um período de aproximadamente um ano, possivelmente entre os verões de 1941 e 194226, que Charlotte Salomon cria uma singular obra intitulada Leben? Oder Theater? – em português, “Vida? Ou teatro?”27 —, exibida pela primeira vez em 1961, quase duas décadas após a sua morte.28

Salomon cresceu em Charlottenburg, um bairro situado na zona oeste de Berlim, no seio de uma família judia da alta burguesia berlinense29. Filha de Fränze Grunwald Salomon e de Albert Salomon, Charlotte é a única filha do casal. Albert foi médico cirurgião e Franzë terá servido como enfermeira no início da Primeira Guerra Mundial. Os dois conhecem-se durante a guerra e casam em 1916. Franzë é descrita como tendo sido uma mulher angustiada30, sobretudo durante a infância da filha. Após um longo período de desequilíbrio psicológico, suicida-se, deixando sem mãe a

26 Uma vez que não se pode ter a certeza das datas, poderá assumir-se o período que compreende os anos de 1940, 1941 e 1942.

27 Todas as traduções dos textos presentes em LOT citados na presente dissertação são da responsabilidade da autora deste trabalho, excetuando um caso referenciado.

28Uma primeira seleção foi exibida em Amesterdão no Museu Fodor/Stedelijk, entre fevereiro e março de 1961. Informação retirada do catálogo de Bibliotheek, “Charlotte Salomon”,

https://www.bibliotheek.nl/catalogus/titel.136529410.html/charlotte-salomon--museum-fodor-amsterdam--2-febr--5-mrt--1961/, acedido em 1 de agosto de 2019.

29 «Nos anos 1920, um terço dos judeus alemães habita em Berlim. São advogados, magnatas da imprensa, professores, industriais e médicos. No recenseamento de 1925, vivem na Alemanha 560 mil judeus, a maioria em Berlim onde 175 mil pessoas representam 4% da população total da cidade.» Akadem, “Les Juifs allemands dans l’entre-deux-guerres”, 2012, ficheiro PDF,

http://akadem.org/medias/documents/2-juifsallemands.pdf. 30 Felstiner, To Paint Her Life, p. 5.

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filha Charlotte de apenas nove anos, no ano de 1926. A notícia do suicídio de Fränze nunca lhe é revelada pelo pai, e pensa-se que Charlotte acreditou durante toda a infância que a sua mãe morrera de gripe. Só em 1939, quando já se encontra exilada, longe do seu pai e do seu país, é que vem a saber, pela voz do seu avô, do vasto historial de suicídios na sua família materna. Este historial ou genealogia suicidária, que remonta pelo menos a quatro gerações anteriores a Charlotte, revela-se um dado significativo não só para a análise da obra que será apresentada mais à frente, como também para pensar a relação arte e vida que será igualmente discutida ao longo deste trabalho.31

Aproximadamente quatro anos após a morte da sua primeira mulher, Albert casa-se com Paula Lindberg32, uma cantora lírica também judia. Paulinka Bimbam, a personagem de LOT inspirada em Paula Lindberg-Salomon, é uma figura destacada ao longo da obra, por um lado como influência cultural e musical, e por outro lado pelo papel maternal assumido como madrasta de Charlotte.

Entretanto, Charlotte entrara para o Gymnasium33 em 1927, de onde sairia aos 16 anos de idade, em 1933, ao ser intimidada por ser judia.34 É sensivelmente neste momento, no outono de 1933, que os avós maternos de Charlotte emigram

31 O documento que funciona atualmente como único depoimento de Salomon em nome próprio, e onde constam informações sobre o período conturbado que esta viveu quando descobriu do historial de família, é, como vimos, o “Pós-escrito”, a já referida cartaendereçada a uma personagem da sua obra – Amadeus Daberlohn – que Charlotte Salomon terá juntado a LOT em 1943, antes de entregar a sua obra ao médico Dr. Moridis, que a terá guardado durante a guerra. Esta Informação foi retirada da exposição Charlotte Salomon: Life? Or Theatre?, no Joods Historisch Museum, em Amesterdão, que decorreu de outubro de 2017 a março de 2018.

32 Paula Levi (1897, Frankenthal - 2000, Amesterdão) era filha do rabino Lazarus Levi e de Sophie Meyer. Tendo estudado matemática para vir a ser professora, após a morte do pai foi estudar canto, e mais tarde em Berlim trabalhou na casa do arquiteto Eric Mendelsohn. Foi aí, por via dos concertos organizados por Luise Mendelsohn, que Paula se instruiu sobre música moderna. Entretanto, o Professor Siegfried Ochs aconselhou-a a alterar o seu apelido judeu para um não-judeu, “Lindberg”. Sob a direção de Ochs, Paula cantou pela primeira vez a Paixão segundo São Mateus na Filarmónica de Berlim em 1926. Casada com Albert, a sua casa foi, durante alguns anos, um ponto de encontro na cena cultural de Berlim. Em 1933 Paula deu o seu último concerto autorizado e a partir daí passou a mover-se exclusivamente no meio do Kulturbund deutscher Juden, fundado pelo seu amigo Kurt Singer. A partir de 1936, além de concertos – para uma plateia obrigatoriamente judia – também lecionou numa escola judia, até fugir da Alemanha em 1939. Cf. Koordinierugsstelle Stolpersteine Berlin, “Stolpersteine in Berlin – Paula Lindberg-Salomon”, https://www.stolpersteine-berlin.de/en/biografie/4447, acedido em 31 de julho de 2019.

33 O Fürstin-Bismarck-Gymnasium, hoje em dia Sophie-Charlotte-Gymnasium, é uma escola em Charlottenburg, Berlim.

34 Informação retirada da cronologia apresentada na exposição Charlotte Salomon: Life? Or Theatre?, no Joods Historisch Museum.

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para Roma. Como se sabe, esse foi também o ano em que o Partido Nazi chegou ao poder. É neste contexto que o Doutor Salomon perde o direito de ensinar e de praticar medicina. Na mesma altura Paula Salomon-Lindberg deixa de poder atuar em público. No entanto, ambos conseguem alternativas laborais: Albert vai exercer como cirurgião no Hospital Judaico e Paula junta-se ao Kulturbund deutscher Juden35, uma organização que promovia o acesso à cultura dentro da comunidade judaica. É no enquadramento do Kulturbund que importa mencionar outras duas figuras que irão inspirar personagens de LOT e que, por isso, deverão também ser apresentadas: Kurt Singer e Alfred Wolfsohn. Alfred Wolfsohn (1896-1962) foi um professor de canto, alemão, que deu aulas a Paula Lindberg-Salomon e terá por essa razão convivido com Charlotte, em casa da família. Fugiu para Londres em 1939, por ser judeu, onde sobreviveu à guerra e viveu o resto da vida.36 Wolfsohn foi pioneiro de uma técnica de canto por si criada e é possível identificar semelhanças entre a sua pessoa e Amadeus Daberlohn37, uma personagem que ocupa um lugar central na obra de Salomon. De facto, as representações do professor de canto em LOT e a menção do título de uma das suas obras literárias, Orfeu, ou a Via para uma Máscara Mortuária38, permitem identificar a pessoa real com a figura que protagoniza um grande número de desenhos que compõem LOT. Quanto a Kurt Singer (1885-1944), foi um neurologista e músico alemão, conhecido nos anos 1930 em Berlim por ter sido crítico, maestro, diretor da Ópera Alemã de Berlim e diretor do Kulturbund deutscher Juden39. Singer foi professor, maestro e amigo de Paula Lindberg-Salomon,

35 Kulturbund deutscher Juden, mais tarde alterado para Jüdischer Kulturbund, pois “um nome contendo as palavras ‘Alemão’ e ‘Judeu’ era politicamente inaceitável”, foi fundado em Berlim em 1933 como resposta à expulsão dos judeus do meio cultural alemão depois de os nazis chegarem ao poder. Abriu em Berlim uma companhia de teatro, uma orquestra sinfónica, uma ópera, um grupo de cabaret e um programa de conferências. Foi abolido em 1941. A este respeito, cf. Shoah Resource Center – Yad

Vashem, “Cultural Union of German Jews”, 2019, ficheiro PDF,

https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205931.pdf, e Lily E. Hirsch, “’Ein Tanz auf dem Vulkan’: The Legacy of the Jewish Culture League”, Music and Politics, vol. V, nº 2, 2011, pp. 1-9.

36 Roy Hart Theatre Archives, “Alfred Wolfsohn Biography”,

http://www.royhart.com/awebiography.htm, acedido em 4 de julho de 2019.

37 O nome próprio da personagem, Amadeus, parece sugerir uma comparação com Wolfgang Amadeus Mozart: “A personagem chave chama-se Amadeus, numa referência a Mozart, significando a genialidade musical (…)”. Pollock, Charlotte Salomon and the Theatre of Memory, p. 106.

38 Ver, por exemplo, o desenho M004722.

39 The German Resistance Memorial Center, “Kurt Singer”, https://www.gdw-berlin.de/en/recess/biographies/index_of_persons/biographie/view-bio/kurt-singer/?no_cache=1,

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e a personagem do Dr. Singsang que surge em LOT aparenta ser inspirada na sua figura. Morreu no campo de Theresienstadt.40

Apesar de ser judia, Charlotte é aceite na Academia de Artes de Berlim41, onde estuda quase dois anos, saindo no verão de 1938. Sabe-se que ganhou nesta altura o primeiro prémio num concurso da Academia e que não lho atribuíram por “questões raciais”. É também conhecido que Charlotte terá sido a última aluna judia da Academia de Artes de Berlim.42 O desenho com que concorreu ao prémio da Academia, e que sobreviveu à guerra, é uma representação de A Morte e a Donzela43, também referenciado em LOT.

Em 1938, aproximadamente cinco anos depois da subida de Hitler ao poder na Alemanha, dá-se o tenebroso episódio da Kristallnacht44, uma noite em que, por todo

o país e novos territórios anexados, líderes e defensores do Partido Nazi desencadeiam uma série de pogroms45. A violência de rua para com a população judia na Europa já começara algum tempo antes da Kristallnacht, nas regiões com mais sentimento antissemita. A este respeito, é importante notar que, em 1935, numa conferência de funcionários públicos sobre a “Questão Judaica”, em Koenigswusterhausen, o orador principal defendia o boicote comercial aos judeus, referindo-se a estes como “bestas”. No mesmo discurso, alertava para a brandura do Führer, incitando a que os civis, incluindo a “dona de casa”, se defendessem e

40Cf. Yad Vashem Archives (YVA), “Documentation regarding Dr. Kurt Singer, a physician and a choral conductor in Berlin, 1933-2008”. Referência: 0.8/4069825.

41Em alemão, Vereinigte Staatschulen für Freie und Angewandte Kunst. Em inglês, uma tradução possível seria “Unified State Schools for Fine and Applied Art”. William Owen Harrod, “The Vereinigte Staatschulen für Freie und Angewandte Kunst”. Architectural History, vol. 52, 2009, pp. 233-269 (p.233). 42 Esta informação é mencionada em Charlotte Salomon Vie? Ou Théâtre?, ed. Frédéric Martin (Paris: Le Tripode, 2015), na nota do editor Frédéric Martin.

43A Morte e a Donzela é, como se sabe, um tema ou motivo que encontra inúmeras representações por diversos artistas em períodos diferentes da história de arte. Baseado na canção de Schubert do mesmo nome, cujo poema é de Matthias Claudius, A Morte e a Donzela é um encontro ou um diálogo entre a figura da morte e uma donzela. Entre os artistas que a pintaram, destaque-se, no séc. XVI, Niklaus Manuel Deutsch e Hans Baldburg Grien, no final do séc. XIX Henri-Léopold Lévy e Edvard Munch, no início do séc. XX Marianne Stokes e Egon Schiele, e na segunda metade do séc. XX Joseph Beuys em 1957, Ana Mendieta em 1975 (About giving life), e Marina Abramovic em 2003 (Self Portrait With

Skeleton).

44 Em português, “noite de cristal”.

45 “Pogrom” é um termo russo que quer dizer, aproximadamente, “demolir violentamente”. Historicamente, o termo é utilizado para referir ataques violentos a judeus por parte de populações não judias. Shoah Resource Center – Yad Vashem, “Kristallnacht”, 2019, ficheiro PDF, https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206461.pdf

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decidissem eles mesmos uma solução para a “Questão Judaica”. No mesmo ano, vários incidentes ocorrem em Berlim-Este, sendo os gritos antissemitas abafados pela população que respondia às acusações antissemitas. As demostrações de ódio passaram a estar inscritas pela cidade e frases como “porco judeu”, “judeu sujo”, ou simplesmente a palavra “judeu” eram pintadas em montras de estabelecimentos comerciais. É também de notar a criação da DAF – German Labour Front – que proibia a inscrição de comércios pertencentes a judeus, o que criava descriminação e hostilidade para com estes últimos, uma vez que os consumidores sabiam que se um comércio estava inscrito na DAF queria dizer que este não pertencia a judeus, mas a “arianos”. O jornal Der Stürmer, que serviu como órgão de divulgação da propaganda nazi, colocava vitrines nos passeios públicos, de forma a que as populações tivessem facilidade em ler as notícias sobretudo dedicadas ao antissemitismo46. Em LOT existe um desenho que ilustra precisamente este jornal e os anúncios de grande dimensão colocados em Berlim, especificamente a 1 de abril de 1933 – data que coincide com a história –, o dia em que se deu o primeiro boicote aos judeus oficialmente legitimado, incitado por Joseph Goebbels47.

No seguimento destes desenvolvimentos, a Kristallnacht foi um momento central, uma noite de violência intensa e generalizada48. Apesar de em 1933 Hitler ter desencorajado a violência, é sabido que esta não só não era punida como por vezes até era encorajada por líderes nazis. Assim, no seguimento do assassinato de um diplomata alemão em Paris49, muita gente sai à rua para afirmar o seu desprezo pelas

46«Durante os anos 1930, os alemães encontravam Der Stürmer em passeios e esquinas por toda a Alemanha. [Julius] Streicher [director do jornal] montou muitas vitrines para promover a sua propaganda anti-semita e aumentar a circulação [do jornal].» United States Holocaust Memorial

Museum, “Writing the News”, enciclopédia do Holocausto,

https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/writing-the-news, acedido em 13 de agosto de 2019. Ver figura 1.

47 “The German Jewish Press Reports about Anti-Jewish Incitement in the Summer of 1935 (1)”, sobre uma notícia no jornal Juedische Rundschau, de 2 de julho de 1935; “Anti-Jewish Incitement and Riots in the Summer of 1935 German Situation Reports and Articles in the German Jewish Press”; “Boycott,

Anti-Jewish”. Shoah Resource Center – Yad Vashem,

https://www.yadvashem.org/yv/en/holocaust/resource_center/index.asp, acedido em 14 de setembro de 2019. Ver figuras 1 e 2.

48 Cf. Shoah Resource Center – Yad Vashem, “Berlin” e “Kristallnacht”, 2019, ficheiros PDF,

https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205995.pdf e

https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206461.pdf, respetivamente.

49 O diplomata alemão foi morto por um jovem judeu polaco, de entre os 18 mil polacos deportados da Alemanha para pocilgas e estábulos na fronteira polaca. Shoah Resource Center – Yad Vashem,

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comunidades judaicas, pela religião judaica e pela população judia em geral. Durante essa noite, mais de 200 sinagogas são incendiadas, muitos judeus espancados e detidos, lojas e comércios vandalizados e destruídos, e homens judeus obrigados por SS50 a pisar a Torah e a recitar trechos de Mein Kampf. A “noite de cristal” é conhecida no contexto da Segunda Guerra Mundial como um ponto de viragem importante, pois logo a seguir foi implementada na Alemanha nova legislação antijudaica, seguindo-se às leis de Nuremberga51 e constituindo a terceira fase de um processo tripartido de implementação de legislação antissemita52. É nessa noite, de 9 para 10 de novembro de 1938, que, tal como tantos outros homens e mulheres judeus, o pai de Charlotte Salomon, Albert Salomon, é preso. No fim do dia seguinte já tinham morrido 91 judeus e sensivelmente 30 mil estavam já a ser transportados para campos de concentração.53 Também Albert é deportado – para o campo de concentração de Sachsenhausen54. Porém, não permanece lá mais do que algumas semanas, sendo libertado por influência da sua mulher55. É no rescaldo desta

“Kristallnacht”, 2019, ficheiro PDF, https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%206461.pdf

50 Membros do Schutztaffel - organização paramilitar ligada ao partido Nazi.

51 “As Leis de Nuremberga não só proporcionaram um mecanismo legal ‘legítimo’ para excluir os Judeus da cultura alemã dominante, como também deram ao partido Nazi uma ferramenta que permitia racionalizar os motins e as detenções antissemitas que o partido havia levado a cabo nos meses anteriores.” Shoah Resource Center – Yad Vashem, “Nuremberg Laws”, 2019, ficheiro PDF, https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205971.pdf

52 A implementação de leis antijudaicas na Alemanha nazi teve três fases: 1933, 1935 1938. O primeiro grupo de leis permitia, entre outras políticas discriminatórias, despedir legalmente funcionários do governo e da função pública por não serem “arianos”, excluir advogados “não-arianos” da Ordem, impedir alunos “não-arianos” de estudar em escolas alemãs e de finalistas serem candidatos a exame em várias profissões. As leis de Nuremberga constituíram a segunda fase, e incluíam a lei que declarava que apenas “arianos” eram cidadãos do Reich (e por isso os judeus não podiam votar) e a “Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemães”, que proibia tanto casamentos como relações sexuais entre “alemães” (“arianos”) e judeus. Nesta última lei estava também escrito que judeus não poderiam a partir daquele momento hastear a bandeira alemã nem dispor as cores nacionais, apenas as “cores judaicas”. A terceira fase, implementada após a Kristallnacht, permitiu ao governo confiscar propriedade judaica através da “arianização” e estabeleceu o Zenstralstelle fuerJuedische

Auswanderung, em português “Gabinete Central para a Emigração Judaica”. Shoah Resource Center –

Yad Vashem, “Nuremberg Law for the Protection of German Blood and German Honor, September 15,

1935” e “Anti-Jewish Legislation”, 2019, ficheiros PDF,

https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%201996.pdf e

https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205741.pdf, respetivamente. 53 Felstiner, To Paint Her Life, p. 77.

54 «Em novembro de 1938, depois do pogrom Kristallnacht, 1800 judeus foram levados para Sachsenhausen». Shoah Resource Center – Yad Vashem, “Sachsenhausen”, 2019, ficheiro PDF, https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205987.pdf.

55 Informação retirada da cronologia apresentada na exposição Charlotte Salomon: Life? Or Theatre? do Joods Historisch Museum.

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situação que, em dezembro de 1938, Albert Salomon decide que a filha deverá deixar a Alemanha e ir ter com os seus avós maternos à Villa L’Hermitage, em Villefranche-sur-Mer, uma pequena cidade na Riviera francesa, perto de Nice. E assim Charlotte Salomon sai56 da Alemanha. Em janeiro de 1939 78 mil judeus saíram igualmente da Alemanha57. Albert e Paula nunca mais voltam a ver Charlotte.58

A Villa L’Hermitage era a casa de uma amiga dos seus avós59, Ottilie Moore. Ottilie Moore60 foi uma americana de origem alemã que se tornou próxima dos avós maternos de Charlotte, Ludwig e Marianne Grunwald, primeiro em Espanha e depois em Roma, durante o ano em que o casal lá morou, e que se estabeleceu na região de Nice em 1928. Foi após esse ano em Roma que o casal decidiu aceitar a proposta de Moore e mudar-se para França, na primavera de 1934.61Longe do seu país e da sua língua, mas também afastada do percurso académico, Charlotte vê-se de repente a viver num lugar completamente diferente daquele onde cresceu. Villefranche-sur-Mer, onde o clima é mediterrânico e se vê o mar, é o sítio onde Charlotte vive durante aproximadamente cinco anos e onde irá desenvolver a obra Leben? Oder Theater?, entre outros desenhos e pinturas que terá feito sobretudo por encomenda para Ottilie Moore 62. LOT é a sua principal obra artística e, aparte um autorretrato63, a única que tem sido objeto de estudo conhecido. De acordo com Émil Straus, amigo de Charlotte e da sua família, Charlotte passava os dias no jardim da Villa a passear e a pintar, descansando longos períodos de tempo debaixo de uma laranjeira, olhando o céu.

56 A escolha do verbo “sair” em vez do anteriormente utilizado “fugir” deve-se à ambiguidade da situação, uma vez que Salomon não foi proibida de sair da Alemanha, mas para tal fingiu que ia apenas passar umas férias com os avós, levando na mala objetos que corroboravam essa história.

57 Felstiner, To Paint Her Life, p. 100.

58 Segundo um depoimento de Albert Salomon, este recebeu cartas de Charlotte durante o primeiro ano de separação, período após o qual a correspondência cessou, devido à guerra. Georg Troller, “Interview Paula and Albert Salomon for Pariser Journal”. Filmado em 1963, vídeo do Joods Cultureel Kwartier no Youtube, 06:15. Publicado em março de 2015, https://www.youtube.com/watch?v=NlytljkojGo, acedido em 6 de junho de 2019.

59 Felstiner, To Paint Her Life, p. 99. 60 Ibidem, p. 100.

61 Émil Straus, “Charlotte Salomon, par Émil Straus”. Em Charlotte Salomon Vie? Ou Théâtre?, Ed. Frédéric Martin (Paris: Le Tripode, 2015), p. 811.

62 Felstiner, To Paint Her Life, p. 127, e Émil Straus, “Charlotte Salomon, par Émil Straus”, p. 811. 63 Apenas dois de aproximadamente doze autorretratos sobreviveram até hoje. Um encontra-se no Yad Vashem, em Jerusalém, e o outro no Joods Historisch Museum, em Amesterdão. Incluímos o mais conhecido dos dois em anexo. Quanto a todos os outros sabe-se que Salomon os fez, mas estarão perdidos. Felstiner, To Paint Her Life, p. 127. Ver figura 3.

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Entretanto, entre setembro de 1939 e junho de 1940, a situação dos judeus exilados em França complica-se. Com o avançar da Segunda Guerra Mundial o futuro daqueles é assombrado por um clima de insegurança e medo. No início de 1940 o casal Grunwald e Charlotte mudam-se para Nice, onde se instalam num pequeno apartamento. Numa atmosfera de ameaça e receio, e já depois de uma tentativa, Marianne Grunwald suicida-se em março de 194064, atirando-se da janela – escolhendo a mesma forma de suicídio da sua filha Franzë quase 15 anos antes, e cuja representação se afirma como ponto-chave em LOT. Aqui será da maior relevância voltar a sublinhar que o suicídio foi uma realidade próxima de Charlotte Salomon, e que certamente se terá constituído como trauma. O trauma familiar decorrente do suicídio de um número exponencial de membros da sua família é, argumentar-se-á, visível em LOT, tanto pelo modo como é representado o suicídio, como pela própria forma que a obra tem. Além da mãe de Charlotte, também a sua tia, sua homónima e irmã da mãe, se suicidou, afogando-se no lago Schlachten, em Berlim. A morte desta tia, Charlotte Grunwald, afigura-se um momento importante em LOT, pois como se verá a obra começa com o suicídio de uma jovem Charlotte no mesmo lago. O contexto político e intelectual em que esta morte se insere é debatido por Darcy Buerkle em Nothing Happened: Charlotte Salomon and an Archive of Suicide65, na perspetiva segundo a qual a história da cultura alemã do início do século XX terá omitido uma faceta importante dessa cultura, a saber, uma história das mulheres judias e dos suicídios nesse meio. Outros suicídios da família materna de Charlotte Salomon são referenciados em LOT, e, como veremos, há um conjunto de desenhos em particular que chega mesmo a apresentar o historial suicidário.66 Além das mortes já apontadas, da avó materna, Marianne, da mãe, Franzë, e da tia, Charlotte,

pensa-64 Ibidem, p. 112.

65 Darcy Buerkle, Nothing Happened: Charlotte Salomon and an Archive of Suicide (Ann Arbour: University of Michigan Press, 2013)

66 Ato V do Prelúdio, que se desenrola entre os desenhos M004254 e M004302. Ver figura 4, correspondente ao desenho M004294 de LOT. Importa relembrar que esta numeração dos desenhos que compõem a obra não corresponde à que foi inscrita em LOT pela artista, mas sim à do acervo do Joods Historisch Museum (recentemente, começou a utilizar-se esta numeração nas referências a LOT pelos curadores e pelos estudos e os historiadores de arte que se ocupam desta obra, embora a maior parte dos estudos publicados ainda utilizem as numerações inscritas por Salomon nos desenhos). É também importante voltar a destacar que Leben? Oder Theater? tem um acervo digital próprio, de acesso livre: https://charlotte.jck.nl/

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se que também tenham cometido suicídio a bisavó, o tio avô, a tia avó e o seu marido, um outro tio e ainda uma prima de Charlotte Salomon.

Em junho de 1940, Charlotte e o seu avô são levados pelas autoridades francesas para Gurs67, um campo de concentração nos Pirenéus, onde permanecem aproximadamente três semanas68. São libertados em julho69 devido ao estado de saúde debilitado do avô e voltam ambos para Nice. De acordo com o centro de investigação da Shoah do Yad Vashem, por esta altura cerca de 350 mil judeus viviam em França, muitos dos quais eram “refugiados da Alemanha e de outras áreas já ocupadas pelos nazis”.70

É hoje sabido que nesta altura Charlotte estaria instável psicologicamente e que devido ao seu estado depressivo teria sido aconselhada por um médico a pintar. Já no final de 1941, a americana Ottilie Moore decide deixar França, após anos de apoio a muitas pessoas e famílias judias refugiadas, tanto fornecendo abrigo e comida, como tentando conseguir vistos e documentos que permitissem às pessoas transitar para países onde estariam mais seguras. Ainda nesse ano Charlotte separa-se do avô e instala-separa-se numa pensão – La Belle Aurore – em Saint-Jean-Cap-Ferrat, cidade situada numa península à frente de Villefranche-sur-Mer. Sabe-se que foi num quarto de La Belle Aurore que Salomon se dedicou intensamente à criação de LOT e deduz-se que essa atividade intensa tenha durado sensivelmente um ano, tendo ao que tudo indica começado no verão de 1941.71 Ao ser entrevistada, a proprietária de

67 O campo de Gurs foi inicialmente criado para acolher os refugiados espanhóis em França durante a guerra civil espanhola e convertido em campo de concentração em 1940. Esteve em funcionamento entre 1939 e 1946.

68 Felstiner chama a atenção para o facto de não haver nenhum esboço da artista que mostre a passagem desta pelo campo de Gurs. No entanto, segundo Felstiner, a experiência de Gurs terá contribuído para que Salomon criasse LOT. Felstiner, To Paint Her Life, p. 124.

69 Pode dizer-se que ter conseguido sair de Gurs no momento em que Ludwig e Charlotte saíram terá salvo a vida da artista (Felstiner, To Paint Her Life, p. 123). Porém, a expressão parece desenquadrada do contexto, pois pode questionar-se se a sua vida teria acabado precocemente ou não se não tivesse fugido para França. É complicado analisar esta questão, pois Albert Salomon e Paula Lindberg-Salomon não chegaram a ir para França mas conseguiram sobreviver à guerra, escondendo-se na Holanda. 70 «No verão de 1940, depois de França cair nas mãos da Alemanha, havia 350 mil judeus a viver em França. Mais de metade da população judia não tinha nacionalidade francesa, mas eram judeus que haviam ido para França depois da Primeira Guerra Mundial ou refugiados da Alemanha e de outras áreas já ocupadas pelos nazis.» Shoah Resource Center – Yad Vashem, “France”, 2019, ficheiro PDF, https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%205857.pdf.

71 Felstiner afirma que «CS não registou em que data começou Vida? Ou Teatro?, o que veio antes ou depois, quando a transformou em drama, nem como a finalizou. As cenas sugerem que ela terá começado pelo menos ‘um ano depois’ de julho de 1940, portanto terá trabalhado na obra

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La Belle Aurore confirmou que, durante o tempo que lá esteve hospedada, Salomon pintava a uma velocidade alucinante e passava os dias no seu quarto.72 Ao todo, a artista deverá ter desenhado e escrito um total de aproximadamente mil páginas no espaço de um ano.

Em 1942, pensa-se que já depois de ter completado LOT, Salomon retorna a Villefranche-sur-Mer, e instala-se de novo na Villa L’Hermitage, juntamente com aquele que viria a ser o seu marido, Alexander Nagler. Nagler, também judeu, havia pago pelo seu “desaparecimento” como cidadão austríaco e consequente “reaparecimento” em França73. Em fevereiro de 1943 morre o avô, Ludwig Grunwald, e em junho desse ano o casal Nagler casa-se. Na mesma altura, Salomon dedica LOT a Moore e entrega a obra ao médico Georges Moridis, para que este a guarde em segurança.

Paula e Albert sobreviveram os dois à guerra, escondidos no sul da Holanda.74 Charlotte e Alexander esconderam-se durante algum tempo num anexo de L’Hermitage, em 1943, tentando escapar às buscas, até a situação se tornar insustentável. Devido ao certificado de casamento, sabia-se onde o casal morava e a 23 de setembro de 1943 são ambos detidos e levados para Drancy – um campo de trânsito perto de Paris75. A 10 de outubro de 1943, Charlotte Salomon – grávida – é

continuamente a partir do verão de 1941.» Além disso, no chamado “Pós-escrito” a LOT, Salomon menciona «’um Inverno como poucos terão experienciado’, e depois ‘veio a Primavera’ e ela ainda continuava a trabalhar. Possivelmente, desde o Verão de 1941 até ao Verão de 1942, Charlotte Salomon terá pintado a maior parte das cenas, versões e sobreposições – mil folhas no espaço de um ano.» (Com referência à página M004931-D, do “Pós-escrito”). Felstiner, To Paint Her Life, p. 146.

72 Testemunho de Marta Pécher, proprietária de Belle Aurore. Ibidem.

73 Nagler conseguiu chegar a França com a sua família no início de 1939. Ibidem, p. 168.

74 Inicialmente, o plano de Albert e Paula era juntarem-se à família no sul de França quando fosse possível. Mas as circunstâncias não o permitiram. Num depoimento de Paula Lindberg-Salomon, esta conta que haviam saído de Berlim sem malas, sem dinheiro e com passaportes falsos, e por estas razões precisavam de amigos que os ajudassem a subsistir. Dirigiram-se para Amesterdão, de avião, pois era o lugar onde sabiam ter a quem recorrer, e lá começaram por viver com Kurt Singer – amigo de Paula e antigo diretor criativo do Jüdischer Kulturbund – enquanto tentavam resolver a situação legal e conseguir vistos para irem para os EUA com Charlotte. Mas não conseguiram vistos e os seus planos foram adiados. E, como por toda a parte acontecia, em 1943 foram ambos presos e deportados para o campo de concentração de Westerbork, na Holanda, de onde conseguiram sair com o pretexto de irem buscar medicamentos a Amesterdão.

75 Drancy funcionava como um campo de concentração nazi, apesar de ser gerido pelos franceses até julho de 1943. A 2 de julho de 1943 os alemães passam a gerir o campo, com o oficial SS Alois Brunner na chefia. A partir daí, aumentam as deportações para Auschwitz: «De junho de 1942 a julho de 1944, 64 transportes com 61 mil judeus franceses, polacos e alemães partiram de Drancy – 61 para Auschwitz

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Figura 2 – Charlotte Salomon, Leben? Oder Theater? (arquivo nº 4305). Fonte: Coleção do Joods  Historisch Museum, Amesterdão
Figura 4 – Charlotte Salomon, Leben? Oder Theater? (arquivo nº 4294). Fonte: Coleção do Joods  Historisch Museum, Amesterdão
Figura 7 – Ana Vieira (1940-2016), Ambiente - Sala de Jantar, 1971. Estrutura metálica, rede de nylon,  tinta acrílica, mesa, pratos, copos, garfos, facas, foco de luz incidente sobre a mesa e cassete com som  de uma refeição
Figura 9 – Charlotte Salomon, Leben? Oder Theater? (arquivo nº 4321). Fonte: Coleção do Joods  Historisch Museum, Amesterdão
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