• Nenhum resultado encontrado

A PÓS-MODERNIDADE: DOS SONHOS AOS PESADELOS A UM NOVO SONHAR

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "A PÓS-MODERNIDADE: DOS SONHOS AOS PESADELOS A UM NOVO SONHAR"

Copied!
20
0
0

Texto

(1)

A pós-modernidade: dos sonhos aos pesadelos

a um novo sonhar

Denival Francisco da Silva*

O direito de sonhar O direito de sonhar não consta entre os trinta direitos humanos

que as Nações Unidas proclamaram em fins de 1948. Mas se não fosse por ele, e pelas águas que dá de

beber, os demais direitos morreriam de sede. Deliremos, pois, um pouquinho. O mundo, que está de pernas pro ar, se colocará sobre seus pés.

Eduardo Galeano1

Resumo

A migração da modernidade para a pós-modernidade atrai debates e discussões, ainda que reconhecidas as transformações ocorridas nos últimos 60 anos. A polaridade que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial extinguiu-se com o fim da URSS e da alternativa socia-lista. Desde então, prevalece o neoliberalismo com sua hegemonia neoliberal globalizante. A divisão planetária não se dá mais em razão de suas ideologias, mas entre ricos e pobres. E nesses países pobres (periféricos) o sistema neoliberal mostra com evidência seu cará-ter predador. A pós-modernidade não atendeu às grandes demandas prometidas, que se somam com outras questões do presente. Ainda há esperança de que possamos ter uma sociedade global mais fraterna e justa, voltada às soluções das questões do meio ambiente e dos direitos fundamentais

Palavras-chave: Pós-modernidade. Neoliberalismo. Globalização. Sustentabilidade.

Direi-tos Fundamentais.

1 GALEANO, Eduardo. Direito de sonhar. YouTube. Vídeo narrado pelo próprio autor. 2009. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=1jOCgm_UuJs>. Acesso em: 8 ago. 2014.

* Juiz do Tribunal de Justiça do estado de Goiás. Doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do

Itajaí, SC. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: denivalfsilva@gmail.com http://dx.doi.org/10.5335/rjd.v29i3.5601

(2)

Introdução

No século XX ocorreram grandes eventos históricos que trouxeram transfor-mações relevantes para a civilização. As consequências trágicas de duas gran-des guerras acabaram por fracionar o mundo ao meio, fato que, somado a tantos outros conflitos localizados, fez deste século o mais belicoso e sangrento. Resul-tado direito dessa conflituosidade, sobretudo ao término da Segunda Guerra, foi a criação de dois grandes blocos que se diziam respeitar, conquanto por mera necessidade de sobrevivência, posto que a desconfiança mútua tencionava para a eventualidade de um desfecho que poderia significar a derrocada final da civi-lização. O clima de animosidade perdurou até a ruína da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e o fim do regime socialista, quando instituiu-se a hegemonia do sistema capitalista e o império definitivo do neoliberalismo.

Em outro sentido, esse último grande conflito mundial serviu para abrir as lentes para a necessária proteção dos direitos humanos, propiciando a insti-tuição de organismos e pactos internacionais voltados a essa temática. Porém, ainda assim, na prática, pouco se fez para manter a paz mundial. Apesar dos compromissos das nações com o que se estabeleceu em pactos e tratados in-ternacionais, os interesses comerciais e geopolíticos sempre se sobrepuseram, comandados pela força dos maiores países do planeta, sobretudo do quinteto

que integra permanentemente o Conselho de Segurança da ONU,2 pois com o

poder de veto que esses países dispõem – e diante da rivalidade que se estabe-lece – eles podem, individualmente, minar qualquer passo importante para a valorização dessa pauta universal.

No campo econômico, a padronização do modelo de desenvolvimento capi-talista trouxe à tona temas fundamentais, como os impactos sociais sobre os mais frágeis e a urgência de se fazer uso comedido e responsável dos recursos naturais, assim como conservar e preservar o meio ambiente. Apesar das men-sagens cotidianas sobre o aumento das desigualdades sociais, das respostas dadas pela natureza, com catástrofes claramente decorrentes da intervenção humana, nada serviu para acender o alerta definitivo de perigo para a tomada de medidas efetivas de reversão.

Contrariamente a tais insucessos, na área do conhecimento ocorreu trans-formações e descobertas surpreendentes, podendo-se destacar as conquistas

2 Os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU são: Estados Unidos, Rússia, Inglaterra,

(3)

nas ciências biológicas, em especial médicas, que passaram a dominar muitas técnicas e saberes para acabar com enfermidades, aumentando consideravel-mente a expectativa de vida humana.

Na área tecnológica, se voltássemos cinquenta anos, com os engenhos de agora, deixaríamos nossos avós estupefatos diante de tanta novidade. Como exemplo, na agricultura e agropecuária, as técnicas de cultivo e produção saí-ram de práticas e métodos literalmente medievais para modernos equipamen-tos, conhecimentos e técnicas inovadoras, aproveitando-se o que existe de mais atual na informática, mecânica, biotecnologia e tantos outros saberes correlatos.

Essas mudanças contribuíram decisivamente para (ou delas decorreram) o processo avançado da globalização como um fenômeno irrefutável que integrou em definitivo os países do mundo (desde que haja interesses econômicos e polí-ticos a serem explorados). Conquanto, nem por isso tenham se rompido divisões do planeta, pois agora não é mais um corte no sentido longitudinal, superado com a queda do muro de Berlim, mas um corte latitudinal: países centrais no norte e países periféricos no sul.

Esse conjunto de transformações representou uma nova realidade para a humanidade, que, na leitura de diversos pensadores, marcou historicamente a transposição do modernismo para o pós-modernismo, embora o nominativo dado não seja consensual. Outros preferem não credenciar essas modificações inegáveis a um transcurso de era, insistindo na tese de que vivenciamos ainda a Era Moderna, com suas demandas não cumpridas.

O fato é que sentidas as mudanças, as promessas passadas da modernida-de, os sonhos de agora não atenderam a todos. A cada passo aumenta a insatis-fação das minorias desfavorecidas e das populações esquecidas em seus guetos sem importância para o neoliberalismo. Surgem os sentimentos de resistência

e de enfrentamento pela luta contra-hegemônica3 ao modelo padrão e assumido

pelas instâncias de poder.

Isso tudo demonstra que ainda há um processo de construção e assenta-mento de uma fase de transição para uma nova era que se propõe aberta para primazia aos direitos fundamentais, na qual haja preocupação efetiva com te-mas extensivos difusamente a toda humanidade, como são as questões ambien-tais e de sustentabilidade.

3 SANTOS, Boaventura de Sousa; GARAVITO, César A. Rodriguez (Org.). El derecho y la globalización:

hacia una legalidad cosmopolita. Traducción de Carlos F. Morales de Setién Ravina. Rubi (Barcelona): An-thropos; México: UAM-Cuajimalpa, 2007.

(4)

A transição ao pós-modernismo

O termo pós-modernidade é frequentemente associado às sensíveis trans-formações culturais, sociais, políticas e econômicas ocorridas após a queda do muro de Berlim, nos fins da década de 1980. Porém, este importante aconte-cimento histórico deve ser tomado como marco apenas por precisar uma data, porque o pós-modernismo já era pensado e cultivado há algumas décadas, ges-tado a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, não tendo se expirado tam-bém com a derrubada do vergonhoso muro.

A esse propósito, Jean-François Lyotard, em 1979, publicou a obra O

pós--moderno,4 cuja expressão nominativa foi utilizada para demarcar o grande

repertório de transformações acontecidas no aspecto cultural e que assinala-ram o início das sociedades pós-industriais (e para muitos também serve para nominar a nova era).

A fase pós-industrial iniciada na década de 1950 trouxe grande avanço tec-nológico e de conhecimento científico, acentuando o processo de globalização e estabelecendo em definitivo novos parâmetros para relações humanas em todas suas nuances, rompendo as barreiras territoriais de estados/nações para uma comunidade global. Isso tudo formou o caldo de cultura para um novo paradigma social, com a incredulidade discursiva sobre diversos pontos, não se assimilando mais suas pretensões atemporais e universalizantes.

Esse período caracterizou-se pelas enormes mudanças geopolíticas ocorridas no pós-Segunda Guerra e pela divisão do mundo em dois grandes blocos geopolí-ticos com interesses comuns de poder, porém antagônicos na forma de condução de suas pretensões de modelo econômico e político. A polaridade Leste/Oeste criou um ambiente hostil, mantendo temor e desconfiança mútuos, que a qual-quer instante poderiam instaurar novo conflito de proporções inimagináveis. Esse clima de amenidades, conhecido como período da Guerra Fria, propiciou a disputa pelo poderio sobre as diversas áreas do conhecimento e a afirmação do poder político e militar, sendo igualmente fatores de impulso para novos rumos.

Como aliado ao interesse pela conquista de maior poder, obteve-se um enor-me salto do conhecienor-mento – por certo, muito em decorrência dessa disputa am-biciosa, e daí aos investimentos que foram realizados –, com uma verdadeira explosão do desenvolvimento e da revolução tecnológica, simbolizada pela

cor-4 LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José

(5)

rida espacial e a ida do homem à Lua, ao passo que, pela novidade computacio-nal, a internet e sua gama de utilizações, inovaram-se as formas de divulgação, comunicação e interação de informações.

Pode-se afirmar que essas são as premissas centrais que indicam a imi-nência de uma nova era. Entretanto, para melhor compreender a concepção de pós-modernidade, é preciso primeiro decifrar em que consistiu exatamente o período denominado de modernidade. Habermas assim o define:

A época moderna encontra-se, sobretudo, sob o signo da liberdade subjetiva. Essa realiza-se na sociedade como um espaço, assegurado pelo direito privado, para a persecução dos interesses próprios; no Estado como participação ao fun-damental, em igualdade de direitos, na formação da vontade política; na esfera privada como autonomia e auto-realização éticas e, finalmente, referida a essa esfera privada, na esfera pública como processo de formação que se efetua atra-vés da apropriação da cultura tornada reflexiva.5

Contrário ao pensamento transicional – sem contudo deixar de reconhecer os notáveis e sensíveis acontecimentos do período –, Giddens define a moder-nidade para em seguida justificar sua oposição à tese de superação dessa era:

[...] a “modernidade” pode ser entendida como aproximadamente equivalente ao “mundo industrializado” desde que se reconheça que o industrialismo não é sua única dimensão institucional. [...] Uma segunda dimensão é o capitalismo, sistema de produção de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilização da força de trabalho. [...] A modernidade inaugura uma era de “guerra total” em que a capacidade destrutiva potencial dos armamentos, assinalada acima de tudo pela existência de armas nucleares, tornou-se enorme.6

O autor aponta detidamente aspectos fundamentais e, imediatamente, uma série de características próprias da modernidade (a ascensão da organização, com pleno controle das relações sociais no espaço e no tempo; a descontinuidade de certas instituições; o ritmo acelerado das mudanças com amplitude e profun-didade), destacando que tais características continuam aí, e que apenas ganha-ram uma dinamicidade maior. Diante disso, conclui que não houve a gestação de uma nova era, mas somente um avanço da modernidade, cujos desafios não foram ainda satisfeitos.

5 HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei

Nasci-mento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Tópicos). p. 121.

6 GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

(6)

Habermas salienta que o argumento dos teóricos resistentes à ideia de transposição reside no fato de que eles “não consideram que tenha ocorrido um desacoplamento entre modernidade e racionalidade, a ideia da pós-modernida-de apresenta-se sob uma forma política totalmente distinta, isto é, sob a forma

anarquista”.7

Talvez a grande nostalgia deva-se ao fato de que muitas das demandas da modernidade não ficaram estagnadas no seu tempo. Afinal, a transição de era não significa a solução e o esgotamento definitivo dos projetos estabelecidos, ao contrário, implica justamente a constatação de que sobre o antigo paradigma já não há mais o que fazer, precisando que se estabeleça uma nova plataforma para suas buscas.

Nesse contexto, Boaventura Santos não deixa nenhuma dúvida quanto à mi-gração para um novo período na história da humanidade. Aliás, este talvez seja atualmente o intelectual mais contundente quanto ao tema, sustentando que esse fato deve-se a um só tempo aos excessos e aos fracassos da modernidade. Em que pese sua defesa, diverge completamente quanto à titulação de pós-moderni-dade que foi dada a essa nova fase, afirmando que serve apenas de empréstimo na ausência de uma denominação mais precisa e autêntica, como enfatiza:

O paradigma cultural da modernidade constituiu-se antes de o modo de produ-ção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante. A sua extinção é complexa porque é em parte um pro-cesso de superação e em parte um propro-cesso de obsolescência. É superação na medida em que a modernidade cumpriu algumas das suas promessas e, de resto, cumpriu-as em excesso. É obsolescência na medida em que a modernidade está irremediavelmente incapacitada de cumprir outras das suas promessas. Tanto o excesso no cumprimento de algumas das promessas como o déficit no cumpri-mento de outras são responsáveis pela situação presente, que se apresenta su-perficialmente como de vazio ou de crise, mas que é, a nível mais profundo, uma situação de transição. Como todas as transições são simultaneamente semicegas e semi-invisíveis, não é possível nomear adequadamente a presente situação. Por esta razão lhe tem sido dado o nome inadequado de pós-modernidade. Mas à falta de melhor, é um nome autêntico na sua inadequação.8

Para além da imersão no mundo de tecnológicas e de fragorosa expansão do conhecimento científico, as mudanças ocorreram também com ênfase na ab-sorção de novos modus sociais, políticos e econômicos, cabendo destacar: a) a maior preocupação com a temática dos direitos humanos, em face do rastro de

7 HABERMAS, 2000, p. 9.

8 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São

(7)

destruição e crise humanitária deixado pela guerra, com fortes e insuperáveis violações a esses direitos, e a criação de organismos internacionais voltados para o assunto; b) a busca de novos regimes políticos de cunho democrático, su-perando velhas ditaduras e suas mazelas; c) novas formas de disseminação cul-tural com a interação das artes e formas de expressão plurais; d) a instituição e quase padronização do modelo de consumo ocidental/capitalista; e) a revelação da importância com as questões relativas ao meio ambiente e o despertar para a necessidade de sua preservação e proteção; f) a desmistificação da verdade científica, da certeza religiosa e da razão inconteste, que deram lugar a formas mais sensíveis de se ver as coisas, permitindo-se o açodamento crítico, o direito à dúvida, à contestação e à perquirição de novos horizontes.

Assim, a despeito das contradições em relação à nova era, a posição mais coesa é a de que houve sim a superação da fronteira da modernidade para um novo paradigma, que pode ser denominado de pós-modernidade. É provável, todavia, que não tenham ainda sido acomodados os novos parâmetros, daí a razão de maiores turbulências e aporias.

Conquanto, tomando como certa a transição histórica, pode-se dizer que para

a pós-modernidade migraram velhas demandas,9 somando-se aos problemas

es-pecíficos da atualidade. Por mais que se reconheçam os ganhos ocorridos em

ter-mos de direitos humanos – uma das principais promessas da modernidade10 – e

a valoração do princípio democrático na instituição dos regimes políticos, há uma persistente carência em torno de valores epistemologicamente consagrados, mas não efetivados, por vezes regressos inaceitáveis na esfera dos direitos fundamen-tais, demonstrando o quanto estamos distantes do sonho de uma nova dimensão em que operem sentimentos de maior fraternidade e solidariedade.

As esperanças surgidas com a instituição de agências internacionais, como se desejavam as guardiãs da paz e justiça mundial, evaporaram ao se reve-larem extremamente frágeis e impotentes diante das atrocidades do mundo atual, sem poder concreto de decisão, de mando e, principalmente, de coação. Isso por falta de vontade e determinação política de seus estados-membros.

A hostilidade entre Leste e Oeste, encerrada com o fim da URSS e do mode-lo socialista, deu lugar para a hegemonia do modemode-lo capitalista em um cenário

9 “Mudaram-se as estações, nada mudou. Mas eu sei que alguma coisa aconteceu. Tá tudo assim, tão

diferen-te [...]”. ELLER, Cássia. Por enquanto. Disponível em: <http://letras.mus.br/cassia-eller/12565/>. Acesso em: 25 ago. 2014.

(8)

globalizado. Mas isso não significou o fim da divisão. Embora o mundo esteja totalmente integrado, em virtude disso, novos apartheids foram instituídos, gerando a rejeição do outro e o afastamento do diferente, em nome da etnia ou da religião, e principalmente pelos fatores sociais e econômicos, dos quais os alijados são as verdadeiras vítimas.

O fracionamento planetário que ocorre atualmente é no sentido Norte/Sul, entre países centrais (desenvolvidos), com poder de mando e intervenção po-lítica, localizados no hemisfério norte (com isoladas exceções), em detrimento dos países periféricos (em desenvolvimento ou subdesenvolvidos), geografica-mente situados no hemisfério sul (como únicas exclusões a Austrália e a Nova Zelândia).11

Estranhamente, a globalização abriu fronteiras territoriais para produtos e mercadorias, mas cerraram-nas para a livre circulação de pessoas, migrantes de zonas pobres que não têm saída em razão dos problemas presentes na pós--modernidade.

O projeto de paz mundial, sonho da modernidade e entregue à pós-mo-dernidade, deu-nos no varejo o contrário: repulsa e ódio. A conflituosidade no mundo atual é tanta e diversa que o papa Francisco, recentemente, chamou a atenção dos líderes mundiais para o fato de que “após o segundo fracasso de outra guerra mundial, podemos talvez falar de uma Terceira Guerra guerreada

‘por partes’, com crimes, massacres, destruições”.12

Conjugado aos conflitos bélicos, e com eles as causas humanitárias de deslo-camento e exílio de populações inteiras, existem também os fatores econômicos e sociais, decorrentes do modelo neoliberal, que tem acentuado drasticamente as desigualdades pelo mundo. Eis um produto exportado à exaustão pelos paí-ses centrais, que têm o controle da economia global.

Nesse contexto, as violações aos direitos humanos, que se pensavam su-plantadas pela consciência coletiva que impediria a repetição de atrocidades do passado, ainda são máculas presentes nas sociedades de todos os países, com grande incidência nos países pobres e em desenvolvimento, sendo também desvelados ao mundo nos países centrais diante das últimas crises econômicas. A ausência de regulação do sistema financeiro internacional, assentado na exigência de plena liberdade de mercado, permite a total volatilidade do capital

11 SANTOS, 1995.

12 MUNDO vive Terceira Guerra Mundial ‘em partes’, diz o Papa Francisco. Portal G1, set. 2014. Disponível

(9)

e a usura oficializada, tornando os países mais pobres reféns de dívidas públi-cas impagáveis, o que inibe a possibilidade de crescimento econômico e o desen-volvimento social. Se isso não bastasse, a cada ciclo criam-se crises sangrando ainda mais os recursos públicos (e nesse momento são invocados o socorro e a

intervenção do Estado), com resultados nefastos aos mais pobres.13

Temas até então sem nenhum destaque, como as questões ambientais e de sustentabilidade, ganharam relevâncias e urgências. Todavia, apesar do alerta amarelo ligado, a consciência dos governantes e dos gestores dos grandes pro-jetos econômicos ainda não entendeu o recado, preferindo a irresponsabilidade, comprometendo o futuro das próximas gerações e do próprio planeta.

Essa é a forma de ter e ver o mundo na pós-modernidade, que trouxe – como sempre se dá em momentos de grandes transformações – muitas promessas, verdadeiros sonhos de uma nova ordem global, de justiça e paz social, que, po-rém, até o momento, têm-se revelado verdadeiros pesadelos.

O projeto da pós-modernidade

A década de 1980 é sintomática para a consagração da transição da moder-nidade para a pós-modermoder-nidade. Para alguns, o elo rompido na história recente da humanidade, do ponto de vista econômico e social, por ter provocado uma abrupta ruptura na polaridade capitalismo/socialismo, deixando todos órfãos de ideologias que procurem um verdadeiro sentido político para a humanida-de. Entretanto, o que muitos devem ter esquecido, porque nada haveria de ser aproveitado, é que na percepção de outros que se encontra o ponto de partida para um novo estágio. Isso se vê claramente na análise de Boaventura de Sousa Santos, que consegue extrair importantes resultados sociológicos desse período. Muitos a denominam de a década perdida, mas o sociólogo português enxerga-a como um grande momento de participação popular e tomada de consciência de um novo ciclo político e social, rumo à emancipação. Segundo ele:

Do ponto de vista sociológico, a década de oitenta será uma década para esque-cer? Está na tradição da sociologia preocupar-se com a “questão social”, com as desigualdades sociais, com a ordem/desordem autoritária e a opressão social que parecem ir de par com o desenvolvimento capitalista. À Luz desta tradição, a década de oitenta é sem dúvida uma década para esquecer. [...]

13 GARCIA, Bibiana Medialde (Coord.). Quiénes son los mercados y como nos gobiernan. Barcelona: Icaria,

(10)

O outro pilar da tradição intelectual da sociologia é a preocupação com a par-ticipação social e política dos cidadãos e dos grupos sociais, com o desenvolvi-mento comunitário e a ação coletiva, com os movidesenvolvi-mentos sociais. À luz desta ou-tra ou-tradição, o mínimo que se pode dizer é que a década de oitenta se reabilitou de maneira surpreendente e mesmo brilhante. Foi a década dos movimentos sociais e da democracia, do fim do comunismo autoritário e do apartheid, do fim do conflito Leste-Oeste e de um certo abrandamento (momentâneo) da ameaça nuclear.14

É como se o temor, com a quebra da polarização que mantinha em suspense os conflitos potenciais imagináveis, motivado pela tensão da Guerra Fria, ti-vesse sido pulverizado por completo, afastando todo e qualquer risco e abrindo--se espaços para um período de bonança econômica, de elevação das relações sociais e de uma paz global perene.

Vê-se, porquanto, que o período letárgico ou de derrocada dos anos 1980 não se limitou ao aspecto econômico. Houve uma crise institucional, política e ideo-lógica, o que, em contraposição, propiciou enormes transformações. Enquanto derruía o muro de Berlim e a URSS – e não em virtude disso, mas por coincidên-cia histórica –, os regimes políticos ditatoriais, em especoincidên-cial da América Latina, perdiam a capacidade de se manter. Houve, com isso, um resgate da democracia em diversos países, com a promulgação de novos textos constitucionais,

apontan-do inclusive para um novo constitucionalismo,15 como se deu no Brasil, em 1988.

No entanto, os sonhos de uma nova era, com ênfase no ente humano e nos valores da justiça social, duraram muito pouco, enquanto promessas imedia-tas. A falta de contraponto no campo do pensamento político e econômico ditou um modelo planificado para a economia e uma percepção política/social funda-mentada nos ditames dos países centrais com duro núcleo capitalista, como se fosse vitorioso naquele conflito ideológico, devendo, por isso, ditar os rumos do planeta e da humanidade.

Sob essa visão autoritária e imperialista, o pensamento neoliberal ganhou força brutal, impulsionando em definitivo o processo de globalização. Diante dessa hegemonia, os Estados Unidos da América, com o apoio inconteste da Comunidade Europeia, passaram não só a exportar produtos e serviços, como também o modus político e social para todo o planeta, inclusive, e especialmen-te, para os velhos domínios da extinta URSS.

14 SANTOS, 1995, p. 17-18.

15 WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters (Org.). Constitucionalismo latino-americano.

(11)

A expansão globalizante/neoliberal deu-se em uma gradação geométrica, instigando a população mundial ao consumismo tresloucado, a ponto de o pró-prio ente humano transformar-se em mercadoria, movido pela propaganda que

vende insistentes sonhos de sucesso e estima.16 Porém, esse modelo tornou as

pessoas reféns de estereótipos e padrões econômicos e sociais mumificados, sem espaço para destoar. Aquele que não se adapta, por razões sociais e econômicas, é estigmatizado e não pertence ao modus de consumo desejado, por isso fica subjugado às punitivas do Estado, nesse aspecto, maximizado.

A ideia de liberdade, princípio caro ao regime democrático, vitaminou-se com o neoliberalismo, com plena e irrestrita liberdade para o mercado finan-ceiro e para as ações humanas, condenando a intervenção do Estado, agora exigido minimamente ou até ausente, para que as forças desse mercado passem a resolver os próprios conflitos e interesses.

O modelo econômico unitário, em um primeiro momento, iludiu a todos, pessoas e instituições, sobretudo os chamados países periféricos, em que os governantes e a população acreditaram na promessa de crescimento econômi-co, com a chegada de muitas plataformas industriais em seus territórios e a exploração de seus recursos naturais. Mais ainda, trouxe consigo o culto ao consumismo, com a projeção do status ocidental de liberdade, propriedade e participação política, nos ditames de um novo ideal dito democrático.

Os Estados foram então fragilizados com sua redução, afastando-se do seu dever previdente, sem nunca terem experimentado o welfare state, que permi-tiu certo equilíbrio e justiça social nos países centrais depois da Segunda Guer-ra.Com menor presença do Estado de seu papel assistencial, nos países em que ocorreu a experiência do welfare state, houve enormes fissuras na organização social, fazendo com que a população sentisse o choque e o abandono de modo que esses países assumiriam algumas características que pareciam típicas dos

países periféricos.17

Nos países não centrais, os problemas sociais se agravaram em razão do salto de uma economia liberal para o neoliberalismo, muito mais virulento e motivo de acentuadas ofensas aos direitos fundamentais. A agudização dos pro-blemas sociais aumentou as desigualdades, que, em grande medida, decorreu da exploração da força produtiva pelas empresas estrangeiras e da supressão

16 BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de

Car-los Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

(12)

das fontes econômicas locais, sufocadas pela proposta de desenvolvimento e produção das multinacionais.

Concomitantemente ocorreu a utilização desregrada dos recursos naturais, fazendo surgir grandes problemas socioambientais, que estimularam a eva-são das populações das regiões degradadas em fraco processo migratório para áreas urbanas sem nenhuma condição de acolhimento. Com isso, aumentaram significativamente os dramas sociais devido ao crescimento desorganizado e às graves deficiências de infraestrutura e mobilidade humana, diante da inefi-ciência do poder público na implantação dos serviços essenciais e das políticas de acolhimento e de aprovisionamento das necessidades básicas decorrentes dos direitos fundamentais do ente humano.

Essa embolia social, ocorrida tanto nos países centrais como periféricos, deu-se por motivos distintos, determinando a necessidade de detidos estudos pelas ciências sociais. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, “a arro-gância dos primeiros e a impotência dos segundos põe a sociologia

decidida-mente de candeias às avessas com a década de oitenta”.18 E, por esse motivo,

esse período, ao contrário de representar infrutífero, consiste em um momento histórico para uma riquíssima análise sociológica.

Portanto, pode-se afirmar que as ideologias não foram superadas, mas ape-nas mudaram de endereço, e por isso muitos ainda não as reencontraram. Não se trata mais, é certo, do debate vencido com a queda do muro de Berlim, mes-mo porque a divisão global já não se dá no sentido leste/oeste, mas em norte/

sul.19 É a sujeição dos países abaixo da linha do equador à vontade

delibera-da dos países centrais, incubadora, berço e moradia adulta do neoliberalismo, parasita hematófago que sangra cada vez com maior volúpia a vitalidade dos países periféricos.

As crises econômicas como reflexo do neoliberalismo

e seus impactos nos projetos pós-modernos

Os principais problemas trazidos pela pós-modernidade são, sobretudo, de ordem econômica, decorrentes por certo do modelo predador ditado pelo neoli-beralismo.

18 SANTOS, 1995, p. 17. 19 SANTOS, 1995.

(13)

Apesar de esse modelo incluir diversos temas, todos estão interligados em um círculo vicioso. A necessidade de financiamento do Estado leva-o com maior avidez à captação de recursos no mercado financeiro. Para tanto, a cada inves-tida, o Estado deve melhor compensar os financiadores (privados), aumentando a taxa de juros. Essa política acaba por inibir o crescimento econômico devido à incapacidade do Estado em investir e estimular os investimentos do setor pri-vado. Com isso, reduz a oferta de empregos e a atividade econômica como um todo, diminuindo o recolhimento de tributos. A ausência de recursos gera um déficit orçamentário, o que impede a definição de programas sociais de aten-dimento, porque a primazia é acolher a voracidade do pagamento de juros da dívida. Tal situação conduz o Estado devedor a voltar ao mercado financeiro, ofertando juros mais promissores, fazendo crescer ainda mais a dívida pública. Esses fatores causam inflação e retornam à ciranda já descrita.

Eis o imbróglio em que o neoliberalismo meteu os países periféricos. A pos-sibilidade de autodeterminação escoou como a autonomia perdida do devedor diante do agiota. A soberania foi roubada. O modelo de democracia passou a enaltecer a liberdade econômica como seu principal mote, sem considerar os padrões ou condições de liberto.

O pensar sob a perspectiva da economia ganhou notoriedade, em razão do controle dos recursos financeiros. Os princípios em que se fundam o Estado contemporâneo foram transformados em mercadorias. Tudo depende das pro-posições saídas dos balcões dos grandes agentes financeiros internacionais – “[...] a democracia é admissível desde que o controle dos negócios esteja fora do alcance das decisões populares e das mudanças, isto é, desde que não seja

democracia”20 –, que são depois forjadas nos átrios dos palácios dos países

cen-trais, em especial nos salões nobres da Casa Branca, para dali serem enfiadas a fórceps em territórios estrategicamente importantes para o domínio geopolí-tico, se necessário com intervenção militar, vestindo o falso manto democrático de zelo pelos direitos humanos.

Considere-se que a apoderação dos direitos humanos é uma boa desculpa para supressão da soberania alheia e invasão de seu território. A relativização desses direitos justifica, ou não, as intervenções militares, que têm o papel de fundo de defender outros interesses subjacentes envolvidos, sejam eles comer-ciais ou de estratégia geopolítica.

20 NOAM, Chomsky. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 5.

(14)

Os problemas ambientais, dos quais ninguém é mais inocente, são adiados reiteradamente para que não impeçam o “crescimento econômico”, em

detri-mento, todavia, à ideia de um desenvolvimento sustentável.21

Esse é o cenário da pós-modernidade, no qual as forças políticas perderam espaço para o capital financeiro e suas decisões. Mais vale nos dias atuais a

nova lex mercatoria,22 com toda volatilidade propiciada pelos financistas e

es-peculadores, do que uma reunião de cúpula dos organismos internacionais, sem poder algum de impor suas decisões. A Organização das Nações Unidas (ONU) é o exemplo humilhante da ineficácia de sua atuação nos temas mais aflitivos: sem o interesse de um dos membros permanentes do seu Conselho de Seguran-ça, nada se resolve. Nesse passo, os rescaldos e as divergências geopolíticas da Guerra Fria perduram, e os EUA, com seus aliados europeus (França e Ingla-terra), volta e meia se contrapõem à Rússia e à China, juntas ou individual-mente. O fato é que raramente há unanimidade, como se exige naquele órgão.

Não sem motivo, as crises econômicas tornaram-se cíclicas,23 afetando toda

a economia global, por mais pontual que inicialmente pudessem parecer. Isso, contudo, não é casual. O anúncio do caos oferece o justo motivo de rapidamente propiciar decisões socorristas, mantendo-se tudo como dantes, iniciando assim um novo ciclo, que culmina com outra crise.

Nesse ritmo, o sistema financeiro posta-se sem nenhum constrangimento e receio. Não esconde os riscos existentes por ausência de amarras, principal-mente, em virtude de sua mordaz sanha expansionista, produzindo resultados ficcionais, verdadeiras bolas em ebulição e que fatalmente terão que explodir, surgindo novas crises. Nesse momento, o Estado é chamado a intervir. Não para coibir ou restringir os devaneios do mercado financeiro, mas para socorrê--lo, sempre com o argumento de que a crise não debelada pode contaminar toda a economia global, com imensuráveis consequências.

21 “[...] a compreensão da sustentabilidade, enquanto princípio indutor do novo paradigma do direito deve

resultar do aporte cognitivo fornecido pela sociologia, economia e também pela filosofia. Resta a Ciência Jurídica, a importante função de apropriar esta pauta axiológica comum humanitária, captar as realidades sociais, os seus desvios e riscos e promover estratégias objetivando mitigá-los e controlá-los para a realiza-ção plena do bem comum.” CRUZ, Paulo Márcio; BODNARD, Zenildo. Globalizarealiza-ção, transnacionalidade e

sustentabilidade. Itajaí: Univali, 2012. E-book. Disponível em: <http://siaiapp28.univali.br/LstFree.aspx>.

Acesso em: 15 maio 2015. p. 54.

22 TEUBNER, Gunther. A Bukowina global e o direito transnacional. Impulso, Piracicaba, v. 14, n. 33, p. 9-31,

2003. Tradução de Peter Naumann. Revisão técnica de Dorothee Susanne Rüdiger. Disponível em: <http:// www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp33art01.pdf.>. Acesso em: 15 maio 2015.

(15)

A quantidade e a rapidez da injeção de recursos públicos no sistema fi-nanceiro chegam a ser escandalosas, sem que haja contrapartidas e exigências severas de uma política de maior controle. Sequer a possibilidade de regular o setor é posta em troca, por ser uma máxima irrefutável a tal liberdade de

mer-cado que, todavia, permite e provoca essa desfaçatez financeira especulativa.24

Entretanto, nesse instante, os reflexos da crise já espargiram mundo afora, afetando com maiores consequências os países periféricos e suas populações menos assistidas, exatamente aqueles que em nada contribuíram para o de-senvolvimento da crise econômica, sendo mesmo vítimas perenes desse modelo devastador.

A pós-modernidade matou a esperança?

A modernidade notabilizou-se como o período das grandes promessas para um mundo melhor. Destacadamente, a concepção dos direitos humanos tal qual os concebemos na atualidade foi uma das conquistas mais importantes para a humanidade. Assim também as estruturas de Estado e de regime democrático correspondem decisivamente ganhos notáveis.

No entanto, decididamente, as instâncias locais de poder perderam as condi-ções para dar vazão às demandas e aos desafios da pós-modernidade. O conceito de soberania foi mutilado, não dispondo os Estados de autonomia para definir suas próprias políticas. Reflexo disso é a redução das estruturas estatais, com mínima ou nenhuma intervenção na atividade econômica que se vê livre e predatória.

Até mesmo os serviços básicos da população, que pudessem assegurar os seus direitos fundamentais, foram atingidos, inclusive, com a mercantilização. A ideia assistencial e de socorro aos menos favorecidos foi derrogada com o des-monte do Estado previdente.

Tais fatos devem-se não só porque os Estados estão fortemente atrelados a determinados compromissos internacionais, que são pautados pelo neolibe-ralismo que impõe um modelo econômico de terror, como também em virtude do pensamento político voltado a essa preocupação com crescimento econômico irresponsável – como se o céu não fosse o limite –, o que contraditoriamente provoca retrocessos e apatias, por conta da incapacidade de financiamento e investimentos.

(16)

Noutra seara, os organismos internacionais não têm correspondido às ex-pectativas de solução dos grandes temas, sendo também consumidos pelos in-teresses globalizantes neoliberais.

Enquanto esse cenário de inseguranças e incertezas prevalece, os proble-mas decorrentes do modelo predador se acentuam. Os draproble-mas humanos são revelados cotidianamente em diversas partes do planeta com graves violações aos direitos fundamentais, enquanto se vê o imobilismo da comunidade inter-nacional, como se esses fatos fossem o destino dos miseráveis.

Os problemas ambientais e sociais passíveis de serem resolvidos nos gran-des centros são simplesmente transferidos para a periferia, onde se permite a exploração da mão de obra e a degradação do meio ambiente, como no caso da migração das plantas industriais das grandes corporações multinacionais e que ainda se abeberam dos incentivos públicos dessas localidades para montar suas logísticas. Exauridos os benefícios, tais quais caixeiros viajantes, eles se-guem em busca de outros territórios e populações a serem explorados (se é que já não avançaram com seus tentáculos em cada canto do planeta).

Acrescido a esse fato há o alerta dos graves problemas ambientais em de-corrência da devastação dos recursos naturais, da geração de poluição e da degradação do meio ambiente. Essa situação não tem recebido a ressonância devida, adiando questões importantíssimas para a contínua vitalidade do pla-neta e dignidade humana. Dentre os efeitos imediatos do modelo explorador dos bens e recursos naturais estão os deslocamentos humanos e o adensamento dos espaços urbanos, que não têm a mínima condição de recepcioná-los.

O desejo de paz mundial é sonho que não dura ao mínimo cochilo. Em pleno século XXI, vivemos em um mundo com vários conflitos armados, entre povos de países distintos, com cenas brutais e indefensáveis na atual fase da história humana. As intolerâncias e os extremismos étnicos, religiosos e políticos são verdadeiros barris de pólvora prontos para serem acesos, em uma sociedade ainda altamente beligerante.

Não era essa, de fato, a esperança que se almejava para a pós-modernida-de. Mas, então, qual o caminho que nos resta?

A resposta a essa indagação deve ser formulada de modo inverso, deve-se refletir sobre qual o caminho a não ser seguido (ou o não caminho). O trajeto não é o da desesperança ou dos sonhos despedaçados, porque implicaria o imo-bilismo e a aceitação do status vigente, tudo o que apetece ao modelo neoliberal (enquanto o seu poder autofágico não o destruir). A perseguição implacável da

(17)

utopia, que não é apenas quimera de poetas,25 serve também de fomento para o concreto e o presente na vida política e social.

A propósito, são os discursos utópicos os principais elementos fundantes de novos discursos ideológicos, sempre na perspectiva de oferta de um futuro promissor ou diferente em qualidade com o que até então está estabelecido. Há, nesses ideários, propostas de formulação de organizações sociais sedimentadas em novas bases. É pela visão utópica que projetos de transformação são postos à prova, estimulando ações reformadoras e mesmo revolucionárias, que, por vezes, sinalizam novo paradigma na história da humanidade.

Mesmo nas ciências jurídicas e políticas, os desejos de justiça e de plena harmonia social são utópicos, mas nem por isso são objetivos que não se pos-sam ou se devam buscar constantemente, o mesmo se dá em relação aos direi-tos fundamentais, ainda tratados de certa forma utopicamente, embora não se possa perder o entusiasmo e a expectativa de suas praticidades, pois sob o aspecto epistemológico estão mais do que resolvidos, como salienta Bobbio: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”.26

A dissidência e as reflexões sobre fracassos também são necessárias para um pensar construtivo. A trajetória a ser trilhada deve envolver críticas, lutas e contestações, pois, de outro modo, nada se transforma. Somente a partir de reflexões e comprometimentos com um novo repertório de demandas e neces-sidades da sociedade atual estaremos definitivamente inseridos na pós-moder-nidade e em suas problemáticas, conquanto com mais esperança de soluções.

Considerações finais

Talvez o grande engodo da pós-modernidade seja o de que poderia trazer imediatamente soluções positivas para toda pauta deficitária da agenda global. Giddens, que prefere utilizar apenas o termo modernidade – aliás, chega a

ne-25 DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora! Não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas!

QUINTANA, Mário. Espelho mágico. Porto Alegre: Globo, 1951. p. 19.

26 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus,

(18)

gar a existência de uma pós-modernidade27 – registra que não se deve esquecer que “ela produz diferença, exclusão e marginalização. E continua dizendo que afastando a possibilidade da emancipação, as instituições modernas ao mesmo

tempo criam mecanismos de supressão, e não de realização, do eu”.28

Se pensarmos em alguma coisa posterior à modernidade, veremos que essa

coisa atualmente é fundada em um modelo político hegemônico e em um

sis-tema econômico globalizado e predador. Nesse cenário, a constatação é de que fomos todos iludidos um dia com a esperança de que dessa estrutura pudesse sair algo de promissor para uma ordem global fraterna e justa.

O fato é que houve enormes transformações que representam a inserção na pós-modernidade, mais viva do que nunca. Porém, as expectativas de outro-ra, principalmente depois dos pesadelos do século passado, com duas grandes guerras, não propiciaram até o momento o acolhimento dos sonhos de uma sociedade global mais harmônica e fraterna.

Os instrumentos jurídicos e políticos – ainda não pós-modernos, mas arrai-gados em paradigmas por vezes ultrapassados – até aqui concebidos não são capacitados para atender às necessidades e aos desafios da pós-modernidade, em razão de que os problemas transcendem aos espaços locais e se universali-zam. Como advertem Paulo Márcio Cruz e Zenildo Bodnard, o grande desafio da pós-modernidade “neste século XXI será a construção de uma Sociedade Democrática transnacional, respeitadora das diferentes concepções humanas, baseada na paz, na preservação da vida, na justiça social, no acesso de todos ao

bem-estar”.29

A própria transnacionalidade que se compreende na seara jurídica e polí-tica é novidade no mundo atual, cabendo ainda interpretações e encaixes de modo a aproveitar ao máximo a pluralidade e o respeito às divergências sociais pelo mundo afora.

O direito de sonhar, como enfatiza Eduardo Galeano na epígrafe deste tra-balho, também é uma utopia. Mas é esse direito aparentemente delirante que nos dá a perspectiva de um futuro pós-moderno.

27 “Hoje é lugar-comum a afirmação de que a modernidade fragmenta e dissocia. Houve quem chegasse a

supor que tal fragmentação marca a emergência de uma nova fase de desenvolvimento social além da mo-dernidade – uma era pós-moderna. Mas as características unificadoras das instituições modernas são tão centrais para a modernidade – especialmente na fase da alta modernidade – quanto as desagregadoras. O ‘esvaziamento’ do tempo e do espaço pôs em movimento processos que acabaram por estabelecer um ‘mun-do’ único onde antes não existia nenhum”. GIDDENS, 2002, p. 32.

28 GIDDENS, 2002, p. 13. 29 CRUZ; BODNARD, 2012, p. 29.

(19)

O futuro, com as utopias que nos faz aguardá-lo, é de uma sociedade global com menor desigualdade social e equilíbrio econômico, de maior desenvolvi-mento e de sustentabilidade, de efetiva justiça social e valoração dos direitos básicos. Não se pode alcançar esses objetivos sem que haja o desapego aos sen-timentos egocêntricos e de desrespeito às diferenças culturais, que tragicamen-te aniquilam as relações humanas. Deve-se, de igual sortragicamen-te, tragicamen-ter o conhecimento científico e os saberes em prol de toda a humanidade, e não como mais um ins-trumento de segregação, com a desqualificação e menosprezo aos mais fragili-zados. O conhecimento é conquista a ser coletivizada, devendo estar disponível para um ideal de bem viver. No mesmo sentido, deve-se fazer uma inversão política que se volte para os temas cruciais, como a questão do meio ambiente e dos direitos fundamentais.

Postmodernity: from dreams to nightmares to a new dream

Abstract

The discussion that hangs around the overcoming of modernity to a new postmodern age, has attracted many debates and discussions, although there is consensus on the changes that occurred in the last 60 years. The fact is that the bipolarity that existed since the end of World War II ended with the demise of the USSR and the socialist socio-economic model said she funded by, the prevailing capitalist model supported by the West and captained the US. As a direct result of this hegemony there was an unrestrained expansion of political and economic neoliberalism, also linked to the expansionary process of globalization. These phenomena worsened social problems, establishing new planetary division, now horizontally to jettison the peripheral countries in the southern hemisphere, where the symptoms of this predator system are revealed in our times with much evidence. Postmodernism has yet to meet the great demands that amounted to the very issues of his time. The hope that once settled definitively postmodernist assumptions, have a more fraternal global society and fair, with concerns and responsibilities, particularly with the issues of the environment and fundamental rights, is still an unfulfilled promise, though dream that should not be forgotten.

Keywords: Post-modernity. Neoliberalism. Globalization. Sustainability. Development.

(20)

Referências das fontes citadas

BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CRUZ, Paulo Márcio; BODNARD, Zenildo. Globalização, transnacionalidade e

sustentabi-lidade. Itajaí: Univali, 2012. E-book.: Disponível em: <http://siaiapp28.univali.br/LstFree.

aspxI>. Acesso em: 25 maio 2015.

ELLER, Cássia. Por enquanto. Disponível em: <http://letras.mus.br/cassia-eller/12565/>. Acesso em: 25 ago. 2014.

GALEANO, Eduardo. Direito de sonhar. YouTube. Vídeo narrado pelo próprio autor. 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1jOCgm_UuJs>. Acesso em: 8 ago. 2014.

GARCIA, Bibiana Medialdea (Coord.). Quiénes son los mercados y como nos gobiernan. Bar-celona: Icaria, 2011.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janei-ro: Jorge Zahar, 2002.

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção Tópicos).

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. Título original: La condition postmoderne.

NOAM, Chomsky. O lucro ou as pessoas: neoliberalismo e ordem global. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

MUNDO vive Terceira Guerra Mundial ‘em partes’, diz o Papa Francisco. Portal G1, set. 2014. Disponível em: <http://glo.bo/1sZfxPJ>. Acesso em: 14 set. 2014.

QUINTANA, Mário. Espelho mágico. Porto Alegre: Globo, 1951.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa; GARAVITO, César A. Rodriguez (Org.). El derecho y la

globalización: hacia una legalidad cosmopolita. Traducción de Carlos F. Morales de Setién

Ravina. Rubi (Barcelona): Anthropos; México: UAM-Cuajimalpa, 2007.

TEUBNER, Gunther. A Bukowina global e o direito transnacional. Impulso, Piracicaba, v. 14, n. 33, p. 9-31, 2003. Tradução de Peter Naumann. Revisão técnica de Dorothee Susan-ne Rüdiger. Disponível em: <http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp33art01. pdf.>. Acesso em: 15 maio 2015.

WOLKMER, Antonio Carlos; MELO, Milena Petters (Org.). Constitucionalismo

Referências

Documentos relacionados

Após a colheita, normalmente é necessário aguar- dar alguns dias, cerca de 10 a 15 dias dependendo da cultivar e das condições meteorológicas, para que a pele dos tubérculos continue

Excluindo as operações de Santos, os demais terminais da Ultracargo apresentaram EBITDA de R$ 15 milhões, redução de 30% e 40% em relação ao 4T14 e ao 3T15,

Os interessados em adquirir quaisquer dos animais inscritos nos páreos de claiming deverão comparecer à sala da Diretoria Geral de Turfe, localizada no 4º andar da Arquibancada

O Conselho Deliberativo da CELOS decidiu pela aplicação dos novos valores das Contribuições Extraordinárias para o déficit 2016 do Plano Misto e deliberou também sobre o reajuste

Principais fontes de financiamento disponíveis: Autofinanciamento: (corresponde aos fundos Principais fontes de financiamento disponíveis: Autofinanciamento: (corresponde aos

Para tanto, no Laboratório de Análise Experimental de Estruturas (LAEES), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG), foram realizados ensaios

Detectadas as baixas condições socioeconômicas e sanitárias do Município de Cuité, bem como a carência de informação por parte da população de como prevenir

- Entrega direto nos câmpus (11 cidades diferentes: Bento Gonçalves, Canoas, Caxias do Sul, Erechim, Farroupilha, Feliz, Ibirubá, Osório, Porto Alegre, Rio