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Primeiras Considerações sobre o Problema da Explicação Teleológica da Ação Humana em Espinosa

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Primeiras Considerações sobre o Problema da Explicação

Teleológica da Ação Humana em Espinosa

MARCOS ANDRÉ GLEIZER

Departamento de Filosofia

Universidade do Estado do Rio de Janeiro/CNPq RIO DE JANEIRO, RJ

gleizer@uerj.br

Resumo: Uma das principais controvérsias que dividem os estudiosos do pensamento de

Espino-sa refere-se à determinação do alcance exato de sua crítica à doutrina das cauEspino-sas finais. Embora todos concordem que esta crítica acarreta a recusa radical de qualquer explicação teleológica da ação di-vina, o debate surge quando se trata de determinar se ela também acarreta a exclusão de toda e qual-quer forma de explicação teleológica do comportamento dos entes finitos e, em particular, do ser huma-no. Neste artigo pretendo apresentar um primeiro exame de algumas das principais evidências a favor dos intérpretes que sustentam que nem as formulações textuais de Espinosa nem seus argumentos ex-cluem a legitimidade de explicações teleológicas da ação humana.

Palavras-chave: Espinosa. Explicação teleológica. Determinismo. Conatus. Atividade causal.

Representação.

Dentre as inúmeras controvérsias que dividem os intérpretes do pensa-mento de Espinosa, uma das principais refere-se à determinação do alcance exato de sua crítica à doutrina das causas finais. Com efeito, dessa determinação depen-de a adepen-dequada compreensão da estrutura motivacional e explicativa da ação hu-mana e, conseqüentemente, do sentido do projeto ético que norteia toda a cons-trução do sistema. Embora os intérpretes sejam unânimes em concordar que a crítica de Espinosa acarreta a recusa inequívoca da explicação teleológica da ação divina, a controvérsia surge quando se trata de determinar se essa crítica também acarreta a exclusão de toda e qualquer forma de explicação teleológica do com-portamento dos entes finitos e, em particular, do comcom-portamento humano. As principais posições interpretativas presentes nesta controvérsia podem ser classi-ficadas em dois grandes grupos:

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(1) No primeiro grupo encontramos os comentadores que defendem uma interpretação antifinalista integral de Espinosa. Este grupo acolhe intérpretes de proveniências filosóficas tão diferentes quanto Martial Gueroult e Jonathan Ben-nett. Ao desenvolver sua análise do apêndice da primeira parte da Ética, Gueroult procura mostrar que a crítica de Espinosa ao finalismo é muito mais radical que a de Descartes. Este teria se contentado em excluir a pertinência metodológica de explicações finalistas na física, deixando intacta, entretanto, a legitimidade de sua aplicação nas esferas da ação divina1, do composto psicofísico, da mente humana

e da vida moral. Espinosa, por sua vez, teria combatido integralmente a legitimi-dade dessas diversas aplicações, reduzindo, assim, o próprio conceito de finalida-de a uma mera ilusão imaginativa.2 Bennett, cuja interpretação antifinalista

inte-gral é a mais minuciosamente desenvolvida na bibliografia atual, defende esta mesma leitura apresentando argumentos baseados em diversas passagens e aspec-tos da doutrina espinosista.3 Em especial, ele procura demonstrar: (i) como

al-guns dos argumentos dirigidos contra a teleologia divina no apêndice da primeira parte da Ética também atingem a explicação teleológica do comportamento dos agentes finitos, tendo, portanto, um alcance universal; (ii) como a tese do parale-lismo psicofísico tem como conseqüência a impotência causal do conteúdo repre-sentativo das idéias e, portanto, a impossibilidade de explicações da conduta hu-mana em termos teleológico-mentais, ou seja, em termos de intenções; (iii) como, apesar de afirmações inconsistentes por parte de Espinosa, o seu grande “insight” filosófico teria consistido precisamente em tentar elaborar uma teoria não-teleológica do apetite e do desejo; (iv) como só esta teoria permite explicar a tese

1 Em virtude da infinitude da natureza divina, Descartes considera que os desígnios de

Deus são insondáveis e que seria arrogância de nossa parte nos julgarmos partícipes deles (cf. Princípios da Filosofia, art. 28). Daí se segue a exclusão metodológica da busca de causas finais na física. Porém, esta exclusão não é acompanhada pela recusa da validade, no plano ontológico, da noção de finalidade divina. Ou seja, embora Deus aja em vista de fins, es-tes são incognoscíveis para nós.

2 Cf. Gueroult (1968, §XV, p. 399-400).

3 A posição de Bennett é apresentada nas seguintes obras: Bennett (1984, cap. 9);

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da antecedência do desejo sobre o juízo de valor, enunciada por Espinosa no es-cólio da EIIIpr.9.

(2) No segundo grupo encontramos comentadores que, combatendo prin-cipalmente as análises propostas por Bennett, procuram mostrar que nem as formulações textuais nem os argumentos de Espinosa excluem a legitimidade de explicações teleológicas do comportamento dos entes finitos. Este grupo de in-térpretes pode ser dividido em dois subgrupos: (2.1) há aqueles, representados de forma exemplar por E. Curley4, que procuram mostrar particularmente que a

crítica de Espinosa à teleologia divina não exclui a legitimidade de explicações teleológicas do comportamento humano; (2.2) há aqueles, representados exem-plarmente por Garrett, que procuram sustentar que aquela crítica tampouco ex-clui a legitimidade de explicações teleológicas do comportamento dos entes fini-tos menos complexos que o homem, à condição de entendermos que estas expli-cações repousam sobre uma interpretação da teoria geral do conatus como um tipo de finalidade interna.5 Garrett chega inclusive a defender que, dentre os três

gran-des filósofos racionalistas do século XVII, Espinosa é o que mais se aproxima da posição aristotélica original (não-medieval) no que tange ao âmbito das explica-ções teleológicas, pois, segundo ele, tanto Espinosa quanto Aristóteles concorda-riam quanto à inexistência de teleologia divina, à existência de processos teleoló-gicos sem pensamento, à existência de processos teleolóteleoló-gicos em organismos sub-humanos, e mesmo quanto à existência de uma função substantiva para ex-plicações teleológicas em filosofia natural.

A classificação proposta acima deixa claro que a controvérsia acerca do al-cance da crítica dirigida à doutrina das causas finais abarca posições interpretati-vas radicalmente antitéticas, posições estas que repercutem sobre a compreensão

4 Cf. Curley (1990). Outros intérpretes pertencentes a este grupo são: Jarrett (1999);

Manning (2002) e Lin, M.

5 Cf. Garrett (1999). Também neste grupo, como no caso dos intérpretes do grupo

(1), encontramos comentadores de proveniências filosóficas muito distintas. Com efeito, a interpretação do conatus como um tipo de finalidade interna foi sugerida por Victor Del-bos em seu curso proferido na Sorbonne em 1912-1913 (ver nota 60).

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da totalidade do sistema. Para poder tomar uma posição global neste importante debate seria preciso examinar as principais passagens e argumentos oferecidos por Espinosa. Evidentemente, uma análise exaustiva da totalidade dessas passa-gens e argumentos ultrapassaria em muito os limites deste trabalho. Por isso, meu intuito aqui será apenas o de apresentar um primeiro exame de algumas das prin-cipais evidências a favor da interpretação do grupo (2.1).

1. Presença de expressões teleológicas nas obras de Espinosa

A primeira evidência a favor da interpretação do grupo (2.1) é o fato de Espinosa utilizar freqüentemente uma linguagem teleológica para descrever o comportamento humano. Os casos mais significativos são aqueles em que Espi-nosa faz uso dessa linguagem para formular seu próprio projeto filosófico. É o que ocorre, por exemplo, no preâmbulo do Tratado da Reforma do Entendimento, onde toda a discussão acerca dos bens mundanos, do verdadeiro bem e do sumo bem é formulada em conformidade com a terminologia e o esquema meios-fins.6

No §14 Espinosa enuncia seu projeto da seguinte maneira: “Este é, portanto, o fim ao qual eu tendo, a saber, adquirir uma natureza assim [natureza humana mais forte] e esforçar-me para que muitos a adquiram comigo”. O gozo dessa natureza humana mais forte, brevemente caracterizada no §13 como consistindo no “co-nhecimento da união da mente com a Natureza inteira”, constitui o sumo bem, sendo o bem verdadeiro, por sua vez, definido como “tudo o que pode ser um meio para chegar a essa natureza”. É importante salientar que Espinosa não vê nenhum inconveniente em usar essa linguagem teleológica para descrever seu esforço (conatus), mesmo após ter relembrado no §12 a tese determinista em con-formidade com a qual “tudo o que é feito acontece segundo uma ordem eterna e conforme leis certas da Natureza”. Ou seja, ele não assinala nenhuma incompati-bilidade entre a tese do determinismo causal e a descrição teleológica do compor-tamento humano.

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O prefácio da Ética IV, por sua vez, retoma e desenvolve alguns elemen-tos contidos no preâmbulo. Toda a análise proposta neste prefácio acerca da gê-nese e da natureza das noções de “perfeição” e “imperfeição”, “bem” e “mal”, toma por fundamento o reconhecimento de que os homens agem em vista de fins ao produzirem intencionalmente certas obras: “Quem decidiu fazer alguma coisa e a levou a cabo dirá que a sua obra está perfeita; e não só esse, mas tam-bém todo aquele tiver conhecido exatamente a intenção do autor de tal obra e o seu fim, ou o que crer conhecê-lo” (GII/206). Partindo dessa base, Espinosa e-xamina criticamente a formação e a utilização de idéias imaginativas como mode-los para a avaliação das obras realizadas pemode-los homens e, sobretudo, sua projeção antropomórfica sobre a ação de Deus ou da Natureza (Deus sive Natura) e seu uso para a avaliação de coisas naturais.7 A crítica da validade objetiva dos modelos

imaginativos e a exclusão da legitimidade da projeção antropomórfica de nosso comportamento teleológico sobre Deus ou a Natureza8 não conduzem Espinosa

a negar o caráter teleológico de nosso comportamento nem tampouco a recusar a validade de todo e qualquer modelo que permita orientar e avaliar a nossa condu-ta. Com efeito, ao final do prefácio ele afirma que “nós desejamos formar uma idéia de homem que nós consideremos como um modelo de natureza humana” (GII/208), modelo este que fornece uma norma para nossa conduta e permite qualificar como um bem “aquilo que sabemos com certeza ser um meio para nos aproximarmos cada vez mais” dele. Ora, o teor da crítica dirigida às idéias imagi-nativas tanto neste prefácio quanto na Ética II impede que interpretemos Espino-sa como propondo aqui a formação e adoção de mais um modelo imaginativo tão subjetivo, relativo e parcial quanto os outros. A utilização da primeira pessoa do plural (“nós desejamos”) e a referência ao que “sabemos com certeza” nas

7 “Com efeito, os homens têm por hábito formar idéias universais tanto das coisas

na-turais como das artificiais, idéias estas que eles têm como modelos das coisas, e crêem que a Natureza (que, a seu ver, não faz nada que não seja em vista de um fim determinado) as considera e as propõe como um modelo a si mesma”. (GII/206)

8 “Com efeito, mostramos, no apêndice da primeira parte, que a Natureza não age em

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gens mencionadas acima constituem indícios claros de que Espinosa está pro-pondo a possibilidade de construirmos um modelo racional que permita superar a dispersão dos modelos imaginativos e legitimar juízos de valor e preceitos racio-nais intersubjetivamente válidos.9 Embora Espinosa não volte a se referir

explici-tamente a este modelo na Ética, é perfeiexplici-tamente possível compreender boa parte da Ética IV como dedicada exatamente à construção geométrica do modelo ra-cional de uma vida filosófica10, onde, em conformidade com o que é afirmado no

preâmbulo do T.R.E., é demonstrado que conhecer é um fim em si mesmo (EIV-pr.26), que tudo aquilo que sabemos com certeza ser favorável ao esforço de co-nhecer é um bem verdadeiro (EIVpr.27), e que o sumo bem consiste no conhe-cimento de Deus (EIVpr.28) e, como completará mais tarde a Ética V, no gozo do amor intelectual de Deus que nasce deste conhecimento.

Por fim, este mesmo projeto, formulado na mesma linguagem teleológica, é apresentado no capítulo IV do T.T.P., onde Espinosa explica a noção de lei divina como uma regra de vida que diz respeito ao bem soberano, isto é, ao ver-dadeiro conhecimento e amor de Deus: “O que a idéia de Deus prescreve é que Deus é nosso bem supremo ou, por outras palavras, que o conhecimento e o amor de Deus são o fim último para o qual devem estar orientadas todas as nos-sas ações”.11

9 Não é possível examinar aqui as diversas dificuldades ontológicas, epistemológicas e

éticas que surgem do reconhecimento de uma função normativa para as idéias da razão. Cabe assinalar, no entanto, que a superação do relativismo individual (próprio ao plano imaginativo) propiciada pela construção de um modelo racional intersubjetivo (fundado em noções comuns a todos os homens) é compatível com a preservação do caráter rela-cional dos juízos de valor. É em relação a este modelo intersubjetivo que os objetos (in-cluindo os afetos e as condutas humanas) serão avaliados. Assim, eles serão considerados como bons ou ruins não em si mesmos, mas apenas na medida em que forem úteis ou pre-judiciais à realização do modelo, e os homens serão ditos mais ou menos perfeitos exclusi-vamente em função do maior ou menor grau de concordância com o modelo proposto.

10 Construção esta que culmina com o “retrato do homem livre” apresentado nas sete

últimas proposições.

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Apesar da importância inegável dessas passagens, é preciso, no entanto, re-conhecer que a adoção de uma linguagem teleológica não constitui por si só uma evidência decisiva a favor da interpretação do grupo (2.1). Afinal, é sempre possível argumentar que Espinosa se apropria de uma linguagem tradicional para expressar um aparato conceitual radicalmente novo, tal como ocorre, segundo a grande maio-ria dos intérpretes, com o seu uso dos termos “substância”, “atributo” e “modo”. 2. Presença de esquemas explicativos teleológicos da conduta humana

Um segundo tipo de evidência a favor da interpretação do grupo (2.1) consiste na presença, freqüente na Ética, de esquemas explicativos da conduta humana formulados em proposições acerca do conatus dotadas da seguinte forma geral: ‘se um agente A pensa (crê ou sabe) que fazer x lhe será útil ou prejudicial, então A se esforçará, tanto quanto puder, por fazer ou por evitar x, respectiva-mente’. Exemplos importantes de proposições nas quais encontramos esta forma geral encontram-se, entre outros, nas seguintes passagens:

Tudo o que imaginamos que conduz à alegria, esforçar-nos-emos por fazer de mo-do a que se produza; mas tumo-do o que imaginamos que lhe é contrário ou conduz à tristeza, esforçar-nos-emos por afastá-lo ou destruí-lo. (EIIIpr.28)

Cada um deseja ou tem aversão necessariamente, pelas leis da sua natureza, àquilo que julga ser bom ou mau. (EIVpr.19)

Proposições deste tipo permitem explicar o que um agente necessariamen-te se esforça por fazer com base no que ele crê ou sabe ser útil ou prejudicial, tendo, assim, o que Bennett classifica como uma forma teleológico-cognitiva.12 A

Ética explora as diferenças afetivas e éticas existentes entre os desejos passionais que nascem das crenças imaginativas (idéias inadequadas) acerca do bem e do mal e os desejos ativos que nascem do saber racional (idéias adequadas) acerca do que

12 Cf. Bennett (1984, §68.3, p. 295). Bennett distingue proposições dotadas desta

for-ma não apenas de proposições teleológicas não-cognitivas (expressas pela forfor-ma ‘se x é útil para A, A faz x’), mas também de proposições não-teleológicas (expressas pela forma ‘se A faz x, x é útil para A’). Cf. Bennett (1984, p. 244).

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é verdadeiramente útil ou prejudicial, procurando explicitar exatamente em que condições e em que medida os segundos podem se desenvolver e prevalecer so-bre os primeiros na determinação de nossa conduta. Bennett reconhece a impor-tância central exercida por proposições deste tipo na realização do projeto geral da Ética, mas acredita poder mostrar que sua presença é fruto de uma inconsis-tência por parte de Espinosa acerca da natureza do conatus, do desejo e da teleolo-gia mental. No entanto, como indicarei mais adiante, parece-me perfeitamente possível evitar a atribuição de uma inconsistência de conseqüências tão graves para o sistema mostrando que nada do que Espinosa sustenta na Ética é incompa-tível com a aceitação de proposições deste tipo.

3. Análise do apêndice da Ética I

3.1. Exame das passagens “canônicas” do apêndice13

Um dos textos mais importantes para a discussão que nos ocupa é o apên-dice da Ética I. Afinal, é aí que a crença no finalismo é explicitamente apontada como o prejuízo fundamental que dificulta, e muitas vezes impede, a aceitação das teses demonstradas ao longo da obra. O objetivo de Espinosa neste apêndice é justamente o de explicar a causa da adesão quase universal a este prejuízo, exibir sua falsidade e mostrar como dele nascem outros prejuízos. Mas, em que consiste exatamente o prejuízo denunciado? Eis o que Espinosa afirma inicialmente:

Todos os prejuízos que me cumpre indicar dependem de um só, a saber: os ho-mens supõem comumente que todas as coisas da Natureza agem, como eles mesmos, em consideração de um fim, e chegam mesmo a ter por certo que o próprio Deus dirige todas as coisas para determinado fim, pois dizem que Deus fez todas as coi-sas em consideração do homem, e que criou o homem para que este lhe prestasse culto. (GII/78, grifo nosso)

Nesta passagem, como no início do prefácio da EIV citado acima, Espino-sa afirma claramente que os homens agem em vista de fins e que o prejuízo

13 Por passagens “canônicas” entendo aquelas mais freqüentemente citadas como base

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damental consiste na projeção antropomórfica deste comportamento teleológico sobre a totalidade das coisas da Natureza e sobre a ação divina. Ou seja, o prejuí-zo fundamental consiste na crença na providência divina ou cósmica. Não é afir-mado aqui que a própria ação teleológica humana seja uma crença ilusória. Para obter esta leitura mais radical seria preciso ler a passagem acima não como afir-mando: (a) que os homens agem em vista de fins e supõem comumente (e falsa-mente) que este comportamento se aplica também à Natureza e a Deus; mas sim como afirmando: (b) que os homens supõem comumente (e falsamente) que eles agem em vista de fins e que a Natureza e Deus agem da mesma maneira que eles. Esta segunda leitura enraizaria a falsa cosmologia e a falsa teologia, oriundas da projeção antropomórfica, em uma falsa antropologia que conteria como um de seus ingredientes essenciais a crença ilusória na teleologia humana. Esta leitura radical encontra respaldo na seqüência do texto?

Quando Espinosa inicia sua explicação da gênese do prejuízo finalista, to-mando como fundamento desta explicação a ignorância que os homens têm das causas das coisas e a consciência do apetite de buscar o que lhes é útil, ele aponta efetivamente para seu enraizamento numa falsa concepção que os homens têm de si, mas não utiliza nenhuma formulação que permita afirmar que o comporta-mento teleológico humano seja ilusório. Com efeito, dos dois fatores explicativos apresentados Espinosa conclui inicialmente que: (1) “os seres humanos têm a opinião de que são livres por estarem cônscios de suas volições”, mas ignorarem as causas que os dispõem a querer; (2) “os homens agem em tudo em vista de um fim, a saber, o útil de que têm apetência” (GII/78). Ora, Espinosa se refere aqui explicitamente a uma opinião acerca da liberdade (opinião esta que servirá de exemplo paradigmático para a falsidade no escólio da EIIpr.35), mas não qualifica igualmente como uma mera opinião o agir teleológico humano. Se ele aponta para uma falsa concepção de si na origem do prejuízo finalista, ele não diz que esta falsa concepção consiste em crer ilusoriamente que os homens agem em vis-ta de fins. A má compreensão de si consiste na associação imaginativa esvis-tabeleci- estabeleci-da entre a crença ilusória no livre arbítrio e a ação teleológica, ou seja, na crença segundo a qual os homens escolhem livremente os fins em vista dos quais eles

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agem. No entanto, é perfeitamente possível criticar essa associação sem recusar o caráter teleológico da conduta humana, pois negar que nós escolhemos livremen-te os fins que buscamos não equivale a negar que nós agimos em vista de fins. Assim, é perfeitamente possível interpretar as passagens acima como detectando na origem da crença ilusória na teleologia cósmica ou divina uma concepção ima-ginativa e inadequada da teleologia humana caracterizada precisamente por sua articulação com a crença ilusória no livre arbítrio. Se esta leitura for correta, a ex-clusão dessa concepção imaginativa não acarreta por si só a exex-clusão de uma au-têntica explicação teleológica da ação humana no sistema espinosista.

Porém, há uma terceira passagem do apêndice cuja formulação parece sus-tentar a interpretação do grupo (1). No início da refutação do prejuízo finalista, Espinosa afirma de forma aparentemente universal que: “todas as causa finais nada mais são que ficções do espírito humano” (GII/80). Tomada isoladamente esta frase se aplicaria também à conduta humana. No entanto, Curley mostrou de forma bastante convincente que a leitura mais natural desta frase deve conectá-la com o que é afirmado imediatamente antes e com os argumentos apresentados logo em seguida. Ora, a passagem completa diz o seguinte: “para mostrar agora que a Natureza não tem qualquer fim que lhe seja prefixado e que todas as causas finais nada mais são que ficções do espírito humano, não é necessário grande esforço”. A leitura mais natural da passagem tomada em seu contexto consiste em entender que Espinosa qualifica como ficções todas as causas finais atribuídas apenas à Natureza enquanto identificada a Deus. Trata-se mais uma vez de recu-sar apenas a tese de uma providência divina ou cósmica. A correção desta leitura é reforçada, por um lado, pelo fato de que todas as passagens da Ética I a que Espinosa se refere em seguida como tendo estabelecido a falsidade desta tese dizem respeito exclusivamente à ação de Deus e, por outro lado, pelas passagens do prefácio da EIV em que Espinosa se refere ao apêndice como tendo mostrado apenas que “aquele ente eterno e infinito a que chamamos Deus ou Natureza não age em vista de um fim.”14

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Estas passagens “canônicas”, portanto, não sustentam a interpretação ra-dical do grupo (1), sendo as formulações utilizadas por Espinosa mais apropria-das à interpretação do grupo (2.1). No entanto, para sustentar esta leitura contra a detalhada interpretação de Bennett é preciso examinar se os argumentos dirigidos diretamente apenas contra a teleologia divina atingem ou não indiretamente a explicação teleológica do comportamento humano.

3.2. Exame do alcance dos argumentos do apêndice contra a teleologia divina 3.2.1. Teleologia e livre arbítrio

Na passagem completa referente ao início da refutação do prejuízo finalis-ta, Espinosa afirma o seguinte:

Para mostrar agora que a Natureza não tem qualquer fim que lhe seja prefixado e que todas as causas finais nada mais são que ficções do espírito humano, não é ne-cessário grande esforço. Com efeito, estou convencido de que isto está suficiente-mente estabelecido, tanto pelos fundamentos e causas de onde este prejuízo tira sua origem, como mostrei, como pela EIpr.16 e pelos corolários da EIpr.32, e, além disso, pelas demonstrações em que fiz ver que tudo o que existe provém de certa necessi-dade eterna e da suma perfeição da Natureza. (GII/80, grifo nosso)

Com base nesta passagem, Bennett sustenta que Espinosa defende equivo-cadamente uma tese geral acerca da incompatibilidade entre determinismo e teleo-logia. O argumento que Bennet atribui a Espinosa é assim resumido por Curley15:

(i) Todas as coisas ocorrem por “uma certa necessidade eterna da Natureza”. (ii) Coisas explicáveis por causas finais não podem ocorrer necessariamente. (iii) Com efeito, explicar em termos de causas finais é explicar em termos de

volições incausadas do agente.

(iv) Ora, volições incausadas são contingentes. (v) Logo, nada é explicável por causas finais.

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Curley concorda com Bennett que a ligação entre teleologia e liberdade de escolha é um erro, mas julga que Espinosa de forma alguma comete este erro. Segundo ele, Espinosa recusa as premissas (ii) e (iii), ou seja, embora Espinosa aceite que explicações teleológicas se façam em termos de apetites, volições ou desejos, ele recusa que estas diversas expressões mentais do conatus sejam incau-sadas.16 De fato, esta recusa se manifesta com toda clareza na formulação

teleo-lógico-cognitiva presente na EIVpr.19, segundo a qual, como vimos no item (2) acima, cada indivíduo é necessariamente determinado pelas leis da sua natureza a desejar o que julga ser bom ou a ter aversão pelo que julga ser mau. Assim, Curley defende que o argumento de Espinosa deve ser entendido como dirigido exclusi-vamente contra aqueles que, em conformidade com o prejuízo denunciado, atri-buem antropomorficamente entendimento e vontade a Deus, e pensam a criação do mundo seja como uma escolha arbitrária seja como o resultado de uma delibe-ração na qual Deus escolhe livremente a melhor opção apresentada pelo seu inte-lecto.17 Como ele nota, todas as proposições que Espinosa cita como tendo

refu-tado este prejuízo têm a ver especificamente com a explicação da natureza da ação divina e pretendem demonstrar que o entendimento e a vontade não são

16 Idem, p. 43. No escólio da EIIIpr.9 Espinosa afirma que o conatus recebe diferentes

nomes quando é referido apenas à alma ou `a alma e ao corpo simultaneamente. No pri-meiro caso, chama-se vontade. No segundo, chama-se apetite. Este, por sua vez, quando é acompanhado de consciência, chama-se desejo. Assim, apetite, desejo e vontade são manifestações do conatus que envolvem um aspecto mental.

17 Na EIpr.33esc.2, Espinosa, partindo da tese sustentada por seus adversários de que

o intelecto e a vontade absoluta seriam constitutivos da essência de Deus, formula um argumento que demonstra, contra eles, que a consideração atenta da perfeição da natureza divina acarreta necessariamente a imutabilidade de seus decretos, de modo que sua vonta-de jamais povonta-deria ter sido outra. Assim, ele vonta-demonstra que aqueles que supõem uma liga-ção necessária entre teleologia e livre arbítrio e que sustentam que Deus escolhe livremen-te os fins em vista dos quais age são obrigados a concluir que Deus não age em vista de fins. Por sua vez, os argumentos fundados nas proposições e corolários citados por Espi-nosa na passagem acima (bem como na EIpr.31) demonstram diretamente não apenas que a vontade não é livre, mas, sobretudo, que nem ela nem o intelecto constituem a es-sência de Deus, de forma que o modus operandi da ação divina não pode ser caracterizado por estas faculdades.

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atributos constitutivos da essência de Deus, isto é, da Natureza Naturante, mas sim modos que dela se seguem e que pertencem à Natureza Naturada.18 Ora, estas

proposições permitem estabelecer que se a necessidade da natureza divina exclui a ação teleológica isto não ocorre em virtude de uma incompatibilidade geral en-tre determinismo e teleologia, mas antes em virtude das características específicas da natureza divina. Com efeito, tal natureza é uma potência causal perfeita des-provida de intelecto e vontade. Não tendo intelecto, ela exclui que sua ação possa ser determinada pela representação presente de seus possíveis efeitos futuros. Não tendo vontade, ela exclui que sua ação possa depender de qualquer adesão volitiva (seja ela contingente ou necessária) dada a conteúdos representativos. Sendo perfeita, como veremos a seguir, ela não pode ter desejos. Assim, na medi-da em que explicações teleológicas se fazem em termos de representações, voli-ções e desejos, elas não podem se aplicar à ação divina.19

Assim compreendido, o argumento de Espinosa no apêndice não visa, e tampouco atinge indiretamente, a legitimidade de explicações teleológicas da ação humana, pois, diferentemente da natureza divina, a natureza da mente humana é constituída por idéias e volições (ou, mais precisamente, por idéias-volições20)

18 Cf. EIpr.16, EIpr.32cor.1 e cor.2.

19 Ao defenderem uma leitura do conatus como um tipo de finalidade interna, os

intér-pretes do grupo (2.2) recusam a tese de que toda explicação teleológica se faça em termos de representações, volições e desejos. Afinal, a tese do conatus se aplica a todas as coisas singulares (cf. EIIIpr.6dem.), sejam elas materiais ou mentais, simples ou complexas. Em-bora a minha intenção aqui não seja a de examinar os argumentos deste grupo, cabe sa-lientar que também para eles é a especificidade da natureza divina que exclui a explicação teleológica de sua ação. Com efeito, Deus é uma substância absolutamente infinita e não uma coisa singular (cf. EIIdef.7). Sendo assim, o exercício de sua potência infinita não encontra obstáculos e não pode ser propriamente caracterizado como um esforço para perseverar no ser. A diferença entre o exercício desimpedido da potência infinita e o es-forço dos seres finitos é um elemento importante para tentar sustentar de forma consis-tente que a inexistência de fins da Natureza Naturante não acarreta a inexistência de fins na

Natureza Naturada.

20 Cf. EIIpr.49, onde Espinosa demonstra que “não existe nenhuma volição, isto é,

nenhuma afirmação e nenhuma negação, além da que envolve a idéia, enquanto é uma idéia”.

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que desempenham uma função causal na determinação adequada ou inadequada do desejo e, conseqüentemente, da conduta humana.21

3.2.2. Teleologia e carência

Um segundo argumento apresentado na refutação do finalismo insiste na demonstração da existência de uma incompatibilidade entre a perfeição de Deus e a atribuição de finalidade a ele, pois “se Deus age em vista de um fim, é porque necessariamente deseja algo de que carece”. Segundo esta passagem, Espinosa considera que: (i) um agente só age em vista de fins se ele deseja estes fins; (ii) um agente só deseja aquilo de que carece. O comportamento teleológico supõe, por-tanto, alguma carência ou privação por parte de um ser dotado de desejos. Após refutar a aplicabilidade à criação divina da distinção escolástica entre “fim de indi-gência” (pelo qual o agente age para procurar o seu bem e suprir alguma carência) e “fim de assimilação” (pelo qual o agente age para fazer o bem às coisas que estão fora dele), Espinosa conclui que não se pode atribuir causas finais à ação de Deus sem atribuir-lhe carências e, portanto, sem destruir a perfeição de sua natureza.

Também aqui a discussão de Espinosa se situa claramente no nível da na-tureza divina e seu argumento não visa e não se opõe à atribuição de comporta-mentos teleológicos aos seres humanos. Afinal, os homens são seres dotados de desejos e, sendo finitos, parece óbvio que estão sujeitos a múltiplas carências. Assim, como lembra Martin Lin, se os homens desejam atingir uma natureza humana mais perfeita, como afirma Espinosa no preâmbulo do T.R.E. e no pre-fácio da EIV, é porque estão desprovidos da perfeição que almejam.22

No entanto, apesar de sua aparente obviedade cabe ressaltar que a tese de que um agente só deseja aquilo de que carece não é totalmente isenta de dificul-dades no sistema espinosista. Por um lado, não é clara sua compatibilidade com a

21 Cf. EIIIpr.1, EIIIpr.3 e EIIIpr.9. Cabe ressaltar que esta conclusão está de acordo

com a posição adotada por Espinosa no T.R.E. Como indiquei no item (1), Espinosa não assinala nesta obra nenhuma incompatibilidade entre determinismo causal e teleologia humana.

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concepção do desejo como pura positividade que resulta da teoria do conatus co-mo expressão certa e determinada da potência divina. Por outro lado, não é clara sua compatibilidade com a concepção necessitarista radical defendida por Espi-nosa. Com efeito, segundo esta concepção, cada coisa finita, a cada momento, é tudo o que pode ser em virtude de sua essência e do resultado de sua interação causal com as outras coisas finitas. Como diz Deleuze, cada modo finito existente é sempre tão perfeito quanto pode em função das afecções que pertencem à sua essência e que preenchem de forma necessária, integral e contínua seu poder de ser afetado.23 Como, então, considerar legitimamente que lhe falta algo?

Segundo Espinosa, a atribuição de qualquer falta, carência ou privação a uma coisa é fruto de uma comparação dela com outras coisas do mesmo gênero ou com algum de seus estados anteriores. Há privação quando uma propriedade que acreditamos pertencer à natureza de um objeto é negada deste objeto. Mas esta negação é baseada numa crença oriunda de uma comparação imaginativa. Assim compreendida, a privação é um mero ser de razão, um modo de pensar imaginativo que ignora a ordem das causas e não possui nenhum alcance onto-lógico.24

23 Cf. Deleuze (1968, cap. XIV, p. 205). Neste capítulo Deleuze distingue e busca

con-ciliar duas inspirações fundamentais presentes no pensamento de Espinosa. Segundo a inspiração física, cada modo é sempre tão perfeito quanto pode em virtude das afecções que preenchem seu poder de ser afetado. Segundo a inspiração ética, “enquanto este po-der é preenchido por afecções passivas, ele é reduzido ao seu mínimo; nós permanecemos então imperfeitos e impotentes, somos de alguma forma separados de nossa essência ou de nosso grau de potência, separados do que podemos” (p. 205). A dificuldade que salien-tamos consiste em entender o sentido exato desta separação e sua conciliação com a ins-piração física.

24 Essa compreensão da noção de privação, amplamente desenvolvida na carta XXI a

Blyenbergh, reaparece no prefácio da Ética IV (cf. GII/207/18 a GII/208/7). Cabe ob-servar que não há nada no pensamento de Espinosa que nos impeça de considerar que a atribuição de uma privação também possa ser fruto de uma comparação com algum esta-do de coisas imaginaesta-do como realizável no futuro. Assim, podemos imaginar que estamos privados atualmente de uma natureza humana mais potente que acreditamos poder alcan-çar no futuro, e esta crença faz com que nos esforcemos por alcanalcan-çar esta natureza en-quanto não vemos nenhum obstáculo intransponível.

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Sendo assim, parece necessário interpretar o argumento de Espinosa como ad hominem. Neste caso, ele não endossaria a premissa segundo a qual um agente só deseja aquilo de que carece, pois, segundo ele, não há ontologicamente ne-nhuma falta ou carência. No entanto, é possível reformular esta premissa de mo-do a construir um argumento compatível com o pensamento de Espinosa. Basta incluir em sua formulação uma expressão que indique a origem imaginativa da atribuição de carência. Esta premissa poderia então ser assim formulada: um a-gente só deseja aquilo que ele crê carecer. Esta formulação não encontra obstácu-los em sua aplicação aos seres humanos e acarreta as mesmas conseqüências ne-fastas que a primeira formulação em sua aplicação a Deus, pois atribuir a Deus crenças oriundas de comparações imaginativas é incompatível com a perfeição de sua natureza.

3.2.3. Teleologia e inversão da ordem da Natureza

A terceira passagem crucial na refutação da doutrina finalista é a seguinte:

Esta concepção finalista subverte completamente a Natureza, porquanto o que na realidade é causa considera-o como efeito, e inversamente; e, além disso, o que por natureza é anterior fá-lo posterior, e, por fim, o que é mais elevado e mais perfeito torna-o mais imperfeito. (GII/80)

Nesta passagem Espinosa afirma que a explicação teleológica inverte a or-dem da Natureza, pois ela (a) troca a causa pelo efeito, (b) o anterior pelo poste-rior, e (c) o mais perfeito pelo menos perfeito. Embora Espinosa considere (a) e (b) como evidentes por si e apresente apenas um argumento para (c)25, é a

consi-deração de (a) e (b) que me parece fundamental para determinar se esta crítica da explicação teleológica também atinge o comportamento humano.

25 Cabe ressaltar que também aqui o argumento refere-se explicitamente apenas à

cau-salidade divina. Com efeito, ele é baseado nas proposições 21, 22 e 23 da Ética I, isto é, em proposições que se referem exclusivamente ao que resulta da natureza absoluta dos atributos constitutivos da essência de Deus.

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Com efeito, em certas explicações teleológicas uma estrutura, processo, es-tado de coisas ou comportamento qualquer (digamos, x) é explicado em função do que ele realiza, isto é, em função de alguma conseqüência sua. Neste caso, diz-se que x ocorre porque x causa y. Logo, toma-diz-se um efeito subdiz-seqüente para ex-plicar uma causa antecedente, invertendo, como diz Espinosa, a ordem das rela-ções causais e temporais. Ora, segundo Bennett a crítica de Espinosa a este mo-delo explicativo visa tanto os casos do tipo: “cotovelos existem para mover o braço”, como do tipo: “Pedro levantou o braço para desviar a pedra”. No entan-to, os exemplos dados por Espinosa no apêndice se restringem a casos de fenô-menos biológicos e inanimados, tais como “olhos para ver, dentes para mastigar, vegetais e animais para alimentação, sol para iluminar, mar para o sustento dos peixes” (GII/78). Portanto, cabe indagar se Espinosa considera que o argumento da inversão também atinge qualquer tipo de explicação teleológica do comporta-mento humano.

No meu entender, os intérpretes do grupo (2.1) estão certos ao defende-rem uma resposta negativa a esta questão. Além das evidências apresentadas mais acima, sua base textual mais importante é a seguinte passagem do prefácio da EIV:

A causa a que chamam final não é senão o próprio apetite humano, enquanto é considerado como princípio ou causa primeira de uma coisa qualquer. Por exemplo, quando dizemos que a habitação foi a causa final desta ou daquela casa não enten-demos outra coisa senão isso: que o homem, por ter imaginado as vantagens da vi-da doméstica, teve o apetite de edificar uma casa. É por isso que a habitação, en-quanto é considerada como causa final, não é senão este apetite singular, que, na re-alidade, é uma causa eficiente, a qual é considerada como primeira por os homens ignorarem comumente a causa de seus apetites. (GII/207)

Nesta passagem, como ressalta Curley, Espinosa explica claramente a ação humana “apelando para a antecipação mental que uma pessoa faz das conseqüên-cias que ela espera da ação, o desejo destas conseqüênconseqüên-cias e o desejo resultante de realizar a ação”.26 Ou seja, a atribuição de crenças e desejos ao agente permite

escapar do argumento da inversão da ordem da Natureza, pois não se trata de

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explicar a ação a partir de seus efeitos futuros, mas a partir de estados mentais que, precedendo a ação, se referem intencionalmente aos seus possíveis efeitos futuro. O fim, portanto, é um objeto intencional que modifica e determina inter-namente o desejo. Retomando uma expressão proposta pelo próprio Bennett, para Espinosa “o pensamento da causa final funciona como causa eficiente”.27

Poder-se-ia objetar, no entanto, que na passagem acima Espinosa está identificando a causa final com o apetite apenas enquanto este é tomado errada-mente por uma causa primeira. Neste caso, a própria caracterização do apetite como fim envolveria necessariamente a ignorância de suas causas eficientes e se-ria, portanto, fruto de um conhecimento inadequado do apetite. Esta leitura é proposta, entre outros, por J. Carriero:

Observe, para começar, que meu pensamento acerca de mim mesmo como tendo uma causa final envolve um erro: eu penso em uma tendência motora, uma causa eficiente, como uma causa primeira, quando ela não é uma causa primeira, mas simplesmente um elemento em uma cadeia infinita de tendências motoras. Consi-dero que Espinosa está indicando que se nós não ignorássemos as causas de nossos apetites (ou mesmo, talvez, se nós não fossemos ignorantes do fato de que nossos apetites são o tipo de coisas que eles são, com os tipos de causas que eles têm), nós abandonaríamos a fala acerca de causas finais e nos ateríamos a apetites ou causas eficientes. Assim, embora seja verdade que Espinosa diga que causas finais são ape-tites, penso que devemos estar atentos para a insinuação de um erro teórico aqui.28

27 Cf. Bennett (1984, §51.4, p. 217).

28 Cf. Carriero (2005, p. 141). Esta leitura também é defendida por Marilena Chaui em

(1993. Cf. p. 85 e p. 114, nota 13: “no livro IV, a ignorância quanto às causas da ação leva à posição do apetite como causa final”) e (1990. Cf. p. 60: “visto que não existem causas finais – pois a finalidade é resultado imaginário do desconhecimento da verdadeira causa-lidade –, somos causas eficientes”). Carriero considera que a tentativa de interpretar a identificação entre causa final e apetite estabelecida nesta passagem como uma forma de evitar uma inversão da ordem causal é uma motivação vazia (cf. p. 141, nota 35), pois, segundo ele, a doutrina tomista da causa final, com a qual ele contrasta sistematicamente o pensamento de Espinosa em seu artigo, não incide em tal inversão. Ora, é um fato que Espinosa considera (com ou sem razão) que a doutrina finalista inverte a ordem da Natu-reza. Logo, uma explicação de como seu sistema procura evitar isto não me parece de forma alguma vazia, se o que pretendemos é entender seu pensamento.

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Esta leitura, no meu entender, não encontra respaldo na maneira como Espinosa relaciona apetite e fim tanto nas passagens do apêndice que examina-mos no item 3.1 quanto nas passagens iniciais do prefácio. Como viexamina-mos, nestas passagens ele jamais qualifica a consciência que os homens têm de agir em vista de fins como ilusória. A ilusão consiste em crer que nós escolhemos livremente os fins em vista dos quais agimos e na projeção antropomórfica desta falsa con-cepção de nossa ação teleológica sobre Deus ou a Natureza. Ora, não há nenhu-ma razão para pensar que o reconhecimento de que o apetite (e as representações que ele envolve) não é o ponto de partida absoluto da ação, mas apenas um elo determinado de uma cadeia causal, aboliria seu caráter teleológico. É por isso que Espinosa se sente autorizado a apresentar logo no início da Ética IV uma defini-ção explícita de fim (EIVdef.7) que o identifica ao apetite sem fazer nenhuma referência à ignorância das causas: “por fim em vista do qual fazemos alguma coisa, entendo o apetite”. Se Espinosa associasse de forma indissolúvel a mera caracterização do apetite como fim à crença no livre arbítrio (apetite tomado co-mo causa primeira), ele não poderia oferecer esta definição.29 A interpretação

mais natural desta associação é tomá-la como uma referência à origem da crença ilusória na teleologia cósmica ou divina detectada no apêndice, referência à qual Espinosa faz explicitamente menção no contexto desta passagem.

Uma interpretação semelhante a que adotamos também é proposta por Matheron. Ele reconhece que a passagem do prefácio autoriza uma concepção teleológica da ação humana que, quando devidamente dissociada das crenças imaginativas que a ela se acrescentam, escapa do argumento da inversão e é

29 Em seu artigo de 1993, Marilena Chauí propõe uma interpretação da distribuição

geral das definições na Ética IV em conformidade com a qual a definição de apetite como fim (def.7), assim como as definições de contingente (def.3) e de possível (def.4), deveria ser tomada como expressando a perspectiva cognitiva da imaginação (cf. p. 100). Embora engenhosa, sua interpretação me parece problemática. Com efeito, enquanto as definições 3 e 4 fazem clara referência ao nosso desconhecimento das causas – o que permite situá-las inequivocamente no plano imaginativo –, esta referência não aparece na definição 7. Além disso, a presença do termo “intelligo” na formulação desta definição parece indicar que ela é fruto de uma intelecção.

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feitamente compatível com o determinismo universal. 30 Em sua magistral

re-construção da análise espinosista da gênese da doutrina finalista, ele mostra que esta doutrina consiste na articulação das seguintes crenças imaginativas31: a crença

na livre escolha dos fins; a crença na providência divina e, conseqüentemente, na consideração da natureza inteira como um imenso sistema de meios a serviço de nossos fins; a crença nos fins como objetos exteriores desejáveis em si, exercendo “de fora” uma atração sobre o agente (crença no “apelo dos valores”, considera-dos como propriedades objetivas das próprias coisas). Ora, todas estas crenças podem ser eliminadas pela razão sem que a explicação da ação humana como causada pelo desejo internamente determinado pela representação presente de seus possíveis efeitos futuros seja eliminada.32 Assim compreendida, a explicação

teleológica é integrada ao dinamismo causal do desejo, definido como causa efi-ciente pela teoria do conatus. Desta forma, causa efiefi-ciente e conduta finalizada,

30 Cf. (1969, p. 105). Matheron não usa aqui a expressão “concepção teleológica da

ação humana”, mas ela é claramente autorizada pelo seu reconhecimento de que Espinosa afirma que nós agimos em vista fins e não que nos parece que agimos em vista de fins (cf. p. 105, nota 67), assim como pela seguinte passagem: “A habitação me aparece como a causa final de minha casa, enquanto que, de fato, sou eu-enquanto-desejoso-de-habitar que sou sua causa eficiente. A diferença, para dizer a verdade, pode parecer insignificante, pois é certo que sou eu que construo minha casa em vista de habitá-la: a causa eficiente, aqui, é um agente consciente que imagina de antemão o resultado de seu empreendimen-to; se eu batizo de ‘fim’ a imagem antecipada deste resultado, o mal não parece muito grande, e se não o faço, não terei mais avançado, nesta medida, no conhecimento do de-terminismo que me rege. E, no entanto, não se trata apenas de uma questão de palavras. Não dá no mesmo integrar o fim à causa eficiente ou separá-lo dela para fazê-lo agir sobre ela do exterior: no primeiro caso, nós reconhecemos o princípio de nosso pertencimento à necessidade universal, mesmo se esta permanece para nós lacunar; no segundo, nós fragmentamos a cadeia e, preenchendo ilusoriamente a lacuna, nós invertemos as coisas”.

31 Idem, p. 102-112.

32 Que a eliminação destas crenças imaginativas pela razão não abole o caráter

teleoló-gico de nossa ação é algo que Matheron reconhece, pois ele afirma, ainda que com certa qualificação, que o desejo racional de realizar tudo o que decorre de nosso conceito abs-trato de natureza humana “toma paradoxalmente um aspecto teleológico” (1969, p. 225).

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terminismo e teleologia, são perfeitamente compatíveis e legitimamente aplicáveis na explicação do comportamento humano.

4. Exame da compatibilidade entre teleologia mental e certos aspectos do sistema

A constatação de que Espinosa aceita explicações teleológico-mentais da conduta humana obriga-nos a examinar se esta aceitação é compatível com certas teses centrais de seu sistema, ou ainda com teses que supostamente seriam conse-qüências necessárias de algumas de suas teses centrais. Assim, examinaremos bre-vemente três tópicos que nos parecem de particular importância.

4.1. Compatibilidade com a ausência de interação causal alma-corpo

Cabe examinar inicialmente se esta aceitação é compatível com a negação de qualquer interação causal entre a alma e o corpo, demonstrada na EIIIpr.2, e com sua substituição pela tese do paralelismo psicofísico, segundo a qual a alma e o corpo são duas expressões diferentes de uma mesma realidade.33 Com efeito,

poder-se-ia crer que quando se oferece uma explicação teleológico-mental do tipo “Pedro levantou a mão com o intuito de desviar a pedra”, esta explicação supõe que a idéia que representa o desviar da pedra como algo útil, suscitando o desejo deste efeito, em conjunção com a idéia que representa o levantar da mão como um meio para produzi-lo, causariam o evento corporal que consiste em levantar a mão. Neste caso, estados mentais determinariam causalmente o movimento cor-poral, violando a EIIIpr.2 e o paralelismo. No entanto, a suposição desta intera-ção não é de forma alguma necessária. Todos os intérpretes reconhecem que é perfeitamente possível redescrever a explicação da ação numa linguagem adequada

33 Segundo a EIIIpr.2 “nem o corpo pode determinar a alma a pensar, nem a alma

de-terminar o corpo ao movimento ou ao repouso ou a qualquer outra coisa (se acaso existe outra coisa)”. O escólio desta proposição retoma a tese do paralelismo, segundo a qual “a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (EIIpr.7), e sustenta que “a ordem das ações e das paixões do nosso corpo é, de sua natureza, simul-tânea à ordem das ações e das paixões da alma”.

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ao paralelismo. Basta para tal descrever o evento corporal como o objeto de uma idéia, de modo que a idéia que representa o desviar da pedra como fim almejado, em conjunção com a idéia que representa o levantar da mão como meio, causam a idéia cujo objeto é o evento corporal que consiste em levantar a mão, enquanto os correlatos físicos (estados cerebrais e movimentos corporais) destas idéias mantêm entre si no atributo extensão as relações causais físicas correspondentes.

4.2. O problema da impotência causal do conteúdo representativo das idéias

Apesar de concordar que a redescrição acima proposta se conforma perfei-tamente às exigências do paralelismo, Bennett propõe um argumento que pretende colocar em questão a eficácia causal dos conteúdos representativos das idéias e, portanto, sua função na estrutura causal comum ao pensamento e à extensão. Este argumento, discutido intensamente na literatura norte-americana atual34, pretende

mostrar que Espinosa está comprometido com certas teses metafísicas, físicas e epistemológicas cuja conjunção acarreta a impotência causal do conteúdo represen-tativo das idéias e, conseqüentemente, a impossibilidade de explicações teleológico-mentais da conduta humana. O argumento geral pode ser assim reconstruído:

(1) Todos os poderes causais dos corpos dependem de propriedades in-trínsecas, tais como figura, grandeza e movimento [baseado no esbo-ço de física mecanicista que acompanha a EIIpr.13esc., e na corres-pondência com Oldenburg].

(2) Há um paralelismo entre os corpos, suas propriedades e suas relações, e as idéias, suas propriedades e suas relações [baseado na EIIpr.7 e seu escólio].

(3) Todos os poderes causais das idéias dependem de propriedades in-trínsecas [inferido de 1 e 2].

34 Além dos artigos citados na nota 4 cabe acrescentar o importante artigo de della

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(4) Todos os conteúdos representativos das idéias são propriedades rela-cionais, pois dependem das circunstâncias causais nas quais as idéias foram adquiridas pelos indivíduos que as possuem [baseado na EII-pr.16, com seus dois corolários, e na EIIpr.40esc.1].

(5) Todas as propriedades relacionais derivadas de interações causais são propriedades extrínsecas.

(6) Os poderes causais das idéias não dependem de seus conteúdos re-presentativos [inferido de 3, 4 e 5].

(7) Toda explicação teleológico-mental depende da eficácia causal dos conteúdos representativos das idéias.

(8) Logo, não há teleologia mental [inferido de 6 e 7]. 35

No meu entender, este argumento repousa sobre interpretações equivo-cadas de teses fundamentais de Espinosa expressas nas premissas (4) e (5). Veja-mos em que consistem estes equívocos.

Cabe observar inicialmente que a premissa (4) não se aplica às idéias adequadas constitutivas do segundo e do terceiro gêneros de conhecimento. Com efeito, as idéias adequadas da razão (noções comuns) representam propriedades comuns igualmente presentes na parte e no todo, e, portanto, igualmente instan-ciadas nos corpos exteriores que afetam o corpo humano, no próprio corpo hu-mano e em suas afecções. Por isso, estas idéias possuem conteúdos que não

35 Esta reconstrução é baseada nas análises do argumento de Bennett propostas por

Garrett e Lin. Em sua reconstrução do argumento, Garrett (1999, p. 319) formula a pre-missa (7) de maneira universal: “toda teleologia exige que algumas propriedades causal-mente eficazes sejam mapeadas em propriedades representativas”. Desta formulação, segue-se uma conclusão universal, a saber: “não há teleologia”. A refutação da formulação universal da premissa (7) depende de uma interpretação da doutrina do conatus como um tipo de finalidade natural interna que pode operar independentemente de representações. A exposição e análise desta interpretação ultrapassam o exame das evidências a favor da interpretação do grupo (2.1), ao qual limitamos este trabalho.

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riam em função das suas circunstâncias causais de obtenção.36 A mesma

invaria-bilidade vale para as idéias adequadas constitutivas da ciência intuitiva, pois “o que dá o conhecimento da essência eterna e infinita de Deus”, a saber, o atributo, é uma forma de ser igualmente presente em todos os seus efeitos (modos), de maneira que seu conceito está igualmente envolvido nas idéias de todos os seus modos.37 Assim, a formulação da premissa (4) deveria restringir-se

exclusivamen-te ao âmbito das idéias inadequadas da imaginação.

Bennett acaba por aceitar esta objeção e reconhece a limitação de seu ar-gumento ao âmbito das idéias imaginativas.38 Porém, ele considera que mesmo

esta restrição é suficiente para excluir qualquer função causal dos conteúdos re-presentativos das idéias envolvidas nas explicações teleológicas da conduta hu-mana, pois as idéias imaginativas desempenham uma função ineliminável na mo-tivação desta conduta, mesmo quando ela é orientada pela razão. Com efeito, é da natureza das idéias adequadas da razão representar seus objetos não como con-tingentes, possíveis e temporais, mas como necessários e eternos.39 Sendo assim,

elas só podem orientar condutas teleológicas se a obtenção dos estados de coisas que elas representam como desejáveis for representada como um evento futuro possível. Ora, isso supõe sua articulação com idéias imaginativas, pois só estas representam seus objetos sob as perspectivas da contingência, da possibilidade e da temporalidade.

Esta articulação entre razão e imaginação manifesta-se, por exemplo, no esforço para atingir uma natureza humana mais firme mencionado no §13 do T.R.E. e retomado posteriormente no prefácio da Ética IV: “Como, porém, a fraqueza humana não alcança aquela ordem [eterna] pelo pensamento, e, entre-tanto, o homem concebe [concipiat] alguma natureza humana muito mais firme que a sua, vendo, ao mesmo tempo, que nada obsta a que adquira tal natureza, é incitado a procurar os meios que o conduzam a tal perfeição” (GII/8). Nesta

36 Cf. EIIpr.38dem. 37 Cf. EIIpr.46dem.

38 Cf. Bennett (1984, p. 219) e, mais explicitamente, Bennett (2001, p. 212-213). 39 Cf. EIIpr.44 com os corolários I e II.

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passagem, Espinosa considera a natureza humana mais firme como objeto de uma apreensão conceitual, logo, de um conhecimento intelectual. No entanto, é apenas na medida em que não vemos nada que nos impede de adquiri-la que so-mos incitados a buscá-la. Ou seja, é apenas na medida em que ignoraso-mos o nexo infinito das causas finitas que determina a sucessão dos acontecimentos que po-demos imaginar a obtenção desta natureza superior como um evento futuro pos-sível e que somos necessariamente incitados por esta imaginação a tentar alcançá-la. Afinal, ninguém se esforçaria para alcançar algo que soubesse com certeza ser inalcançável. Ora, mesmo que possamos saber de forma abstrata e universal que tudo o que ocorre é determinado por leis naturais e por um nexo infinito de cau-sas finitas, o caráter finito de nosso intelecto nos impede de conhecermos concre-tamente as infinitas determinações particulares deste nexo e, portanto, torna im-possível que saibamos de antemão que grau de potência intelectual estamos de-terminados a alcançar. Por isso, somos capazes de imaginar como possível a su-peração de nossas atuais fraquezas e a obtenção futura de uma existência mais potente, virtuosa, racional e livre, isto é, mais conforme ao modelo de natureza humana que a razão concebe.40

Assim, dada a importância da imaginação tanto na motivação de nossa conduta ordinária quanto como auxiliar indispensável na representação do ideal de vida racional como um estado de coisas futuro alcançável, é preciso examinar o argumento utilizado por Bennett em sua aplicação das premissas (4) e (5) às idéias imaginativas.

O núcleo do argumento de Bennett se encontra na EIIpr.16 e seus dois corolários, pois é aí que Espinosa estabelece o fundamento de sua explicação da origem do conhecimento imaginativo. 41 Segundo Espinosa, imaginar é

40 Cabe ressaltar que a articulação entre razão e imaginação não acarreta nenhuma

confusão entre suas respectivas funções cognitivas. Cabe à razão apreender as relações necessárias existentes entre potência, virtude, racionalidade, liberdade e felicidade, en-quanto à imaginação cabe representar como possível a realização futura de uma existência em que estas ligações se concretizem em graus cada vez maiores.

41 EIIpr.16: “A idéia de qualquer modo pelo qual o corpo humano é afetado pelos

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natu-tar os corpos exteriores como presentes a partir das idéias de suas imagens for-madas no corpo humano. Estas imagens são afecções do corpo humano, efeitos resultantes de sua interação causal com os corpos exteriores e dependentes tanto da natureza dos corpos que nos afetam quanto da natureza e da situação atual do nosso corpo, por exemplo, da natureza dos nossos órgãos sensoriais, de suas idiossincrasias e de nossa posição espaço-temporal. Assim, nossas idéias imagina-tivas dos objetos exteriores se referem a eles apenas de forma indireta, a partir da maneira como eles nos afetam. Por exemplo, a idéia de Pedro que Paulo tem re-presenta Pedro a partir da maneira como sua imagem se forma no corpo de Paulo em função dos fatores acima mencionados. Espinosa conclui que a percepção que Paulo tem de Pedro indica mais o estado atual do corpo de Paulo do que a natureza do corpo de Pedro. Ou seja, as idéias imaginativas representam direta-mente o estado do corpo humano e apenas indiretadireta-mente as causas exteriores deste estado.

Bennett conclui daí que o conteúdo representativo indireto das idéias ima-ginativas depende de propriedades relacionais que não têm repercussão significa-tiva sobre a natureza intrínseca da idéia. Com efeito, diz ele:

Os poderes causais de qualquer item dependem apenas de sua natureza intrínseca, não de quaisquer de suas propriedades relacionais – e assim, a fortiori, não de fatos acerca de sua origem. Se uma idéia minha foi causada por uma interação com o corpo de Paulo, este fato só pode fazer uma diferença para os poderes causais da idéia se afetar sua natureza intrínseca. Assim, Espinosa precisa encarar esta questão: Quando alguém tem uma idéia indireta de algum item, em que medida a natureza intrínseca da idéia contém informação sobre sua causa? Espinosa deveria – e, penso, iria – responder: “apenas em uma pequena medida”. Sua afirmação de que a idéia que Pedro tem indiretamente do corpo de Paulo indica mais a condição do corpo de Pedro que o de Paulo implica que há perda de informação. 42

reza do corpo exterior”. Cor.1: “a alma humana percebe a natureza de um grande número de corpos ao mesmo tempo que a do seu próprio corpo”. Cor.2: “as idéias que nós temos dos corpos exteriores indicam mais a constituição do nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores”.

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Apesar de afirmar nesta passagem apenas que há “perda de informação” e que a natureza intrínseca da idéia tem “somente em pequena medida” informação sobre sua causa exterior, Bennett na realidade despreza esta “pequena medida” e assimila a perda de informação à ausência completa de informação, dissociando inteiramente a natureza intrínseca da idéia dos fatos acerca de sua causalidade. Esta dissociação aparece com mais força na seguinte passagem:

O que Espinosa diz [na EIIpr.16] claramente implica que o que faz uma idéia mi-nha contar como “do” seu corpo não é como a idéia é intrinsecamente, mas antes como ela é causada. Isto claramente abre a possibilidade para que a sua idéia de x e a minha sejam intrinsecamente muito diferentes, e que o mesmo estado mental intrínseco possa ser em você uma idéia de x e em mim uma idéia de y. 43

Bennet não explicita o que ele entende exatamente por propriedade intrín-seca e por propriedade relacional, mas está claro que o núcleo de seu argumento contra a eficácia causal da representação indireta repousa sobre uma oposição rígida entre ambas.44 Este argumento pode ser assim apresentado45:

(i) idéias imaginativas representam indiretamente as causas externas de seus objetos diretos.

(ii) idéias e seus correlatos extensos refletem mutuamente seus poderes causais (corolário do paralelismo).

43 Bennett (1990, p. 54).

44 Toda a argumentação desenvolvida por Bennett repousa sobre esta oposição rígida

e não suficientemente explicitada entre “intrínseco” e “relacional”. Ele se refere a esta última como uma propriedade que “depende das circunstâncias de obtenção” ou “de fatos acerca de sua origem”. No entanto, ele não me parece distinguir com clareza entre uma propriedade que consiste em uma relação (o que Espinosa chama de uma denomina-ção extrínseca) e uma propriedade que consiste em um estado de uma coisa obtido a par-tir de uma relação com algo exterior (o que Espinosa chama de afecção ou disposição ad-quirida da essência. Cf. EIII definição do desejo, explicação). Embora a primeira proprieda-de seja proprieda-desprovida proprieda-de eficácia causal, a segunda, sendo uma afecção da própria essência da coisa, é um estado que determina e especifica sua atividade causal.

45 Esta apresentação se baseia na análise do argumento proposta por Manning (2002,

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(iii) os poderes causais de um modo extenso são uma função bi-unívoca das características intrínsecas (definidas em termos de movimento e repouso) deste modo extenso (tese mecanicista).

(iv) as características intrínsecas de um modo extenso não refletem (envol-vem) a natureza de suas causas externas.

(v) Logo, o conteúdo indireto das idéias imaginativas é desprovido de efi-cácia causal.

Ora, a premissa (iv), que retoma neste argumento a premissa (5) do argu-mento inicial, é falsa e repousa sobre o desconheciargu-mento da concepção propria-mente espinosista da causalidade e de como esta concepção funda a tese segundo a qual a natureza de um efeito é determinada intrinsecamente pela natureza de suas causas e reflete (mesmo que inadequadamente, quando se trata de efeitos derivados do nexo infinito das causas) estas naturezas. Este desconhecimento acarreta a negligência da noção de envolvimento contida no axioma IV da Ética I e da função capital por ela exercida tanto na demonstração da EIIpr.16 quanto na tese espinosista geral segundo a qual a natureza e a potência de um efeito envol-vem a natureza e a potência de suas causas, sendo definidas a partir delas.46 É a

compreensão da especificidade desta concepção que permite refutar a interpreta-ção proposta por Bennett.

Sem poder examinar aqui detalhadamente esta concepção, cabe ressaltar que ela se caracteriza por ser uma concepção analítica da causalidade. Com efeito, ao identificar em seu sistema causa e ratio, Espinosa estabelece uma fusão da causa

46 Cf. EIpr.13ax.I (“todos os modos pelos quais um corpo qualquer é afetado por

ou-tro corpo dependem da natureza do corpo afetado e, ao mesmo tempo, da natureza do corpo que afeta...”), EIIIpr.56dem., que especifica os tipos de paixões em função dos tipos de objetos externos que são causas parciais destas paixões (“a natureza de cada pai-xão deve necessariamente ser explicada de maneira que exprima a natureza do objeto pelo qual somos afetados. A alegria que nasce de um objeto, por exemplo A, envolve a nature-za de A, e a alegria que nasce do objeto B envolve a naturenature-za de B; e por conseqüência, esses dois afetos de alegria são diferentes por natureza, pois nascem de causas de natureza diferente...”), e EIVpr.5, que estabelece que a essência e a potência de uma paixão são determinados em função da essência e da potência de sua causa externa.

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eficiente e da causa formal da qual resulta que toda dependência causal é também uma dependência conceitual. Assim, há entre a causa e o efeito uma relação de inclusão conceitual interna. É esta inclusão que fará com que a natureza do efeito seja determinada intrinsecamente a ser o que é pela natureza da causa, de uma maneira que envolve a presença da natureza da causa no efeito. Esta relação de envolvimento é uma das duas relações presentes na formulação do axioma IV da Ética I: “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e o envol-ve”. A análise dos diversos usos deste axioma na Ética permite mostrar que ele contempla duas relações distintas: uma relação de dependência, que conota uma relação entre idéias ou itens de conhecimento, e uma relação de envolvimento, que conota uma relação de inclusão conceitual interna entre a natureza da causa e a do efeito. Afirmar que “x envolve y” é afirmar que x é determinado a ser o que é pela natureza de y, de uma maneira que reflete esta natureza, seja adequadamen-te, quando y é a causa única de x, seja inadequadamenadequadamen-te, quando y é causa parcial de x.47 Ora, a relação de envolvimento é o fundamento da relação de

representa-ção indireta, estabelecida na EIIpr.16 e retomada no seu primeiro corolário. Com efeito, se a idéia de uma afecção do corpo humano representa sua causa externa é porque a afecção enquanto tal envolve sua causa, isto é, contém a natureza da causa tal como ela se manifesta no efeito.48 Evidentemente, o conhecimento

47 Para duas análises minuciosas dos diversos usos da EIax.4 e da noção de

envolvi-mento, cf. Margaret Wilson (1999, cap. 10) e Gilles Deleuze (1968, segunda parte). Deleu-ze analisa detalhadamente as complexas relações existentes entre as noções de “envolver”, “explicar” e “exprimir”, salientando de forma particularmente importante a dissociação entre os termos “envolver” e “exprimir” no contexto das idéias inadequadas da imagina-ção (p. 132). Neste contexto, o termo “envolver” designa a mistura confusa das naturezas do corpo exterior e do nosso corpo, presente na afecção de que temos uma idéia. Esta confusão confere à idéia imaginativa uma função meramente indicativa e recognitiva, mas não explicativa.

48 No enunciado da EIIpr.16 Espinosa afirma que “a idéia de qualquer modo pelo

qual o corpo humano é afetado pelos corpos exteriores deve envolver a natureza do cor-po humano e, ao mesmo temcor-po, a natureza do corcor-po exterior”. A demonstração remete a EIax.4, mas se baseia na relação de envolvimento e não na relação de dependência entre idéias. Com efeito, se esta última relação fosse aplicada, Espinosa deveria concluir que a

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maginativo da causa a partir de sua presença no efeito é confuso e inadequado, mas, como ressalta Richard Manning, “se o envolvimento da causa no efeito não permitisse distinguir minimamente tal ou tal objeto como causa do efeito, o co-nhecimento do efeito não poderia remeter a nenhuma causa exterior determina-da”. 49

Vemos, assim, como o reconhecimento da especificidade da concepção espinosista da causalidade e de sua função na noção de envolvimento presente na EIax.4 permitem recusar a tese de Bennett segundo a qual a causa externa não teria repercussão na determinação da natureza intrínseca e do poder causal do efeito e, conseqüentemente, que sua idéia seria causalmente impotente.

4.3. O problema das relações entre desejo e juízo de valor

Cabe examinar por fim um problema referente à compatibilidade entre explicações teleológico-mentais da conduta humana e a tese espinosista da ante-rioridade do desejo sobre o juízo de valor. Segundo esta tese, enunciada no escó-lio da EIIIpr.9, não é porque julgamos que x é bom que desejamos x, mas porque desejamos x que julgamos que x é bom. 50 Esta tese é complementada pela

idéia da afecção do corpo humano depende da idéia da natureza do corpo humano e da idéia da natureza do corpo exterior. No entanto, ele afirma apenas que a idéia desta afec-ção envolve a natureza destes corpos. Ora, dada a heterogeneidade conceitual dos atribu-tos e sua independência causal e explicativa, não faz sentido afirmar que a idéia de afec-ção, que é um modo do atributo pensamento, envolve a natureza das causas da afecção que, sendo corpos, são modos do atributo extensão. O que Espinosa está afirmando, portanto, é que a afecção envolve a natureza de suas causas e que a idéia desta afecção representa este efeito enquanto envolvendo suas causas. Não se trata de uma relação entre as idéias do efeito e de suas causas, mas de uma relação de envolvimento entre o efeito e suas causas representada na idéia do efeito. A idéia da afecção é a idéia de um efeito que, enquanto tal, envolve a natureza de suas causas.

49 Manning (2002), p. 197.

50 “É, portanto, evidente, em virtude de todas estas coisas, que não nos esforçamos

por fazer alguma coisa, que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coi-sa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coicoi-sa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e a desejamos.” (GII/148)

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