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4. Exame da compatibilidade entre teleologia mental e certos aspectos do sistema

4.3. O problema das relações entre desejo e juízo de valor

Cabe examinar por fim um problema referente à compatibilidade entre explicações teleológico-mentais da conduta humana e a tese espinosista da ante- rioridade do desejo sobre o juízo de valor. Segundo esta tese, enunciada no escó- lio da EIIIpr.9, não é porque julgamos que x é bom que desejamos x, mas porque desejamos x que julgamos que x é bom. 50 Esta tese é complementada pela

idéia da afecção do corpo humano depende da idéia da natureza do corpo humano e da idéia da natureza do corpo exterior. No entanto, ele afirma apenas que a idéia desta afec- ção envolve a natureza destes corpos. Ora, dada a heterogeneidade conceitual dos atribu- tos e sua independência causal e explicativa, não faz sentido afirmar que a idéia de afec- ção, que é um modo do atributo pensamento, envolve a natureza das causas da afecção que, sendo corpos, são modos do atributo extensão. O que Espinosa está afirmando, portanto, é que a afecção envolve a natureza de suas causas e que a idéia desta afecção representa este efeito enquanto envolvendo suas causas. Não se trata de uma relação entre as idéias do efeito e de suas causas, mas de uma relação de envolvimento entre o efeito e suas causas representada na idéia do efeito. A idéia da afecção é a idéia de um efeito que, enquanto tal, envolve a natureza de suas causas.

49 Manning (2002), p. 197.

50 “É, portanto, evidente, em virtude de todas estas coisas, que não nos esforçamos

por fazer alguma coisa, que não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer coi- sa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a queremos, a apetecemos e a desejamos.” (GII/148)

EIVpr.8, que sustenta que os juízos de valor se reduzem à consciência dos afetos alegres ou tristes oriundos das variações positivas ou negativas de nossa potência de agir, isto é, de nosso desejo.51 Assim, o desejo é o fundamento de nossos juízos de

valor. Ora, esta tese suscita as seguintes dificuldades. Em primeiro lugar, não é ime- diatamente clara sua compatibilidade com o axioma III da Ética II, em que Espino- sa afirma explicitamente a precedência da idéia (logo, segundo sua epistemologia, do juízo) em relação aos modos de pensar afetivos (logo, em relação ao desejo).52

Segundo este axioma, é a presença do juízo que explica a intencionalidade dos mo- dos de pensar afetivos. Ora, se é o juízo que fixa o conteúdo intencional do desejo e que explica seu investimento sobre objetos particulares, como explicar a anterio- ridade do desejo sobre o juízo de valor?53 Em segundo lugar, como tornar esta tese

compatível com as várias passagens em que Espinosa se refere explicitamente aos desejos que nascem do conhecimento (logo, dos juízos) acerca do bem e do mal54?

Estes desejos, originados pelos juízos de valor, certamente não podem precedê-los.

51 Cf. EIVpr.8: “o conhecimento do bem e do mal não é outra coisa senão o afeto de

alegria ou tristeza, na medida em que temos consciência dele”.

52 O axioma afirma que “os modos de pensar como o amor, o desejo ou qualquer ou-

tro afeto da alma, qualquer que seja o nome pelo qual é designado, não podem existir num indivíduo senão enquanto se verifica nesse mesmo indivíduo uma idéia da coisa amada, desejada, etc. Mas uma idéia pode existir sem que exista qualquer outro modo de pensar”. Há nessa tese uma clara anterioridade lógica e ontológica da idéia em relação aos modos de pensar afetivos. Como toda idéia, segundo a EIIPr.49, envolve uma afirmação ou uma negação, isto é, envolve um juízo, a tese estabelece uma relação de anterioridade lógica e ontológica entre juízos e modos de pensar afetivos.

53 Evidentemente, nem todo juízo é valorativo. Assim, poder-se-ia tentar evitar esta

dificuldade sustentando que os juízos que representam os objetos do desejo são apenas cognitivos, isto é, representam seus objetos sem qualificá-los como úteis ou prejudiciais. Seria apenas após o investimento do desejo sobre eles que surgiriam os juízos de valor. No entanto, esta leitura não permite explicar porque o desejo investe sobre estes objetos e não dá conta da segunda dificuldade que mencionamos a seguir no texto.

54 Cf. EIVpr.15, EIVpr.16 e EIVpr.17. A anterioridade do juízo de valor expressa nes-

tas proposições é também claramente enunciada na EIVpr.19 que citamos no item (2) do artigo como exemplo de esquema explicativo teleológico-mental da conduta humana:

Trata-se, no entanto, de um problema aparente. Para resolvê-lo e evitar a afirmação de Bennett de que Espinosa seria inconsistente em sua teoria do dese- jo55(teoria esta que fornece a base de toda a teoria da afetividade e, conseqüente-

mente, da ética nela fundada), basta distinguir entre o desejo tomado absoluta- mente, isto é, tomado como o esforço originário de autopreservação que consti- tui a nossa essência, e os múltiplos desejos particulares que dele nascem em fun- ção das afecções que lhe ocorrem nas diversas circunstâncias relativas à sua atua- lização. O desejo primordial é o esforço para perseverar no ser, definido inde- pendentemente de suas manifestações particulares como “a própria essência do homem, de cuja natureza seguem necessariamente os atos que servem à sua con- servação” (EIIIpr.9esc./GII/147). Para dar conta de suas particularizações e ex- plicar a causa da consciência que acompanha os desejos, Espinosa complementa esta definição afirmando que “o desejo é a essência do homem, enquanto ela é determinada a fazer algo por uma afecção qualquer nela verificada” (EIII- def.af.1/GII/190). A expressão “afecção qualquer” introduz a referência às con- dições relativas à atualização concreta do desejo no mundo, condições estas que dão conta da projeção do desejo primordial que nos constitui sobre os diversos objetos particulares, originando, assim, os desejos derivados. Com efeito, a toda afecção, seja ela inata ou adquirida56, corresponde necessariamente na alma uma

“cada um deseja ou tem aversão necessariamente, pelas leis de sua natureza, àquilo que julga ser bom ou mau”.

55 Bennett acredita que, apesar das inconsistências de Espinosa, sua interpretação da

impotência causal do conteúdo representativo das idéias permite explicar satisfatoriamen- te a tese da antecedência do desejo sobre o juízo de valor, entendida não apenas como uma tese acerca da natureza destes juízos, isto é, como a tese de que eles seriam expressi- vos e não descritivos, mas também como uma tese acerca da natureza do desejo, isto é, como a tese de que as características intrínsecas do desejo seriam as únicas causalmente determinantes, enquanto suas características representacionais seriam meramente epife- nomenais. Esta posição, no entanto, além de não ser compatível com o axioma III da

Ética II e com as proposições a que nos referimos na nota anterior, depende essencial-

mente da validade do argumento que procuramos refutar no item 4.2.

56 Cf. EIIIdef.af.1: “por afecção da essência do homem entendemos qualquer estado

idéia desta afecção, e toda idéia, por sua vez, é acompanhada por uma idéia da idéia, pela qual somos dela conscientes. Se a afecção faz variar positiva ou negati- vamente a potência de agir do corpo, isto é, se ela favorece ou entrava nosso es- forço primordial de autopreservação, sua idéia não apenas indicará o estado atual do corpo, mas afirmará também sua maior ou menor potência de agir, sendo, por isso, dotada de uma carga afetiva alegre ou triste.57 Por outro lado, como a idéia

de afecção não apenas indica o estado atual do corpo, mas também representa o corpo exterior que nos afeta, ela projetará sobre ele a carga afetiva de que somos conscientes, dando origem aos afetos de amor ou ódio, aos juízos de valor que os acompanham e, conseqüentemente, aos desejos ou aversões particulares deles originados. Estes desejos derivados são, portanto, modificações do desejo primi- tivo, decorrentes das afecções da essência.

Assim, o desejo primordial é o fundamento último de todos os nossos juí- zos de valor, pois estes dependem da consciência dos afetos alegres ou tristes que o fazem variar positiva ou negativamente. Porém, estas variações afetivas, e os juízos de valor a elas vinculados, são dotados também de uma eficácia causal e determinam, por sua vez, os desejos particulares derivados. Não há, aqui, ne- nhuma inconsistência por parte de Espinosa.58

5. Conclusão

Como afirmei no início deste trabalho, minha intenção não foi a de anali- sar exaustivamente todos os argumentos e passagens a favor da interpretação do grupo (2.1), mas apenas apresentar um primeiro exame de algumas das principais evidências a favor desta interpretação. Acredito que este exame preliminar tenha

pensamento ou apenas pelo atributo da extensão, quer, enfim, se refira ao mesmo tempo a ambos” (GII/190). Às afecções inatas correspondem, no pensamento, as idéias adequa- das, e às afecções adventícias, as idéias inadequadas.

57 Cf. a definição geral dos afetos com a qual Espinosa conclui a Ética III.

58 A distinção aqui proposta entre o desejo primitivo e os desejos derivados reencon-

tra as defesas da inexistência de contradição entre a EIIIpr.9esc. e a EIVpr.19 propostas por Jarrett (1999, p. 22, nota 34) e Matheron (1969, p. 244, nota 10).

contribuído para fortalecer significativamente esta interpretação. No entanto, para alcançar a interpretação global que o sistema exige é preciso não apenas aprofundar algumas análises aqui esboçadas, mas sobretudo examinar os proble- mas colocados pela interpretação do grupo (2.2). Com efeito, segundo os intér- pretes deste grupo a refutação espinosista da tese da providência divina exclui a noção de finalidade externa, mas é totalmente compatível com a interpretação do conatus como um tipo de finalidade interna. Dada a universalidade da doutrina do conatus, os comentadores que defendem esta interpretação estão comprometidos com a defesa da existência de processos teleológicos corporais. Para concluir, eu gostaria de assinalar então dois dos principais problemas que me parecem decor- rer desta interpretação e que pretendo abordar em um próximo artigo:

(1) Se uma explicação teleológica, tal como a define Garrett, consiste es- sencialmente em “explicar um estado de coisas indicando uma suposta ou provável conseqüência (causal, lógica ou convencional) sua que está implicada na origem ou etiologia deste estado”59, é possível encontrar

algum processo corporal que, correspondendo à função exercida na mente pelo conteúdo representativo das idéias na antecipação daquelas supostas ou prováveis conseqüências, permita escapar ao argumento da inversão da ordem da Natureza?

(2) É possível, como sugeria Delbos já no início do século passado, com- patibilizar a adoção espinosista do método geométrico e das explica- ções mecânicas do comportamento dos corpos com a interpretação geral do conatus como um tipo de finalidade interna?60

59 Cf. Garrett (1999, p. 310).

60 Cf. Delbos (2002, p. 92-93), onde ele sustenta que o geometrismo de Espinosa acar-

reta a exclusão do mecanicismo bruto, isto é, do domínio absoluto da causalidade externa e das partes extra partes, opondo-se às relações de finalidade externa, mas sendo compatí- vel com a aceitação da finalidade interna ou imanente; e (2002, p. 123-124), onde a noção de uma definição genética que se realiza é utilizada para aproximar o conatus da finalidade interna: “concebido como a realização de uma essência, ainda que rejeite toda finalidade externa, ele [o conatus] não deixa de introduzir uma espécie de equivalente da finalidade

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