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A representação da identidade camponesa na comunicação contra-hegemônica do movimento dos trabalhadores rurais sem terra

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – RELAÇÕES PÚBLICAS

Mateus Luan Klein Karling

A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CAMPONESA NA

COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO MOVIMENTO DOS

TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA

Santa Maria, RS

2017

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Mateus Luan Klein Karling

A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CAMPONESA NA COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO MOVIMENTO DOS TRABALHORES RURAIS SEM

TERRA

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social – Relações Públicas como requisito parcial para obtenção do título de

graduado em Comunicação Social – Relações Públicas.

Orientador: Profº Drº Flavi Ferreira Lisboa Filho

Santa Maria, RS 2017

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Mateus Luan Klein Karling

A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CAMPONESA NA COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO MOVIMENTO DOS TRABALHORES RURAIS SEM

TERRA

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social – Relações Públicas como requisito parcial para obtenção do título de

graduado em Comunicação Social – Relações Públicas.

Aprovado em 14 de dezembro de 2017:

_____________________________________ Flavi Ferreira Lisboa Filho, Dr. (Unisinos)

(Presidente/Orientador)

_____________________________________ Jaqueline Quinconzes da Silva Kegler, Dra. (UFSM)

_____________________________________ Clayton Hillig, Dr. (UFRGS)

Santa Maria, RS 2017

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DEDICATÓRIA

A todas trabalhadoras e todos trabalhadores rurais sem terra que na luta pela

reforma agrária tombaram e não mais estão entre nossas fileiras de resistência,

mas permanecem em nossa memória. A essa brava gente, toda nossa luta,

rebeldia, indignação e ciência.

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AGRADECIMENTOS

 A minha família, minha mãe Sirlei e meu pai Gilson, que me apoiaram e me mantiveram na Universidade, fazendo com que eu chegasse até aqui;

 Ao meu orientador, Profº Drº Flavi Lisboa, que para além de compreender e guiar o meu processo acadêmico e científico, também soube compreender e acompanhar o meu processo político e militante;

 Ao movimento estudantil, em especial o Diretório Acadêmico da Comunicação Social - Mário Quintana, o Diretório Central das e dos Estudantes da UFSM, à União Estadual dos Estudantes Livre do Rio Grande do Sul e ao Estágio Interdisciplinar de Vivência de Santa Maria, que me serviu como formação complementar indispensável para a compreensão de todo o conhecimento fomentado pela academia.

 Ao Programa de Educação Tutorial em Comunicação Social, na pessoa da Profª Drª Juliana Petermann, tutora do grupo, o qual me inseriu na iniciação científica e na extensão universitária, auxiliando na compreensão do tripé que deve basilar o funcionamento das nossas instituições de ensino superior;

 A todos servidores técnico-administrativos em educação e a todos os docentes da Universidade Federal de Santa Maria que participaram do meu processo de formação acadêmica, profissional e social durante a minha graduação;

 Ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em especial ao Setor de Comunicação do MST do Rio Grande do Sul e à Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul – COCEARGS, pelo suporte dado ao meu trabalho;

 Aos meus colegas que me marcaram, em especial dos cursos de Comunicação Social, que agora seguem seus caminhos depois de compartilharmos juntos as mesmas emoções e sentimentos durante nossa juventude na Universidade;

 Às companheiras e aos companheiros do Partido dos Trabalhadores, e em especial da Juventude da Articulação de Esquerda, pessoas com as quais compartilhei tantas ideias e tantas ações ao longo destes últimos anos, que com certeza revolucionaram meu modo de pensar e agir na sociedade; e

 Aos governos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da Presidenta Dilma Rousseff, por todas as ações de democratização das universidades; de expansão e interiorização do ensino superior público e gratuito; e de fomento à assistência estudantil, que fizeram a mim e a tantas outras pessoas entrar e permanecer na universidade.

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“A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam.”

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RESUMO

A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE CAMPONESA NA COMUNICAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA DO MOVIMENTO DOS TRABALHORES RURAIS SEM

TERRA

AUTOR: Mateus Luan Klein Karling ORIENTADOR: Flavi Ferreira Lisboa Filho

O presente trabalho faz uma análise da representação da identidade camponesa através do Jornal Sem Terra produzido pelo Setor de Comunicação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Rio Grande do Sul, desde o ano de 2014. O encarte se configura como o principal meio de comunicação do MST no estado, e é encarado aqui como uma estratégia formativa e organizativa que fomenta, reproduz e recria a identidade camponesa que dá unidade ao movimento. No primeiro capítulo da monografia se faz um resgate teórico sobre conceitos tais como cultura, representação, hegemonia, contra-hegemonia e identidade; no segundo capítulo se discorre sobre a especificidade que caracteriza a identidade camponesa em suas relações sociais de similaridade e distinção; no terceiro capítulo, ao se remontar a história do MST, aborda-se como a comunicação social foi encarada pelo Movimento ao longo dos anos de sua existência, bem como de que forma as suas pautas foram se estabelecendo; e por fim, no quarto capítulo será feita a análise qualitativa das edições do Jornal Sem Terra do MST-RS, a fim de elencar através das matérias, dos editoriais e das imagens publicadas os elementos que fomentam, reproduzem e recriam a identidade camponesa de resistência do MST, atrelada à luta pela terra, às ocupações, às marchas e aos atos públicos do movimento, bem como a sua identidade de projeto, atrelada à agroecologia, à soberania alimentar, à produção de alimentos saudáveis e à qualidade de vida no campo.

Palavras-chave: identidade camponesa, representação, cultura, agroecologia, movimentos

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ABSTRACT

THE REPRESENTATION OF PEASENT IDENTITY IN THE CONTRA-HEGEMONIC COMMUNICATION OF THE LANDLESS RURAL WORKERS

MOVEMENT

AUTHOR: Mateus Luan Klein Karling ADVISOR: Flavi Ferreira Lisboa Filho

This paper analyzes the representation of peasant identity through the “ Jornal Sem Terra”, newspaper produced by the Communication Sector of the Landless Rural Workers Movement (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST in Portuguese) of Rio Grande do Sul – Brazil, since the year 2014. The booklet is the main means of communication of the MST in the state, and is seen here as an organizational and formative estrategy that fosters, reproduces and recreates the peasant identity that gives unity to the movement. In the first chapter of the monograph there is a theoretical rescue on concepts such as culture, representation, hegemony, counter-hegemony and identity; in the second chapter we discuss the specificity that characterizes the peasant identity in its social relations of similarity and distinction; in the third chapter, when going back to the history of the MST, it is approached how the communication was viewed by the Movement over the years of its existence, and how its guidelines were established; Finally, in the fourth chapter, a qualitative analysis of the editions of the Sem Terra Journal of the MST-RS will be made, in order to list through the materials, editorials and images the elements that foment, reproduce and recreate the peasant identity of resistance of the MST, linked to the struggle for land, occupations, marches and public acts of the movement, as well as its project identity, linked to agroecology, food sovereignty, healthy food production and quality of life in the countryside.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

COCEARGS Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul

COOTAP Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre CPT Comissão Pastoral da Terra

CUT Central Única dos Trabalhadores CTB Central dos Trabalhadores do Brasil EIV Estágio Interdisciplinar de Vivência FBP Frente Brasil Popular

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MAB Movimento dos Atingidos por Barragem

MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra MNLM Movimento Nacional de Luta Pela Moradia MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ONG Organização Não Governamental

PAA Programa de Aquisição de Alimentos PDT Partido Democrático Trabalhista

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNAE Programa Nacional de Alimentação Escolar PT Partido dos Trabalhadores

Pronera Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária RBS TV Rede Brasil Sul de Televisão

UBES União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UFPel Universidade Federal de Pelotas

UFSM Universidade Federal de Santa Maria UNE União Nacional dos Estudantes WEB World Wide Web

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 10

1. CULTURA, REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE ... 13

1.1. Dos conceitos de cultura ... 13

1.2. Dos conceitos de representação ... 16

1.3. Dos conceitos de identidade ... 18

2. IDENTIDADE CAMPONESA E SUA ESPECIFICIDADE DE CLASSE ... 23

2.1. A concepção da identidade camponesa ... 23

2.2. A constituição da classe camponesa no Brasil ... 28

3. MST: DA RESISTÊNCIA NA LUTA PELA TERRA AO PROJETO AGROECOLÓGICO ... 34

3.1. História do MST: a luta pela terra e a luta na terra ... 35

3.2. A comunicação sem terra para a organização e a formação ... 38

3.3. A análise de sentidos aplicada ao Jornal Sem Terra ... 44

4. O JORNAL SEM TERRA DO MST DO RIO GRANDE DO SUL ... 48

4.1. Os elementos de linguagem do jornal ... 49

4.2. Os signos recorrentes na construção discursiva do Jornal ... 52

4.3. A interpretação da identidade camponesa no Jornal Sem Terra ... 55

4.4. Contextualização política e social do Jornal ... 62

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INTRODUÇÃO

A Reforma Agrária Popular sempre esteve apoiada por aquilo que o próprio Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) convencionou chamar de intelectuais militantes, estudantes e pesquisadores cujos rompem as cercas do latifúndio do conhecimento em nome da democratização do saber, no intuito de contribuir técnica e cientificamente na resistência e no projeto da classe trabalhadora. Nesse sentido, trabalhos que tratem da questão agrária, da concentração fundiária, da cultura camponesa e da agroecologia, principalmente a partir da teoria crítica, tem uma importância muito grande no que diz respeito aos avanços na redistribuição de terras, na qualidade de vida no campo, na produção de alimentos saudáveis e na edificação de uma sociedade livre de exploração e opressão.

O objetivo principal dessa monografia, portanto, é discorrer sobre como a identidade camponesa é fomentada, reproduzida e recriada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra através do Jornal Sem Terra do Rio Grande do Sul. Identidade camponesa essa que dá unidade ao movimento em nível regional e nacional, congregando as mais diversas formas de viver e exercer o campesinato num país tão extenso e multicultural como o Brasil, nesse caso, através de uma representação feita pelo próprio MST, dentro do estado do Rio Grande do Sul, especificamente, no Jornal Sem Terra, encarte produzido promocionalmente, confeccionado no estado desde 2014 pela direção do movimento através do seu setor de Comunicação, e distribuído em eventualidades relacionadas às mobilizações e à produção dos acampamentos e assentamentos.

No primeiro capítulo, falamos sobre os conceitos estruturantes da pesquisa, apoiados em autores que embasam os estudos culturais, construímos um resgate teórico no que tange aquilo que compreendemos a cerca dos acúmulos relacionados ao conceito de cultura, bem como todo o arcabouço teórico e metodológico que esse termo abrange, tais como os conceitos de representação, identidade, hegemonia e contra-hegemonia. Dentro das discussões acerca da identidade, especialmente, fazemos uma análise quanto às categorias identitárias elencadas por Manuel Castells (2010), que posicionam as culturas e os agentes entre a identidade legitimadora, a identidade de resistência e a identidade de projeto.

Logo após, no capítulo segundo, abordamos então a identidade camponesa enquanto complexidade cultural e sua construção histórica, em especial no contexto brasileiro.

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Discorremos também sobre a especificidade camponesa, no que tange suas relações de similaridade e distinção, ou seja, são abordados elementos pelos quais se supera a diversidade existente no campo a partir de suas regionalidades e tradições, para se alcançar traços em comum que distinguem essa classe, enquanto classe camponesa, de outras identidades, sejam urbanas ou até mesmo rurais. É a partir daí que se abordam temas como a relação com a terra, com o núcleo familiar, com a comunidade, a natureza e os modos de produção e reprodução da vida a partir de um viés identitário o qual relacionamos ao campesinato.

Também é feita uma compilação da constituição do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra enquanto movimento social nacionalizado e a relação do MST com a comunicação social enquanto fator organizativo e formativo do movimento. São utilizados documentos oficiais do MST somados a trabalhos acadêmicos que anteriormente já abordaram essa temática, para se travar esse debate que constitui o terceiro capítulo do presente trabalho. Nesse sentido, se objetiva evidenciar como esse movimento é produto da organização popular camponesa e de que forma, ao longo das fases de sua história, o MST foi um dos principais agentes sociais capazes não somente de produzir respostas às situações as quais estava relacionado dentro da luta de classes, mas também de que forma foi capaz de pautar a sociedade em geral com as suas mobilizações e a sua organização tal e qual um movimento social legítimo e protagonista na questão agrária brasileira.

Nesse momento, inclusive, abordamos como se constituiu e se consagrou a identidade de resistência atrelada ao MST no decorrer de sua história, relacionada principalmente às ocupações de terra e de prédios públicos, aos acampamentos firmados em latifúndios, às marchas e atos políticos em defesa de direitos e da democracia organizados pelo movimento. E agora, principalmente nas últimas duas décadas, como vem sendo paulatinamente incorporado o debate ambiental como uma das principais bandeiras de mobilização do Movimento, juntamente das demais bandeiras já consagradas, relacionando essa pauta com uma outra identidade ao MST, uma nova recriação camponesa frente aos desafios do novo século postos pelo agronegócio: uma identidade de projeto de sociedade, relacionada à agroecologia, à produção de alimentos saudáveis, à soberania alimentar, à preservação da natureza e à qualidade de vida no campo. Em todos esses momentos, abordamos como o MST coloca a figura do camponês como protagonista de todas essas problemáticas, no sentido formativo e constitutivo de uma classe e de um sujeito coletivo capaz de transformar sua realidade social.

Por fim, no quarto capítulo é feita a análise propriamente dita das edições do Jornal Sem Terra do Rio Grande do Sul já publicadas desde 2014 pela direção estadual do MST

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através de seu setor de comunicação. A partir dos editoriais, das matérias e das imagens publicadas nos encartes será feita uma análise qualitativa do conteúdo expresso a partir da metodologia de análise de sentidos, segundo Rosário (2006), relacionando-os com as formas de fomentação, reprodução e recriação da identidade camponesa a partir deste meio de comunicação contra-hegemônico do Movimento. O Jornal será sempre levado em consideração como uma estratégia de formação e organização militante para a base acampada e assentada do MST nas regiões de abrangência do movimento no estado do Rio Grande do Sul, no que tange as suas mobilizações sociais, bem como as ações de comunicação relacionadas à produção das cooperativas nos seus assentamentos e acampamentos.

Nesse sentido, o presente trabalho visa também compreender quais são os acúmulos, os avanços e as limitações ainda presentes na atuação do setor de comunicação do MST no estado do Rio Grande do Sul, tendo como base o principal meio de comunicação produzido pela direção do Movimento, o Jornal Sem Terra. Visa-se com isso compreender como o MST tenta aprofundar debates a cerca da reforma agrária popular e de que forma esses debates vem chegando até a base do movimento, para que através disso se possa avançar na fomentação, na reprodução e recriação camponesa, fortificando a organização e a formação do MST enquanto movimento social autônomo que se propõe a construir transformações amplas na sociedade.

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1. CULTURA, REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE

Se nos voltarmos ao conceito de cultura presente no dicionário, nos defrontaremos primeiro com a sua definição enquanto substantivo feminino de ação, ou seja, algo relacionado com a prática, com o fazer. Uma das utilizações primeiras do termo se refere justamente à agricultura1, ao cultivo da terra, às diferentes culturas de sementes na produção de alimentos, ou em relação à criação de animais. Somente depois disso é que teremos uma definição tradicional de cultura, seja a partir de um conjunto de conhecimentos, ou de manifestações artísticas; para finalmente presenciarmos o que logo adiante abordaremos enquanto virada cultural: o que diz respeito, sobretudo, à expressão de saberes, hábitos, práticas e tradições dos povos, em relações de semelhança e diferenciação, tendo a cultura como uma prática social e coletiva.

Ou seja, a constituição do termo cultura vem há muito tempo relacionada com a prática do trabalho humano de modificar o meio ambiente em detrimento da reprodução de sua vida, portanto, a cultura tal e qual a pensamos e a praticamos, arrisca-se dizer, tem relação umbilical com o campesinato. Ademais, antes mesmo de tratar da questão agrária, aplicada aos estudos culturais, trazendo a tona o debate referente à identidade camponesa, se faz necessário elucidar a partir de que marcos teóricos estão se tratando conceitos-chave da nossa pesquisa. É nesse sentido que conduzimos nosso resgate bibliográfico às leituras daquilo que já se tem acumulado referente à cultura, e concomitantemente, a todo o universo conceitual que esse debate carrega em si mesmo.

1.1. Uma abordagem sobre cultura

É a partir daí que nos defrontamos com autores clássicos como Stuart Hall, cujo trata do tema referindo-se primeiramente às definições tradicionais de cultura, até chegar a uma abordagem do termo que possui relação com o que chamamos de virada cultural. É nesse primeiro momento, do termo segundo sua definição tradicional, que falamos de cultura “como algo que engloba o que de melhor foi pensado e dito numa sociedade” (HALL, 2016, p. 19), é

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nesse marco onde existe a diferenciação entre a “alta cultura”, representada pelas obras clássicas da literatura, da pintura, da música e da filosofia, por exemplo; e a “cultura de massa”, ou “cultura popular”, referente a formas amplamente distribuídas de música, arte, literatura e atividades de entretenimento. Grosso modo, o confronto entre a alta cultura e a cultura popular sempre foi carregado de valores, ou seja, a alta cultura encarada como algo bom e a cultura popular como algo degradado.

Esse cenário se transforma à medida que o conceito de cultura vai se aproximando de sua definição antropológica, a partir das ciências sociais, referindo-se “a tudo o que seja característico sobre o modo de vida de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social” (HALL, 2016, p. 19). Essa definição de cultura causa o que chamamos de virada cultural, é um marco onde o conceito de cultura deixa de estar atrelado a um conjunto de coisas, para ser pensado a partir de um conjunto de práticas: na produção e no intercâmbio de sentidos – mais especificamente, é o momento onde o termo cultura dá importância e ênfase ao sentido das práticas culturais de maneira abrangente e diversa.

Outra abordagem que nos auxilia a analisar e compreender o conceito de cultura ao longo de sua história constitutiva é feita por Raymond Williams, autor que divide a definição de cultura em três categorias gerais. A primeira seria a ideal: segundo a qual a cultura é um estado do processo de perfeição humana, cujo congrega certos valores absolutos e universais (WILLIAMS, 2003, p. 51), e a sua análise dar-se-ia a partir do descobrimento e da descrição desses valores; a segunda corresponderia à categoria documental: onde a cultura acumula em seu bojo obras humanas de caráter intelectual e imaginativo, ou seja, registros dos conhecimentos gerados e trabalhos artísticos criados. Por sua vez, a análise cultural viria da atividade crítica a essas obras, numa abordagem que trataria dos estudos de linguagem; e por fim, a terceira definição como social: um modo de vida em sociedade, para além da arte e da aprendizagem, chegando às instituições sociais e ao comportamento ordinário, nesse contexto, a análise cultural viria a partir do estudo dos significados implícitos e explícitos num modo específico de vida. Nas palavras do autor:

Eu acredito que qualquer teoria apropriada da cultura deve incluir as três esferas a partir das quais se apontam as definições, inversamente, suponho que qualquer definição seja inadequada, em qualquer uma das categorias, cuja exclua a referência às demais. [...] Uma definição “social” que aborde o processo geral e o conjunto da arte e aprendizagem como um mero subproduto, um reflexo passivo dos verdadeiros interesses da sociedade, também me parece errada. (WILLIAMS, 2003, p. 53).

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Reforçando suas assertivas, ainda segundo Williams (2003), a cultura de um período histórico deve ser estudada a partir da sistematização de sua coletânea cultural de obras artísticas e de conhecimentos gerais; do seu caráter social a partir das instituições e comportamentos; bem como dos padrões gerais de valor, chegando ao que o autor relata como estrutura de sentimento: “o resultado vital específico de todos os elementos da organização geral” (WILLIAMS, 2003, p. 57), para ele, essa seria portanto uma das partes mais delicadas e menos tangíveis dos estudos culturais. Esse é o ponto onde se analisa a cultura através de grupos ou agentes em específico, pormenorizando e exemplificando a cultura a partir das identidades a ela subjacentes, o que nos faz chegar à tradição seletiva.

Para o autor, a tradição seletiva, em primeiro lugar estabelece uma cultura humana geral, de hegemonia; em segundo, tem a função de estabelecer o registro histórico de uma sociedade, legitimando e consolidando essa hegemonia, ultrapassando a cultura vivida para chegar ao patamar da cultura registrada; e por fim, em consequência, não tem como não provocar uma marginalização dos demais espectros culturais também componentes da malha social. Essa seleção, para Williams (2003) é regida por muitos interesses, incluindo os de classe. Ou seja, a cultura tradicional – dita hegemônica, numa sociedade, tenderá sempre a corresponder a um conjunto contemporâneo de interesses e valores, enquanto as instituições sociais formalmente consagradas são incumbidas da tarefa de manter viva a tradição imposta, principalmente as instituições educativas: configura-se aqui a tradição seletiva.

É justamente essa tradição mencionada que torna sempre mais difícil a análise e a compreensão da cultura de uma nação ou de uma comunidade. Isso nos obriga a levar em consideração toda a complexidade das relações sociais a partir de uma hegemonia exercida e mantida, inclusive e principalmente atrelada a uma questão de classe, que se converte em hegemonia cultural e simbólica. A partir disso, é considerável salientar que a estrutura de sentimento elencada pelo autor, materializa o intangível da cultura no que diz respeito a todos os elementos rechaçados pela tradição seletiva, de uma cultura vivida, que de alguma forma pode até ter sido registrada, mas que tem sua marca apagada da história – é o que podemos chamar de contra-hegemonia, comumente relacionada às classes sociais mais exploradas e oprimidas nas sociedades. A contra-hegemonia sempre estará em conflito com a ordem hegemônica, justamente porque esta última nega qualquer outra cultura que não seja a sua própria, a silencia e tenta a todo custo torná-la imperceptível, a fim de manter ou até mesmo aprofundar a ordem estabelecida.

Para tanto, também nos cabe remontar o conceito de hegemonia elencado por Gramsci (2010), autor cujo fala sobre uma reforma intelectual e moral de orientação político-cultural

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na sociedade. Para o autor, o conceito de hegemonia se baseia no pensamento de que as classes dominantes se mantêm no poder não apenas pelo uso da coerção, mas também pelo emprego de um sofisticado sistema de dominação por meio da persuasão, do convencimento e da conquista do consentimento por parte dos dominados, que compõem um grupo heterogêneo dentro da sociedade.

A hegemonia, portanto, se configura na capacidade de um grupo em unificar a partir do seu projeto político um bloco mais amplo, exercendo sobre ele uma liderança intelectual e moral, ultrapassando interesses econômicos imediatos para manter articuladas essas forças heterogêneas de maneira não coercitiva. Nesse cenário, as lutas das classes subalternas tornam-se ou fragmentadas ou passivas, e uma ação coerente deve ser conduzida por uma nova visão de mundo, unitária e crítica, ademais, “para conseguir isso, é preciso criticar a concepção imposta às classes subalternas, superá-la, tendo em vista construir uma concepção nova” (GRAMSCI, apud GRUPPI, 1978, p. 69). Gramsci (2010) defende que os mesmos aparelhos utilizados pela classe dominante poderiam ser utilizados para a formação da consciência crítica, até porque a revolução não viria sem um amplo trabalho de preparação e conscientização das massas, propiciando assim uma nova concepção intelectual e moral incorporada por um movimento social concreto a ser a partir disso transformada em ação prática.

Passando, portanto, a compreender o conceito de cultura sociologicamente, e levando em consideração as disputas de hegemonia e contra-hegemonia presentes no conceito de tradição seletiva da cultura, podemos avançar para a esquematização de outro conceito chave importante para o nosso trabalho: o da representação – afinal é ela quem conecta o sentido e a linguagem à cultura (HALL, 2016, p. 31). Como já dito, com a virada cultural, o sentido passou a ser central para a compreensão das práticas culturais. Então antes mesmo de discorrer sobre as diversas possibilidades de identidades, é preciso compreender o que de fato significa a representação.

1.2. Uma abordagem sobre representação

Assim como todas as demais classes, é através da representação que a classe camponesa percebe a si própria, bem como é percebida, é pela representação que fazem dela, ou que ela própria enquanto classe pode fazer de si mesma, que a identidade camponesa se constitui enquanto cultura, enquanto prática cultural material e concreta de similaridade e

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distinção. É nesse sentido que ressaltamos, antes da própria identidade constituída, a noção de representação, que segundo Hall (2016) significa utilizar a linguagem para expressar algo sobre o mundo. Ainda segundo o autor, sem esses sistemas de significação que envolvem a linguagem na produção de sentido, os quais chamamos de representação, seríamos incapazes de adotar, ou até mesmo de rejeitar identidades.

Passemos então à abordagem social construtivista, ou o chamado construtivismo social, onde a representação é concebida como parte constitutiva das coisas (HALL, 2016, p. 25), e mais ainda, onde abordamos o sentido sendo concebido através da linguagem, sendo construído através dela, e não refletindo um significado supostamente já existente, ou expressando somente aquilo que se queria intencionalmente expressar, como é o caso das outras duas abordagens referentes à representação, respectivamente, a abordagem reflexiva e intencional. Adotando, portanto, uma abordagem que não vislumbra o significado vindo nem das coisas em si próprias, e nem somente das nossas mentes, passamos a compreender que a representação diz respeito à produção de sentido pela linguagem: e a partir daí não podemos ignorar que a linguagem deve ser vista como um sistema representacional, um meio, seja ele de palavras, ações, sons ou imagens que carregam sentido, tendo como termo geral para esses elementos a palavra signo.

É a partir dessa troca significativa onde construímos sentido, ou seja, da utilização de signos através da linguagem na intenção de expressarmo-nos, que ao representar algo nos comunicamos, conseguimos estabelecer uma relação social e partilhamos sentido. Quando isso ocorre, podemos dizer que somos capazes de utilizar códigos culturais, podemos dizer, por fim, que partilhamos da mesma matriz cultural, da mesma cultura. Quando nos tornamos inteligíveis para outras pessoas, podemos dizer que realizamos uma comunicação. São esses códigos que estabelecemos nas relações sociais que fomentam processos de identificação, são eles que fixam o sentido, os significados em geral na cristalização de práticas culturais. Mais uma vez notamos como o significado dos signos, ou seja, das palavras, das ações, dos sons ou das imagens, não estão neles próprios, nem mesmo tão somente no nosso imaginário, mas sim, na linguagem enquanto prática construtiva.

Apresentam-se assim, segundo Hall (2016), dois sistemas de representação: primeiro temos o conjunto de representações mentais que nós mesmos carregamos: não como uma coleção aleatória de conceitos, mas sim organizados, dispostos e classificados a partir de relações neurais complexas – são constituídos verdadeiros mapas conceituais na nossa mente; por conseguinte, a linguagem é propriamente o segundo sistema de representação, onde traduzimos o nosso mapa conceitual de maneira inteligível ao mundo externo, é onde o

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processo de representação se materializa, relacionando conceitos mentais a signos físicos: sejam eles visuais ou sonoros. Vale ressaltar aqui, que signos visuais também são chamados de icônicos, por carregarem certa semelhança com aquilo que querem expressar na realidade; já signos escritos ou ditos são chamados de indexicais, por não carregarem nenhuma relação óbvia com as coisas às quais se referem.

São a partir dessas práticas de representação, com as quais nos relacionamos desde a nossa infância, que estabelecemos relações de identificação e através disso cristalizamos a nossa cultura. É assim, construindo sentido a partir de ações de comunicação na sociedade que os sujeitos podem assimilar ou até mesmo negar processos identitários, pode se observar como parte integrada ou excluída, pode se ver como explorado ou explorador, pode exercer hegemonia ou contra-hegemonia. Não é diferente com a identidade camponesa, e para além de compreendê-la na sua especificidade, é necessário anteriormente compreender como se constituem sistematicamente as identidades culturais num ambiente macro localizado, e para isso nos voltamos às contribuições de outro autor clássico nos estudos culturais, Manuel Castells.

1.3. Um abordagem sobre identidade

Para Castells (2010) a construção da identidade, como fonte de significado e experiência, se dá através de um “conjunto de atributos culturais interrelacionados, os quais prevalecem uns sobre outros.” (CASTELLS, 2010, p. 22), para o autor, as identidades organizam significados, sendo fontes mais importantes que os papéis a serem desempenhados pelos atores sociais, inclusive porque estes, diferente das identidades, organizam tão somente funções na sociedade. Ainda segundo o autor, um determinado indivíduo ou até mesmo um ator coletivo, pode possuir em si mesmo a condição de conter identidades múltiplas: pluralidade essa fonte tão somente da tensão e da contradição, seja na auto representação ou na ação social de representar tal indivíduo ou ator coletivo. Ou seja, fica evidente aqui, que longe de uma aleatoriedade fluída, as identidades são produtos de relações sociais estabelecidas entre agentes, nessa disputa simbólica de caracterização cultural, onde se inscrevem também as relações de hegemonia e contra-hegemonia no âmbito do concreto, do material.

A partir disso, o autor categoriza três tipos de identidades culturais: o primeiro deles se refere à identidade legitimadora, relacionada com as “instituições dominantes da sociedade no

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intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais" (CASTELLS, 2010, p. 24); o segundo tipo se baseia na identidade de resistência, estabelecida através dos:

atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica de dominação, construindo assim trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostos a estes últimos. (CASTELLS, 2010, p. 24).

E por fim, temos o terceiro tipo: A identidade de projeto, quando os atores sociais “constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade, e ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura social.” (CASTELLS, 2010, p. 24). Vale ressaltar que Castells (2010) deixa bem evidente o fato de que nenhuma identidade pode constituir uma essência, ou seja, nenhuma das categorias encerra por si mesmo valor progressista ou retrógrado fora de seu contexto histórico.

Sobremaneira, seria a identidade legitimadora quem dá origem a sociedade civil: ao conjunto de organizações e instituições, bem como a série de atores sociais estruturados, embora muitas vezes de maneira conflitante. É a identidade legitimadora quem racionaliza as fontes de dominação estrutural, não só através da dinâmica do Estado, mas de uma série de aparatos que o prolongam na sociedade civil: é aí onde se percebe uma dominação internalizada e a legitimação de uma identidade imposta profundamente arraigada entre as pessoas.

A identidade de resistência, por sua vez, leva à formação de comunas ou comunidades dentro dessa estrutura de sociedade imposta, são formas de resistência coletiva através de uma identidade defensiva cuja reverte o julgamento de valores, ao mesmo tempo em que reforça os limites da resistência: se transforma o que seria pejorativo em parte constitutiva do sujeito, reconfigurando-se como motivo de orgulho. É justamente a partir dessa resistência comunal que pode originar-se a identidade de projeto: ela consiste num projeto de vida diferente daquele imposto, com base numa identidade oprimida que se expande no sentido da transformação social. A identidade de projeto pode vir a tornar-se uma identidade legitimadora, até porque ela não ter por intuito ser uma mera alternativa à ordem imposta, convivendo com ela na marginalidade, mas sim, seu objetivo é realmente transformar ou até mesmo revolucionar a cultura de maneira ampla, estabelecendo-se e legitimando-se.

A partir desse pensamento conseguimos compreender a dinâmica das identidades a partir de um viés que envolve a luta de classes, e esse recorte teórico e metodológico será essencial para a compreensão e para o desenvolvimento desse trabalho. É nesse sentido que

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também abordamos as contribuições quanto aos estudos de identidade feitos por Ademar Bogo (2010), autor esse que esquematiza em seu livro como se desenvolve o conceito de identidade, e remonta as discussões ao século 5 A.C. – quando o filósofo Parmênides aborda pela primeira vez o tema ao dizer que “tudo o que é, é [...] só o ser é, e o não ser não é” definindo a identidade como algo presente e estático. Somam-se também, um século depois, as contribuições de Aristóteles, o qual diz que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo, estabelecendo o princípio do “terceiro excluído”, “afinal toda coisa deve ser ou não ser, pois não existe uma terceira possibilidade” (BOGO, 2010, p. 32). A afirmação aristotélica sobre o ser, entretanto, já não era mais estática, pois para ela tudo o que existe tende para um vir a ser, justamente porque estão sob a fatalidade do movimento, que associa e dissocia os átomos.

Bogo (2010) ainda destaca que mais tarde Hegel retomará a questão, afirmando a existência de duas naturezas, sendo uma a própria criação espontânea da natureza, e outra criada pela intervenção humana: a cultura. Nesse momento o autor chega às elaborações de Marx e Engels, no século XIX, estudiosos os quais falam das coisas em constante transformação pelo movimento das contradições na história da sociedade, onde ocorrem os conflitos entre as classes sociais. A partir desse conceito, se ultrapassa a ideia estática da identidade enquanto “o que é, é” para a pensarmos a partir da dialética materialista, onde “as coisas são, e ao mesmo tempo, não são mais puramente, pois decorrem de processos anteriores” (BOGO, 2010, p. 34). Um exemplo é citado por Bogo:

Quando um marceneiro toma um pedaço de madeira para fazer uma mesa, transforma não só a madeira em mesa, mas uma ideia em mesa; e transforma-se a si próprio porque aprende. Tanto assim que, ao terminar a mesa, nem a madeira, nem a sua ideia e nem o próprio marceneiro são a mesma coisa – o marceneiro elevou as suas habilidades, num processo de intensas negações. (BOGO, 2010, p. 35).

É nesse pensamento, o qual reflete sobre a realização de uma ideia, onde Bogo (2010) afirma que o ponto de partida da história humana é a existência dos indivíduos que, produzindo seus meios de vida, produzem não só os instrumentos de trabalho, mas também sua capacidade de produtores como e enquanto seres sociais, ou seja, criam a própria identidade. É a partir dos objetos que produzem que os sujeitos se diferenciam dos demais, portanto é na unicidade entre a natureza e a intervenção humana que produz cultura, em oposição a outras identidades, que uma identidade em específico se manifesta.

Para além da identidade biológica - também citada por Bogo (2010), a partir da qual se formam comunidades, ecossistemas e a bioesfera de maneira geral, e as relações de

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semelhança e diferença constituem equilíbrio para a natureza, onde inclusive nem a força, nem a ideologia fundamentam as relações, mas sim a dependência e a cooperação - existe também a identidade histórica. A identidade histórica carrega em si os conflitos presentes nas lutas de classes, e é onde se dá a divisão do trabalho e da propriedade privada, no estabelecimento da sociedade dividida em classes, as quais possuem interesses mais do que de diferentes, são eles de fato contrários e antagônicos.

O trabalho, que a princípio é parte constitutiva da identidade humana, no capitalismo transforma-se numa atividade desumanizadora, através dele se estabelece o “tripé das perversidades do capital: a exploração, a dominação e a alienação” (BOGO, 2010, p. 43). O trabalho alheio é apropriado por um grupo minoritário, e seus lucros, na forma de mais-valia, são investidos para melhorar as forças produtivas e para garantir a sua própria reprodução enquanto classe dominante. Por fim, sob o comando do capital, o trabalhador despojado dos seus meios de subsistência, se vê na obrigação de vender sua única mercadoria, configurada como a sua força de trabalho, e lhe resta então uma identidade de subordinação:

Quanto mais o trabalhador produz, tanto menos tem de consumir; quanto mais-valor cria, tanto mais sem valor e mais indigno se torna; quanto mais refinado o produto, tanto mais deformado o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente se torna o trabalhador; quanto mais brilhante e pleno de inteligência o trabalho, tanto mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna servo da natureza. (MARX, apud BOGO, 2010, p. 43).

Com esses conceitos elencados podemos agora partir para a análise daquilo que configura a identidade camponesa em sua especificidade. Não há como dissociar identidade alguma dos esquemas teóricos já elencados, mas principalmente a identidade camponesa, a qual como já citado, tem uma relação profunda e histórica com a constituição da cultura humana enquanto prática social. Ou seja, se existem relações de hegemonia e contra-hegemonia, dentro de uma perspectiva de cultura a partir dos estudos nas ciências sociais, especificamente através de conflitos de classe visualizados pelo prisma da teoria crítica do materialismo dialético, e se as identidades podem ser legitimadoras, de resistência e de projeto, todas essas categorizações podem ser levadas a contextualização na perspectiva de pensar o campesinato e a cultura camponesa.

Afinal, o agronegócio, o latifundiário, o rentista dos commodities agrícolas, pode muito bem enquadrar-se dentro da perspectiva hegemônica das identidades legitimadoras; e a identidade de resistência ser atrelada aos movimentos sociais camponeses como é o caso do MST, com suas ocupações, acampamentos, marchas e atos públicos em defesa da

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desapropriação de terras, dos direitos trabalhistas e previdenciários, por qualidade de vida nos assentamentos e políticas de crédito rural para a produção, ou até mesmo em defesa da democracia de maneira geral; sem esquecer da identidade de projeto, a qual principalmente nas últimas duas décadas vem sendo responsável por conseguir responder aos novos desafios impostos pelo agronegócio dos agrotóxicos e da transgenia, relacionada a um outro projeto de produção de alimentos, com a agroecologia, a soberania alimentar, e uma reprodução da vida no campo sem exploração e opressão: tudo isso num movimento de contra-hegemonia, algo que configura a essência da identidade camponesa, objeto de análise do próximo capítulo.

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2. IDENTIDADE CAMPONESA E SUA ESPECIFICIDADE DE CLASSE

As palavras “camponês” e “campesinato” são das mais recentes no vocabulário brasileiro, aí chegadas pelo caminho da importação política. Introduzidas em definitivo pelas esquerdas há pouco mais de duas décadas, procuraram dar conta das lutas dos trabalhadores do campo que irromperam em vários pontos do país, nos anos 1950 (MARTINS, 1983, p. 21).

Antes de mais nada, vale afirmar, a partir das palavras de João Pedro Stedile (1999), dirigente nacional do MST e teórico do movimento, que o termo “camponês” “é, na verdade, mais um conceito sociológico e acadêmico, que até pode refletir a realidade em que eles vivem, mas não foi assimilado. Não sendo uma palavra popular.” (STEDILE, 1999, p. 31). Isso quer dizer que por mais que as próprias famílias camponesas não refiram-se a si próprias como camponesas, em alguns casos, o conceito será utilizado nesse trabalho para tratar teórica e metodologicamente daquilo que estabelecemos como um agente no campo que estabelece relações específicas de semelhança e de distinção, e portanto estabelece uma identidade cultural. É o que diz Horácio Martins:

A revificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificadade no contexto da formação econômica e social capitalista (CARVALHO, 2005, p. 23).

2.1. A concepção da identidade camponesa

Ademais, quando falamos de campesinato, é preciso remontar ainda mais além na história as preocupações de autores clássicos quanto às transformações sociais na virada do século XIX para o século XX, quando se estabeleciam duas concepções acerca da problemática camponesa no discurso do desenvolvimento do capitalismo. Para autores como Kautsky e Lênin, segundo Almeida (2003), o desenvolvimento capitalista não poderia comportar outras classes além da burguesia e do proletariado, portanto a descamponização era uma consequência inevitável. Já autores como Chayanov, citado também por Almeida (2003) propunham a convivência, e consequentemente, a permanência camponesa de forma insular à lógica do capital, a partir da teoria do balanço trabalho-consumo, numa racionalidade

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especificamente camponesa diferenciada do comportamento capitalista, baseada no núcleo familiar. Estabeleciam-se assim, dois grandes paradigmas: o da desintegração do campesinato, e da recriação camponesa: a descamponização e recamponização.

Chayanov, citado por Almeida (2003) se utilizava da “Teoria da Diferenciação Demográfica: isto é, seu argumento básico era que a produção camponesa se ampliava ou contraia, segundo o número de bocas e braços da unidade de produção” (ALMEIDA, 2003, p. 70). Esta era uma contraposição à teoria leninista da Diferenciação Social do campesinato, a qual se baseava no entendimento de que “o desenvolvimento do capitalismo na Rússia criou um pressuposto básico: um campesinato, que formará a burguesia rural; um médio que tenderá a desaparecer em direção a um dos polos”2

. A suposta classe camponesa era vista, portanto, pela teoria de Lênin apud Almeida (2003), como uma camada em transição, onde o campesinato pobre formaria o proletariado rural.

A família camponesa, como relata Almeida (2003), visa a partir da concepção de Chayanov (1974), unicamente a maneira mais fácil de satisfazer suas necessidades em consonância com o gasto da força de trabalho: seu objetivo é reproduzir-se enquanto unidade de produção econômica camponesa, ou seja, onde existem mais consumidores que trabalhadores, a renda diminui e o trabalho aumenta, e até mesmo os níveis de produção são mais ou menos regulados pelo número de integrantes na família. Já para Lênin (1985) o desaparecimento do camponês era visto como uma tendência histórica, para ele, a dependência crescente dos camponeses em relação ao mercado, seu assalariamento e a agroindustrialização davam andamento a isso.

Outros elementos ainda podem ser abordados quanto à Teoria da Diferenciação Demográfica, um deles é o avanço técnico e científico na unidade camponesa, referente à maquinários ou insumos agrícolas, por exemplo, o qual de forma alguma está ligado à incapacidade ou a falta de inteligência dos camponeses, mas a decisões ligadas ao balanço consumidores-trabalhadores. Ademais, faço das minhas as palavras de Almeida:

A opção de interpretações de Chayanov não implica em desconsiderar as contribuições que as obras de Kautsky e Lênin trouxeram ao entendimento do capitalismo no campo, porque o desvendamento da lógica da unidade familiar dentro do modo de produção capitalista só é possível pelo acúmulo teórico propiciado pelos estudos destes autores [...]. Resta afirmar que o possível engano teórico foi fazer a diferenciação do campesinato um padrão de desenvolvimento geral e irreversível, derivada da firme convicção de que o operariado era a classe revolucionária. (ALMEIDA, 2013, p. 80).

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Para a autora, falar de especificidade camponesa é admitir o não desaparecimento do campesinato, pelo contrário, é abordar as suas formas de recamponização, como no caso dos trabalhadores rurais sem terra no Brasil. Almeida (2003) ressalta também que a especifidade camponesa não se relaciona ao fato de representar um modo de produção, a sua especificidade está na constituição de uma classe cuja é proprietária da terra ao mesmo tempo que pertence à classe trabalhadora, organizada numa relação não-capitalista. Essa relação não-capitalista, por sua vez, trata-se de uma contradição e não de uma articulação de modos de produção dentro do capitalismo, segundo Oliveira:

a expansão do modo capitalista de produção (na sua reprodução ampliada do capital), além de redefinir relações antigas subordinando-as à sua produção, engendra relações não-capitalistas iguais e contraditoriamente necessárias a sua reprodução. (OLIVEIRA, 1981, p. 08).

Sua lógica não-capitalista tem como centro o grupo familiar, essa especificidade gera uma autonomia singular, na medida em que a terra e a força de trabalho estão amalgamados num só agente social (ALMEIDA, 2003, p. 86). O modo de produção e a reprodução da vida camponesa não são medidos pelo mercado, mesmo sendo esta classe, além de trabalhadora rural, também proprietária da terra, isso assegura a independência de seu trabalho, porque seu produto é produto acabado e porque, mesmo quando integrado à agroindústria, preserva a terra e o saber necessário à produção.

As necessidades de mercado não se sobrepõem às necessidades do grupo familiar, o que não deixa de inserir o campesinato na divisão de trabalho. Segundo Oliveira (1981) dentro do modelo capitalista de produção, o camponês se insere à medida que vende o produto de seu trabalho, diferente do operário, o qual vive uma sujeição real de seu trabalho ao capital. Ainda sobre o tema, para Martins apud Almeida (2003), o camponês se situa no mundo através de seu produto.

É nessa relação de conflito e contradição, frente à ameaça do capital – o qual não vê sentido na relação não-capitalista de produção camponesa, e por isso tenta desintegrá-la, que o camponês, com características a si atribuídas como o isolamento e o conservadorismo, se rebela contra a perda de sua condição camponesa. É justamente a tentativa de manter sua tradição camponesa que torna o camponês um revolucionário (ALMEIDA, 2003, p. 81). Afinal, segundo Martins (1991), contra a terra de negócio, tomada pelo capital, o campesinato reivindica a terra de trabalho, é contra essa imposição que essa classe resiste e luta, à medida

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que produz e reproduz sua vida no campo, ao mesmo tempo que cria e recria sua identidade com a terra, sua identidade camponesa.

Agora, para compreender melhor o conceito de Martins (1991) quanto à terra de trabalho e terra de negócio, é necessário retomar algumas outras reflexões que abarcam a renda da terra, e constituem o limiar entre uma e outra concepção de seu uso e ocupação. Em primeira instância deve-se salientar, sobretudo, o caráter rentista do capitalismo brasileiro em específico, desenvolvido no campo a partir de uma relação entre a indústria e agricultura (ALMEIDA, 2003, p. 92). O capitalismo no Brasil se expande à medida que gera o latifúndio, ou seja, grandes extensões de terra nas mãos de um grupo minoritário de proprietários, as quais não cumprem sua função social, cuja por sua vez se consubstancia em servir para a produção e reprodução da vida.

Em contradição, o capital ao expandir o latifúndio também gera a reprodução dos camponeses, e a predominância latifundiária não representa, entretanto, um entrave para o capitalismo, mas sim, a possibilidade, de através da especulação, produzir capital fora dos circuitos produtivos: revelando assim a sua face rentista já citada. É nesse ponto, por exemplo, que Martins (1994) aponta uma diferenciação entre o modelo europeu e o modelo brasileiro de desenvolvimento capitalista no campo: para o autor, no primeiro a produção e circulação de capital é central, já para o segundo, marcado pela dependência colonial, a acumulação de capital se dá através da tributação e da especulação, isto é, com base na renda da terra.

O conceito de renda da terra, ou renda fundiária, é basilar para a compreensão do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, bem como a classe que vive dessa renda, os proprietários da terra. Segundo Marx (1974), a renda fundiária é sempre sobra acima do lucro. A origem da renda fundiária surge com um grupo pequeno de proprietários do solo - do chão, da terra, em detrimento do restante da sociedade. Segundo Marx (1974), a renda fundiária se materializa a partir de quatro formas diferentes: 1. A renda absoluta, que diz respeito ao monopólio da terra, ou seja, pelo fato de alguém ter posse de uma extensão de terra através de sua compra, e dela extrair exploração; 2. A renda diferencial I, que se altera de acordo com a localização estratégica da terra e a sua fertilidade natural; 3. A renda diferencial II, que se refere à adição de capital nas diversas formas possíveis a fim de aumentar a fertilidade do solo; e 4. A renda de monopólio, gerada por condições edáfico-climáticas características de regiões em específico e não presentes em outras localidades, tornando-se únicas e portanto, gerando condições singulares de produção.

Assim passamos a compreender a apropriação capitalista da terra, a qual torna possível a subordinação do trabalho agrícola. Afinal, a renda paga ao proprietário da terra não nasce na

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produção, se configurando segundo Martins (1981) como uma dimensão oculta, onde o proprietário cobra da sociedade inteira, porque é ela mesma quem é atingida com tal monopólio: o autor ainda defende que parte do trabalho de todos os trabalhadores da sociedade é dessa forma expropriado. Nesse sentido, o autor também salienta a separação entre produção do capital – a partir de relações não-capitalistas de produção dominadas pelo capital, como é o caso da produção camponesa; e reprodução capitalista do capital, que embora possam não parecerem atreladas a esse sistema, o são, como é o caso da propriedade capitalista da terra.

Seguindo esse raciocínio, voltamos para Almeida (2003), autora que atesta o campesinato como uma classe que não vive exclusivamente da renda fundiária, porque a produção é seu meio de subsistência imediato. Há momentos em que seu trabalho excedente assume a forma de mercadoria, e é nessas conjunturas favoráveis, onde o núcleo familiar camponês destina para o mercado a parte de sua produção que vai para além das necessidades da família, que o capitalista intermediário se apropria da renda: a sujeição da renda da terra ao capital oculta-se nesse momento na circulação da mercadoria, por muitas vezes a baixo custo para as famílias camponesas. Reforçando esses pensamentos, Marx (1974) afirma que o camponês é proprietário livre da terra, a qual configura-se como principal instrumento de sua produção, seu verdadeiro campo de ação para trabalho e geração de capital, numa situação dúplice enquanto classe: é proprietário de terra e trabalhador, sem viver de salário porque o trabalho a ele pertence.

É nesse sentido que se faz a diferenciação entre terra de negócio e terra de trabalho, ou seja, é nesse embate quanto à função da terra que também se diferencia a condição camponesa da condição capitalista no campo, afinal, a terra de trabalho é responsável pela produção e reprodução da vida camponesa, enquanto a terra de negócio é vista como fonte de acumulação de riqueza, seja pela especulação, através dos latifúndios, seja pela produção primária desenvolvida no capitalismo, resumida principalmente aos commodities agrícolas, por exemplo. É nessa luta, travada entre camponeses que moram e vivem de seu pequeno pedaço de chão no campo e empresários do agronegócio, que por muitas vezes vivem mesmo nos centros urbanos, e até mesmo fora dos países de conflito, que se dá a recriação camponesa: sua identidade se fortifica e se renova, é através desse processo dialético de resistência a partir de cada embate e da sua própria condição como produtor de alimentos, seja para sua família num primeiro momento, seja para o mercado interno em caso de excedente na produção, que o camponês enfrenta o capital e para tanto se estabelece como um agente aquém da estrutura

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imposta, no intuito de transformar o sistema agrário vigente, e por consequência toda a dinâmica social que o processo de produção agrícola desencadeia na sociedade em geral.

O capital tem se apropriado diretamente de grandes propriedades ou promovido a sua formação em setores econômicos do campo em que a renda da terra é alta, como no caso da cana, da soja, da pecuária de corte. Onde a renda é baixa, como no caso dos setores de alimentos de consumo interno generalizado, o capital não se torna proprietário da terra, mas cria as condições para extrair o excedente econômico, ou seja, especificamente renda onde ela aparentemente não existe (MARTINS, 1981, p. 175).

Portanto, a luta pela terra se configura como uma luta contra o capital, e sobretudo, não é tão somente a policultura; o misticismo no cultivo da terra; ou tradições regionalistas que constituem a identidade camponesa, mas sim, a capacidade de resistência frente aos ataques e às ameaças do grande capital – figurados principalmente através do latifúndio e do agronegócio - a todos esses elementos identitários essenciais para a manutenção da vida camponesa, centrados no núcleo familiar em defesa da terra como instrumento de trabalho. É nesse conflito entre terra de trabalho e terra de negócio onde reside a sua especificidade, até mesmo quando este possibilita a recriação camponesa, como é o caso dos trabalhadores rurais sem terra, e mais posteriormente, com relação a implementação da agroecologia nos assentamentos rurais.

2.2. A constituição da classe camponesa no Brasil

Destacada, portanto, a especificidade camponesa de maneira geral, agora podemos remontar um breve histórico da constituição dessa classe no nosso país. Não é a intenção desse trabalho remontar os conflitos de classe de maneira aprofundada quanto a questão agrária brasileira, visto que nosso objetivo principal é saber como o Jornal Sem Terra do MST no Rio Grande do Sul representa a identidade camponesa através da comunicação contra-hegemônica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, entretanto, vislumbrando esse nosso objeto empírico como um produto histórico que é reflexo de toda uma trajetória de lutas camponesas que não começa com o MST, mas vai muito além na história, servindo como uma estratégia organizativa e formativa para o movimento, se faz essencial termos elencados os principais elementos históricos dessa problemática no presente trabalho. Para tanto, remontamos o pensamento de Florestan Fernandes:

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Por mais que possamos desejar o contrário, o capitalismo como modo e sistema de produção constitui uma manifestação tardia da evolução econômica e histórico-social do Brasil. Ele não estava incubado no antigo sistema colonial, organizado de forma capitalista apenas ao nível da mercantilização dos produtos tropicais; e ele se expandiu realmente graças à desintegração do sistema de produção escravagista (FERNANDES, 1979, p. 106, grifo do autor).

É nesse ponto que podemos abordar o início da vida camponesa brasileira, que é alvo de divergência entre autores que abordam o tema. Cardoso (1987) fala de um protocampesinato índio e negro existente no Brasil colônia a partir de uma brecha camponesa no período escravocrata, o que, segundo o autor, por muitas vezes não é admitido, fato decorrente da concepção classificatória na qual o escravo é visto a partir das necessidades do capital e não como sujeito social - não admitindo, portanto, suas atividades autônomas. Para Franco (1997), com a produção colonial de monocultura de exportação, a pessoa escravizada representava a renda capitalizada, nas atividades voltadas ao mercado, sobrando aos homens pobres livres as culturas subsidiárias, mesmo que a eles não tenha sido dado o direito à terra, restando a posse informal. Para o autor, o campesinato nasceria então a partir de homens expropriados, sem vínculos com a produção para o mercado, à margem do sistema colonial, a ele ligados por contradição.

Compreender, ademais, um protocampesinato a partir da população indígena e negra no Brasil Colônia é dizer que esses agentes não eram meras peças a serem comandadas pelas engrenagens do capital à medida que eram exploradas. Para além de seus trabalhos voltados ao mercado, ou da subordinação cultural, esses sujeitos não perdem sua condição identitária, sua noção de classe. Por mais que isso seja muito objetivado pelas forças do capital, que nos conflitos estabelecidos sempre intenta sequestrar qualquer elemento que remonte uma coletividade, uma vida social capaz de projetar um novo modo de organização, não confluente com seus interesses os quais se referem a manter a ordem do sistema de exploração estabelecido. Ignorar o campesinato nesse aspecto é negligenciar todos os movimentos de resistência existentes nesse período, os quais inclusive foram essenciais para o fim do período escravagista no Brasil, somados também a outros elementos históricos, tais como os quilombos, por exemplo.

Um divisor de águas, sem dúvida, é a Lei de Terras de 1850, umas das primeiras leis brasileiras depois da independência, quando a terra torna-se mercadoria e o campesinato toma outra forma: o laço que agora subjugará o trabalho livre é a propriedade fundiária. Segundo Almeida (2003) com a iminência da abolição, teremos o oposto do período escravagista: a concentração fundiária como produto do comércio negreiro do Brasil Colônia, na República

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se reconfigura e o monopólio de classe sobre a terra se torna fator de sujeição do trabalho. Com o advento da terra como mercadoria, a terra de negócio, locais à margem da economia colonial, onde o processo de ocupação foi bastante irregular, foram espaços de muitas convulsões sociais: a demarcação de terras e o desenvolvimento de programas de colonização, “significava expulsar posseiros, bem como desrespeitar o direito costumeiro dessas populações. Não é por menos que os movimentos messiânicos tiveram como palco o sertão da Bahia e o sertão do Contestado.” (ALMEIDA, 2003, p. 104).

O movimento político, por sua vez, veio a ocorrer na década de 1950, com as Ligas Camponesas e a sindicalização no campo. O processo de formação das Ligas, segundo Almeida (2003), está diretamente ligado à expulsão e à exploração dos foreiros do Nordeste em função do novo surto do açúcar; e dos sindicatos ao futuro assalariamento dos trabalhadores expulsos. O que fica evidente, sobretudo, é o fato de que os vários movimentos surgidos entre o final da década de 1940 e o golpe de 1964 possuíam um elo que se baseava na resistência em pagar a renda da terra – o que, por sua vez, evidencia mais uma vez o papel central que a terra possui no desenvolvimento capitalista brasileiro, favorecendo a acumulação de capital através da renda da terra. A desarticulação das Ligas, entretanto, é atribuída ao isolamento no qual elas se colocaram quando fizeram a opção pela Reforma Agrária Radical, diferente da Reforma Agrária Popular que conhecemos hoje: em oposição a essa última, a proposta apoiada pelas Ligas Camponesas encarava o campo como um setor decisivo no projeto de revolução, o que levou esses movimentos a não compor a Frente Única preconizada pela esquerda brasileira na época.

A partir desse panorama, trazemos a tona um esquema elencado por Bogo (2010), o qual considera a natureza constitutiva do nosso país, tanto histórica como regionalmente falando, a partir de cinco diferenciações, para então assim poder classificar a identidade camponesa de maneira objetiva e pedagógica, centradas a partir de i. Características das atividades produtivas com a força de trabalho familiar, evocando aqui figuras como as quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, seringueiros, lavradores, colonos, pequenos agricultores, sertanejos nordestinos, meeiros e assentados; ii. Condições sociais e históricas sem definição de propriedade, tais como os quilombolas, posseiros, agregados, rendeiros, meeiros, sem terra e acampados; iii. Módulos de localização geográfica e residencial, podendo relacionar aqui representações camponesas como é o caso de ribeirinhos, extrativistas, cizaleiros e fundo de pasto; iv. Relações de trabalho assalariado com camponeses que extraem boa parte de sua renda a partir da venda da própria força de trabalho, como por exemplo os diaristas, vaqueiros, chacareiros e peões; e por fim v. caboclos e comunidades indígenas.

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Esse esquema nos dá uma dimensão bem objetiva sobre a diversidade existente dentro da identidade camponesa: todas essas diferenciações de nomenclatura e categoria se reverberam em distinções no que diz respeito ao trato com a terra e a natureza nos diferentes modos de produção; aos diversos conflitos históricos que formaram a realidade agrária do nosso país; às regionalidades presentes no campo brasileiro; às relações de trabalho estabelecidas a partir do desenvolvimento do capitalismo na agricultura; bem como às diferentes concepções culturais e étnicas presentes no interior desse campesinato. Não há como negar, porém, que mesmo com tudo isso, há uma especificidade no tocante ao campesinato, quando assinalamos que todos esses grupos se identificam entre si à medida que se relacionam com a terra – sendo dela proprietários legais ou não – a partir de uma centralidade no trabalho que dará conta de suprir as necessidades do seu próprio núcleo familiar a fim de reproduzir as suas condições de vida.

É essa concepção, que encara a terra como uma terra de trabalho, que fornece as condições para a reprodução da vida camponesa a partir de seu núcleo familiar, que não consegue ser assimilada pelo capital - este por sua vez só vê vantagens em viabilizar a utilização e ocupação da terra vista como terra de negócio, ou seja, a terra que gera lucro através de sua exploração cada vez mais estimulada. Nesse sentido, a constituição e recriação da identidade camponesa não se dá em outro prisma se não no da resistência ao sistema capitalista que a todo custo tenta desintegrá-la. A própria reprodução e recriação da vida camponesa, por si só, é uma resistência e se configura como uma contradição do sistema capitalista. Por isso o campesinato está num constante processo de dissolução e afirmação, que segundo Bogo (2010), pode ser caracterizado também a partir de cinco vieses diferentes.

O primeiro seria a dissolução e a afirmação da história, a partir da concepção de que a identidade camponesa tem sua afirmação histórica de constituição e resistência a partir dos relatos históricos onde se comprovam os feitos, sua dissolução ocorre com ela sendo contada pela ótica dominante. Bogo (2010) afirma que isso ocorre no Brasil numa forma de violência cultural desde a chegada dos portugueses, com a colonização, passando pela escravidão e os processos de migração, mas também destaca que a resposta à dissolução histórica é a organização social, onde problemas sociais provocam as mobilizações e estas estruturam-se em lutas que dão forma à classe social: das lutas agrárias ocorridas ao longo da história do nosso país, resulta finalmente a formação dos movimentos sociais do campo a partir de meados da década de 80.

O segundo seria a dissolução e a afirmação da identidade, onde o campo é visto, a partir de interesses externos, como um atraso, e se desenvolvem preconceitos de si para si

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