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O teatralização do "eu" na linguagem do poema em Cecília Meireles

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Academic year: 2021

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A TEATRALIZAÇÃO DO “EU” NA LINGUAGEM DO POEMA EM CECÍLIA MEIRELES

Tese de doutoramento submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutor em Literatura. Orientadora: Profa. Dra. Susana Célia Leandro Scramim.

Florianópolis 2019

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Prado, Erion Marcos do

A teatralização do "eu" na linguagem do poema em Cecília Meireles / Erion Marcos do Prado ; orientador, Susana Célia Leandro Scramim, 2019.

308 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura,

Florianópolis, 2019. Inclui referências.

1. Literatura. 2. Literatura Brasileira. 3. Teoria Literária. 4. Poesia. 5. Cecilia Meireles. I. Scramim, Susana Célia Leandro. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

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à Dionara e ao Ulisses, por me fazerem companhia nessa viagem literária.

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Scramim, por ter sido minha guia nessa jornada, e por ter se mostrado sempre pronta a ajudar todas as vezes em que precisei.

Aos meus pais, por terem me ensinado desde a infância o amor pela literatura.

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Apresentação

Aqui está minha vida – esta areia tão clara com desenhos de andar dedicados ao vento. Aqui está minha voz – esta concha vazia, sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor – este coral quebrado, sobrevivendo ao seu patético momento. Aqui está minha herança – este mar solitário, que de um lado era amor e, do outro, esquecimento. (MEIRELES, 2001, p. 606)

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brasileiro. Se esse foi um movimento de grande transformação não apenas na literatura brasileira, como também em produções literárias de outros países, é discutido, aqui, de que forma aquilo que Cecília Meireles produziu para a revista

Festa está inserido no momento histórico em que surgiu, e também como isso

reverbera em sua produção literária como um todo. Se os escritores de Festa foram considerados como uma linha dissidente da literatura brasileira, a participação de Cecília Meireles junto a esse grupo de escritores parece representar sua tomada de posição diante de tudo o que estava acontecendo no meio artístico brasileiro na primeira metade do século XX, como também é algo que perpassa sua obra poética como um todo, já que é desse grupo que ela herda uma noção de ser e de poesia diferente da noção apresentada pelas outras correntes do modernismo brasileiro contemporâneos a ela. O que também influenciou a forma como sua obra foi lida por alguns críticos da época. Se sua escrita parte do eu, aí ele é apenas uma representação ou uma teatralização das máscaras que a poeta usa ao longo de sua trajetória literária.

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The thesis reflects on how the work of Cecilia Meireles is inserted in Brazilian modernism. If this was a movement of great transformation not only in Brazilian literature, but also in literary productions in other countries, it is discussed here how Cecília Meireles produced for Festa magazine is inserted in the historical moment in which it appeared, and also how this reverberates in his literary production as a whole. If Festa's writers were considered as a dissident line of Brazilian literature, Cecília Meireles' participation with this group of writers seems to represent their position in the face of everything that was happening in the Brazilian artistic milieu in the first half of the twentieth century, but it is also something that pervades her poetic work as a whole, since it is from this group that she inherits a notion of being and poetry different from the notion presented by the other currents of Brazilian modernism contemporaneous with her. This also influenced the way his work was read by some critics of the time. If his writing is part of the self, then it is only a representation or a theatricalisation of the masks that the poet uses throughout his literary trajectory.

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La thèse porte sur le travail de Cecilia Meireles et sur la manière dont ce travail s’insère dans le modernisme brésilien. S'il s'agit d'un mouvement de grand transformation non seulement dans la littérature brésilienne, mais aussi dans les productions littéraires d'autres pays, on discute ici de quel manière ce que Cecilia Meireles a produite pour le magazine Festa est insérée dans le moment historique où elle est apparue, et aussi comment cela répercute dans sa production littéraire dans son ensemble. Si les écrivains de Festa étaient considérés comme une ligne dissidente de la littérature brésilienne, la participation de Cecília Meireles à ce groupe d'écrivains semble représenter leur position face à tout ce qui se passait dans le milieu artistique brésilien dans la première moitié du vingtième siècle, ainsi que quelque chose qui semble imprégner son travail poétique dans son ensemble, puisque c’est de ce groupe qu’elle hérite d’une notion d’être et de poésie différente de celle présentée par les autres courants du modernisme brésilien contemporains. Cela a également influencé la façon dont certains critiques de l’époque ont lu son travail. Si son écriture parte du soi, alors le poète utilise tout au long de sa trajectoire littéraire une représentation ou une théâtralisation des masques. Mots-clés: Cecilia Meireles. Masques. Poésie.

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Figura 2 – Reprodução do desenho O cacto, de Correia Dias ... 69 Figura 3 – Reprodução de desenho do livro Batuque, samba e macumba, de Cecília Meireles ... 152 Figura 4 – Capa da primeira edição do livro Viagem, de Cecília Meireles ... 156 Figura 5 – Página da revista Festa. Documento digitalizado ... 165

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2. AS PUBLICAÇÕES DE CECÍLIA MEIRELES NA PRIMEIRA FASE

DA REVISTA FESTA (1927 A 1929) ... 19

2.1 OS PRIMEIROS “CINCO POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES” PARA A REVISTA FESTA ... 22

2.2 CECÍLIA MEIRELES E O CANTO DA JANDAIA ... 79

2.3 A POETA E O CARNAVAL ... 91

2.4 A POETA, A POESIA E A TERRA ... 117

2.5 A POÉTICA DA SOMBRA ... 140

3 CECÍLIA MEIRELES E A SEGUNDA FASE DA REVISTA FESTA..147

4 CECÍLIA MEIRELES E O MODERNISMO BRASILEIRO: O GRUPO FESTA ... 172

5 CECÍLIA MEIRELES: FORTUNA CRÍTICA ... 185

6 AFINAL, QUEM FOI CECÍLIA MEIRELES ... 205

6.1 CECÍLIA MEIRELES E A NECESSIDADE DE DIZER EU ... 212

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 228

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 232

ANEXOS ... 245

ANEXO A – Cinco poemas de Cecília Meireles... 246

ANEXO B – Discurso que Cecília Meireles deveria pronunciar no dia da entrega dos prêmios ... 247

ANEXO C – A anta e o carrapato ... 252

ANEXO D – O último e doloroso quadro ... 253

ANEXO E – O cântico desfolhado da paisagem ... 254

ANEXO F – Poema de uma outra vida ... 255

ANEXO G - Cecília, agora museu... 256

ANEXO H – Trabalho feminino no Brasil ... 257

ANEXO I – Cecília ... 272

ANEXO J – Arquivos implacáveis ... 273

ANEXO K – História de uma letra ... 274

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1 INTRODUÇÃO

Cecília Meireles foi uma voz dissonante no modernismo brasileiro. Mesmo tendo estreado na literatura brasileira muito próximo da semana de arte moderna (seu primeiro livro de poemas, Espectros, é de 1919), não fez parte do grupo de escritores que promoveu o modernismo que se fundamentou nas vanguardas europeias para produzir arte. Cecília fez parte do grupo de escritores da revista Festa, que surgiu no cenário literário nacional cinco anos depois da Semana de arte moderna e que se aproximou não só dos escritores simbolistas, mas também do ideais filosóficos orientais. A religiosidade defendida pelo grupo Festa buscou no Oriente o modo de ver o homem, o mundo e a vida. O que fez com que esse grupo de escritores se afastasse do grupo de artistas que participou da semana de arte moderna, de 1922.

Festa, assim como outras vertentes do modernismo brasileiro da época,

reivindicou para si a representação daquilo que os escritores desse grupo entendiam que seria o verdadeiro fazer literário moderno brasileiro daquela época.

Contudo, mesmo tendo participado ativamente do surgimento da revista

Festa, e tendo contribuído desde o primeiro número desse periódico com

poemas, desenhos, entrevistas e crônicas, em ambas as fases da publicação do periódico, Cecília Meireles exclui sua atuação no grupo de Festa de sua Poesia

reunida, lançada em 1958. E não foi apenas sua produção para Festa que

Cecília Meireles rejeitou ao organizar essa reunião de poemas, mas também seus três primeiros livros de poema. Todo esse material não apareceu no volume que conteria, segundo a própria autora, toda sua produção poética até aquele momento.

Por Cecília Meireles escrever uma lírica que parte, sobretudo, do eu, em sua poesia percebem-se traços da sua subjetividade poética, o que fez com que alguns leitores quisessem relacionar acontecimentos da vida real da escritora com aquilo que ela dizia em seus textos. Mas ao leitor o que deve ficar claro é que, na obra de Cecília Meireles, como em qualquer obra literária, sua vida não tem nada a ver com sua escrita, ou melhor, o vivido não tem relação com o poetado, porque a poeta cria uma vida nova em sua poesia.

Cecília Meireles foi uma intelectual ativa na sua época. Ela viajou ao redor do globo ministrando cursos sobre cultura popular, literatura brasileira, folclore, e chegou a visitar a Índia em 1953 para proferir uma palestra sobre Mahatma Ghandi. O contato com diferentes culturas, o acesso a um modo de

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vida diferente do modo de vida brasileiro, dentre outras coisas, parece ter influenciado sua forma de ver o mundo e de fazer literatura.

A proposta desse trabalho é de realizar, na leitura da obra de Cecília Meireles, aquilo que o próprio eu lírico do poema “Apresentação” propõe, ou seja, um olhar atento e minucioso sobre o fazer literário de Cecília Meireles para, a partir do que se encontra na materialidade dessa obra, organizar uma leitura da poesia dessa poeta. Porque, como sugere esse poema, é em sua obra que está sua vida, sua existência como poeta. E não em outro lugar.

Para tanto, será feita uma análise de toda a produção poética de Cecília Meireles para as duas fases da revista Festa, na tentativa de perceber qual concepção de literatura, de modernidade, de poesia, dentre outras coisas, impera nesse grupo e como isso aparece no que Cecília publicou em Festa. Com isso, pretende-se verificar se há ou não um projeto literário realizado por Cecília Meireles ao longo de sua obra, inclusive na parte de sua produção rejeitada pela própria autora. Se os ideias de Festa influenciaram a produção poética de Cecília Meireles como um todo, isso torna questionável a linha divisória entre poesia de estreia e poesia de maturidade traçada pela poeta e ratificada por alguns críticos, como Leila Gouvêa e Alfredo Bosi. Para tanto, Será analisado o poema “Casulo” e a partir dele será feita a verificação de como a poeta trabalha um tema que surge a partir de Festa na sua obra de maturidade.

Mesmo que o discurso poético do grupo Festa tenha afastado essa corrente da literatura brasileira dos outros grupos do modernismo, ainda assim parece haver, entre eles, uma aproximação da temática trabalhada pelas diferentes correntes do modernismo, em diferentes manifestações artísticas daquela época. O que pode ser uma evidência de que por mais que tenha tentado circular à margem dos outros grupos de escritores, Festa esteve inserido no fazer literário de seu tempo.

O poema-prefácio “Nós temos uma visão clara desta hora” será analisado para demonstrar qual é a poética defendida por Festa, e verificar qual projeto literário eles efetivamente defendiam nessa revista. Será feita, também, uma comparação entre o artigo “a anta e o carrapato”, de Henrique Abílio, e o que Mário de Andrade defendeu em seu artigo “Primitivos”, publicado no número 27 da Revista da Academia Paulista de Letras, de setembro de 1944.

O poema “Reinvenção”, de Cecília Meireles, será lido para se verificar como se configura a poética da reinvenção do mundo moderno, que parece ter sido proposta por Festa, na obra dessa escritora, o que pode ser um dos traços da participação de Cecília Meireles na revista Festa que permanece ao longo de sua obra poética. Será também feita uma comparação da forma como Manuel

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Bandeira e Cecília Meireles trabalham com o cacto, um tema presente nos mais diferentes fazeres artísticos daquela época.

Cecília Meireles e o grupo Festa também trabalham a questão do ser nacional, e o poema “o canto da jandaia” de Cecília Meireles, pode demonstrar quais são as fontes que a poeta usa para tratar desse tema. Além disso, esse poema pode ser um exemplo de como Cecília Meireles dialoga com autores do romantismo brasileiro e como ela tenta criar uma outra ideia de brasilidade partindo desse e de outros diálogos.

O carnaval foi outra temática muito significativa na época, por isso, ao se analisar o poema “o carnaval” que Cecília publicou em Festa, ele será lido ao lado do livro O carnaval, de Manuel Bandeira, e também do poema “O carnaval carioca”, de Mário de Andrade.

Serão também analisados os textos intitulados “poemas”, que parecem ser obras metaliterárias, e o poema “sombra”.

E mesmo que a atuação de Cecília Meireles na segunda fase de Festa tenha sido mais curta, o que se tentará demonstrar ao tratar dessa parte da revista

é que nessa época Cecília estava mais preocupada com outros projetos que estava realizando no modernismo brasileiro, e também essa parte de sua produção para Festa pode evidenciar mais a aproximação entre a produção de Cecília Meireles para Festa e seu projeto literário propriamente modernista, que foi realizado a partir de Viagem.

Em seguida será discutido de onde partiu a modernidade apresentada pelo grupo Festa e quais são as singularidades dessa modernidade.

Será feita, também, uma revisão bibliográfica da crítica que alguns autores fizeram da obra de Cecília Meireles e se há ou não alguma relação entre os pontos de vista da crítica e a obra de Cecília Meireles. E por último será demonstrado como o eu lírico desses poemas é fruto da teatralização do eu realizada a partir do trabalho da poeta com a linguagem. Para tanto serão abordados os poemas “Biografia” e “Mulher ao espelho”.

Se Cecília quis excluir parte de sua produção artística de sua obra poética, foi porque renegava o que havia dito aí ou isso também seria fruto do controle que o eu lírico quis manter sobre o nome de autor que queria que chegasse ao leitor dessa obra?

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2. AS PUBLICAÇÕES DE CECÍLIA MEIRELES NA PRIMEIRA FASE DA REVISTA FESTA (1927 A 1929)

Mesmo tendo estreado na literatura brasileira em 1919, com o livro

Espectros, Cecília Meireles não participou da semana de arte moderna de

1922. A literatura que produziu nessa época se aproximou muito mais do grupo de escritores da revista Festa do que do modernismo que partiu de Graça Aranha, Oswald de Andrade e Mário de Andrade.

Para os poetas do grupo Festa, a modernidade teria gerado um alargamento dos domínios da poesia, que não deveria se sujeitar às outras formas artísticas, mas tirar delas elementos que lhe dessem vitalidade nova, já que a literatura se tornava cada vez mais fruto de construção, de labor. Além disso, o poeta deveria levar em conta o fato de que o homem percebia o mundo ao seu redor através dos sentidos, o que gerava uma literatura combinada, sintética, mais veloz. Por isso as sinestesias deveriam estar presentes no novo fazer poético, o que acabava sendo mais um elemento de aproximação entre a poesia desse grupo e aquela produzida pelos simbolistas, que assumiam as “Correspondências”1 (poema de Baudelaire, espécie de arte poética para os simbolistas franceses) como algo fundamental para a criação literária, o que seria possível através da conexão da mente com os sentidos – gerada por um estímulo (o incenso, o âmbar). As sinestesias seriam, então, a forma possível de descrever a associação que os estímulos sensoriais poderiam produzir na mente do indivíduo. Por causa disso as palavras se tornavam, todas elas, símbolos, e não eram mais usadas em seu significado comum, mas sempre relacionadas com aquilo que evocavam de uma realidade que transcendia os sentidos.

Para ser capaz de captar o espírito do momento, os escritores de Festa diziam que a prosa deveria renascer. O que foi, segundo eles, realizado apenas por alguns romancistas modernos como Proust, Strawinsky, Joyce. Como a

1

Correspondências: A Natureza é um templo onde vivos pilares / Deixam filtrar não raros insólitos enredos; / O homem o cruza em meio a um bosque de segredos / Que ali o espreitam com seus olhos familiares. // Como ecos longos que à distância se matizam / Numa vertiginosa e lúgubre unidade, / Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, / Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. // Há aromas frescos como a carne dos infantes, / Doces como o oboé, verdes como a campina, / E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, // Com a fluidez daquilo que jamais termina, / Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, / Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. (BAUDELAIRE, 2002, p. 115)

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poesia levaria menos tempo para ser grafada e, consequentemente, menos tempo para ser apreendida (lida), ela conviria ao espírito veloz desse momento2, diferentemente da prosa, que exigiria um senso de harmonia cíclico e uma continuidade complexa, elementos não necessários à poesia.3

Sobre o grupo Festa, diria Darcy Damasceno, em Cecília Meireles: o

mundo contemplado:

A atuação dos espiritualistas, se renovadora, era de aspecto bem diferente da do grupo paulista de 1922, cujas aspirações se veicularam através de Klaxon. Os pontos capitais que a determinavam e que, ainda em 1927, quando da revista Festa, constituíam seu programa, isto é, pensamento filosófico, tradição e universalidade, contrariavam o liberalismo de ideias, a ruptura com o passado literário e o caráter nacionalizante do movimento modernista. (DAMASCENO, 1967. P. 12)

Damasceno via os artistas de Festa como um grupo diferente do modernismo mais combativo, e se havia, em Festa, uma proposta de renovação, ela se dava de forma diversa da realizada pelos outros grupos do modernismo brasileiro. A renovação da literatura promovida pelo grupo de escritores do Rio de Janeiro acontecia através do diálogo com outros momentos da literatura brasileira. A transformação que esses artistas realizavam não vinha da ruptura, mas da continuidade daquilo que havia sido feito por outros escritores, propondo, assim, um modernismo continuador. Se outros artistas queriam voltar

2Em seu artigo “A crise da prosa” do número 1 da revista Festa, Andrade Muricy afirma:

A poesia, tomando menos tempo para ser apreendida, e relativamente menos tempo para ser grafada (não digo: concebida), parece convir particularmente ao espírito desse momento, ao triunfo atual, absoluto, do efêmero, da máquina amanhã obsoleta e atrasada, do dinamismo exterior, que amanhã terá extenuado o homem, e o terá levado a uma irresistível ânsia pelas cristalizações em que a eternidade da natureza humana tenha sua parte. (FESTA, Fac-similada, 1980, 1 de agosto de 1927, Ano 1, num. 1, p. 2) 3

Roland Barthes defende, em “As coisas significam alguma coisa”, do livro O grão da

voz, um ponto de vista que parece corroborar a impressão que os poetas do grupo Festa

têm de poesia. Para o escritor francês “um poema prende você porque é curto, um poema muito longo perde a sua força; o mesmo acontece com o Nouveau Roman. (BARTHES, 2004, p. 11)

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os olhos para o nacional, Festa se dispunha também, além de olhar o nacional, a encontrar algo que extrapolasse as fronteiras do país naquilo que fazia.

Cecília Meireles participou da revista Festa com textos em prosa, poemas e desenhos. Concedeu uma entrevista a Andrade Muricy, que foi publicada em 1935, no número 7 desse periódico. Fato curioso é que os poemas de Cecília que apareceram nas edições de Festa não fizeram parte de nenhum de seus livros de poesia; só reapareceram nos Dispersos da sua Poesia completa. Segundo Antonio Carlos Secchin, no artigo “Poesia completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário”, publicado no livro Escritos sobre poesia e alguma ficção, foi em 1967, na segunda edição de sua Obra poética, que foi inserido um conjunto de “Dispersos”, contendo poemas inéditos da autora. Essa seção foi suprimida na terceira edição da Obra poética, de 1972, mas em 1973, Darcy Damasceno organizou nove volumes das Poesias completas, de Cecília Meireles, em que se insere, em parte do volume sete, e no volume 8, sem nenhuma informação de procedência, uma longa série de poemas não incluídos em livro pela autora. Dentre os textos que Cecília publicou na revista Festa, e que não fizeram parte de um projeto bibliográfico propriamente dito, há aí uma exceção: o poema “pensamento”, que surgiu inicialmente no número 7 da segunda fase de Festa, de 1935, reaparece, com algumas modificações, em Viagem, sob o título “Epigrama n° 6” (texto que será tratado de forma mais minuciosa mais adiante, neste trabalho). A exclusão desses textos do seu projeto editorial representaria um repúdio da autora pela sua participação no grupo de Tasso da Silveira e de parte de sua poesia, ou evidenciaria a singularidade desse momento criativo em sua obra? Será que as características daquilo que Cecília apresenta em Festa não poderiam mais ser encontradas ao longo de sua obra? Leila Gouvêa, em seu livro

Pensamento e lirismo puro na poesia de Cecília Meireles questiona o motivo de a

poeta ter traçado uma linha divisória entre sua obra de juventude e a de maturidade, excluindo de sua poesia reunida, organizada pela própria autora e publicada em 1958, os seus três primeiros livros de poema, e toda a sua produção para Festa, e levanta a hipótese de que isso seria prova de que a escritora carioca não considerava essa fase de sua produção literária como algo que representasse sua identidade poética e estilística alcançada apenas a partir de Viagem. Para Gouvêa, Cecília foi uma poeta que tentou alcançar um ideal artístico e para tanto elegeu “[...] a atividade com a linguagem como o terreno de busca do absoluto e do inefável que atravessaria quase toda sua lírica, assim conferindo ‘fundamento ontológico’ à forma poética” (GOUVÊA, 2008, p. 27).

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Contudo muitas das características dos textos presentes em Festa podem ser reconhecidas ao longo de sua obra poética. É o que se pretende discutir agora, a partir da análise dos poemas que Cecília publica nesse periódico.

2.1 OS PRIMEIROS “CINCO POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES” PARA A REVISTA FESTA

Os primeiros textos cecilianos publicados em Festa surgem já no volume 1 dessa revista, datado de 1 de agosto de 1927 (anexo A). Aí eles estão agrupados sob o título de “CINCO POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES”. Na

Poesia completa – tanto na edição de 2001, quanto na de 2017 – o título desse

conjunto de poemas é “Casulo”. Contudo, o casulo é assunto apenas do primeiro poema, nos outros a temática é diferente. Por isso, o título “Casulo” parece se referir somente ao primeiro texto, os seguintes seriam indicados pelos números II, III, IV, V. Caso contrário, porque “Casulo” não aparece antes do poema número I na revista Festa? Aliás, a inscrição “Cinco poemas” não seria preciso se esses textos tivessem o mesmo título, pois então não seriam cinco poemas, mas apenas um. Além disso, como a publicação da revista data de época em que Cecília Meireles ainda era viva, é provável que a diagramação de Festa corresponda àquela adotada pela própria autora4.

4Esse não é o único caso de divergência entre as publicações das primeiras edições dos

textos cecilianos e as edições da Poesia completa. Outro exemplo disso seria “Lei do passante”, do livro Poemas escritos na Índia. O verso 14 desse poema, na edição da livraria São José, é “repentinamente do peito”, na edição do centenário é “repentinamente do leito”, já na edição da poesia completa de 2017, organizada sob a supervisão de André Seffrin, esse verso está como na primeira edição do livro Poemas escritos na Índia, o que reforça a impressão de que essas diferenças são fruto da intervenção do organizador da Poesia completa publicada no ano de 2001 e também do organizador da edição de 2017.

Em seu ensaio “Poesia completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário”, publicado no livro Escritos sobre poesia e alguma ficção, o próprio autor, Antonio Carlos Secchin, faz uma observação que parece elucidar a diferença que há entre os textos das primeiras edições dos livros de Cecília, e suas edições póstumas, como as duas edições da Poesia completa, de Cecília Meireles, a de 2001 e a de 2017: “Esclareço, de início, que não tive acesso a originais manuscritos ou datiloscritos de Cecília; de acordo com depoimento de familiares, a escritora costumava bater à máquina seus poemas e não se preocupava em conservar o registro deles em arquivo pessoal. Assim, fui levado a valer-me unicamente de material impresso, a saber, as edições originais, suas reedições, e uma série de textos esparsos em periódicos. Por outro lado, em auxílio de minha tarefa, logo percebi que, diversamente do que ocorre com boa parte dos poetas, Cecília não modificava seus

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Os poemas serão aqui apresentados de acordo com a edição de Festa, fazendo-se apenas a atualização ortográfica dos textos:

CINCO POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES I

CASULO

À hora do teu destino, Criaram-se os fios tênues Dentro dos quais dormirias O teu sonho preparatório, A Iniciação das asas

Para a sabedoria dos espaços... Hoje, romperam-se todos os casulos: E foi uma festividade, em torno... Mas tu, guardado no teu, Não te pudeste mover mais: Não tinhas aquele pequenino sopro, Invisível,

Oculto,

Que anima todas as formas... Dize-me, inseto obscuro: Com que azas voaste, De dentro de ti mesmo? Qual foi a tua Iniciação?

textos: uma vez publicados, ela já os considerava em versão definitiva. Por isso as discrepâncias textuais podem, sem grande risco, ser atribuídas a erros de impressão, alguns evidentes, como a presença de uma “quadra” de três versos, outros mais sutis, como a troca de um vocábulo por um substituto que também faz sentido. Mas, uma vez que várias alterações se deram somente nas edições post-mortem, apenas uma intervenção mediúnica poderia respaldá-las, e preferi permanecer na esfera do terreno, não obstante Cecília definir-se como ‘a pastora de nuvens’...” (SECCHIN, 2003, p. 157)

Portanto, depois de tudo o que foi dito pelo próprio Secchin, pode-se afirmar que as diferenças que há entre as duas edições da Poesia completa de Cecília Meireles, a de 2001 e a de 2017, e entre as primeiras edições dos livros de poemas de Cecília Meireles e dos poemas que foram publicados apenas em periódicos são fruto da intervenção dos editores e dos organizadores das edições póstumas.

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Qual é a tua sabedoria? 1926

II

Eu te daria consolos tão grandes, Se houvesse voz para os dizer! Se houvesse gestos para as criar, Eu te daria tantas certezas de amor! Dentro do meu coração,

Dançou-se a dança silenciosa da renúncia: Eu te ensinaria tantas coisas felizes, Ó bem-amado,

Mas em todas as portas dos meus sentidos Há feras de olhos acesos

Vigiando as revelações... III

Terra de cactos duros, Terra de fogos bárbaros,

Tu, sim, que és minha, grande terra fatal... Tu sim que és minha,

Para que eu te dê forma nova, Para que transfigure o teu sentimento, Para que te faça como um céu grandioso, Convertendo em silêncio e louvor Tudo o que em ti era chorar! IV

Longe de todas as conquistas e de todas as ambições, De olhos fechados para todas as esperanças, De mãos abertas para todas as renúncias, Cresce dentro de ti:

Sê cada vez maior! Excede-te dia a dia!

Quando o teu sol projetar tão longe a tua sombra Que nem a alcances mais,

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Quando a tua sombra se perder para lá da vida e da morte, Saberás que é hora de terminar.

Cresce. Avulta. Dispersa-te. Farta-te de ser grande, Para te saciares de grandeza,

Para te desencantares dessa última volúpia... V

Volvi os olhos para dentro, Estendi os braços sobre o mundo, – E o meu coração fluía sobre as criaturas Como um rio perene...

E eu era uma fonte serena, a perder-se... Em todas as coisas que havia,

Não havia mais nada de mim: Nem lembrança da minha figura! Nem notícia da minha passagem! E eu me sentia tão longe...

Mas tu ainda eras muito mais para lá, Ó terra das vitórias perfeitas!

E o esforço de te alcançar me levantava Tão firme, tão alto, tão em dor

Como uma grande montanha bárbara De pedras ásperas,

Muda, Amarga, Sem ninguém...

Agosto, 1927. (FESTA, Fac-similada, 1980, 1 de agosto de 1927, Ano 1, num. 1, p. 3)

Ao final do primeiro texto dessa série aparece a indicação do ano de 1926. Em seguida aparecem os poemas II, III, IV sem nenhuma data. Mas depois do poema V há a data “Agosto, 1927”, isso sugere que esses textos foram escritos durante um certo período, o que permite supor uma concepção de poesia construída a partir de um tempo de maturação, sendo fruto do trabalho poético. Além disso, a numeração que antecede cada um deles dá ideia de ordenação, mostrando que eles formam um conjunto, em que vem primeiro o número I,

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depois o II, o número III, o número IV e por último o número V, indicando inclusive uma ordem de leitura para eles.

Esses poemas fazem parte da fase inicial da poesia de Cecília Meireles – anterior à publicação de Viagem – como observado anteriormente, pertencem ao grupo de escritos que seriam rejeitados pela autora, já que além de não figurarem em nenhum de seus livros de poesia, sequer apareceram em sua Obra poética, organizada pela própria Cecília e publicada pela primeira vez em 1958, contendo uma nota editorial com a seguinte observação: “Reúne este volume da Obra

poética de Cecília Meireles toda a sua poesia publicada até o momento, acrescida

de uma parte inédita, selecionada pela autora dentre os seus livros de futura publicação” (MEIRELES, 1958, p. IX). Isso leva a crer que Cecília não considerava a sua participação na revista Festa parte de sua obra poética – a linha divisória da qual fala Leila Gouvêa –, já que outros textos que publicou em outros periódicos modernistas, como, por exemplo, “Dança bárbara” (da revista Árvore

nova), e “Balada para mim mesma” (da revista Terra de sol), mesmo tendo sido

excluídos de sua poesia reunida, fizeram parte efetiva de um de seus livros de poema – Baladas para El-Rei (1927). Contudo essa polarização poesia de estreia X poesia de maturidade da obra de Cecília é algo questionável se se levar em conta que ferramentas e temas da sua produção imatura fazem parte de toda sua obra, tanto em prosa como em verso.

Cecília Meireles acreditava que o poema deveria harmonizar forma e expressão, o que para ela não era muitas vezes possível no mundo em que vivia, pois eram raros os poetas que estariam livres do atordoamento do tempo para alcançar essa harmonia. Ela percebia a poesia como um grito, mas transfigurado. Isto é, a linguagem deveria passar por um processo de estilização para, assim, se tornar poesia; a arte poética seria fruto de trabalho, de construção.

Ainda assim o que tornaria a concepção de literatura do grupo Festa tão diferente da dos outros autores do modernismo brasileiro que teria dado tamanha singularidade às publicações de Cecília nesse periódico, fazendo com que esses escritos ocupassem um lugar incerto em sua obra poética?

Valéria Lamego, em A farpa na lira , afirma que os artistas de Festa buscavam levar conforto ao homem comum e restaurar alguns valores morais perdidos com a modernidade. Segundo ela, os poetas desse grupo tentavam elevar a condição do indivíduo a um sentido universal, procurando, assim, manter o equilíbrio espiritual perdido pelas inquietudes da modernidade. Em seu estudo, a pesquisadora também evidencia um lado de Cecília Meireles diferente daquele exaltado pela crítica em vários momentos de sua produção poética. Lamego trata, aí, do viés político da produção literária da escritora carioca

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(aquilo que chama em seu estudo de farpa), e para tanto se debruça mais profundamente sobre a contribuição que Cecília deu para a “Página de educação”, do jornal Diário de Notícias, entre os anos de 1930 e 1933 – textos que foram reunidos nos cinco volumes das Crônicas de educação –, onde Cecília apareceu como uma forte opositora à proposta política de educação feita pelo governo de Getúlio Vargas. Nesses artigos, a poeta deu lugar à educadora que trabalhou como professora e buscou no ato de lecionar uma forma de libertar e emancipar os indivíduos. Para Valéria, o prestígio da escritora carioca como jornalista foi fruto da lucidez com que tratou da situação política daquele momento. Em sua coluna sobre educação, a jornalista Cecília apresentou uma visão crítica muito contundente com relação ao momento social e cultural daquele período e propôs, através de seus artigos, a construção de uma sociedade menos desigual, que valorizasse mais as pessoas. Uma das vertentes da literatura brasileira da década de 1930 teve como traço fundamental a produção ensaística de cunho sociológico. Esse período foi chamado por alguns críticos de “literatura de 30” (como, por exemplo, Luiz Bueno, em seu livro História do romance de 30, que foi publicado pela primeira vez em 2006, e que é fruto de sua tese de doutorado defendida em 2001, na Unicamp), representando uma revolução nas belas letras brasileiras. Sua principal marca foi um movimento de denúncia dos problemas sociais do país, trazendo também à tona a discussão sobre os problemas da educação nacional, que sofria com o novo cenário político que se desenhava. Cecília não participou da “literatura de 30” como poeta ou romancista, mas como jornalista, através de sua coluna no jornal Diário de notícias, onde discorreu sobre sua posição diante dos acontecimentos sociais daquele período e defendeu a valorização do indivíduo por parte da sociedade e a manutenção de um estado laico. O que mostra que a figura de jornalista, em alguns momentos se distancia bastante da figura da poeta e da cronista. Se nas Crônicas de

viagem, nas Crônicas em geral e em outros livros de crônicas de Cecília

(como, por exemplo, O que se diz, o que se entende) é possível encontrar textos com uma forte carga poética, que aproximam sua prosa de sua poesia (como, por exemplo, “Jardins”, “Janelas de hotéis” e “Arte de ser feliz”), nas

Crônicas de educação o leitor encontra uma escritora atenta aos problemas

que a cercam e que faz uso da literatura para denunciá-los e combatê-los. Para Valéria Lamego, a participação de Cecília no grupo Festa representaria um momento à parte na carreira literária da escritora carioca:

Cecília Meireles, por sua vez, vinculou-se ao grupo dos espiritualistas, difusores de um modernismo cosmopolita,

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no qual o valor do espírito se opunha ao materialismo e progresso burguês. Na sua vasta Fortuna Crítica, no entanto, notamos certa dificuldade da crítica para estabelecer a que projeto modernista Cecília Meireles teria participado entre as décadas de 20 e 30 e até que ponto a poetisa pertenceu ou não ao grupo de espiritualistas de Festa. (LAMEGO, 1996, p. 44)

A dificuldade de encontrar o projeto literário brasileiro no qual Cecília Meireles se enquadre se reflete em algumas apreciações críticas que foram feitas de sua obra e que ora veem-na como uma poeta medíocre e daqueles que a reconheciam como uma grande renovadora das letras brasileiras.

Além disso, o cosmopolitismo ou mesmo a sobreposição do espírito sobre a matéria não são elementos que diferenciariam a fase inicial da obra de Cecília Meireles de sua produção de maturidade, pois também podem ser encontrados em momentos posteriores à publicação de Viagem. Aliás, a lírica ceciliana esteve voltada muito mais para o etéreo do que para o carnal, isso foi ressaltado por diversos críticos, que a viam como alguém desligada do mundo material, como, por exemplo Alfredo Bosi, que no artigo “Em torno da poesia de Cecília Meireles”, publicado no livro Céu, inferno, e posteriormente no livro Ensaios

sobre Cecília Meireles, afirma: “Uma linha mestra que percorre toda a obra de

Cecília Meireles, de Viagem a Solombra, é precisamente o sentimento de distância do eu lírico em relação ao mundo” (BOSI, 2003, p. 123). E foi a busca pelo intemporal, pela explicação dos mistérios que cercam a existência humana, que tornou sua obra diferente da de outros poetas daquele tempo. Esse distanciamento do mundo do qual diz Bosi. Em versos ela raramente tratou de um homem em especial ou mesmo de uma região específica, ou melhor, quando falou de um homem quis falar do Homem, quando abordou um lugar no mundo, pretendeu falar do mundo, buscando, nisso tudo, elementos e figuras que ultrapassassem as barreiras locais. Gandhi, motivo da única vigem que fez à Índia, em 1953, foi uma das personalidades abordadas pela escritora brasileira. O indiano foi um indivíduo que, segundo Cecília, procurou unir os mais diferentes povos em torno de um mesmo ideal, o amor ao próximo. Assim como a brasileira, ele buscou elementos que extrapolassem a barreira do individual.

A ele, Cecília dedica a “Elegia sobre a morte de Gandhi”: Elegia sobre a morte de Gandhi

Aqui se detêm as sereias azuis e os cavalos de asas. Aqui renuncio às flores alegres do meu íntimo sonho.

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Eis os jornais desdobrados ao vento em cada esquina: “Assassinado quando abençoava o povo”.

Na vasta noite, ouvi um pio triste, uma dorida voz de pássaro. E, acordando, procurava um lugar longe e ininteligível. Eras tu, então, que suspiravas, débil, no pequeno sangue final? Eram teus ossos longínquos, atravessados pela morte,

ressoando como bambus delicados ao inclinar-se do dia?

Les hommes sont des brutes, madame.

Ó dias da Resistência, com as rocas fiando em cada casa... Ó Bandi Matarã, nos pequenos harmônios, entre sedas douradas... “O chá de Darjeeling, Senhora, tem um aroma de rosas brancas...” Ruas, ruas, ruas, sabeis quem foi morto além, do outro lado do mundo? Sombrios intocáveis da terra inteira, – nem sabeis que devíeis chorar! “Vós, Tagore, cantai como os pássaros que de manhã recebem alimento, mas há pássaros famintos, que não podem cantar.” E o vento da tarde abana os telegramas amargos. Os homens leem. Leem com os olhos das crianças soletrando fábulas. E caminham. E caminhamos! E o mais cego de todos leva um espinho entre a alma e [o olhar.

São também cinco horas. E estou vendo teu nome entre mil xícaras. Não curta fumaça do chá que ninguém bebe.

“Que queria este homem?” “Por que veio ao mundo este homem?” – Eu não sou mais que a vasilha de barro amassado pelo Divino Oleiro. Quando não precisar mais de mim, deixar-me-á cair. Deixo-te cair. Bruscamente. Bruscamente.

Ainda restava dentro um sorvo de sangue.

Ainda não tinha secado teu coração, fantasma heroico, pequena rosa desfolhada num lençol, entre palavras sacras. O vento da tarde vem e vai da Índia ao Brasil. E não se cansa. Acima de tudo, meus irmãos, a Não-Violência.

Mas todos estão com os seus revólveres fumegantes no fundo dos [bolsos.

E tu eras, na verdade, o único sem revólveres, sem bolsos, sem mentira – desarmado até as veias, livre da véspera e do dia seguinte.

Les hommes sont des brutes, madame.

O vento leva a tua vida toda, e a melhor parte da minha. Sem bandeiras. Sem uniformes. Só alma, no meio de um mundo [desmoronado.

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Estão prosternadas as mulheres da Índia, como trouxas de soluços. Tua fogueira está ardendo. O Ganges te levará para longe,

punhado de cinza que as águas beijarão infinitamente.

Que o sol levantará das águas até as infinitas mãos de Deus.

Les hommes sont de brutes, madame.

Tu dirás a Deus, dos homens que encontraste? (Uma cabrinha te acordará terna saudade, talvez)

O vento sopra os telegramas; oscilam máscaras; os homens dançam. Eis que vai sendo carnaval aqui. (Por toda parte.) As vozes da loucura e as da luxúria retesam arcos vigorosos O uivo da multidão reboa pelos mil panos do cimento. Os santos morrem sem rumor, abençoando os seus matadores. A última voz de concórdia retorna ao silêncio do céu. Estão caindo as flores das minhas árvores. Vejo uma solidão abraçar [-me.

Chegam nuvens, nuvens, como apressados símbolos. O vento junta as nuvens, empurra tropas de elefantes. Voai, povos, socorrei o esquálido santo que vos amou!

Descai pelos meus braços uma desistência de beleza e de heroísmo. Que correntes havia entre o teu coração e o meu, para que sofra meu sangue, sabendo o teu derramado?

O vento leva os homens pelas ruas dos seus negócios, dos seus crimes. Leva as surpresas, as curiosidades, a indiferença, o riso.

Empurra cada qual para a sua morada, e continua a cavalgar.

O vento vai levantar chamas rápidas, o vento vai levar as cinzas leves. Depois, há de escurecer. Vai-se chorar muito. Vão ser choradas, enfim, as lágrimas que andavas contendo, detendo em diques de paz. Deus te dirá: “Os homens são uns brutos, meu filho.

Basta de canseira. Vamos soltá-los para que voltem ao caos, e o oceano [ferva.

E partam, e regressem, e tornem a partir e a regressar. Vem ver destes meus palácios azuis a batalha feroz dos erros. É preciso voltar ao princípio. Eu também vou fechar os olhos. Por isso ordenei que te quebrassem com violência. Não há mais humanidade para ter-te a seu serviço.

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quando os homens chamarem por nós.”

O vento está dispersando as falas de Deus entre as mil línguas do fogo. Entre as mil rosas de cinza dos teus velhos ossos, Mahatma. (MEIRELES, 2001, p. 1608)

Segundo Dilip Loundo, em seu ensaio “Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética”, publicado no livro Ensaios sobre Cecília Meireles, a Índia é algo constante na obra de Cecília Meireles e contém elementos fundamentais da singularidade poética dessa escritora. Ao longo de sua obra, haveria uma presença distinta e multidimensional da nação indiana, relação que se explicaria pela profunda consciência do caráter transitório da existência que a poeta apresenta em sua poesia e que encontra ecos na Índia. A poesia ceciliana é uma investigação das raízes da existência humana, algo que constitui um momento raro na tradição poética brasileira, marcada, conforme Loundo, pelo romântico, pelo confessional e por formas socialmente engajadas de lirismo.

Se, por um lado, essa meditação poética advém das experiências e das reflexões pessoais de Cecília, sua intensidade, sua gravidade e seu caráter dramático; por outro lado seu caminho solitário teria sido favorecido pelo desenvolvimento de parcerias e inter-relações privilegiadas, que ela conseguiu realizar através de viagens, reais ou simbólicas, que permitiram-na encontrar aqueles com quem se identificava. Cecília parece ter buscado conhecer o mundo em sua totalidade, esse é o ponto inicial e o destino final de sua jornada filosófica e poética. O que se pode perceber em sua obra é que o eu lírico ceciliano demonstra uma espécie de desapego enquanto renúncia de si mesmo, porque não se identifica com os objetos do mundo material que o cercam. A poesia de Cecília fala do caminho que percorre em busca de si mesma e da sua própria reinvenção através do desapego e da contemplação da multiplicidade do mundo como uma existência unificada.

Para Cecília, que seguiu atentamente os problemas e a luta pela independência política da Índia, Mahatma Gandhi seria o símbolo de uma civilização antiga que se confrontava com a modernidade pós-colonial na construção de uma nação. E a Índia ocupava lugar de tamanha importância na vida de Cecília, que ela, depois da independência desse país, em 1947, junto com outras personalidades, fundou, no Rio de Janeiro, a Sociedade de Amigos da Índia.

A poeta carioca acreditava que a singularidade do ser indiano adviria de sua intenção de vivenciar o humilde caminho dos homens como forma de

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combate à opressão que as massas marginalizadas daquela sociedade sofriam, algo que pode ser percebido no poema que dedica a Gandhi.

A “Elegia sobre a morte de Gandhi” data de 30 de janeiro de 1948, dia do assassinato dessa importante figura indiana, e nela se vê representada a afinidade que a poeta brasileira tem com os ideais desse pensador. Além de lamentar a brutalidade que o mundo enfrentava e que se personificava no assassinato de Gandhi, nesse texto ela também lamenta a incapacidade dos homens de compreender as mensagens de amor e de verdade que ele tentou deixar para as pessoas.

Essa elegia fez com que Cecília ficasse conhecida na Índia, chegando, de acordo com Loundo, a ter uma versão em inglês publicada no periódico

United Asia, em maio de 1948, além de ser a primeira publicação que Cecília

realizou na terra de Gandhi. Aqui, de forma elegíaca ela fala sobre sua mágoa pela morte de uma pessoa ilustre.

Em 2003, a embaixada do Brasil em Nova Delhi publicou uma tradução bilíngue, em português e em inglês, do livro Poemas escritos na Índia. Isso parece representar o reconhecimento da escritora brasileira na Índia, país que elegeu como destino predileto de suas viagens espirituais5.

A dificuldade de Cecília em encontrar um lugar para inserir em sua obra a produção literária para a revista Festa é compartilhada não apenas pelos críticos como também pela própria autora, visto que ela mesma a exclui de sua

Obra poética. Valéria Lamego parece querer ressaltar, em seu estudo, é a

oposição entre a jornalista e a poeta, ou ainda, parece confrontar a poeta e a cronista do imaterial com a escritora engajada que Cecília foi em alguns momentos, traço bem evidenciado em sua participação na página de educação do Diário de notícias.

5

Analisei mais detalhadamente a relação da obra de Cecília Meireles com a Índia em minha dissertação de mestrado Os rastros da viagem à Índia na poética de Cecília

Meireles que defendi, na UFPR, em 2011. Em meu estudo constatei, sobretudo, duas

coisas. Se por um lado se pode perceber, em seu livro Poemas escritos na Índia, a reiteração daquilo que nunca esteve ausente na obra de Cecília: sua ininterrupta percepção da transitoriedade e a herança da estética simbolista (tais elementos assumem viés particular por conta da grande afinidade da poeta com a cultura e a espiritualidade indianas). Por outro lado, ao contrário do que ocorre na quase totalidade de sua produção literária, as sensações experimentadas nessa viagem comparecem de maneira muito concreta nesses poemas. A viajante Cecília Meireles, sabidamente passante, encontrou naquele país o que já carregava consigo; porém, para dizê-lo, recorreu a elementos formais até então ausentes de seu discurso.

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Porém de que forma a atuação de Cecília Meireles na revista Festa representaria uma continuidade ou uma ruptura de seu próprio projeto literário? O inseto obscuro fechado em seu casulo para o sonho preparatório de sua iniciação – poética –, do qual ela fala no poema que marca o início de sua produção para Festa, parece ser o próprio eu lírico ceciliano, já que a partir da década de 30, período posterior à sua participação nessa revista, Cecília atingiu a maturidade poética e sua lírica alcançou destaque no mundo literário, o que culminou na premiação, pela Academia Brasileira de Letras, do livro Viagem, em 1938, em um episódio cercado de polêmicas que será apresentado aqui mais adiante e sobre o qual a poeta carioca diz o seguinte a Côrtes-Rodrigues, um de seus principais interlocutores portugueses:

Essa história de prêmios literários é tão formidável em toda parte. Quando a academia deu o prêmio ao meu livro, houve três meses de discussões pelos jornais, e até se publicou um livro, que reúne metade da polêmica, – a metade que me era favorável, – e que se chama “A Academia e a Poesia moderna”. (SACHET, 1998, p. 35-36)

Em sua obra, Cecília se propõe a construir uma poética de contestação, de ruptura. Mas não da mesma forma que foi realizada pelos participantes da semana de arte moderna de 1922. Para Murilo Araújo, ela (e todo o grupo

Festa) correu a parte do modernismo questionador. Fugindo do radicalismo do

grupo de poetas de São Paulo, sua tendência renovadora não a afastaria da criação literária anterior, mas complementaria o que já havia sido feito.

O que parece desagradar Cecília é o fato de alguns críticos não compreenderem a revolução que ela propôs, ou ainda, de não aceitarem o que ela realizou em sua obra poética como revolução na literatura brasileira. Esse sentimento ficou bem evidente no discurso que Cecília iria proferir na ABL (anexo B), na cerimônia de entrega do prêmio que recebeu pelo livro Viagem, mas que se recusou a fazê-lo por conta da censura por parte dos jurados. E se houve censura em sua fala, foi feita àquilo que ela diria ou àquilo que sua obra pretendia representar?

Os escritores de Festa buscaram nos movimentos literários anteriores (mais especificamente no romantismo e no simbolismo) ferramentas para o seu fazer artístico, isso dotou a produção de Festa de uma forte herança simbolista. Para esses poetas, o mundo moderno, em que prevalecia o materialismo, acabava afastando o homem do aspecto espiritual da vida, e era contra esse

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afastamento que eles lutavam. A relação de Cecília com os poetas de Festa evidencia não apenas o caráter espiritualista de sua poesia, mas também o alto misticismo que perpassa sua obra.

Os “cinco poemas de Cecília Meireles” publicados no número 1 de

Festa têm formas variadas. “Casulo” é composto por três estrofes (a primeira

com sete versos, a segunda com oito e a terceira com cinco), onde o ritmo dos versos brancos, livres, quase todos encadeados entre si, altera o fluxo do poema. O enjambement parece ora acelerar, ora atrasar o andamento do texto. Isso fica evidente nos versos treze e quatorze, que de tão curtos – formados por apenas uma palavra cada um – diminuem o ritmo, até aí, acelerado do poema; ruptura que continua e se acentua nos dois últimos versos, únicos que não estão encadeados, criando, com a ajuda da pontuação utilizada, uma pausa na leitura de cada um deles.

Segundo Tasso da Silveira não seria apenas o ritmo acelerado de versos curtos ou a abordagem de elementos velozes da modernidade (que representassem a evolução tecnológica) que trariam velocidade ao texto. O poeta deveria se colocar a descrever um só movimento de alma por vários versos e várias páginas – o que Tasso chamou de velocidade expressional, no artigo “A enxurrada”, do número quatro da revista Festa. Dessa forma o escritor desse grupo faria uso de uma expressão capaz de condensar fortemente a matéria emotiva. O movimento de alma que Cecília se propõe a descrever nessa série de poemas é a relação eu/tu, algo que perpassa sua obra como um todo – a busca pelo outro inominável e indefinível. No caso de “Casulo”, o que norteia essa relação é o jogo entre vida e morte, temática recorrente na poesia simbolista e na lírica de Cecília Meireles, que, dentre outros assuntos, se dispõe a tratar da condição da existência humana diante de seu destino fatídico. Essa reflexão acontece na tentativa de decifrar o que está reservado aos iniciados, que terão o mesmo fim que o resto da humanidade, se diferenciando dos outros apenas pela consciência que têm disso tudo. Percebe-se que a preocupação maior do eu lírico

é com o não temporal, o não racional e o não geográfico da existência humana. Para Leonardo D´Avila de Oliveira, em sua tese de doutorado Ordenar o

espiritual: letras e periodismo católico no Brasil (1928 – 1945), “Casulo”, que

praticamente abre a revista Festa, radicaliza a fronteira entre vida e morte apresentada na literatura brasileira, pois nele o inseto obscuro, já destituído do sopro de vida, realiza uma viagem interna que seria uma espécie de iniciação a um mundo que não é mais material, e sim espiritual. Como o invólucro não rompe, a transformação ocorrida aqui não é mais exterior, e sim interior. A sobrevivência é sobrenatural, já que a metamorfose se dá apenas depois da

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morte. Isso tudo, segundo o estudioso, seria uma evidência de que a recorrência da lagarta que se transforma estaria relacionada ao bicho da seda do Castelo interior, de Santa Teresa D´Avila, que utiliza a descrição da metamorfose da lagarta em mariposa para ilustrar o rumo da elevação espiritual do homem, chegando até o encontro místico com Deus. A metamorfose da borboleta ou da mariposa seria uma espécie de metáfora da alma, que por ter morrido para o mundo, sofreria uma evolução fundamentalmente espiritual.

Considerando-se mais do que mera metáfora de elevação espiritual, a busca empreendida pelos espiritualistas do século XX dá uma inegável ênfase à morte ou à escuridão, retirando-as de qualquer esquema de causalidade, e aproximando o obscuro do fazer poético. Morte e vida encontram-se num limiar rumo a uma transformação, cuja lei não seria cognoscível. Sendo assim, o oculto causa efeitos dos mais inesperados, a começar pelo ninho que surge na sombra ou nas borboletas que saem dos casulos. Mas a metamorfose da lagarta que morre antes de se tornar borboleta, mesmo que não possa acontecer no mundo material, pode ser transplantada para um além dessa vida. Ou seja, quando a morte não atinge o vivente num estágio final, mas, na sua própria metamorfose, ocorre um redirecionamento da polissemia no poetizar, de sorte que esse rumo espiritual não é mero automatismo. Em resumo: há transcendência, mas ela é forçada. (OLIVEIRA, 2015, p. 140)

A metamorfose que acontece aqui se dá numa atividade restrita ao interior absoluto, a um lugar além da vida material, onde as viagens da imaginação ou os desvios da própria linguagem estão relacionados a um mundo separado dessa vida – o mundo espiritual. Sua poesia (a do grupo

Festa) dá ênfase à morte e à escuridão. Morte e escuridão fizeram parte da

lírica de Cecília Meireles como um todo, tanto que Solombra, último livro de poemas que publica em vida, fala dessas duas coisas, escuridão e morte.

O casulo não rompe, o que gera uma outra espécie de transformação, ou seja, há a mudança, mas ela se dá de outra forma, e não como era esperada. Isso parece uma reflexão do eu lírico sobre sua poética e também a do grupo Festa, que quer trazer mudanças para a literatura brasileira, mas que não sejam bruscas, e sim sutis, como a que acaba acontecendo com a não ruptura do casulo. É obvio que o ato de mudar, de transformar, é muitas vezes traumático, se o casulo não

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rompe há a morte, contudo ela se dá aqui de forma silenciosa, perceptível apenas pela não transformação, e gera uma outra possibilidade de vida, a espiritual, ou ainda, a vida como metáfora.

Há, no poema, um confronto entre humano e divino, matéria e espírito, etéreo e carnal. O eu aparece, nesse texto, apenas uma vez, através de um pronome obliquo de um verbo no imperativo – dize-me – e permanece indefinido. Se sobre tu se pode dizer que é um inseto obscuro que voou de dentro de si mesmo, sobre o eu não se pode dizer nada. Além disso, tu é diferente de todos os outros, pois é o único que permanece imóvel dentro do próprio casulo, já que perdeu “aquele pequenino sopro, invisível, oculto, que anima todas as formas”. Se os outros são, tu deixou de ser, não tem mais o dom fundamental, soprado ao homem pelo criador (conforme descrito em Genesis 2:7) – um traço da religiosidade múltipla da poesia de Cecília Meireles e do grupo Festa, que procuravam tratar da relação entre o humano e o divino sem se ater a uma religião em especial – por isso a designação de poetas católicos não caberia a esse grupo6.

Através da oposição tu imóvel e outros que romperam os casulos o eu lírico evidencia o confronto entre a fragilidade da existência e o poder de preservação do indivíduo através da arte, o que aproximaria a noção de poesia aqui presente da noção de poesia da Grécia Antiga, que via a arte como um elemento de manutenção da vida. Para os gregos, o homem permanecia presente, mesmo após sua morte, através da arte, encarregada de manter vivas na memória das pessoas as realizações dos grandes homens daquela sociedade. Foi o que moveu Aquiles na guerra de Troia e foi também o que encantou Odisseu, já velho, ao ouvir alguém cantar seus feitos de juventude. Nesse momento, o rei de Ítaca percebeu que sua vitalidade estava preservada a partir das narrativas

6

Em carta a Côrtes-Rodrigues, datada de 15 de setembro de 1947, Cecília Meireles faz um comentário que evidencia a forma crítica com que observa os cristãos com que conviveu: “Exceto pelos aviões, pelos telefones, os automóveis, a penicilina... Não vejo nada que justifique os séculos 19 e 20. Estamos em vertiginosa decadência. Voltaire, por exemplo, era muito mais cristão que todos os católicos que conheço. (SACHET, 1998, p. 128)

Essa observação de Cecília Meireles sobre o cristianismo deve ser entendida como uma crítica muito grande pois quando Voltaire morreu o bispo de Troyes escreveu um decreto proibindo que o filósofo francês fosse enterrado em um cemitério cristão por causa das ideias que o autor de Candido defendia e também por sua postura crítica com relação à Igreja Católica.

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que tratavam dos grandes feitos que ele tinha realizado na guerra de Troia. Seria o canto do aedo que o manteria eternamente jovem na memória daqueles que ouvissem essas histórias.

A existência é tão frágil que algo tão delicado como casulo, que marcaria uma fase de transição da vida, acaba se tornando uma mortalha, sinalizando o término da existência material. A metamorfose, aqui, é a transformação da matéria em espírito, e permite uma outra forma de vida, a espiritual.

Nesse poema ocorre o isolamento do tu no mundo que o cerca, isso se configura na figura do casulo, que impede o contato imediato do ser com o meio; se o poeta simbolista estaria sozinho em sua torre de marfim, o poeta moderno (do grupo Festa) se tornaria distante do mundo material por estar preso em um invólucro no seu sonho preparatório. A existência se constrói na relação do ser com o meio que o cerca, se essa relação não é possível, o ente deixa de existir. Por isso, o poeta moderno, um iniciado, deve cuidar para não se afastar, não se isolar no mundo em que vive, estando fadado, caso isso ocorra, ao fracasso. O que reitera a ligação que Cecília Meireles procura ter com a sociedade em que está inserida, construindo uma obra voltada para o mundo. Não sendo propriamente engajada em sua poesia, tratar da morte e da atitude do homem diante desta certeza foi uma das formas que encontrou de aproximar sua obra poética do mundo, ou ainda, de falar do mundo.

Para Andrade Muricy, em “O dissídio com o público”, texto publicado no número quatro da revista Festa, de 1 de janeiro de 1928, sempre houve um afastamento da classe intelectual com o grande público, algo decorrente da maior ou menor preparação filosófica da camada letrada do país. A arte moderna teria se tornado algo tão intelectualizado que o público em geral não teria conseguido acompanhar seu movimento. No mundo moderno havia o predomínio de interesses materiais, além de uma grande industrialização, o que teria feito com que o espectador se sentisse constantemente acuado nesse ambiente onde a matéria acabaria por se sobrepor ao espírito, e teria impedido as pessoas em geral de compreender e sentir os movimentos velozes e elípticos da arte e do pensamento moderno, fazendo com que elas acabassem por acreditar que o artista se esgotava na busca desenfreada por originalidade; o que teria dado a impressão de uma falta de lógica na arte moderna.

Muricy também acreditava que a arte moderna tinha adquirido um grau elevado de realismo nunca alcançado antes, isso aconteceu, segundo o crítico, graças à forma como o artista de Festa lidou com o mundo. Ao exagerar e deformar a realidade, o poeta a tornou algo essencialmente pessoal e objetivo, e lhe conferiu mais proximidade com a vida. Dessa forma, a arte moderna, fruto

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da sensibilidade do artista, deixou de ser um mero retrato estático e alcançou um senso crítico nunca visto antes, sendo capaz de julgar com lucidez a formação social da nação. Mas Muricy acreditava que não haveria um público brasileiro capaz de lidar com esse novo fazer literário. E como o artista não encontrava seu igual, ele se sentia fechado em seu casulo onde dormia o sonho preparatório para a iniciação das asas, isso fez com que, mesmo que o escritor tentasse não se afastar de seu público, o distanciamento se tornasse inevitável. Algo que se refletiu, por exemplo, na forma como alguns críticos percebiam a obra de Cecília Meireles, vendo-a como uma poeta alheia ao mundo, não encontrando em sua poesia uma abordagem de temáticas mais palpáveis ou sociais. O que é questionável, haja vista que uma das suas obras poéticas mais aclamadas pela crítica, o Romanceiro da inconfidência, trata de um momento crucial na formação da nação brasileira.

O paradoxo é que foi a busca pelo imaterial e pelo intemporal, a tentativa de encontrar explicações para o mistério da existência humana, que transformou a poesia de Cecília em algo voltado de fato para o mundo, já que essas preocupações metafísicas fazem parte da existência humana como um todo. Se o eu lírico se recolhe, envolto em seu casulo, para os mundos interiores do pensamento, observa o meio que o cerca na hora de enfrentar seu destino. É nesse instante que ele se dispõe a efetivamente contemplar o que há a sua volta e é a partir desse movimento que percebe o que acontece; olhando para dentro de si, o eu lírico acaba vendo o que há ao seu redor. O distanciamento do mundo material é, então, a forma que o poeta encontra para reconhecer o eu e, assim, tratar do mundo em sua poesia.

Segundo Mário da Silva Brito, em Poesia do modernismo:

A poesia de Cecília Meireles é intemporal, diáfana e cristalina, e, além de nobre e discreta, delicada e dotada de musicalidade que lhe acentua a leveza. “Jamais a poesia nacional alcançou tamanha evanescência tanto verbal como psíquica” – afirmou Mário de Andrade, que ressalta também “a extraordinária faculdade com que a poetisa sabe encher de silêncio as suas palavras”. Artífice extremamente hábil e espírito selecionador, manifesta-se praticamente através de solilóquios e, se se inspira na natureza, manipula os dados sensoriais, concretos, de modo a torná-los abstratos e subjetivos. Falta-lhe, porém, densidade dramática, de sentido coletivo. Aérea e fluida, sua poesia paira acima do drama contemporâneo, e, assim, não se insere no momento histórico. Em Romanceiro da

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inconfidência impôs-se a si mesma o interesse pelos temas da tradição nacional. No entender de João Gaspar Simões, Cecília Meireles é “um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os tempos”. (BRITO, 1968, p. 170) Intemporal por tratar, acima de tudo, da vida. A matéria da poesia de Cecília é a existência humana, em todos os seus pormenores. É no confronto entre eterno e efêmero, entre a vida e a morte que se constroem os exercícios de reflexão poética do eu lírico ceciliano. Por isso mesmo sua poesia não “paira acima do drama contemporâneo”, já que a preocupação do homem com o fim de sua existência é algo que atravessa a história da humanidade. Intemporal na medida em que está presa ao discurso poético do seu tempo, pois os poetas de Festa buscavam versar sobre os mistérios da existência humana. Ou seja, é aquilo que o crítico entende como intemporalidade que dá temporalidade ao seu discurso, porque isso insere a poesia de Cecília Meireles na temática desenvolvida pelos poetas do grupo de Festa.

Se sua marca maior é o principal motivo do estranhamento de sua obra, isso acontece quando não se consegue perceber o quanto essa personalidade aérea e fluida faz com que sua escrita extrapole a barreira do nacional. Quando o eu lírico afirma, no segundo poema de Viagem, “Não sou alegre, nem sou triste: / sou poeta” (MEIRELES, 2001, p. 227.), assume não apenas ser ele próprio uma construção discursiva, uma personalidade estetizada, como também antecipa ao leitor o que ele encontrará nessa obra, feita muito mais de dúvidas do que certezas. A estetização da personalidade ceciliana é reforçada pela ausência de uma biografia “oficial” da escritora, sendo muitos dos seus dados biográficos fornecidos por ela mesma, em entrevistas que concedeu e cartas que trocou ao longo de sua vida, momentos cercados de solenidade, como, por exemplo, a entrevista que deu a Pedro Bloch, que se inicia da seguinte maneira: “Tenho um vício terrível – me confessa Cecília Meireles com ar de quem cometeu setenta pecados capitais” (BLOCH, 1989, p. 31). Cecília “confessa” ao seu interlocutor, em um momento que não é apenas de reflexão sobre si mesma, mas também uma espécie de expurgação dos pecados, dos vícios. Contudo os defeitos não são bem defeitos. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que isso tem cura?” (BLOCH, 1989, p. 31). Isso seria ironia da autora ou seria algo que corrobora a sensação de que o que existe em Cecília é o autor foucaultiano, aquele instrumento de classificação de textos, o princípio agrupador que se dissolveu nos discursos poéticos que proferiu. Buscar, então, em sua obra a Cecília real seria um erro de leitura, já que o que há aqui é uma teatralização do próprio eu. É também por isso que o eu parece não ser definido em “Casulo”.

Referências

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