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Oásis do sertão : a paisagem do Cariri cearense (séc. XIX - XX)

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CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Leandro Maciel Silva

OÁSIS DO SERTÃO:

A Paisagem do Cariri cearense (séc. XIX - XX)

Florianópolis 2019

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Leandro Maciel Silva

OÁSIS DO SERTÃO:

A Paisagem do Cariri cearense (séc. XIX - XX)

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Fábio Freire Montysuma

Coorientador: Profa. Dra. Eunice Sueli Nodari

Florianópolis 2019

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor,

através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

SILVA, LEANDRO MACIEL

OÁSIS DO SERTÃO : A Paisagem do Cariri cearense (séc. XIX - XX) / LEANDRO MACIEL SILVA ; orientador, MARCOS FÁBIO FREIRE MONTYSUMA, coorientador, EUNICE SUELI NODARI, 2019.

207 p.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. História. 2. CARIRI CEARENSE. 3. PAISAGEM. 4. IDENTIDADE E ALTERIDADE AMBIENTAL. 5. HISTÓRIA AMBIENTAL. I. MONTYSUMA, MARCOS FÁBIO FREIRE. II. NODARI, EUNICE SUELI. III. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História. IV. Título.

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Leandro Maciel Silva

OÁSIS DO SERTÃO:

A Paisagem do Cariri cearense (séc. XIX - XX)

O presente trabalho em nível de doutorado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Emerson César de Campos (membro externo) Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

Prof. Dr. Eurípedes Antônio Funes (membro externo) Universidade Federal do Ceará (UFC)

Prof. Dr. Elton Laurindo da Costa (membro externo) Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de doutor em História.

________________________ Prof. Dr. Lucas de Melo Reis Bueno Coordenador do Programa de Pós-Graduação

em História - UFSC

________________________

Prof. Dr. Marcos Fábio Freire Montysuma (Orientador) Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Florianópolis, 28 de março de 2019. Assinado de forma digital por

Marcos Fabio Freire Montysuma:07894686204

Dados: 2019.08.16 13:50:18 -03'00' Lucas de Melo Reis

Bueno:151819188 67

Assinado de forma digital por Lucas de Melo Reis Bueno:15181918867 Dados: 2019.08.19 08:02:07 -03'00'

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À Roberta França, pelo amor. Aos meus pais, Francisco e Francisca, pela luta. Aos meus avós, Maria e Leôncio, pelas histórias. Aos amigos e amigas, pela amizade.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Roberta Cavalcante de França por me apresentar o mundo e me fazer sonhar. A aventura do doutorado começou e só foi concluída por causa da sua companhia inspiradora. Que os novos sonhos nos levem para caminhos desconhecidos mais uma vez.

Às senhoras e senhores da região do Cariri, que me concederam as entrevistas e compartilharam generosamente um pouco de suas vidas comigo.

Aos professores do PPGH-UFSC, pela oportunidade da formação complementar e pelas reflexões ao longo das disciplinas.

Ao LABIMHA, pelo espaço de aprendizado e amizades.

Aos amigos e às amigas cearenses que compartilharam comigo a rotina do doutorado e os desafios de viver numa cidade que nos lembrava sempre que possível que não pertencíamos a ela. Em especial, Antônio José (Tom), Gleidiane Ferreira e Marcos Luã.

Aos “manezinhos” e às “manezinhas” que nos acolheram e nos apresentaram uma Florianópolis simples, linda e com pessoas maravilhosas.

Ao professor, orientador e amigo Marcos Montysuma, pelo apoio e humanidade ao longo do doutorado. Nunca esquecerei das suas lições.

Às políticas públicas da Educação no Brasil dos últimos 14 anos, que me permitiram sonhar com os cursos de mestrado e doutorado.

À Universidade pública, gratuita e de qualidade, que está ameaçada neste momento. Devo minha formação profissional e humana à Universidade.

Ao Capes, pela bolsa, sem a qual eu não teria conseguido superar os desafios de fazer ciência no Brasil.

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RESUMO

Esta tese é o resultado da pesquisa sobre as Paisagens dos Sertões, que tem no Cariri cearense um objeto de estudos singular e propício para pensar a diversidade social, cultural e histórica dos sertões. A paisagem é o conceito central desta pesquisa, entendida a partir das reflexões teóricas e filosóficas da história ambiental e da geografia cultural. Natureza e Cultura deixam de ser considerados polos antagônicos para convergirem e integrarem uma teia de relações que constroem identidades para as pessoas e para os espaços. A historiografia cearense e nacional do século XIX, as revistas científicas dos Institutos Históricos Nacional e Cearense, os jornais locais, as leis, e os relatos orais de senhores e senhoras da região do Cariri são analisados sob a ótica da História Cultural associada ao campo da História Ambiental. O “Oásis do Sertão” foi a paisagem construída para legitimar os projetos políticos, econômicos e culturais das elites e apropriada pela sociedade para a construção das identidades e alteridades das pessoas e do espaço do Cariri cearense. Acompanhamos os mecanismos que foram e ainda são tomados como referência para mobilizar, criar e manter a paisagem do Cariri, que é tomada como prioridade nos momentos de emergência da identidade ao longo do século XIX e XX. Disputam pelo seu uso intelectuais, instituições e a população em geral.

Palavras-Chave: Cariri cearense. Paisagem. História Ambiental. Identidade e

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ABSTRACT

This thesis is the result of research on the Landscapes of the Sertões, which has in Cariri Cearense an object of study singular and conducive to thinking about the social, cultural and historical diversity of the hinterlands. Landscape is the central concept of this research, understood from the theoretical and philosophical reflections of environmental history and cultural geography. Nature and Culture are no longer considered antagonistic poles to converge and integrate the web of relationships that build identities for people and spaces. Cearense and national historiography of the nineteenth century, the scientific journals of the National and Cearense Historical Institutes, local newspapers, the laws, and oral accounts of gentlemen and ladies from the Cariri region are analyzed from the perspective of cultural history associated with the field of culture. Environmental history. The “Oasis do Sertão” was the landscape built to legitimize the political, economic and cultural projects of the elites and appropriated by society for the construction of the identities and alterities of the people and space of Cariri Ceará. We follow the mechanisms that were and are still taken as reference to mobilize, create and maintain the landscape of Cariri, which is taken as a priority in the emergence of identity throughout the nineteenth and twentieth century. They dispute for their use intellectuals, institutions and the general population.

Keywords: Cariri of Ceará-Brazil. Landscape. Envorimental History. Enviromental

Identity and Alterity. Oral Históry.

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PRÓLOGO: MINHA TRAJETÓRIA

Pensar minha trajetória de vida talvez colabore para o entendimento das escolhas que eu fiz e o modo com que organizei esta pesquisa. Sou filho e neto de vaqueiros(as) que tiveram suas vidas transformadas pela mudança do sertão para a periferia da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará. Essa mudança geográfica, ocasionada abruptamente por motivos de saúde, possibilitou uma experiência na infância de idas e vindas ao sertão, à fazenda. Tentar decodificar as histórias de vida do meu pai, Francisco, e da minha mãe, Francisca, figurava como parte dos meus interesses na formação da minha identidade e personalidade. Dos cinco filhos, eu era o mais atento ao passado. Era como manter um contato com um imaginário diferente. Era um encontro com outro mundo.

Em todas as férias escolares, as viagens de ônibus eram marcadas pelas paisagens. Em julho, mais secas; e em janeiro, mais verdes. Ao chegar à cidade de Boa Viagem, ficava sempre na casa do meu avô, Leôncio, e da minha avó, Maria. O Sr. Leôncio Umbelino de Sousa era um exímio contador de histórias. Foram as suas histórias que embalaram o meu imaginário mítico do sertão durante a infância e a adolescência. É difícil dimensionar o impacto de suas histórias e influência na minha vida.

As histórias do Seu Leôncio me anunciaram mais do que as suas experiências de aventura pelo sertão no tempo da juventude, mas me apresentaram esse mesmo espaço de experiência, com todos os seus excessos e limitações. Das suas histórias sobre ter que matar uma onça, ainda adolescente, foi possível perceber como a infância e a juventude de um homem no sertão são construídas por experiências de desafios e uso da coragem. A honra é um valor sagrado no sertão, que não pode ser negociada em nenhuma circunstância, sob pena de nunca mais recobrar a confiança pessoal e mesmo social. Para o meu avô, honra e coragem estavam sempre associadas. Desafiar sua coragem para enfrentar qualquer situação, notadamente alguma que envolvesse os limites de sua capacidade física, era atentar contra a sua honra, o seu lugar de corajoso. Este lugar, o da coragem, é talvez o de maior valor no sertão. E normalmente quem ocupa este lugar são os homens, capazes de feitos estúpidos para se manter nele. Pela honra, e não por outra coisa, se entrava numa briga qualquer, seja por causa de um boato mentiroso

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sobre algum familiar ou pessoa próxima, seja por um gesto que pudesse ser interpretado como um insulto. Esse era o meu avô, matador, segundo ele, de onça na adolescência, vendedor ambulante de bois pelo sertão do Ceará na juventude, e homem feito quando lutou contra um lobisomem.

Ao longo da velhice, o Sr. Leôncio encontrou outro lugar para exercitar a honra: contando histórias. E não eram quaisquer histórias, eram as suas próprias histórias, marcando o seu lugar como valente e corajoso na posteridade. Como contador, havia espaço para construir uma narrativa que fosse atrativa e, ao mesmo tempo, convincente ao ouvinte, porque havia de superar os desafios das dimensões geográficas, temporais e geracionais que distanciavam os seus ouvintes das suas histórias de vida. Como é comum em situações parecidas, havia a necessidade de um(a) censor(a), alguém que confirmasse e atestasse a veracidade das histórias, sobretudo aquelas que lidavam com seres míticos, fantasmas e animais perigosos. Nesse caso, a censora era a minha avó. Para mim e para quem quer que fosse, a confirmação da minha avó era o atestado final para qualquer história mirabolante do meu avô. A credibilidade da minha avó era inabalável, livre de suspeita – diferente da do meu avô. Eis outro lugar de excelência no sertão, o da verdade, do qual a honra depende completamente para se sustentar.

Ouvir todas as histórias do meu avô, repetidas vezes, ao longo da vida, serviram para entender a sua personalidade e escolhas. Também serviram para construir um encantamento pelo sertão, pela fazenda, e por tudo que está associado a este lugar social: vivência com os animais, religiosidade, valores, traços de personalidade, preconceitos, uso da terra, base alimentar, fisionomia, etc. Esse encantamento era sempre confrontado nas férias, mas a mística de um sertão distante no tempo e no espaço sempre se manteve.

Ao expor essa relação com o meu avô e a minha avó e este contato com o sertão, não pretendo justificar as escolhas que fiz nesta pesquisa. É claro que essa é a minha história de vida e muito do que sou hoje foi forjado a partir dessas relações, mas preciso dizer que entrar no curso de História da Universidade Federal do Ceará me fez renovar e recuperar essa relação perdida com o meu avô e as suas histórias. Os estudos universitários me possibilitaram enxergar a importância das trajetórias individuais e do relato oral para a construção de um conhecimento social relevante. Essa reaproximação foi marcante na minha vida porque desta vez pude promover um distanciamento para tentar entender e reinterpretar as histórias contadas pelo

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meu avô, retirando-o do lugar instável do herói e lhe conferindo uma humanidade, cheia de qualidades e preconceitos.

É desse lugar que pretendo partir. Sou um pesquisador, formado na universidade, e tenho uma trajetória de vida na qual o contar e o ouvir tiveram grande importância. O interesse pelas histórias de vida era uma das certezas para a pesquisa do doutorado. O Cariri foi outra escolha maturada ao longo do mestrado. Foi um contato através da documentação. Mas o Cariri, sobretudo em Fortaleza e no interior do estado do Ceará, é uma influência quando pensamos na história religiosa, política, econômica e nas manifestações culturais do Ceará e do Nordeste. Trata-se também de uma região considerada exótica e exógena quando comparada com outras regiões do estado, não só culturalmente como também naturalmente, conforme será explorado ao longo deste trabalho. Meu contato com o Cariri também foi afetivo, decorrente das amizades construídas e do interesse pelas expressões culturais da região.

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SUMÁRIO

PRÓLOGO: MINHA TRAJETÓRIA ... 10

1.INTRODUÇÃO ... 15

1.1 DO OBJETO ... 15

1.2 DAS ENTREVISTAS ... 19

1.3 DO RECORTE TEMPORAL E FONTES DE PESQUISA ... 23

1.4 DA PAISAGEM E DA IDENTIDADE ... 26

1.5 A POÉTICA DO CARIRI CEARENSE ... 32

2.CAPÍTULO 1 - ESCAVANDO O CRETÁCEO: IDENTIDADE E ALTERIDADE AMBIENTAL NO CARIRI CEARENSE ... 34

2.1 JOÃO DA SILVA FEIJÓ E OS “DILATADOS SERTÕES” ... 35

2.2 ESCREVENDO E INSCREVENDO O SERTÃO ... 45

2.3 CARIRI: OÁSIS DO SERTÃO ... 53

2.4 IDENTIDADE E ALTERIDADE AMBIENTAL DO CARIRI ... 59

3.CAPÍTULO 2 – A SUPERFÍCIE DA PAISAGEM: HISTÓRIAS DE VIDA E DE LUGARES ... 68

3.1 PAISAGEM: LUGARES E NÃO-LUGARES ... 68

3.1.1 Seu Cícero e o Cariri ... 68

3.1.2 Mestre Galdino: o Cariri é a ponta do céu ... 74

3.2 REGIÃO, ARTE E TRADIÇÃO ... 83

3.3 TERRITÓRIO DE FÉ ... 105

3.3.1 Luíza do Horto e o Pe. Cícero. ... 106

3.3.2 Socorro de Luna, “a solteirona” ... 114

4. CAPÍTULO 3 - PAISAGEM: CARTOGRAFIAS ... 121

4.1 TRAJETÓRIAS (D)E VIDAS: CARTOGRAFIAS ... 121

4.2 PAISAGEM/MONUMENTO ... 142

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4.3 INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PAISAGEM ... 162

4.3.1 O Instituto do Ceará ... 162

4.3.2 O Instituto Cultural do Cariri ... 166

4.3.3 URCA, UFCA e Geopark Araripe ... 174

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 183

ANEXOS: FONTES ... 188

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1.INTRODUÇÃO

Como um viajante... Foi assim que me aproximei do Cariri cearense. Dos sertões do Inhamuns, no Ceará, para a Capital, Fortaleza, e depois para o Cariri. Esse foi o meu trajeto pessoal, descobrindo e assimilando as paisagens do Ceará. Estas paisagens são naturais, mas também sociais e culturais, porque estão no ambiente, mas também nas pessoas, nas suas histórias de vida.

Esta pesquisa precisa ser entendida dentro de um quadro maior, interessado em investigar o bioma Caatinga, o único exclusivamente brasileiro, mas o menos estudado no Brasil. A aridez do clima parece impedir que a Caatinga possa ser entendida pelas suas particularidades e riquezas, e desvalorizada em detrimento de outras paisagens brasileiras. Esta pesquisa pretende colaborar para que a Caatinga seja objeto de interesse de mais pesquisadores no Brasil.

1.1 DO OBJETO

O Vale do Cariri é uma vasta área de mais de quatro mil km² localizada na microrregião do Cariri, Sul do Ceará. A sua população foi estimada, em 2010, pelo IBGE, em mais de 528 mil habitantes, distribuídos oficialmente em oito municípios cearenses: Barbalha, Crato, Jardim, Juazeiro do Norte, Missão Velha, Nova Olinda, Porteiras e Santana do Cariri. O vale é rodeado pela Chapada do Araripe, tendo como marco natural a Serra do Araripe, onde nasce o principal rio da região, o Rio Salgado. A Chapada do Araripe exerce uma influência climática na região, possibilitando um clima ameno e chuvas regulares numa vasta área do semiárido nordestino. O contraste com a paisagem árida dos sertões a sua volta tornou o Cariri uma região de grande importância econômica, política, cultural e religiosa.

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Imagem 1: Mapa do Ceará com destaque para a Região do Cariri.

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A Região do Cariri cearense, sobretudo as cidades de Juazeiro do Norte e Crato, possuem não apenas caraterísticas naturais “peculiares” ao sertão, mas também uma diversidade histórica e cultural que faz da região uma das mais expressivas do Nordeste.

O Cariri também se destaca no cenário cultural pela diversidade de poetas e cantadores, festejos religiosos, romarias, folguedos, artesanato em madeira e barro, literatura de cordel, etc. Além do fenômeno religioso das romarias relacionadas ao Padre Cícero que, no ano de 2012, atraiu mais um milhão de pessoas a Juazeiro do Norte, outro momento histórico marcou o Cariri: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi uma comunidade religiosa formada pelo beato José Lourenço que foi devastada por tentar implantar no Cariri uma experiência comunitária semelhante a Canudos. Ainda podemos citar outros momentos históricos em que o Cariri esteve envolvido diretamente, como: Revolução de 1817, a Confederação do Equador (1824), a Insurreição do Crato (Pinto Madeira), a Sedição de Juazeiro (1914), etc.

Juazeiro do Norte, antes vilarejo da cidade do Crato, foi emancipada em 1911 sob influência do Padre Cícero Romão Batista, o seu primeiro prefeito. Juazeiro do Norte, sob a influência de Padre Cícero, se tornou uma das principais cidades do sertão nordestino, atraindo ao longo dos anos grande contingente de devotos.

A religiosidade proeminente de Juazeiro se estende por todo o Cariri, conferindo à região a referência de “terra santa”. Essa referência é compartilhada pelos moradores do Crato, cidade localizada no sopé da Chapada do Araripe, cujo clima e paisagem estiveram presentes nos relatos de viajantes ao longo do século XIX, bem como em muitos outros documentos históricos. A cidade do Crato é conhecida como a cidade da Cultura, principalmente da chamada “cultura popular”. As expressões artísticas do Cariri ganham contornos diferenciados porque representam um lócus da cultura popular nordestina, tomada como genuína e representativa da “essência” da cultura brasileira enraizada nos sertões.

Todas essas referências, tanto históricas e políticas quanto naturais e culturais, imprimiram uma forte relação de pertencimento aos moradores da região

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do Cariri.1 Mas essa identidade cultural do Cariri só foi constituída por causa da paisagem da região, elemento aglutinador, que constitui a memória de um território e as referências dos processos simbólicos de representação do espaço ao longo da história. A paisagem do Cariri é o objeto principal desta pesquisa.

Em busca dos elementos constituidores da paisagem – a saber, o espaço e suas representações, os territórios e suas marcas de poder, os lugares e suas identidades –, elaborei um percurso de pesquisa que envolvia temporalidades diferentes para investigar as emergências da paisagem do Cariri a partir da ocupação e povoamento do Nordeste e do Ceará, os fatos históricos, a historiografia, as instituições responsáveis por um discurso identitário/regional e as memórias dos habitantes do Cariri.

Em todos esses momentos de pesquisa, meu interesse foi pelo processo de (re)conhecimento dos espaços, a territorialização e as representações dos lugares. Noutras palavras, o que intentei foi perceber como a paisagem, a cada momento e de formas variadas, foi construída por viajantes, historiadores, instituições e narradores(as) da região, sendo, todos eles, responsáveis pela construção de um imaginário para a região tendo como elemento principal a natureza, usada para forjar uma identidade tanto para o território quanto para as pessoas.

Preciso dizer que essa busca não começou nos arquivos ou bibliotecas, mas a partir dos relatos orais das histórias de vidas de alguns habitantes do Cariri. Quando elaborei o projeto de pesquisa do doutorado, duas escolhas fundamentaram a proposta de se estudar a identidade cultural do Cariri. A primeira foi a região em si e seus aspectos geomorfológicos; a segunda foram as memórias e histórias de vida. Meu intuito foi, a partir das memórias, perceber as marcas temporais e simbólicas de representação dos espaços e, de outro modo, perceber como as pessoas dão sentido à própria vida a partir dessa relação com os lugares.

1 O discurso sobre a importância da natureza no Cariri foi um dos fatores que contribuiu para a criação da Floresta Nacional Araripe-Apodi, em 1943. Hoje ela é um dos últimos redutos da Mata Atlântica, e é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em 1997, foi constituída a APA da Chapada do Araripe, com 972.590,45 hectares, e desde 2006 o Geoparque Araripe compõe a Rede Mundial de Geoparques, reconhecido pela Unesco como sede de patrimônio geológico e paleontológico. É o único geoparque das Américas. (Fonte: ICMBio)

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Ao optar por priorizar a paisagem e tê-la como objeto principal, as histórias de vida se tornaram ainda mais relevantes. Afinal, elas anunciam vivências nos espaços que são muito significativas para se perceber as representações acumuladas e arregimentadas para significar os espaços.

1.2 DAS ENTREVISTAS

Antes de iniciar a pesquisa de campo, a partir das referências da metodologia da História Oral, elaborei o perfil das pessoas e dos lugares que precisaríamos considerar para a realização da pesquisa. Utilizei um dispositivo de pesquisa diferente dos usuais em história oral, porque percebi a necessidade de ter um guia da região que fosse sensível ao processo de pesquisa e que pudesse indicar e mesmo me ajudar a criar uma rede de referências para a aproximação com os entrevistados/as. O perfil elaborado foi: moradores com mais ou menos 60 anos, sendo metade dessas pessoas homens e, a outra metade, mulheres, nascidos(as) ou residentes em diferentes cidades do Cariri há pelo menos 30 anos. Ao todo, conseguimos entrevistar 22 pessoas, das quais 14 entrevistas foram priorizadas para as reflexões desta pesquisa.2

A ajuda de Germano de Lima foi indispensável para que a rede de referências e indicações de pessoas fosse formada. Este dispositivo para as entrevistas foi pensado a partir da influência do documentário O Fim e o Princípio (2005), de Eduardo Coutinho.

A escolha de Coutinho e de sua equipe foi a de repassar à guia, residente na região, a indicação dos(as) entrevistados((as). Além de guia, ela foi uma intermediadora das entrevistas, por sua relação de proximidade com as pessoas. A sensibilidade da equipe de documentário foi a de perceber a importância da sua guia

2 Viajamos por todos os municípios do Cariri, entrevistando em cada localidade pessoas que tinham

sido indicadas a falar. Foram mais de 350 quilômetros percorridos e uma rede de colaboradores de mais de 30 pessoas. Cada encontro durou em média 2 horas, resultando em 70 minutos de

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na aproximação com as pessoas. Assim foi também com Germano de Lima, que me acompanhou ao longo das seis cidades visitadas e participou ativamente, sempre que possível, da realização das entrevistas, ora ajudando na parte técnica ora comentando aspectos da entrevista que eu deveria levar em consideração. O que o qualificou para este trabalho foi o seu amplo conhecimento da região, seus contatos em todas as cidades do Cariri, sua percepção das transformações da região nos últimos oito anos em que reside na Cariri, como também a sua disposição para me acompanhar nesses lugares. Sabendo desse nível de participação e intervenção nas entrevistas, fizemos um trabalho anterior para definirmos o objeto de interesse da pesquisa: as histórias de vida das pessoas e suas relações com os lugares, notadamente, o Cariri.

A escolha por um guia para facilitar os caminhos pela região, inspirado no documentarista Eduardo Coutinho, está em consonância com o Manual de História Oral (2005), de Verena Alberti, que alerta para a uma pesquisa prévia que garanta um plano de ação ao mesmo tempo em que seja sensível aos sujeitos que serão entrevistados.

Pela multiplicidade econômica, cultural e étnica da região, precisei desenhar um perfil das pessoas que considerava adequado para perceber a relação das histórias de vida com o Cariri, e como essas pessoas se relacionavam com este lugar lhe conferindo significados que poderiam ser usados como referência para as identidades das pessoas e dos lugares. Esse perfil é muito delicado quando pensamos nas histórias de vida. Por motivos óbvios, porque o lugar social dessas pessoas influencia diretamente seu modo de ver e narrar a sua vida. Minha intenção foi pensar nas categorias de análise que são norteadoras (ou deveriam ser) dos trabalhos nas ciências humanas: raça, classe e gênero. Embora tivesse em mente essas categorias como ponto de partida para perceber e analisar a história de vida dessas pessoas, percebi que a única categoria que merecia ser atentamente colocada para a escolha e indicação por parte do Germano de Lima e de seus/suas conhecidos(as) era a de gênero. Essa escolha se deu porque queria garantir entrevistar um número igual de homens e de mulheres para ter outros elementos de análise, sobretudo de valores afetivos, que respeitassem cada lugar de fala. Mesmo atento à interseccionalidade das categorias de raça, classe e gênero, as construções sociais de gênero marcam sobremaneira as narrativas pessoais e coletivas; por isso,

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assegurar um número equilibrado de homens e mulheres me deu a oportunidade de obter relatos ricos em elementos afetivos sobre a paisagem do Cariri e de perceber o lugar de referência que as mulheres têm nesta região, como narradoras e representantes de uma memória coletiva. A escolha se mostrou muito profícua.

As entrevistas foram pensadas como um momento de conversa, semiestruturadas por algumas informações que tinham como objetivo destacar alguns aspectos das histórias de vida dessas pessoas e sua relação com os espaços. Deste modo, sempre que possível, pedimos para os(as) entrevistados((as) descrevessem os lugares em que viveram e quais as suas impressões e sentimentos vinculados a eles, bem como o momento da vida em que viveram ou se relacionaram com o lugar. O ideal buscado era intervir o mínimo possível ao longo da narrativa, de modo a preservar a linha de raciocínio e as escolhas do ato de narrar, mas isso nem sempre foi possível, em decorrência do tempo disponível do(as) entrevistados e do foco na relação dessas pessoas com os espaços.

As perguntas funcionaram como um guia para que alguns aspectos fossem ressaltados ou mesmo para que alguns momentos da vida fossem melhor explorados. Pela natureza do objeto que perseguíamos – a saber, a presença da paisagem do Cariri nas histórias dessas pessoas –, nossa intenção foi realizar intervenções pontuais para que este elemento subjetivo – as representações do espaço – estivesse presente na narrativa.

Segui duas orientações gerais para a realização destas entrevistas. A primeira, sob influência da orientação do professor Marcos Montysuma, que sempre chamou atenção para que compreendêssemos as entrevistas, sobretudo na forma de história de vida, como um mundo a ser descoberto. As entrevistas não podem ser entendidas como dados estatísticos, elas merecem uma atenção especial, de modo a valorizar as informações pela riqueza que possuem para entender as experiências e percepções de mundo de cada pessoa. A segunda lição que destaco tem influência das recomendações de Alessandro Portelli (2016), que indica uma postura ética na relação pesquisador-entrevistado. Portelli propõe que este contato seja entendido como um encontro entre autoridades. Por um lado, o(a) pesquisador(a)

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interessado(a) em realizar um procedimento que lhe resultará num documento para análise futura, e de outro, a autoridade da fala da pessoa entrevistada, que merece ser respeitada e valorizada.

Ambas as orientações foram muito importantes para a preparação e a realização das entrevistas, porque meu maior receio era ficar no lugar-comum e alimentar ou reforçar uma imagem caricatural dessas pessoas. A minha postura foi deixar claro, desde o início da conversa, os meus objetivos e intenções com aquela gravação, indicando uma transparência no modo como as histórias de vida iriam ser importantes para a realização da pesquisa.

A decisão de gravar em vídeo todas as entrevistas possibilitou mais elementos de análise no processo de transcrição. Esse elemento técnico precisou ser pensado na metodologia, porque partimos do entendimento que a câmera, assim como o gravador de áudio, pode interferir de maneira significativa na postura ou na construção do passado realizada pelo entrevistado. Para minimizar os efeitos da presença da câmera, optei pelo uso de um modelo de câmera esportiva, que tem tamanho reduzido e lente grande angular, para ter um maior campo de visão. A câmera foi pensada também para evitar uma questão delicada para a realização da maioria das entrevistas, a solicitação do uso e direito de imagem e a permissão para a realização da pesquisa. Todas as autorizações foram realizadas em vídeo para evitar que senhores e senhoras não alfabetizadas tivessem que fazer uso da assinatura por meio da digital. Sabendo do perfil da pesquisa, a escolha pela gravação das permissões, ao meu ver, garantiu dignidade para senhores e senhoras que são mestres e mestras de suas artes e saberes.

Cada entrevista foi entendida como um universo em si mesmo, mas inteiramente relacionada ao lugar e às experiências coletivas vivenciadas pelas pessoas. Por isso, as histórias de vida serão tratadas, neste trabalho, primeiro por sua singularidade e depois pela sua representatividade. Sob nenhuma circunstância essas histórias serão generalizadas e entendidas como modelos, padrões de percepção ou comportamento dessas pessoas.

Por fim, foram essas entrevistas que me fizeram interrogar sobre a paisagem do Cariri e o lugar dela na identidade cultural da região; elas foram meu ponto de partida e meu ponto de chegada.

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1.3 DO RECORTE TEMPORAL E FONTES DE PESQUISA

Tendo como ponto de partida as histórias de vida dos entrevistados, a principal motivação foi considerá-las uma fonte histórica rica e diversa, como as outras que são utilizadas na pesquisa histórica. Percebi com as entrevistas que precisaria conectá-las aos momentos de emergência da paisagem do Cariri, de modo a torná-las inteligíveis e necessárias para a composição do texto.

Evitou-se o risco de validar os elementos destacados nas entrevistas pelas demais fontes documentais. Outro receio era estabelecer uma linha de continuidade entre esses momentos de emergência da paisagem do Cariri e os relatos de vida. Isso ocorre porque a escolha pelas histórias de vida não tem por finalidade aprofundar as questões teóricas sobre paisagem que pretendo desenvolver ao longo dos outros capítulos. O momento em que trato dos relatos orais pretende ser mais uma camada da paisagem do Cariri, as memórias das histórias de vida, explorando mais a narrativa das pessoas e temas importantes para o (re)conhecimento da região. São vestígios de paisagem que, aos poucos, vão ganhando forma e densidade, conectando-se aos outros momentos do texto à medida que aspectos da paisagem do Cariri ganham importância. É uma cartografia das histórias de vidas vinculadas aos seus lugares de fala, desenhando, para quem lê, um roteiro da região e das pessoas.

Em busca de um recorte temporal que garantisse coerência ao percurso da pesquisa planejada, precisei pensar a própria metodologia da pesquisa histórica deste último século, em que os temas e objetos de estudos são pensados dentro de um enquadramento temporal que lhe dão validade, destacando ora os processos sincrônicos, ora diacrônicos, todos circunscritos dentro de um intervalo limitado de tempo e, por vezes, também de espaço.

Não por acaso, esse procedimento de pesquisa se tornou regular na História; afinal, um dos grandes problemas divulgados por Marc Bloch foi o “mito das origens”, ou seja, as pesquisas históricas partirem de problemas do presente

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recuando até o que se imaginaria ser a sua origem, recorrendo, para este fim, a categorizações de causa e efeito que justificariam cada novo recuo no tempo em busca de uma origem cada vez mais antiga, arriscando se perder no tempo.

Na tentativa de evitar esse problema, a perspectiva genealógica se mostrou o mais profícua para o encaminhamento desta pesquisa, primeiro porque ela possibilita um recuo no tempo sem necessariamente se sustentar no “mito das origens”. Esse movimento de recuo é de grande valia para trabalharmos com os relatos orais, porque não há a intenção de validar algo que poderia ser indicado pelas entrevistas, mas de buscar conexões e ramificações entre os saberes e temporalidades. Também porque promove uma relação de inteligibilidade sem uma relação direta de continuidade ou de ruptura, afinal temas como a paisagem fogem a classificações formais que garantiriam a percepção regular dos seus usos pelas pessoas ao longo do tempo. E, por fim, a perspectiva genealógica possibilitou entender mecanismos distintos, em temporalidades distintas, do processo de constituição da paisagem do Cariri. Portanto, é do presente, como nos indica Marc Bloch, que pensamos o passado. E nesta pesquisa, são dos relatos (do presente) que buscamos a construção da paisagem do Cariri em momentos de emergências ao longo do século XIX e XX.

Mas estes recuos no tempo só se justificam se entendermos que a perspectiva genealógica, para Nietzsche, e depois para Foucault, em Arqueologia do

Saber, é um processo de investigação das emergências dos discursos. Como

afirmou Nildo Avelino (2011), uma “anarqueologia”, ou seja, uma arqueologia do saber que rompe uma estrutura ordenada previamente. O interesse pelas “emergências” se opõe de maneira categórica às contingências dos fatos históricos, que sozinhos não garantem validade às pesquisas, mas também a insuficiência da ideia de continuum que prevalece na historiografia. A vantagem de investigar as “emergências” é conseguir pensar em objetos como a paisagem, que não possui um recorte temporal único para a sua constituição.

Mas fundamentar os recuos no tempo sem um objetivo especificado é tão arriscado quanto ficar no terreno seguro dos recortes comuns, com intervalos de tempo que indicam começo, meio e fim. A escolha aqui foi por momentos muito oportunos para investigarmos os mecanismos de consolidação da paisagem do

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Cariri. São três momentos de emergências da paisagem do Cariri priorizados neste trabalho. O primeiro se deu ao longo do século XIX, pela própria afirmação da paisagem do Cariri. O Segundo ocorreu ao longo do século XX, na institucionalização da paisagem. O terceiro, com as memórias que revelam as ações e representações da paisagem do Cariri, pelas pessoas.

A pesquisa está dividida em três capítulos, além da introdução.

O Capítulo 1 é dedicado a investigar o momento que o território do Cariri foi delimitado e compreendido a partir de medidas político-administrativas para reconhecer, mapear e historiar o Cariri ao longo dos séculos XIX e XX. O objetivo principal é entender como se deu o processo de invenção da paisagem que tornou o Cariri o “Oásis do Sertão” e posterior “território de identidade”. O mapeamento do espaço e territorialização são medidas administrativas importantíssimas para o exercício do poder político e simbólico sobre o espaço e sobre as pessoas. Concomitante à escrita do espaço, vem a escrita da história, como uma inscrição de poder sobre a representação do lugar. A escrita da história, como nos indica Certeau, é a inscrição do outro e o exercício de poder por excelência. Neste sentido, partirei de uma reflexão sobre como o Sertão, sobretudo aquele que se tornaria o Nordeste do Brasil, foi reconhecido, mapeado e, em seguida, historicizado para formular identidades regionais e territoriais que marcam até hoje as relações sociais, ambientais e culturais. Noutras palavras, entender como os “dilatados sertões” do Período Colonial foram mapeados para serem administrados e controlados no século XIX e XX.

O percurso para o nosso caso particular será o de analisar os escritos de pensadores que estudaram a região do Cariri cearense, com o objetivo de perceber como o Cariri foi continuamente ganhando representação a partir da escrita do espaço. Serão analisadas, em perspectiva comparativa, duas produções historiográficas: Apontamentos para a História do Cariri, de João Brígido, escrito em 1861; e a História da Província do Ceará: desde os tempos primitivos até 1850, de 1865, de Tristão de Alencar Araripe. Por fim, o capítulo analisará o momento da seca de 1877-79 no Ceará, quando este fenômeno se tornou a imagem de referência para

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a região, e, portanto, momento oportuno para que a paisagem do Cariri fosse forjada.

No capítulo 2, as entrevistas anunciarão aspectos relativos à região e a maneira pela qual algumas pessoas percebem os espaços e lugares, revelando, dessa forma, a camada aparente, a superfície da paisagem do Cariri, a saber, a sua natureza supostamente peculiar e exuberante, a importância da cultura popular e, por fim, a religiosidade em torno de Pe. Cícero e de outras práticas que significam o espaço e dão sentido a ele. A emergência da paisagem neste momento será investigada a partir das experiências de vida, anunciadas por meio dos relatos das pessoas.

Por fim, o capítulo 3 é dedicado a investigar a Cartografia da paisagem do Cariri. Apresentaremos uma reflexão sobre como a consolidação da paisagem do Cariri, formulada como “oásis do Sertão” no século XIX precisou da intervenção das instituições em três momentos ao longo do século XX.

No primeiro momento, destaca-se o Instituto Histórico do Ceará, por ter se tornado um dos principais espaços de saber-poder sobre o Ceará no final do século XIX e no início do século XX. No segundo momento, temos o Instituto Cultural do Cariri (ICC), que em meados do século XX foi criado para estudar, divulgar e elaborar novos olhares sobre o Cariri, mas desta vez através da elite intelectual local, notadamente da cidade do Crato. No terceiro momento, destacaremos a Universidade Regional do Cariri (URCA), a Universidade Federal do Cariri (UFCA) e, por fim, o Geopark Araripe. Como veremos, essas instituições têm um papel destacado no enraizamento dos elementos que dão sustentação à paisagem do Cariri: Cultura, Natureza, História, Memória e Religião, por isso o seu lugar de importância para esta pesquisa.

1.4 DA PAISAGEM E DA IDENTIDADE

Paisagem é o conceito principal deste trabalho. Para entendê-lo como uma criação cultural e, portanto, histórica, assim como nos indica Keith Thomas e Simon

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Schama, precisaremos investigá-lo como um conceito polissêmico (porque histórico), sobretudo para a Geografia e para as demais ciências humanas.

No século XIX, a paisagem se tornou o objeto principal para entender o espaço das estruturas da natureza que deveriam ser analisadas cientificamente, um conjunto de formas morfológicas, fitofisionômicas, topográficas, hídricas e geológicas no qual o homem atuava e que atuava sobre o homem.3 Essa concepção foi influenciada pelo naturalista alemão Alexander von Humboldt e pelos geógrafos Karl Ritter e Friedrich Ratzel, que buscavam observar o mundo natural como um todo orgânico. Seguindo os passos de Humboldt e de outros naturalistas românticos, a Geografia, tendo como objeto de estudo a paisagem, se consolidou como disciplina acadêmica. Esses geógrafos vincularam a paisagem “a porções do espaço relativamente amplas que se destacavam visualmente por possuírem características físicas e culturais suficientemente homogêneas para assumirem uma individualidade”. (HOLZER, 1999, p. 151)

O responsável por tornar a paisagem um tema de investigação é o geógrafo francês Paul Vidal de La Blache (1845-1918), analisando-a a partir da ação humana, seu domínio e transformação do espaço. Uma questão imanente ao estudo da paisagem foi, e ainda é, a tensão entre a Natureza e a Cultura. Numa tentativa de conceituar a paisagem a Escola de Berkeley, fundada por Carl Sauer (1889-1975), utilizou o termo “paisagem cultural” (Kulturlandschaft) para se referir a um fragmento do espaço que combinava elementos biológicos e antrópicos de forma dinâmica e instável. De outro modo, a Escola Soviética classificou e cartografou as unidades naturais, nas quais os corpos naturais individuais interagiam entre si, cunhando o termo “paisagem natural” (Naturlandschaft). Por muitos anos, a paisagem foi utilizada para identificar, descrever e interpretar as formas físicas e as marcas das sociedades no espaço.

Um breve esclarecimento merece atenção, sobretudo para marcar a diferença linguística das acepções do vocábulo. Landschaft (alemão) e paysage (francês) são termos diferentes, embora possam ser confundidos no processo de tradução. A

3 Sobre o uso do termo paisagem como categoria de pesquisa, ver BLANC-POMARD; RAISON.

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palavra alemã possui um significado mais complexo que a de língua latina. Esta, por sua vez, é relacionada ao Renascimento e tem, na sua origem, as artes plásticas. Para Holzer, “Landschaft” se refere a uma associação entre espaço e seus habitantes. A hipótese é que tenha surgido de “Land schaffen”: criar a terra, produzir a terra. O vocábulo alemão foi levado para a Geografia norte-americana por Sauer sob a forma de “landscape”. Sauer chamou atenção para que o seu entendimento enfatizavasse o sentido alemão: o de formatar (land shape) a terra, implicando uma associação das formas físicas e culturais. (HOLZER, 1999, p. 152) Para Freitas et. al. (1999), Landschaft não tem equivalente em outras línguas, o que o torna mais rico pela carga de significados e visões de mundo que dão ao conceito uma diversidade de interpretações e utilizações muito mais amplas que das demais escolas da Geografia. Segundo estes autores, “a paisagem alemã compreende um complexo natural total, representado, de forma integrada, pela natureza e pela ação humana” (FREITAS et. al., 1999, p. 31).

Na década de 1970, a paisagem ganhou novos significados nas Ciências Humanas. Uma nova Geografia, de caráter humanista, procurou pensá-la como um “território visto e sentido”, portanto subjetiva, processada na mente e como uma forma de “ver o mundo”. Destacam-se os geógrafos Yi-Fu Tuan, Brunet e Denis Cosgrove, que indicaram as relações dos indivíduos na elaboração/criação do mundo exterior, através dos discursos, práticas e representações. Esses autores propunham que as formas visíveis da paisagem estariam intimamente ligadas aos diferentes contextos e culturas, tendo significados distintos para cada sociedade. Nesse viés, Iná Castro aponta que as relações estabelecidas entre a sociedade e a natureza ao longo do tempo se dariam em duas dimensões, uma concreta e outra simbólica, formadas pela prática e pelo imaginário social. Elas seriam, então, expressões das interações sociedade-natureza.4 Portanto, com a Nova Geografia Cultural, a discussão sobre paisagem passou a ser pensada a partir de novos

4 CASTRO, Iná Elias de. Natureza, imaginário e a reinvenção do nordeste. In: ROSENDHAL; CORRÊA. Paisagem, imaginário e espaço, p. 103. Cf. DELGADO; COUTO; PASSOS. A evolução da paisagem; LEONIDIO, Adalmir. O conceito de paisagem em História. In: XXV SIMPÓSIO

NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, 2009, Fortaleza. Anais..., 2009, p. 2; BLANC-POMARD; RAISON. Paisagem, p. 151; CORRÊA. História ambiental e a paisagem, p. 67.

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conteúdos, ampliando os horizontes explicativos da disciplina com a incorporação de noções como percepção, representação, imaginário e simbolismo (CASTRO, 2002).5

Com as abordagens da Geografia Cultural e Humanista, alguns historiadores trouxeram para a esfera da cultura o estudo das paisagens, aos quais nos aproximamos. De acordo com Célia Serrano, as paisagens são criadas pelos homens como uma das configurações dominantes da ideia que constrói sobre a natureza, o espaço e sobre si mesmo. Dora Corrêa, por sua vez, afirma que essa configuração envolve a percepção, interpretação, seleção e organização dos elementos vegetais, minerais, geográficos e culturais disponíveis. Longe de ser apenas uma forma social de esquematizar e organizar o meio, elas também são compostas pela materialidade, por meio da qual a própria sociedade e a natureza se organizam.6

Por um lado, temos a materialidade do mundo natural, físico; e de outro temos a capacidade humana de criar e dar sentido às coisas, e, portanto, dar inteligibilidade ao mundo. Para Augustin Berque, a paisagem é, ao mesmo tempo, uma inscrição, uma “geo­grafia”, que é impressa pela sociedade na superfície terrestre, como também estas marcas são matrizes que constituem a condição para a existência e ação humana. Se por um lado, ela é vista por um olhar; pelo outro, ela possibilita este olhar. Para o autor, “a paisagem é plurimodal (passiva-ativa-potencial) como é plurimodal o sujeito para o qual a paisagem existe; […] a paisagem e o sujeito são co-integrados em um conjunto unitário que se autoproduz e se auto­reproduz”. (BERQUE, 1998, p. 86)

Corroborando com esta posição, Simon Schama diz que, antes de poder ser um repouso para os sentidos, as paisagens compõem-se tanto de camadas rochosas quanto de lembranças e histórias. Aos elementos também se misturam às

5 TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente, 1980.

SAHR, W. D. Signos e espaço mundos - a semiótica da espacialização na Geografia Cultural. In: KOZEL, S.; SILVA J. C.; GIL FILHO, S. F. (Org.). Da percepção e cognição à representação: reconstruções teóricas da geografia cultural e humanista. Curitiba: NEER, 2007, p. 57.

6 SERRANO, Célia M. T. A invenção do Itatiaia. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de

Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP, 1993, p. 20; CORREA, D. S. Descrições da paisagem - construindo vazios humanos e territórios indígenas na capitania de São Paulo ao final do século XVIII. Vária História, v. 24, n. 39, Belo Horizonte, jan/jun. 2008, p. 137.

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memórias de determinados grupos ou indivíduos, os interesses e os saberes advindos de diversas esferas humanas. Esse processo é dado de forma contínua e insere tanto a própria dinâmica da natureza quanto o despertar do homem para outros conceitos e idealizações de vida. Portanto, tem como resultado as interações entre os sistemas humanos e os sistemas naturais, nas quais a cultura, a cognição e a convenção são os elementos capazes de transformá-las em paisagens. (SCHAMA, 1996, p. 16-24)

O que nos interessa neste trabalho, portanto, é essa perspectiva da paisagem como um lugar de produção de sentidos e representação, ou seja, a paisagem como uma criação cultural, na qual Cultura e Natureza são elementos constituintes e indispensáveis. A vantagem inerente aos trabalhos de História é talvez a de perceber a historicidade dessas noções de Paisagem, Cultura e Natureza, entendendo que, em cada momento, novos problemas e novos objetos são elencados no horizonte de interesses dos pesquisadores. Ao se tratar da paisagem, as pesquisas em História, como alerta Dora Corrêa, nos chega pelo olhar de “outros”, exigindo que nós mobilizemos as ferramentas do nosso métier para localizar no tempo e no espaço tais acepções e, mais ainda, a maneira que foram enunciadas e quais interesses estão em volta. (CORRÊA, 2012, p. 49-55)

Há três momentos para a constituição da Paisagem do Cariri que podem corresponder a outras paisagens. O primeiro momento é o que Georg Simmel apontou em A Filosofia da Paisagem (2013): a paisagem nasce a partir de um processo de singularização da natureza, em que ela, a paisagem, corresponde a uma unidade fragmentada de um corpo natural maior. Esse processo justificaria o caráter particular que cada paisagem possui. Mas existe um segundo momento para a consolidação da paisagem que é a homogeneização de seus componentes constituidores. Faz parte do processo de identidade da paisagem a homogeneização de seus aspectos físicos, que mesmo diversos, precisam caracterizar aquela paisagem. Esse processo só se completa com outra parte constituidora da identidade, a alteridade. No terceiro momento, identidade e alteridade ambiental constituem juntas os elementos reguladores da paisagem, garantindo a sua singularidade e homogeneidade.

Defendo que a alteridade ambiental, conceito criado a partir das investigações sobre a Paisagem do Cariri, dá coerência ao processo de homogeneização da

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paisagem com pretensão de lhe garantir identidade. Mas para a homogeneização da paisagem ser efetiva, ela precisaria assegurar a coerência interna de seus elementos, o que é difícil de acontecer, ainda mais se tivermos em mente paisagens com dimensões regionais, como o Cariri (e a Andaluzia, na Espanha, por exemplo). É por isso que elementos simbólicos são remanejados para corrigir ou amenizar aspectos diversos de uma paisagem.

Para entender esta particularidade, pretensamente homogênea, que é a paisagem, é preciso pensar num processo indenitário que leve em consideração a alteridade que lhe é inerente. No caso do Cariri cearense, reiteradas vezes, a identidade da paisagem levou (e ainda leva) em consideração os aspectos naturais do sertão que está à sua volta. O sertão é o outro para o Cariri, não apenas pelo uso de referências naturais, mas também sociais. Os sertões no Brasil, como em todo Império Marítimo português, foi dotado de sentidos diversos desde o momento da colonização até o processo de reconhecimento e mapeamento dos espaços. É notório que no Brasil, a polarização de paisagens da cidade e do campo traduziu-se no antagonismo do “litoral versus sertão”. O litoral seria o lugar da vida urbana e da natureza conhecida, domesticada e produtiva; e seu oposto seria o lugar do

wilderness brasileiro, o sertão, o interior a ser conquistado e modificado para o estabelecimento de uma ordem política. Não por acaso, o termo sertão descrevia os lugares povoados por indígenas, chamado de Tapuyarama (região interior desconhecida dos tapuyas, ou “bárbaros”). É notório que o Cariri surge enquanto paisagem justamente no auge do processo de mapealização dos sertões, no final do século XVIII e na primeira metade do XIX. E a sua toponímia já indica o que Yi-Fu Tuan destaca, que nomear é a primeira forma de apropriação e transformação de um lugar. (TUAN, 2013, p. 183-197)

A relação da paisagem com a identidade cultural se dá justamente porque a paisagem, sobretudo a do Cariri, é garantidora da criação dos laços de afinidade que recorrem aos lugares e à memória para fundamentar a identidade. (NORA, 1993, p. 11)Entendo, também, que a paisagem do Cariri não só é constituidora da identidade cultural daquela região como também é anterior a ela, sendo um pré-requisito necessário para garantir as relações de pertencimento.

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1.5 A POÉTICA DO CARIRI CEARENSE

Após três anos de amadurecimento da pesquisa, a minha abordagem para a Paisagem é a de que ela representa a memória do território. E como o território é fruto das relações de poder de uma sociedade e, portanto, é definido pela ação das pessoas, a paisagem é também memória dos processos sociais e culturais no espaço, sua caracterização, representação, simbolização e identificação.

O Cariri de natureza privilegiada que tem como marca a Chapada do Araripe; o Cariri dos seus Mestres da Cultura Popular; o Cariri da religiosidade e do Pe. Cícero; o Cariri e sua história política de dimensões locais, regionais e nacionais; o Cariri dos seus intelectuais e das suas instituições; o Cariri e sua formação geológica que remonta a idade da Terra; o Cariri e suas lendas e mitos. Todas essas referências indicam a criação e a composição da paisagem do Cariri.

Isso nos leva a pensar a paisagem como uma dimensão social e histórica muito maior e abrangente do que o convencional; afinal, ela corresponde não só ao visto e percebido, mas ao imaginário construído para o lugar e, por conseguinte, para as pessoas. Percebi que a paisagem do Cariri construiu o que se convencionou chamar de uma “geografia imaginativa”, ou seja, um conjunto de imagens associadas que se vinculam ao espaço e às pessoas e se tornam uma referência para designá-los.

A ideia de geografia imaginativa, formulada por Edward Said em Orientalismo (1990), está relacionada às ideias de Gaston Bachelard (2000) e Claude Lévi-Strauss (1985) e indica a construção cultural de conceitos e imagens que acabam por se tornar representativas para se referir a lugares e a culturas. Formulado como um conceito relacional, Said analisou a formação de uma geografia imaginativa sobre o Oriente. Essa imagem foi criada lentamente e pelos mais diferentes indivíduos, constituindo certa estabilidade, ordem e reconhecimento sobre essa imagem.

Para Bachelard, o espaço, para além de seu caráter instituído no campo da experiência concreta, possui outro campo, o do imaginário. Para o filósofo, o espaço adquire um sentido emocional, além de racional, através de um processo poético

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que faz a distância ser convertida em significado. O mesmo processo acontece em relação ao tempo. Nesse sentido, para Bachelard, a geografia, assim como as histórias imaginativas operam na intensificação e atribuição de sentidos, construindo uma identidade ao longo do tempo, com e pelas pessoas. (BACHELARD, 2000, p. 184). É essa poética do espaço que a paisagem do Cariri representa, e esta pesquisa tenta ler o espaço tentando encontrar esta poesia.

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2. CAPÍTULO 1 - ESCAVANDO O CRETÁCEO: IDENTIDADE E ALTERIDADE

AMBIENTAL NO CARIRI CEARENSE7

Enquanto o território se constitui pela designação de um lugar – seja do mundo sensível ou do campo das ideias –, a identidade se estabelece pela relação entre “um” e “outro”. É definida pelo conjunto de características pelas quais uma pessoa ou um objeto são reconhecidos. Idêntico é aquele que, comparado a outro, denota igualdade. Identificar-se com alguém significa ter ideias, sentimentos, aspectos em comum. Este capítulo tem como pretensão investigar a identidade e a alteridade do território Cariri cearense, revelando o processo de invenção desta paisagem.

Essa investigação se tornou absolutamente necessária para a compreensão do Cariri como uma unidade (regional), ponto de partida para o discurso identitário. O Cariri se constituiu como uma paisagem distinta do que estava à sua volta, seja por um sertão semiárido naturalmente diferente das características naturais encontradas nas proximidades da Chapada do Araripe ou pela pretensa diferença social em relação ao restante do Sertão.

Os conceitos de “identidade” e “alteridade ambiental” são centrais neste capítulo. O primeiro está sendo pensado a partir dos estudos culturais dos últimos 20 ou 30 anos, que percebem os interesses do discurso identitário e as marcas para fundamentá-lo. Já o conceito de alteridade ambiental foi cunhado a partir da percepção de que a paisagem se constitui como uma identidade do espaço que recorre a elementos internos e externos, numa tensão entre o “eu” e o “outro”. No caso do Cariri, a alteridade ambiental é o elemento consolidador da singularidade do Cariri em relação ao sertão. Essa alteridade maneja elementos ambientais para fundamentar uma alteridade social, possibilitando a paisagem do Cariri.

7 A alusão à arqueologia tenta criar uma metáfora sobre os níveis de sedimentação da Chapada com

a construção social e histórica desta paisagem. O processo de escavação é salutar para promover uma relação de busca, que neste caso será genealógica, porque não se está buscando a origem ou verdade última da Paisagem do Cariri. Ao fim e ao passo, a escavação tem intenção de revelar as camadas, identificando suas composições e inter-relações.

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2.1 JOÃO DA SILVA FEIJÓ E OS “DILATADOS SERTÕES”8

Em 1799, a Capitania do Ceará se tornou politicamente independente da capitania de Pernambuco. Depois de dois séculos vinculada ora à Capitania do Maranhão, ora a Pernambuco – sem falar na presença holandesa de 1637-1644 e 1649-1654 –, a Capitania do Ceará teria sua própria administração com o Governador Geral Bernardo Manoel de Vasconcelos. Foi um momento determinante na história da capitania, já que a partir desta data passaria a administrar os assuntos mais pertinentes para a sua consolidação como um espaço possível de progresso para a Coroa lusitana.9

A emancipação representou a autonomia política daquela sociedade, como também, e principalmente, um momento singular de construção dos espaços sociais que pretendiam integrar uma unidade político-administrativa e econômica, sem interferência direta de outras capitanias. É também o momento que esta unidade se propõe a integrar um corpo maior do Estado Nacional Brasileiro, também em formação a partir da independência.

Junto com o governador geral Bernardo Manoel, a Capitania do Ceará recebeu o sargento-mor e naturalista João da Silva Feijó, responsável a partir de então por investigar a jazidas de salitre e estabelecer o seu potencial econômico. Além da investigação das jazidas, Feijó realizou estudos mais abrangentes sobre o meio natural da Capitania, buscando outras possibilidades econômicas, como a fauna e a flora do Ceará.10

8 Este tópico foi inteiramente pensado a partir da leitura atenta da dissertação de mestrado do

historiador Antônio José Alves de Oliveira, intitulada “João da Silva Feijó e os dilatados Sertões: Pensamento Científico e Representações do mundo natural na Capitania do Ceará (1799-1816)” (2014). Dito isso, o objetivo é aproximar a linha de investigação do trabalho de Antônio José para formular o meu argumento neste capítulo. Agradeço o autor pelas indicações e críticas.

9 NOBRE, Geraldo da Silva. O Ceará Capitania autônoma: Fim do período colonial, situação política,

econômica e cultural. Comunicação apresentada no Instituto Histórico do Ceará, 1987, pp. 85-97.

10 FEIJÓ. João da Silva. Coleção descritiva das plantas da Capitania do Ceará, 1818. (Coleção

estudos cearenses), 1984. E NOBRE. Geraldo Silva. João da Silva Feijó: Um Naturalista no Ceará. Fortaleza: Grecel – Gráfica Editorial Cearense Ltda., 1978.

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Esse momento de reconhecimento da Capitania do Ceará, marcado pela emancipação política e pela presença de um naturalista membro da Real Academia de Ciência de Lisboa, é significativo para o processo que eu estou denominando como a formação da identidade e alteridade do Cariri cearense.

O historiador Antônio José Alves de Oliveira resume a presença de Feijó assim:

A partir de 1799, coincidindo com a separação e autonomização da Capitania do Ceará em relação a Pernambuco, e durante os subsequentes 17 anos, João da Silva Feijó passa então a perscrutar as potencialidades da Capitania, produz uma série de “Memórias”, buscando compreender e dar a ver a Coroa os aspectos da terra, da fauna, da flora e das características de seus habitantes, atentando especialmente em suas memórias para as potencialidades minerais, para as projeções de melhorias nas atividades agrícolas e ainda para os “aspectos físicos e morais dos povos”. (OLIVEIRA, 2014, p. 146)

As Memórias Filosóficas é um material imprescindível para conhecermos a Capitania do Ceará no período em que João da Silva Feijó esteve na capitania (1799-1816), sobretudo no que diz respeito aos aspectos naturais. Concordo com Oliveira (2014) de que a presença de Feijó e suas investigações científicas participam de um conjunto de ações empreendidas na Capitania a fim de perscrutar suas potencialidades econômicas, reconhecendo e registrando as suas características naturais e sociais. Vinculada aos interesses econômicos está o desejo das elites da capitania do Ceará de ter maior predomínio político sobre o território.

Como nos indica Oliveira (2014, p. 145-146), também há um movimento de maior racionalização da administração da Coroa Lusitana sob seus domínios ultramarinos. Este processo foi iniciado no último quartel do século XVIII e concedeu autonomia à capitania do Ceará para que esta empreendesse os “melhoramentos” econômicos e sociais necessários para o seu “progresso civilizatório”. O impacto do trabalho de João da Silva Feijó foi de suma importância para ressaltar o potencial econômico de determinados aspectos do mundo natural que poderiam colaborar com os interesses da Coroa, além de favorecer a administração da capitania no combate à violência que marcava o sertão nesta época.

Orientado pela fisiocracia, João da Silva Feijó colaborou para uma série de mapas e representações cartográficas da Capitania do Ceará, entre elas a Carta

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Capitania do Ceará, Dividida pelo Campo Illuminado de cor, cartografada também

por volta de 1800, a Carta Demonstrativa da Capitania do Ceará para servir de plano

a sua Carta topográfica, de 1810; e Carta topográfica da Capitania do Ceará,

elaborada em 1812, com o auxílio do padre João Ribeiro de Pessoa de Mello e Montenegro.

O trabalho de Feijó proporcionou um novo entendimento sobre o mundo natural na Capitania e interferiu sobremaneira no modo de olhar para os aspectos naturais.

Cabe salientar, no entanto, que apesar de não ser propriamente um “espaço em branco” no sentido pensado no clássico livro de Joseph Conrad, através do procedimento de escrita das suas memórias filosóficas e representação em um âmbito mais alargado, com suas publicações, posteriormente, na Revista Científica e Literária “O Patriota”, Feijó elabora uma certa imagem da Capitania do Ceará para os seus pares, e para os administradores no centro do Império. Circunscreve suas fronteiras através de sua escrita e da elaboração de seus mapas, o que era observado e representado por parte dos demais administradores, capitães-mores e ouvidores como “dilatados sertões” de proporções indefinidas a ser civilizado, devassado e reconhecido, passa a possuir uma imagem mais concreta, com a representação cartográfica indicando os caminhos, rotas, minas, vegetais, serras e recursos naturais a serem melhor aproveitados. (OLIVEIRA, 2014, p. 148)

Defendo que Feijó inaugurou um novo momento na representação do sertão e da Capitania do Ceará, ao anunciar uma visão, num certo sentido otimista, do potencial econômico da exploração dos recursos naturais da capitania. Orientado pela fisiocracia e tendo como influência o vínculo científico com a Academia Real de Ciência de Lisboa, é preciso destacar que o olhar de Feijó foi desenvolvido para perceber tudo que a natureza poderia conferir de riqueza para o progresso humano, e que se havia desafios, estes seriam suficientemente superados por um homem de ciência, como Feijó. Dois textos apresentam os horizontes de percepção sobre o mundo natural da capitania do Ceará nas primeiras décadas do século XIX. O primeiro deles é o “Memórias da Capitania do Ceará”, escrito em 1810, por João da Silva Feijó; e o outro é a “Descrição geográfica abreviada da Capitania do Ceará”, escrita pelo ouvidor-geral da Capitania do Ceará Rodrigues de Carvalho, em 1816.11

11 Agradeço ao Antônio José de Oliveira Alves pela indicação desses textos, que também lhe

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Para Rodrigues de Carvalho, em 1816 os 148 mil habitantes da Capitania, dentre os quais 17 mil eram escravizados, eram organizados em 17 vilas, sendo 12 vilas de brancos e 5 de índios, quase todas fadadas à extinção pela precariedade e ausência da assistência pública, como também pela economia restrita às lavouras de mandioca, arroz, feijão, milho e algodão e à criação do gado vacuum. Concluiu o ouvidor-geral:

esta capitania está sempre nascente, que a população não pode fazer progressos vantajosos, pelas emigrações contínuas, ocurrência de sêcas, padecimento de moléstias dahi provindas; o que tudo definha a espécie, que devia augmentar-se rapidamente, em relação da fecundidade e da propagação, que se antecipa aos doze annos nas mulheres, e o benefício da salubridade do ar na maior parte das villas. Devem entrar em linha de conta a preguiça, o prejuízo de não servir homem forro, ainda que seja preto, a facilidade de se manter de furto de gados, a frequência dos crimes de morte, que perde logo dois homens o morto e o agressor, que ordinariamente escapa não só pela fugida e dificuldade de se apanhar nos longos matos, mas pela indiferença com que os habitantes olham para o crime de morte e a prontidão com que acoitam e dão passagem aos criminozos. (PAULET, 1898, p. 13)

Segundo Rodrigues de Carvalho, a Capitania era até circundada por “cordilheiras” que lhe conferiam nascentes profícuas, mas destas não se originava nenhum rio caudal. E as secas regulares impediam qualquer progresso na agricultura, tornando as poucas serras o locus possível de algum progresso.

Essa percepção se contrasta com a visão otimista de Feijó. Em sua Memória

sobre a Capitania do Ceará, escrita em 1810, indica que “é necessário ter muito

pouco conhecimento do físico da Capitania do Ceará para duvidar das immensas vantagens que ella pode produzir em utilidade dos seus habitantes, augmento do seu commercio e prosperidade geral do Estado”. (FEIJÓ, 1889, p. 3)

No entanto, Feijó não discordava de uma leitura sobre o sertão da Capitania do Ceará vinculada ao quadro moral da violência. Reforço o argumento de que Feijó colabora para que novas associações e representações sejam feitas em relação ao Sertão, sobretudo uma percepção que leve em conta o potencial do mundo natural como via possível para o “progresso civilizatório” na capitania. Defendo neste capítulo que uma identidade natural foi construída ao longo do século XIX, principalmente por causa da influência de Feijó e de seus escritos, que, como veremos adiante, a partir de outros autores, anunciaram um aspecto que deveria ser levado em consideração por todos aqueles que quisessem falar sobre a Capitania e

Referências

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