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O cabra do Cariri Cearense: a invenção de um conceito oitocentista

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

ANA SARA RIBEIRO PARENTE CORTEZ IRFFI

O Cabra do Cariri Cearense

A invenção de um conceito oitocentista

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ANA SARA RIBEIRO PARENTE CORTEZ IRFFI

O Cabra do Cariri Cearense A invenção de um conceito oitocentista

Tese apresentada à banca do curso de

Doutorado em História, do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em História. Área de concentração: História Social.

Orientador: Prof. Dr. Franck Pierre Gilbert Ribard.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

I63c Irffi, Ana Sara Ribeiro Parente Cortez.

O cabra do Cariri cearense : a invenção de um conceito oitocentista / Ana Sara Ribeiro Parente Cortez Irffi. – 2015.

354 f. : il. color., enc. ; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades,Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, Fortaleza, 2015.

Área de Concentração: História do Brasil Império. Orientação: Prof. Dr. Franck Pierre Gilberto Ribard.

1.Cabras(Povo brasileiro) – Cariri(CE : Microrregião) – Condições sociais – Séc. XIX. 2.Cabras (Povo brasileiro) – Cariri(CE : Microrregião) – Usos e costumes – Séc. XIX. 3.Trabalhadores –

Cariri(CE : Microrregião) – Condições sociais – Séc. XIX. 4.Sertanejos – Usos e costumes – Séc. XIX. I. Título.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, sempre.

Aos meus queridos pais e irmãos, Jader, Eliane, Herlon, Juliana e Ana Isabel, pela força e confiança em mim depositadas em todo esse processo.

A Guilherme Irffi, pela ajuda, dedicação e paciência não apenas nesses quatro anos. Meu companheiro de todas as horas, disponível para ouvir sobre a tese e sempre procurando textos que pudessem me auxiliar. Obrigada por toda a dedicação e por me fazer rir, sempre.

A Franck Ribard, pela orientação atenta, constante e, principalmente, por seguir todo esse caminho acreditando na ideia da tese. Sua ajuda foi fundamental para a elaboração desse trabalho.

A Universidade Federal do Ceará, na pessoa de seus coordenadores, professores e funcionários, pelo amparo e auxílio em todas as etapas do doutorado.

Aos colegas do doutorado, da primeira turma, Paula Virgínia, Raimundo Nonato, Ana Paula, Darlan, Alisson e Tyrone; e minha turma, Ana Amélia, Aline, Raquel, Emy, Pedro Pio, Maicon, Enilce, Rodrigo e Ana Isabel (colega e irmã), que poderia também defender essa tese, por ouvir minhas dúvidas e trajetórias do texto em todo esse período.

Aos colegas de trabalho, os professores dos cursos de Economia e Finanças da UFC – Sobral, pelo acolhimento e pela força que me deram em todo esse período. Quero especialmente externar minha gratidão pelo ano que me concederam de afastamento para a conclusão da tese.

A Universidade Regional do Cariri, minha casa de formação acadêmica, em especial aos colegas do Núcleo de Estudos em História Social e Ambiente (NEHSA), do qual honradamente faço parte.

Aos funcionários das bibliotecas e arquivos os quais visitei nas pesquisas, notadamente o Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), a Biblioteca Nacional, o Arquivo Nacional, Departamento Histórico Diocesano Pe. Gomes (DHDPG) e o centro de documentação do Cariri (CEDOCC) pela disponibilidade e presteza em me dar acesso às fontes.

Aos Professores Eurípedes Funes e Frederico de Castro Neves agradeço sinceramente as contribuições feitas na Banca de Qualificação.

A Lourdes de Carvalho, pela disponibilidade e paciência na produção do mapa.

A Flávio Queiroz, do Departamento de Línguas e Literatura da URCA, pela revisão e correção do texto final.

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O fole roncou

O fole roncou no alto da serra Cabroeira da minha terra Subiu a ladeira e foi brincar

O Zé Buraco, Pé-de-Foice, Chico Manco Cabra Macho, Bode Branco Todo mundo foi brincar Maria Doida, Margarida Flores Bela Muito triste na janela, não dançou, Não quis entrar

Naquela noite me grudei com Juventina E o suspiro da menina era de arrepiar Baião bonito tão gostoso e alcoviteiro Que apagou o candeeiro pro forró se animar

Naquela noite eu fugi com Juventina Quem mandou a concertina meu juízo revirar Eu sei que morro de bala de carabina Mas o amor da Juventina me dá forças pra brigar

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RESUMO

A transformação de uma palavra em conceito - Cabra, tendo um espaço e um tempo de referência, o Cariri Cearense no século XIX, é o objeto dessa pesquisa. Trata-se de analisar como foi criada, sob vários aspectos e diferente em vários momentos do século XIX, uma identificação negativa para uma categoria social, os trabalhadores de cor do Cariri Cearense, tanto livres, libertos como escravos. Em um contexto mais amplo, essa construção é fruto do momento em que se tentou definir um conteúdo para a nação brasileira, notadamente na definição do cidadão nacional. À medida que se formava essa identidade, foi constituída, na contramão, uma definição do não-cidadão, a qual englobava os que não correspondessem aos parâmetros jurídicos e financeiros instituídos pela elite senhorial brasileira no século XIX. Na região sul Cearense, essa definição foi associada aos indivíduos, ou mesmo ao grupo, designados como cabras. Inicialmente associado a um fenótipo e à condição jurídica do escravo, aos quais foram agregadas posteriormente outras características, como o de trabalhador rural, capanga, entre outros, o cabra foi se cristalizando como uma categoria de classificação social: associado aos homens de cor, trabalhadores, sujeitos a um senhor. As tensões relativas à movimentação desta definição não se restringiram ao momento de formação da nação brasileira, nem mesmo aos oitocentos, na medida em que a ―invenção do Cabra‖ reverberou na leitura do século XX sobre o passado, apontando o conceito de cabra como um indicador não só das especificidades de cada momento histórico, mas também de delimitação da visão sobre o passado, elemento central no processo de formulação discursivo da identidade carirense pelos intelectuais imbuídos desta tarefa em meados do século passado.

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ABSTRACT

The transformation of a word into a concept - Cabra, having a space and a time reference, those being the Cariri region in the state of Ceará and the nineteenth century, is the object of this research. The focus is to investigate how, in many ways and different at various times of the nineteenth century, a negative identification for a category was created, the colored workers of the Cariri region, whether these were free workers, freed former slaves, or slaves. In a broader context, this construction is the result of the time in which it was tried to define content for the Brazilian nation, especially in the definition of what was a national citizen. As this identity was formed, on the other hand, an anti-definition of citizen was also constructed, which encompassed those who did not correspond to the legal and financial parameters established by the Brazilian noble elite in the nineteenth century. In the southern region of Ceará, this definition was associated with individuals or even to the group, called cabra s. Initially associated with a phenotype and the legal status of the slave, to which other features were subsequently aggregated, such as being rural workers, henchmen, among others, the cabra was crystallized as a category of social classification: associated with men of color, workers subject to a master. The tensions related to the movement of this definition is not restricted to the moment of formation of the Brazilian nation, not even to the eighteen hundreds, insofar as the "invention of the cabra" reverberated in the literature of the twentieth century on the past, highlighting the concept of cabra as an indicator not only of the characteristics of the historical moment, but also to delimit the vision of the past, a central element in the discursive formulation of the identity of the Cariri region by intellectuals imbued with this task in the last century.

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LISTA DE GRÁFICOS E MAPA

Gráfico 1: População da Capitania do Ceará Grande, 1804. ... 58

Gráfico 2: População da Capitania do Ceará Grande, 1808. ... 60

Gráfico 3: Comparação da população da Capitania do Ceará Grande nos anos de 1804 e 1813. ... 66

Gráfico 4: População da Capitania do Ceará Grande por categorias no censo de 1813. ... 67

Gráfico 5: População escrava do Cariri por origem e cor – 1810 – 1880. ... 81

Mapa 1 – Espaços dos cabras no Cariri Cearense. ... 167

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Dados Parciais do Censo de 1813 da Capitania do Ceará. ... 65

Tabela 2: Mappa Estatístico das Freguesias de Crato, Barbalha, Missão velha, Jardim e Milagres, 1860 ... 70

Tabela 3: População das vilas e cidades do Cariri Cearense por raça e idade no Censo de 1872 ... 75

Tabela 4: População escrava do Cariri por origem e cor – 1810 – 1880. ... 78

Tabela 5 – Cor/origem etnicorracial dos escravizados avaliados nos inventários do Crato (1871-1884) ... 217

Tabela 6: População do Império por Gênero e Condição Jurídica no Censo de 1872 ... 226

Tabela 7: População do Cariri Cearense por Raça e Condição Jurídica no Censo de 1872 .. 227

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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AN Arquivo Nacional

APEC Arquivo Público do Estado do Ceará BN Biblioteca Nacional

CEDOCC Centro de Documentação do Cariri – Universidade Regional do Cariri CRL Center for Research Libraries

DHDPG Departamento Histórico Diocesano Pe. Antonio Gomes de Araújo IC Instituto do Ceará – Histórico, Geográfico e Antropológico ICC Instituto Cultural do Cariri

IHGB Instituto Histórico Geográfico Brasileiro

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SUMÁRIO

Introdução - ―Não existe doce ruim, nem cabra bom‖ – a invenção de um conceito ... 15

Capítulo 1 - Cabras, caboclos, negros, pardos e mulatos: a formação de uma sociedade ‗de cor‘ ... 34

Tópico 1.1 –―Segundo a qualidade da nossa população‖: a definição do ‗cidadão‘ brasileiro ... 35

Tópico 1.2 –Demografia da cor: definições ‗raciais‘ para os mestiços cabras, caboclos, negros, pardos e mulatos: a formação de uma sociedade ‗de cor‘ ... 53

Tópico 1.3 – De pardo a cabra: a definição da cor baseada no lugar social ... 83

Capítulo 2 - ―Um séquito de cabras armados‖: a guerra do Pinto e a construção histórica do cabra ... 104

Tópico 2.1 –―Um grito de terror se ouvio: <os cabras!>‖: a construção negativa de um conceito ... 105

Tópico 2.2 –―Esses cabras são uns perfeitos cossacos‖: a institucionalização do conceito cabra na guerra do Pinto Madeira ... 132

Capítulo 3 –―Quadrilha de cabras‖: os homens dos ‗coroneis‘ ... 161

Tópico 3.1 –―José Vicente com seus cabras‖: camponeses, moradores e agregados ... 162

Tópico 3.2 –―Cabras desconhecidos e armados de cacete e faca‖: cangaceiros e capangas ... 184

Tópico 3.3 –―Cabra assassino de profissão, matador‖ ... 197

Capítulo 4 – Cabras: trabalhadores livres, libertos e escravizados ... 213

Tópico 4.1 ―Cabra, não trabalha, nenhuma professão‖ ... 214

Tópico 4.2 – Ajuste dos braços ao trabalho: ócio e o trabalhador ideal para a lavoura ... 233

Tópico 4.3 - Está dito; os cabras são incorrigíveis!– Criada uma identificação negativa 254 Capítulo 5 – Novos olhares: os discursos sobre o passado através da figura do cabra ... 272

Tópico 5.1 - ―Nada mais bonito para mim naquele tempo do que um cabra valente‖: a leitura dos memorialistas ... 273

(14)

Tópico 5.3 –―Revivendo o poeta José de Matos‖: o cabra como elemento do folclore ... 316

Conclusão ... 333

Fontes ... 337

(15)

Introdução - “Não existe doce ruim, nem cabra bom” – a invenção de um conceito

Talvez não exista nada mais instigante que o poder exercido pelo discurso. Ao pronunciar as palavras que compõem uma argumentação, o ser humano defende princípios, ideias e, às vezes, denuncia – sem o saber – sua própria utopia. Mas, assim como o homem, o discurso também é traiçoeiro. Longe de representar linearmente os desejos de quem fala, ele muitas vezes encobre motivos escusos ou, ao menos, razões menos nobres do que aquelas expressas no texto.1

―Não existe doce ruim, nem cabra bom‖.2 George Gardner, em seus registros acerca das impressões que o meio e o povo do Cariri Cearense lhe causaram, ressaltou, com certo assombro, a frequente utilização pela sociedade desse ditado como definidor de uma parcela da população. Com efeito, ao longo do século XIX, foi criada uma identificação, de cima para baixo, sobre a população pobre do Cariri Cearense, quer livres, libertos, ou até mesmo

escravos. Nesse processo é possível perceber a construção do conceito do cabra, que,

inicialmente, foi visto como uma marca ruim – agregando sentidos e significados pejorativos – até ser entendido como uma reminiscência dos tempos passados, uma marca do homem ‗forte‘ do Cariri Cearense.

Essa região, no século XIX, formada pelas cidades e vilas de Crato, Barbalha,

Missão Velha, Jardim e Milagres, se configurava como um espaço rural. Suas cidades

seguiam o ritmo do trabalho no campo, com uma elite senhorial proprietária de terras que

controlava a economia e os dispositivos públicos, e com um comércio sustentado em grande

parte pela produção campesina.

Localizada ao sopé da Serra do Araripe, com inúmeras fontes naturais, essa região que

tomava a parte sul da Província do Ceará foi apresentada com uma conotação diferente em

relação aos sertões que os circundavam. Conforme João Brígido, editor do jornal O Araripe,

publicado ali entre os anos de 1855 a 1864,

o Cariri propriamente dito é uma cinta de terrenos com cerca de 60 léguas de comprimento sobre duas e mais de largura, que acompanhando as curvas, que descreve a montanha do Araripe seguindo as suas sinuosidades huma vasta extenção de terrenos irrigáveis, cuja (ilegível) fica cercada de certões immensos. Mais de cem correntes se abrem passagem por entre as fendas da montanha e se precipitão sobre os vales para ahi, dispersos em mil delgados

1

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998, p. 33.

2

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fios, irem communicar aos cannaviaes sua frescura e perservar (sic) o principio vegetante de sucumbir aos influxos do sol abrasador do estio. Uma eterna verdura (...).3

A mesma visão foi compartilhada quando da elaboração de uma historiografia acerca

da região, especialmente em meados do século XX. Contudo, não apenas pela exaltação do que consideravam como um ‗ubérrimo‘ espaço, mas também de uma elite, entendida como mais avançada culturalmente. De acordo com José de Figueiredo Filho,

não fica satisfeito o caririense quando alguém o chama de sertanejo, o seu Cariri de sertão, não toma a palavra sertão em seu sentido mais amplo, na acepção de zona do interior, afastada da faixa litorânea. O Cariri, do Ceará, é uma espécie de zona da mata pernambucana, ou dos brejos da Paraíba. É cercada da zona sertaneja criadora. No tempo de estiagem é que o contraste da natureza se torna bem flagrante. Dos pés de serra do Araripe brotam dezenas e dezenas de fontes perenes que derramam a fertilidade na região. As quedas pluviométricas, graças também à proteção carinhosa do Araripe, são das melhores do Nordeste. Mas, há zona de serra e outras mais baixas, sem água regadia, férteis também, mas, que não se prestam à lavoura canavieira. São utilizadas noutras culturas, completando assim, a riqueza agrícola da terra.4

Para esse autor, como para a elite senhorial, no século XIX, a natureza era o grande

meio pelo qual os senhores mais abastados fariam da região não apenas a mais desenvolvida

economicamente, como elevariam também o escalão moral da população. A esperança no

progresso econômico, com o incremento da produção agrícola, era o caminho para a tão

sonhada riqueza e as melhorias proporcionadas por elas.

Em contrapartida, nas atas e ofícios das câmaras citadinas da região, toda essa

profusão da natureza não se mostrava suficiente para alavancar o progresso ‗espiritual‘ dessa sociedade. Em ofício expedido ao Presidente da Província, em 1857, os vereadores de Barbalha reclamaram que a ―ignorância é [era] a primeira causa de atraso do paiz, dos crimes e das classes mais numerosas‖. Vinculando, nesse sentido, a ideia de pobreza à de ignorância e separando hierarquicamente esses dois setores da sociedade. Conforme Darlan Reis Jr., ―a classe senhorial procurava, através de diversos mecanismos e práticas hegemônicas, definir os papéis sociais que competiriam a cada classe, conforme a visão de mundo e seus interesses‖.5

3O Araripe

, 26 de junho de 1858, n º 149, p. 01, col. 02 e p. 02, col. 01. 4

FIGUEIREDO FILHO, José de. Engenhos de rapadura do Cariri: documentário da vida rural. Coedição Secult/Edições URCA. - Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 21.

5

(17)

A formulação do conceito cabra estava diretamente relacionada à necessidade,

entendida pela classe dominante do Cariri Cearense, em diferenciar as classes sociais e, mais

ainda, delimitar os papéis sociais que competiam a cada uma. No entanto, o desenho dessa

categoria, forjado ao longo dos oitocentos e parte do século seguinte, passava pela ideia de

que tinha um sentido geográfico, entendendo o cabra como sertanejo do Cariri Cearense,

assim como o caboclo se referia ao Norte do Brasil.

De acordo com Deborah Lima, ―o caboclo é reconhecido como um dos ―tipos‖ regionais do Brasil. Entre esses tipos gerais estão os gaúchos do sul, as baianas da Bahia e os

sertanejos do nordeste, para citar alguns. A distinção de cada tipo regional está relacionada

com a geografia, a história da colonização e as origens étnicas da população. Nesse sentido,

os caboclos são reconhecidos pelos brasileiros em geral como o tipo humano característico da população rural da Amazônia‖.6

Da mesma maneira, essa dimensão geográfica foi imputada

aos cabras.

Todavia, apenas o sentido geográfico é insuficiente para delimitar o desenho relegado

a essa categoria. Também devem ser citados os sentidos racial e de classe. Quanto ao racial,

sua influência estava posta na delimitação da mestiçagem como uma marca, ou mesmo

característica, do cabra; e, por último, de classe, na medida em que esse conceito era aplicado

invariavelmente a pessoas cuja posição social era inferior ao do que a identificava. Nesse

quesito, a figura atribuída ao cabra respondia ao interesse de estabelecer uma rígida divisão

social, pautada, sobretudo, na posse ou não de propriedades. Em última instância, era a condição econômica de um indivíduo que definia sua ―cor‖ e, por consequência, sua alcunha.

É preciso ressaltar, no entanto, que a estruturação dessa lógica de identificação não se

deu de forma consciente. Ela foi formulada a partir das situações sociais vivenciadas ao longo do século XIX e quase ‗entendidas‘ como ‗naturais‘. Eram os senhores com seus cabra s armados; os cabras que gritavam ―morram!‖ aos soldados; os cabras fanáticos que seguiam Pinto Madeira; o escravo cabra que não trabalhava, não tinha profissão. Eram situações que os senhores ou mesmo as autoridades locais ‗rotulavam‘ como próprias dos cabras.

Contudo, mesmo o uso corriqueiro do termo, que faz imaginar uma população

concreta, ou uma comunidade, não pressupõe a existência de um grupo que assim se

identificava. Ainda assim, é preciso ressaltar que a população camponesa do Cariri Cearense,

por suas características, foi frequentemente entendida como própria de uma definição cabra.

Sobre as comunidades camponesas no Cariri do século XIX, conforme Darlan Reis Jr.,

6

(18)

persiste nos dias atuais toda uma tradição cultural, religiosa e produtiva. Vive nos sítios, parte considerável da população de trabalhadores. Na segunda metade do século XIX, as trajetórias de vida foram marcadas pelas relações entre essas diferentes comunidades e as demais classes sociais. Existiram aqueles que prosperaram, conseguindo acesso às pequenas posses. Destes, alguns perdiam suas terras e bens por motivo de disputas familiares, ou rivalidades entre senhores, alguma calamidade climática ou epidêmica. Outros não tiveram as mesmas possibilidades e foram obrigados a trabalhar como empregados, em alguns casos, em conjunto com escravizados. Empregavam-se como jornaleiros, ou pediam proteção e moradia a um senhor, passando à condição de ―moradores‖, ou seja, trabalhadores que podiam fazer suas roças em terras senhoriais, construir suas casas de palha nas mesmas propriedades e prestar alguns serviços aos senhores. Não eram condições estáticas.7

Foi a mudança da condição de camponeses que terminou por agregar nessas

comunidades, caracteres semelhantes aos que depois foram atribuídos a categoria cabra e,

dessa maneira, vinculando as definições. Maria Isaura Pereira Queiroz enfatizou que no

momento em que os integrantes de uma estrutura igualitária como a camponesa partem de

uma agricultura de subsistência para outra, como o assalariado, seja rural, seja urbano, ou

morador e agregado, integram-se em estrutura diferente, estratificada segundo o poder econômico, para ocupar o nível inferior da escala social. ―Passam a viver num mundo em que o homem não galga posições pelas suas qualidades intrínsecas, reconhecidas pelos que o

rodeiam e o conhecem de perto; mas sim pelo poder econômico que soube enfeixar nas mãos,

adquirido seja como for... Além da degradação econômica, sofrem os sitiantes [moradores,

agregados] também degradação social. Passam a viver, outrossim, num universo para o qual

não foram preparados, pois os valores da vida rural são inteiramente diferentes dos valores da vida urbana‖.8

Dessa maneira, a destituição da condição de camponês deu espaço a identificação

dessa população expropriada das suas terras e dos seus direitos à formação da categoria cabra.

Posto que, assim como na definição da categoria, o sentido partilhado pelos camponeses era, e ainda é, o de ―pobre‖, sendo o sentimento de identidade baseado no parentesco, na religião, em questões ecológicas e na ocupação econômica do grupo e do indivíduo, atributos mais de

diferenciação, do que propriamente de identidade. Assim, o que mais marca os camponeses é,

mesmo sob iguais condições, a ausência de uma identidade coletiva forte, assim como os

7

REIS JR. Op. Cit., p. 73 - 74. 8

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Uma categoria rural esquecida. In: WELCH, Clifford ... [et al.].

(19)

cabras, que não pressupõe identidade, mas uma categoria de referência e identificação

empregada por pessoas que se consideram alheias a essa definição. Uma categorização de fora

para dentro, ou de cima para baixo.

Por essa percepção, penso no cabra como uma categoria de classificação social, assim

como Deborah Lima percebeu em sua análise acerca do caboclo.

A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em uma categoria social de pensamento analítico. Em contraste com um grupo social, uma categoria social consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade.9

Cabra, mesmo entendido como categoria, também pode ser visto numa dimensão

concreta. Sua definição foi imposta a uma parte da população e articulada a fim de evidenciar

as diferenças entre as pessoas na sociedade. Todavia, mesmo percebida como uma dimensão

categórica, tal percepção era oriunda da observação de uma determinada realidade. Por essa

razão o estranhamento retratado no texto de alguns historiadores ao se referirem aos cabra s.

Sua referência comumente acontece na narrativa de determinados acontecimentos, ligados à

parte sul do Estado, sobretudo relacionada aos trabalhadores. Frederico de Castro Neves, ao

discorrer acerca da seca na História do Ceará, citou que em 1914, na chamada Sedição de

Juazeiro,

as tropas formadas pelos sertanejos partidários de Pe. Cícero rapidamente avançaram pelo território entre o Cariri e a capital, chegando até as cidades periféricas, como Pacatuba e Maranguape, que foram impiedosamente saqueadas pelos ―cabras‖ armados.10

Marcelo Camurça, referindo-se ao Cariri do período da Revolução de 1914, apontou ―pelo lado do conflito, as invasões e ameaças de invasões entre seus municípios pelos seus chefes políticos e seus exércitos de ‗cabras‘ para deposição do poder da facção adversária‖. E ainda aqui se faz mister registrar uma outra exceção nesses eventos de sublevação, como a

dos setores populares rabelistas de Fortaleza11, também distinta da dinâmica das disputas interoligárquicas, e povoaram de jagunços e ‗cabras‘ os dois lados da contenda.12

9

LIMA. Op. Cit., p. 8. 10

NEVES, F de C. Seca na História do Ceará. In: SOUZA, Simone de (org.) Uma Nova História do Ceará. UFC: Fortaleza, 2002, p. 87.

11

(20)

Tanto em um como n‘outro autor, a citação do cabra, vem evidenciada do restante do texto, a fim de denotar uma inquietação quanto aos significados que marcavam o termo.13 Ao longo do tempo, sobretudo do século XX, a alusão a esse termo foi realizada necessariamente com

destaque nas narrativas. Não como sinal de incomodo, ao utilizar a palavra, mas mostrando,

ainda que de forma indireta, que se trata de um termo carregado de significados e com um

contexto histórico. Ou seja, além de uma categoria de classificação social, como visto acima,

o termo cabra pode e deve ser entendido como um conceito.

Entretanto, como é possível afirmar que essa palavra pode ter sido tornada em um

conceito? É factível pensar que ao longo do século XIX, ou mesmo, no espaço de tempo em

que se tentou definir um conteúdo para a nação brasileira, um grupo de trabalhadores foi

continuamente definido de acordo com parâmetros situacionais históricos, de forma a assumir,

ou mesmo agregar, novas e diferentes definições? Como é possível inferir que esse termo, já

expressando alguns significados, passou a designar uma determinada parcela dos

trabalhadores sul cearenses, ou mesmo nordestinos? Se assim for, em que medida um termo

se carrega de significados para tornar-se uma polissemia?

Em primeira análise, é possível observar que a própria questão já aponta

possibilidades de discussão: a transformação de um estado em outro indica um processo. Este

termo, por sua vez, relaciona-se a ideia de ação, pressupondo, necessariamente, a mudança,

bem como a passagem do tempo, imprescindível para o acontecimento. Todos esses termos:

ação, mudança e tempo, indicam que esse processo só tem sentido se pensado a partir de uma

dimensão histórica. Sendo assim, é possível inferir que para uma palavra se tornar – ou, ser tornada – em conceito é necessário partir de um processo histórico. Essa é uma parte fundamental.

Contudo, é preciso atentar para outras questões, ou para a maneira como alguns

estudiosos procuraram responder à pergunta inicial. Em Palavras-chave, Raymond Williams

pela interferência do poder central na política estadual nas primeiras décadas do século XX. Esse conflito teve a participação de Padre Cícero Romão Batista que, com seu exército de cabras, como definiu Irineu Pinheiro, avançou até Fortaleza, a fim de derrotar os rabelistas. Sob a liderança de Floro Bartolomeu e do Padre Cícero Romão Batista, seu exército derrotou as forças do governo federal, depondo Franco Rabelo. PINHEIRO, Irineu.

O Juazeiro do Padre Cícero e a Revolução de 1914. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti Editores, 1938, p. 31. 12

CAMURÇA, Marcelo Ayres. Breve história política do Juazeiro: do processo de autonomia municipal ao protagonismo regional-nacional a partir de 1914. IN: BARROS, Luitgarde O. C. (org.) Padre Cícero Romão Baptista e os fatos do Joaseiro: autonomia político-administrativa. Fortaleza: Editora Senac Ceará, 2012, pp. 36

– 62. 13

(21)

chamou atenção para a construção de conceitos a partir de contextos históricos. Ao definir a

proposta de sua obra, declarou que

a ênfase não recai apenas nas origens e nos desenvolvimentos históricos, mas também no presente – significados, implicações e relações presentes – como história. Com isso se reconhece, como deve ocorrer em qualquer estudo da língua, que há efetivamente uma comunidade – uma palavra difícil – não é a única descrição possível dessas relações entre o passado e o presente; que há mudanças radicais, descontinuidades, conflitos, e que tudo isso está em questão e, a rigor, ainda se produz.14

Para Williams, a inserção de uma palavra em seu vocabulário fazia parte da percepção

desta como um conceito formulado a cada tempo, baseado nas preocupações do presente e

não apenas nas redes de significados agregadas ao longo do tempo. Nesse sentido, avaliar o

processo de construção do conceito de cabra deve necessariamente voltar a uma análise

etimológica – a partir da origem da palavra, mas também baseada em sua evolução histórica – para perceber como esse termo agregou novos significados ao longo dos anos. Ou seja,

Raymond Wiiliams entende que os termos têm seus significados apresentados numa escala

progressiva.

No Brasil oitocentista, a referência ao cabra foi agregada de significados. Gladys

Ribeiro afirma que no Rio de Janeiro, quando da abdicação de D. Pedro I, em 1831, uma série

de revoltas e manifestações tomaram a corte imperial, questionando a presença-participação

portuguesa e tomando a identidade nacional como um dos eixos do conflito antilusitano. Segundo a autora, no episódio que ficou conhecido como ―noite das garrafadas‖,

alguns europeus, suspeita-se que dentre eles marinheiros e caixeiros, começaram a insultar os ―brasileiros‖ chamando-os de ―bodes‖, ―cabras‖ e outros impropérios; gritavam ainda ―mata, mata os cabras‖, e davam ―morras ao Repúblico e ao Tribuno‖.15

Era, ao cabo, um impasse entre os espaços da população ‗de cor‘ e uma população que se considerava ‗branca‘, que não pretendia partilhar espaços de igualdade, e, ao mesmo tempo, vivia atormentada pela possibilidade de uma revolta negra. Não apenas eles, mas todos

os segmentos apresentavam conceitos de liberdade bastante distintos.

14

WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 41.

15

(22)

A referência ao cabra trazida por Gladys Ribeiro estava ligada a acontecimentos

históricos vinculados a uma percepção pejorativa sobre determinada parcela dos trabalhadores

e que marcou o termo com novos significados, e novos entendimentos entre a identidade de ‗ser brasileiro‘ e ‗ser português‘. No caso de seu estudo, o contexto e as especificidades do Rio de Janeiro, era uma questão racial e também nacional: ―passou-se a entender o ‗português‘ como o‗outro‘, ameaçador da nacionalidade em construção‖.16

Quando tratado em relação ao Nordeste, o termo cabra aparece com significados

múltiplos e diferenciados, de acordo com cada temporalidade analisada. Durval Muniz, em

artigo intitulado Cabra macho, sim senhor!: identidade regional e identidade de gênero no

Nordeste, discutiu o elemento masculino, cabra macho, a partir do questionamento da maneira como o discurso freyreano caracterizou o nordestino, mostrando, assim, ―como se cruzam na definição da nordestinidade uma identidade regional e uma identidade de gênero‖.17

Entretanto, documentos produzidos no século XIX para o Ceará, e mais

especificamente para o Cariri Cearense, apontam que a construção desse conceito parte de

situações históricas que, conforme a óptica de determinada época, construíram ou

modificaram a visão sobre o cabra: qual grupo da população agrega e que tipos de

significados são associados a ela.

Em estudo sobre a Família Escrava, para a dissertação de mestrado, encontrei nos

inventários post-mortem de senhores do Cariri Cearense a descrição de escravos cabras, ou de

nação cabra, entre as demais categorizações. Entre os anos de 1806 a 1884, foram contados,

dos cativos, entendidos como nacionais, 377 cabras, 285 mulatos, 299 crioulos, 33 pretos, 37

pardos e 25 caboclos. A classificação no arrolamento estava relacionada à tonalidade da pele

bem como características físicas dos escravos – descendência de nativos, africanos ou, até mesmo, mistura com europeus. Todavia, é de surpreender o grande número de cativos assim

classificados, sobretudo entre 1850 a 1884, quando 38,2% dos cativos foram arrolados com

designação de cabra.

Nas pesquisas para essa tese de doutorado percebi que a categoria não estava restrita

aos trabalhadores cativos. Sua abrangência e a imposição de significados colocavam os

trabalhadores sob a mesma condição cabra. Nos ofícios elaborados pela Câmara Municipal do

Crato, desde 1830, os habitantes da área rural do Cariri Cearense, morando nos sítios,

16

RIBEIRO. Op. Cit., p. 361. 17

(23)

receberam a mesma denominação. Nesse caso, porém, foi acrescida uma leitura sobre eles, indicando serem homens de cor, ‗moradores nos pés-de-serra‘, entendidos como fanáticos, perigosos e violentos. Com relação aos trabalhos que desempenhavam, eram vistos como os

trabalhadores ligados à agricultura, em especial ao plantio da cana, e, no mais das vezes,

agregados, vivendo nas margens das terras dos senhores.

Sua notoriedade, nesse momento, deveu-se a adesão e participação no evento político

que ficou conhecido como Guerra do Pinto Madeira, um movimento político em prol do

retorno do Príncipe Regente, D. Pedro I, ao trono brasileiro, iniciado em 1831; embora os

interesses dos cabras não fossem necessariamente os mesmos dos senhores a quem estes

acompanhavam (como será discutido no segundo capítulo). Suas reivindicações, ao que as

fontes indicam, tinham caráter eminentemente local, e não nacional. As correspondências

oficiais, bem como os relatos colocados em cartas trocadas entre senhores ajudaram a

vislumbrar o lugar dos cabras nos conflitos ocorridos nas décadas de 1820 e 1830.

Após esses acontecimentos, a referência encontrada sobre o cabra, no restante do

século XIX, foi pautada por uma construção ainda mais pejorativa, partindo não apenas de

uma ordem psicológica, mas também social. No jornal O Ara ripe, veiculado na região sul

Cearense, entre os anos de 1855 a 1864, o termo foi invariavelmente apresentado para

designar homens sem valor social, de tendência violenta e pessoas que perderam, ou não

tinham, credibilidade.

Assim como esse periódico, outros, como o jornal Vanguarda, que circulou entre 1877

e 1888, A Liberdade, de 1869 e A voz da Religião, de 1868 a 1870, também ajudavam a

disseminar a visão sobre os homens que eram chamados cabra. Em todos eles, a relação era

feita entre os homens de cor, geralmente apresentados por seus apelidos – irmãos Calangros, Lopes, Viriatos, e a existência de grupos de ‗facinorosos‘ e ‗criminosos celebres‘, bem como o desrespeito à propriedade privada e à vida coletiva. O intuito foi comumente denunciar a

falta de ordem e o descaso das autoridades, sobretudo A Liberdade, O Araripe e Vanguarda,

jornais de cunho liberal.

Outro documento, nesse caso de procedência jurídica, que fazia constantes referências

a esses homens, eram os processos criminais. Via de regra, tomados como homens perigosos e

aptos a crimes, os cabras foram citados sempre no lugar dos réus. Eram os homens

designados com alcunhas, geralmente derivadas de alguma particularidade física ou moral, ou

mesmo do tipo de serviço que desempenhavam: João canela fina, José Machado, Pedro

Favella, entre outros. Nos processos, os relatos tomavam sua condição cabra como fato

(24)

Por fim, a referência sobre o cabra foi consolidada na leitura e escrita sobre os homens

assim designados, sobretudo pelos memorialistas e escritores de fins do século XIX. A

literatura produzida no Cariri Cearense, contudo, variou conforme o tempo em que foi escrita

e o que se tencionava dizer desses homens. Nesse caso, as narrativas iam do medo à

lembrança saudosa dos tempos em que esses homens – vistos como tipos exóticos e já ‗extintos‘, no momento da escrita - marcavam a vivência da sociedade.

Nesse bojo, obras de memorialistas, livros da história local, dicionários de verbetes

populares, entre outros, foram espaços em que o cabra – tanto o termo quanto os homens assim caracterizados - foi discutido e lembrado.18 De modo que até o final do novecentos

foram criadas distintas percepções em torno desses homens e, consequentemente, do termo

que os qualificava. Nesse processo, o termo se tornou conceito com base no que foi

vivenciado e no que foi interpretado pela sociedade em cada época.

Dessa maneira, o que se apresenta nessa tese é que o cabra não tem seus sentidos, ou

significados, formados linearmente. As situações históricas, bem como a memória sobre elas,

moldaram – como ainda o podem fazer – essa categoria de acordo com as pretensões presentes e futuras. O cabra, enquanto conceito, é o resultado da leitura de um momento histórico e do que a sociedade lembra de outros momentos; trazendo a essa construção significados não necessariamente contemporâneos, mas os que fazem sentido a cada tempo.

Para a construção desse conceito, de forma a compreender os elementos e as forças da

história, é preciso considerar que ele é fruto da Era Moderna. Em outros termos, é resultado

de um tempo em que não somente as histórias acontecem, mas o próprio tempo é visto como

elemento que as molda. Ele surge a partir das interpretações feitas utilizando variadas

percepções sobre o termo e se valendo de distintas temporalidades em que este foi utilizado

como significante de situações sociais.

Reinhart Koselleck afirmou que ―embora o conceito também esteja associado à palavra, ele é mais do que uma palavra: uma palavra se torna um conceito se a totalidade das

circunstâncias político-sociais e empíricas, nas quais e para as quais essa palavra é usada, se agrega a ela‖.19

Trata-se, para o autor, da transformação de uma palavra, resguardada por seus

significados, por meio de um contexto, falado ou escrito, e das situações sociais que incidem,

em determinado momento, sobre ela.

18

Dentre os autores, podem ser citados: José Alves de Figueiredo, José de Figueiredo Filho, Paulo Elpídio de Meneses, Irineu Pinheiro e Tomé Cabral.

19

(25)

Avançando em sua teoria, ao pensar sobre a formação do conceito de História,

Koselleck considerou as mudanças trazidas pela Era Moderna para a compreensão e

construção dos conceitos:

desde o século XVIII existe uma ―História propriamente dita‖, que parecia ser seu próprio sujeito e seu próprio objeto, um sistema e um agregado. (...) Uma das características estruturais dessa nova História é que ela reduziu a um mesmo conceito a contemporaneidade de coisas não contemporâneas, ou a não contemporaneidade de coisas contemporâneas – aproximando-se também aqui ao progresso. Isso é válido não só no sentido evidente de que toda e qualquer narrativa traz o passado para o presente, eliminando, dessa forma, as diferenças temporais que tematiza.20

História é pensada como um conceito na medida em que a rede de significados desta

palavra se reorganiza a partir de experiências e expectativas. Não em sentido cronológico ou

linear, mas significados de tempos diferentes interagindo com as situações político-sociais, e,

portanto, históricas, na construção do conceito. Tornando, assim, o não-contemporâneo

contemporâneo.

Mais do que isso, a História foi entendida como conceito pela dimensão política e

social que tinham seus significados e pelo fato de estar saturada de experiência. Essa

percepção apenas tem sentido porque ao trazer o passado como significante dos

acontecimentos e aliá-lo ao presente, é necessariamente realizada uma projeção para o futuro.

Nesse sentido, para Koselleck, o que se tem como conceito de História apenas se torna uma

percepção mais abrangente quando a ele vincula-se à ―expectativa de um futuro planejável‖.21 O conceito, dessa maneira, passa a existir quando a ele se ligam experiências e expectativas,

passado e futuro.

Da mesma forma, a construção do conceito do cabra passa pela dimensão

futuro-passado. Cabra, com o passar do tempo, foi sendo agregado de significados à medida que

situações sócio-políticas e históricas deram novas formas e percepções ao termo. A passagem

de palavra a conceito, nesse sentido, ocorre historicamente quando cabra passa a ser

relacionado às movimentações de uma parcela da população do Cariri Cearense de cada

época, passando a identificá-los, e, assim, a ela agregando novos e diferentes significados.

Contudo, esse processo apenas se consolida graças ao tempo.

20

KOSELLECK, Reinhart; MEIER, Christian; GÜNTHER, Horst; ENGELS, Odilo. O conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 39.

21

(26)

A referência ao cabra como uma condição social é um produto do século XIX, ou,

mais especificamente, do período imperial. Resulta dos esforços acerca da tentativa de

organização dos trabalhadores livres pobres e dos escravizados, mais amplamente, dos

camponeses. Por outra, também resulta da necessidade de criar e manter uma ordem social

hierárquica, onde os espaços de movimentação seriam definidos socialmente. Essa definição,

contudo, era uma questão nacional, e não local. Estava marcada pela percepção das

autoridades e elites senhoriais em fazer do oitocentos o tempo de construção da nação

brasileira.

Todavia, para alcançar tal objetivo, esse processo, ou essa mudança, tinha de se

desvincular, primeiramente, das heranças coloniais. De acordo com José Murilo de Carvalho,

os portugueses deixaram uma ―população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma economia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À época da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem pátria brasileira‖.22

Mesmo não tendo, naquele momento,

clareza quanto aos reais problemas herdados, as autoridades e elites do Brasil sabiam que

ajustes tinham de ser feitos, sobretudo a respeito da população. Entendiam, pois, esse momento como o ideal para corrigir os ‗erros‘ do passado colonial, embora não houvesse consenso quanto a natureza dos equívocos (econômicos, políticos e sociais) e menos ainda

quanto as soluções a serem tomadas.

O ponto mais controverso das discussões nesse período era a permanência da

escravidão, assim como nos três séculos de dominação portuguesa. Para uma parte da

sociedade, não havia como construir uma nação sem a extinção do trabalho escravizado.

Empenhado em por fim a essa marca, José Bonifácio de Andrada, em 1823, questionou:

porque os Brasileiros somente continuarão a ser surdos aos gritos da razão e da Religião cristã, e direi mais, da honra e brio Nacional? Pois somos a única Nação de sangue Europeu, que ainda comercia clara e publicamente escravos Africanos.23

A afirmação do Brasil como nação, na percepção de Andrada, estava relacionada à

extinção do escravo africano, que, para ele, não oferecia possibilidades de progresso

econômico ou social, uma vez que potências mundiais, como a Inglaterra – com quem o Brasil assinara acordos comerciais e políticos no século XVIII – tinha interesses no fim do trabalho escravizado.

22

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 18.

23

(27)

Aliado a isso, pessoas de condição jurídica escrava não poderiam ser vistas como ‗cidadãs‘, o que, no caso brasileiro, apontava para uma de suas maiores contradições: a manutenção da escravidão numa monarquia que se dizia de base liberal. Ainda conforme Carvalho: ―escravidão e grande propriedade não constituíam ambiente favorável à formação de futuros cidadãos. Os escravos não eram cidadãos, não tinham os direitos civis básicos à integridade física, à liberdade e, em casos extremos, à própria vida‖.24

Não apenas por serem economicamente entendidos como ‗mercadoria‘, mas as próprias condições de vida e trabalho destituíam esses trabalhadores da participação na sociedade como cidadãos. Todavia, essa

situação não se restringia aos escravizados.

Partilhando o mundo do trabalho com os cativos, existia uma população que, apesar de

legalmente livre, não dispunha de condições básicas para o exercício dos direitos civis. A eles

não recaía o próprio sentido do termo: a igualdade de todos perante a lei. Tecnicamente, aos

trabalhadores livres e pobres restava apenas sua condição de pessoa livre para diferenciá-los

dos escravizados. Não tinham acesso à educação, dependiam, em geral, de um senhor que os

concedesse moradia, trabalho e defesa dos arbítrios do governo e também de outros

senhores.25 Todavia, quanto ao estado de sujeição a um senhor, este terminava por destituir os

trabalhadores da condição de cidadãos e igualá-los na luta pela liberdade, qualquer que fosse

o seu sentido.

Outro problema que recaía sobre o Brasil em formação, e como José Bonifácio de

Andrada alertou em seu pronunciamento de 1823, estava relacionado à mestiçagem. Esta se

traduzia, para o intelectual, na mistura do sangue Europeu, que entendia próprio da ‗nação‘ brasileira, ao sangue do negro africano e também do nativo. A questão estava assentada na

percepção da influência do sangue e culturas nativas e africanas – que em fins do oitocentos se passou a designar como raça, termo que personificava o preconceito com base na cor e que,

nesse momento, era entendido como inserido na teoria científica – como um problema para a nação brasileira, então nascente.

Hebe Mattos lembra que ―quando se definiu a cidadania brasileira e os direitos a ela vinculados, na emancipação política do país, em 1822, o Brasil comportava uma das maiores populações escravas das Américas e a maior população livre negra do continente‖.26 Constitucionalmente (1824), ficou mantida a escravidão, o que causou ainda mais embaraços

24

CARVALHO. Op. Cit., p. 21. 25

Idem ibdem. 26

(28)

à ordem social. Como os termos preto e crioulo – este entendido como escravo nascido na América - passaram a ser utilizados para designar a população escravizada, a referência à

mestiçagem acabou sendo compreendida como uma caraterização do cativeiro no Brasil. E, assim, pessoas ―de cor‖ e liberdade passaram a ser entendidas como expressões contraditórias.

Para a população ―de cor‖ livre ficava o impasse da necessidade constante de provar sua condição. De acordo com Wlamyra Albuquerque,

comumente as autoridades policiais abordavam libertos nas ruas sob suspeita de serem escravos fugidos e nessas ocasiões a apresentação das cartas podia evitar prisões. Além disso, a escravidão ilegal de pessoas livres era sempre um risco que corria o negro ou o mestiço, uma vez que, no auge da escravidão, ser negro era sinal de ser escravo, até prova em contrário.27 Todavia, a prova da condição de liberdade, aos poucos, ia se mostrando mais fácil para

uns do que para outros. A tonalidade da pele do indivíduo contava muito para a sua distinção

como livre ou não. Klein e Luna ressaltam para a sociedade de Minas Gerais e São Paulo, no século XIX, que ―miscigenação e preconceito trabalhavam de mãos dadas no favorecimento de um aumento acentuado na classe de pardos livres‖.28 Enquanto que os mestiços mais próximos aos negros tinham, consequentemente, menos oportunidades.

De outra parte, entre as questões políticas geradas pela independência - como a

chamada Confederação do Equador,29 ocorrida no Ceará – e as revoltas e motins gerados pela abdicação de D. Pedro I, a partir de 1831, tomou evidência, para a sociedade da época, de forma mais especifica a sul cearense, o despreparo dessa população livre ‗de cor‘ ao ingresso no rol de cidadãos brasileiros. Embora essa visão distorcida das elites tenha sido bastante

propagada, Gladys Sabina afirma que o interesse dos homens de cor nas lutas das décadas de

1820 e 1830 tinha outras matrizes. No jornal O Homem de cor, ―no número 4, o redator dizia que o movimento de 7 de abril [de 1831] foi apoiado por muitos mulatos, que nada ganharam, mas que eram os verdadeiros defensores da Constituição, da Pátria e da Liberdade.‖30

27

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p. 145.

28

KLEIN, H. S. & LUNA, F. V. Pessoas livres de cor numa sociedade escravocrata: São Paulo e Minas Gerais no início do século XIX. In: Escravismo em São Paulo e Minas Gerais. KLEIN, H. S., LUNA, F. V. & COSTA, I. N. [colaboradores Horácio Gutiérrez... et al.] - São Paulo: EDUSP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, p. 474.

29

Movimento emancipacionista e republicano, ocorrido em 1824 no Nordeste brasileiro e que tinha como centro irradiador a província de Pernambuco. Foi, em suma, uma reação à outorga da Constituição que a via como uma extensão da tendência absolutista e da política centralizadora do governo de D. Pedro I.

30

(29)

No entanto, enquanto no restante do Brasil os homens de cor lutavam pela

independência brasileira como um caminho para a sua liberdade e cidadania, os livres pobres ‗de cor‘ do Cariri Cearense aderiram, contraditoriamente, ao lado monárquico do conflito. De acordo com Irineu Pinheiro, nessa região Joaquim Pinto Madeira promoveu o levantamento da bandeira portuguesa na vila do Crato e introduzindo ―na gente do seu séquito e no povo rústico um cisma político‖.31

José de Figueiredo Filho, ao escrever sua História do Cariri, no volume III, apontou

que Pinto Madeira e o Padre Antônio Manuel de Sousa foram ―aliciando sertanejos, os quais, a falta de armas de fogo, em grande parte se muniam de cacetes em cujo manejo eram afamadamente amestrados‖. Ainda conforme o autor,

essa arma empregada pelo antigo Vigário de Jardim era corriqueira no Cariri canavieiro de então. Constituía-se verdadeiro esporte do trabalhador dos engenhos. Manejava o cacete, com precisão admirável, conseguindo o CABRA (sic) que o usava, a defender-se contra outro, armado de faca ou facão.32

A adesão da população livre e pobre - entendida como inculta, porque moradora na

área rural e, geralmente, agregada a um senhor, e deste obediente - nos conflitos contra os liberais, que se diziam em favor da ‗Causa do Brasil‘,33

foi tomada como a manifestação de

inadaptabilidade dessa parte social à plena cidadania, uma vez que não aderiram à luta pela

independência do poder político de Portugal. Mais ainda, foi nesses conflitos que o código de

vida e conduta no sertão – a sujeição de livres pobres e escravos ao seu senhor, bem como os usos que estes faziam dessa dependência – apresentou o que as elites e autoridades brasileiras consideraram o vazio da população.

O fato desses homens, participantes dos eventos políticos de 1831, estarem ligados ao

mundo rural, contrariamente a população do sul brasileiro, sobretudo da Corte Imperial, que

estava alocada no espaço urbano e, em virtude disso, imbuída de trabalhos alheios ao eito,

pesou em sua caracterização e na construção de um rótulo [cabra] vinculado ao serviço

manual, pesado; o trabalho agrícola. Por outro lado, é factível pensar que o espaço em que

viviam marcaria, de uma forma ou de outra, suas experiências.

31

PINHEIRO, Irineu. Efemérides do Cariri. Coedição Secult/ Edições URCA. – Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 88.

32

FIGUEIREDO FILHO, José de. História do Cariri. .v. III. Coedição Secult/ Edições URCA. – Fortaleza: Edições UFC, 2010, p. 21.

33

(30)

Em Homens livres na ordem escravocrata, Maria Sylvia de Carvalho Franco apontou para a relativa ‗dispensabilidade‘ econômica do homem livre pobre, quase sempre, o agregado do senhor, na formação de uma existência moral e política muito semelhante a do cativo. É, nas palavras da autora, ‗presença ausente‘ da escravidão. ―Formou-se, antes, uma ralé que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens à rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade‖.34

Essa percepção, no entanto, parece ter sido enredada pela

própria visão do século XIX acerca da existência de cidadãos e de pessoas alijadas ao

processo de cidadania que se tentou definir desde a idenpendência do Brasil, na década de

1820. Ademais, Márcia Motta em sua tese de doutorado e textos subsequentes discutiu que os

homens, que Carvalho Franco considerou como sem ‗razão de ser‘, ―ajudaram a construir o mercado interno, experimentaram e cultivaram novos produtos agrícolas, criaram e recriaram

estratégias de sobrevivência para salvaguardar os seus poucos recursos‖.35

Ainda quanto a definição de cidadão, Jessé Souza, em A construção social da

subcidadania, aponta para a ―definição de um padrão de (não) reconhecimento social muito semelhante àquele do qual o próprio escravo é vítima, embora oculto sob formas aparentemente voluntárias e consensuais que dispensam grilhões e algemas‖.36

A construção

do cidadão, portanto, acabou por excluir e rotular – sob o mesmo estigma – essa população que tinha como ponto de convergência a sujeição a um senhor, fosse como escravo ou

dependente, e a vida no sertão.

Assim, a visão sobre esses homens, aliada aos impasses e preconceitos colocados pela

permanência da escravidão, tornou-se uma questão decisiva para a formação social brasileira.

Mais ainda, a construção histórica do termo e sua transformação em conceito refletem a

história da formação da sociedade do Cariri Cearense, com uma estrutura de classes bem

definidas, sobretudo para, na construção do conceito de cabra, negar a historicidade da

desigualdade social.

Em suma, no Cariri Cearense, o preconceito com relação à origem mestiça promoveu

uma discriminação com a população de cor, normalmente entendida como egressa da

escravidão. No caso dos indivíduos classificados como cabras essa relação foi reforçada e

remodelada ao longo dos anos. O fato da maioria dos cativos nos inventários post-mortem,

34

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 4 ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997, p. 14.

35

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Op. Cit., 1998. _____________. Caindo por terra: um debate historiográfico sobre o universo rural do oitocentos. In: Lutas & Resistências, Londrina, v.1, p. 42-59, set. 2006, p. 54.

36

(31)

sobretudo no pós-1850, ser arrolada como participante dessa categoria e dos homens de cor

livres ser, também ao longo desse período, chamados de cabras indica uma relação feita por

senhores e autoridades locais entre essas duas partes da população. Aos poucos, foram

percebidos como uma mesma categoria de classificação social: dos homens de cor,

trabalhadores, sujeitos a um senhor. Eram os cabras.

Contudo, essa categorização não permaneceu em termos tão simplificados. Sobre essa

comunidade acima descrita foram sendo agregadas outras características e valores, conforme

o tempo vivido, bem como a memória dos antigos ditava. Assim, foi construído o conceito do

cabra. Mas este só tem sentido a partir da observação da História Social por trás dele. O

cabra existe na medida em que condições econômicas, sociais e culturais atuam em seu

cotidiano e direcionam, de certa maneira, suas ações.

Esta tese, portanto, trata como esse conceito foi criado, ajustado e modificado ao longo

do tempo, mas, sem sombra de dúvida, como o tempo aliado ao espaço ajudaram a configurar

o conceito do cabra. Ou, por outro ângulo, para evidenciar o esforço da classe dominante para ―construir uma nova ordem de conquista e expropriação‖.37

Assim sendo, procuro estabelecer

um questionamento em torno do tempo e do espaço e da maneira como eles foram conjugados

para dar lugar à construção e imposição de uma identificação - quase sempre negativa - para

uma determinada categoria da população.

É, enfim, um olhar sobre a exploração, própria de uma sociedade que procura

naturalizar a desigualdade social.

***

Esta tese está estruturada em cinco partes. Em Cabras, caboclos, negros, pardos e

mulatos: a formação de uma sociedade „de cor‟ discuti a organização da sociedade sul

cearense a partir de três vertentes. Primeiramente, analisei as discussões empreendidas na

primeira década pós-independência do Brasil, que estipularam uma definição de ‗cidadão‘ brasileiro e de categorias para a população mestiça. Nesse momento, destaquei as atas da

Assembleia Geral Constituinte para evidenciar, até que ponto, a mestiçagem foi encarada

como problema a ser enfrentado pelas autoridades brasileiras na construção de uma nação nos

moldes europeus. Em seguida, apresentei as definições ‗raciais‘, em especial a de cabra, que a elite senhorial do Sul cearense nos oitocentos, impôs à população mestiça, fosse ela livre,

37

(32)

liberta ou escrava. Logo após, denotei como a condição financeira da população, em última

instância, definia a ―cor‖ de um indivíduo e o lugar que ele deveria ocupar na sociedade. Nesse sentido, evidenciei uma tentativa de vinculação da origem mestiça de um grupo de

pessoas a uma determinada situação social, no Cariri, durante o século XIX.

Em “Um séquito de cabras armados”: a guerra do Pinto e a construção histórica do cabra destaquei os meandros de um movimento político ocorrido entre os anos 1831 e 1832, entre as vilas de Crato e Jardim. Nele, investiguei a produção do desenho do cabra

como um elemento ignorante e mobilizável para a realização de revoltas e motins por partes

das facções políticas, sobretudo as contrárias ao governo da Província. De pronto, apresentei

as condições sociais, bem como as manobras engendradas para a construção negativa do

cabra. E, em seguida, descrevi a guerra empreendida por Pinto Madeira para discutir a

institucionalização deste conceito, referido e definido nos documentos oficiais da Província,

no período no qual se deu o conflito. Em tais reflexões embasei a ideia de uma construção

negativa sobre uma parte da população sul cearense, que não atendia aos objetivos da classe

dominante.

Em “Quadrilha de cabras”: os homens dos „coroneis‟, avaliei a ampliação do

conceito cabra, após sua institucionalização no período de guerra civil no Cariri Cearense,

que passou a designar mais especificamente a população pobre dessa região, os camponeses.

De outra parte, apontei como as relações de trabalho e moradia foram alteradas, à medida que

os sitiantes foram expropriados de suas terras e obrigados a se sujeitar aos senhores mais

abastados da região. Estudei essa questão em três tipos de relações: no trabalho, quando

examinei a expropriação desses camponeses, obrigados a se tornar moradores e agregados em

busca de terras para plantar e morar; ainda numa extensão das relações de trabalho, discuti a

relação estabelecida entre a arregimentação de moradores e agregados para a formação de

exércitos particulares dos senhores de terras, os chamados capangas; e, por último, analisei a

formação de bandos armados ‗independentes‘ e sua recusa em aceitar se subordinar aos ‗mandos‘ do senhor. Assim, discuti a identificação desses homens como criminosos e ameaçadores do bem estar da sociedade, ‗alheios‘ à civilidade, entendida como característica própria da elite senhorial.

Em Cabras: trabalhadores livres, libertos e escravizados destaquei as relações que possibilitaram utilizar a identificação cabra para os trabalhadores do Cariri Cearense,

quaisquer que fossem suas condições jurídicas, notadamente a ideia de sujeição a um senhor.

Apresentei como as características impostas aos cativos - como a cor, a indolência e o

(33)

aos cabras de um modo geral. Já no tocante aos livres e libertos, avaliei a imposição da

sujeição em troca do trabalho e moradia, ao mesmo tempo em que foi relacionada a esse

grupo de trabalhadores a pecha de vadios. Outrossim, argumentei como a visão negativa

criada em torno do cabra provocou uma reação adversa da sociedade em relação aos homens

assim rotulados, tornando-os culpados em potencial da estagnação econômica, e também

social, do Cariri Cearense.

Por fim, em Novos olhares: os discursos sobre o passado através da figura do

cabra analisei a mudança dos significados atribuídos a essa categoria ao cabo do século XIX e início do XX. Demonstrei que tal leitura passou a sofrer alterações no momento em que se

pretendeu construir uma identidade para o homem sertanejo, no bojo de uma visão romântica,

típica dos oitocentos. Indiquei os memorialistas caririenses como grupo com participação

intensa nessa invenção, uma vez que suas narrativas contribuíram na formação da ideia do

cabra como homem viril, corajoso e que enfrentava os perigos sem medo, em contraposição a

visão do criminoso, ignorante, não-civilizado, forjada no século XIX. Em seguida, apontei os

chamados historiadores do Cariri, ligados ao Instituto Cultural do Cariri, como endossadores

da construção do cabra da peste, criada pelos memorialistas do início do novecentos, e como

comungantes à identificação negativa dessa categoria, própria do século XIX. Assim,

demonstrei a reinvenção do cabra, feita em meados do século XX, que trazia à tona

características degradantes entendidas como próprias a essa categoria. Por fim, descrevi como

essa confluência de leituras deu espaço à criação de uma figura, quase mitológica, do tipo de

cabra que deveria ser lembrado: Zé de Matos, um trabalhador do Cariri Cearense, de tonalidade escura, ‗com pouco, ou nenhum gosto pelo trabalho‘, morador de um senhor, mas irreverente em rimas e trocadilhos –significando a essência de um passado que se perdeu em detrimento do progresso da sociedade. Assim, demonstrei como o cabra passou a ser

(34)

Capítulo 1 - Cabras, caboclos, negros, pardos e mulatos: a formação de uma sociedade „de cor‟

A formação social brasileira, e mesmo a própria constituição do Brasil enquanto

nação, deu espaço à construção de um conceito cabra, durante o século XIX, sobretudo no

Cariri Cearense, região pertencente ao que atualmente se considera Nordeste. Como parte do

momento em que se tentou definir um conteúdo para a nação que estava sendo formada, o

elemento cabra teve seu significado relacionado ao que nos oitocentos entendiam como ‗vazio do povo‘. Ou mesmo, por outro ângulo, a parte da população entendida como alheia – no sentido de incapaz – da participação na cidadania nascente.

No Brasil do século XIX, a definição de cidadão nacional, como pauta das discussões

pós-independência brasileira, precisava ser revestida de um argumento que desse um caráter

de naturalidade às desigualdades sociais. Na visão dos que pensavam um cidadão ideal,

porém, o que havia era a necessidade primeira de resguardar as relações de dominação

personificadas na diferença entre brancos e gente de cor – vale ressaltar que a classificação por cor de pele se confundisse, muitas vezes, com a posse ou não de propriedades. Assim, tal

conteúdo privilegiou uma matriz pretensamente de raízes europeias, em detrimento das que

estavam presentes no território nacional, como a africana e mesmo a nativa, chamada de

indígena. A mestiçagem foi entendida como uma questão racial, baseada numa percepção

cientificista, e, por essa razão, definidora dos papéis sociais.

Por outro lado, aliada a questão da mestiçagem, as dúvidas e temores acerca da

escravidão e seus malefícios foram preocupação dos intelectuais e autoridades administrativas

durante todo o século XIX. Tal receio se confirmou a cada levantamento demográfico e censo – oficial, como o de 1872, realizado nesse período. Estes, com o fim de conhecer a situação não apenas demográfica, mas também material brasileira, para, assim, conhecer as feições do ‗povo‘ brasileiro, acabaram por descortinar uma lógica de classificação populacional baseada na ‗raça‘, sempre aliada à questão jurídica.

No Cariri Cearense, os levantamentos, sobretudo os não oficiais, apontaram para o

desenho de uma categoria mais específica de classificação pela tonalidade da pele, além do

branco, pardo, mulato e caboclo, comuns em muitos estudos demográficos. Surgiu o cabra,

definido como um indivíduo de tez escura, mais próximo ao nativo e ao africano, vistos como

raças inferiores. Como também englobava escravos e livres pobres, a categoria cabra foi

Imagem

Gráfico 1: População da Capitania do Ceará Grande, 1804.
Gráfico 2: População da Capitania do Ceará Grande, 1808.
Tabela 1: Dados Parciais do Censo de 1813 da Capitania do Ceará.
Gráfico 3: Comparação da população da Capitania do Ceará Grande nos anos de 1804 e 1813
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Referências

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