E
m seu vasto e diversificado território, a África concentra os mais intrigantes problemas, fenômenos e processos usual-mente relacionados à emergência e à afirmação de comunidades nacionais. Nenhum outro pedaço do mundo, na época presente, seria melhor laboratório para os estudos sobre a construção das nacionalidades.Nesse continente há Estados não legitimados por nações e na-ções desconsideradas por Estados com assento na Organização das “Nações” Unidas. Aí estão povos e etnias violentamente frag-mentados pelo jogo de poder entre potências com instintos impe-riais. Numerosos grupos étnicos secularmente rivais foram e são subitamente obrigados a compartilhar territórios e submeter-se à mesma autoridade estatal. Em nenhum outro lugar do mundo, nas últimas décadas, genocídios provocaram tantas vítimas.
A rápida expansão de atividades capitalistas é impulsionada pela exploração do petróleo e pela crescente expansão de culturas agrícolas comerciais. Da noite para o dia, montam-se infraestru-turas que alteram milenares cenários socioambientais. Persistem desinibidas – na verdade, ganham ritmo frenético – as antigas e “piedosas” atividades de organismos multilaterais e seitas reli-giosas interessadas em “salvar” africanos da fome e do “pecado”. “Repúblicas populares” que ignoram a noção ocidental de cida-dania e preservam práticas aproximadas das de antigos reinos escravocratas reprimem duramente seus opositores sem maiores objeções de potências que se candidatam a guardiãs mundiais da democracia. Senhores de guerra são cortejados e abastecidos por atores internacionais que se apresentam como paradigmas da mo-dernidade. Enfim, territórios e mares habitados desde tempos ime-moriais, explorados e tratados com respeitabilidade sagrada são disputados como “espaços abertos” por estrangeiros ricos, fortes, audazes e inescrupulosos.
O que poderia explicar o fato de a África ter sido menosprezada pelos estudiosos da construção das nacionalidades, inclusive por aqueles que valorizam o “fator étnico” e a unidade linguística? O acervo literário disponível sobre a África abarrota bibliotecas dos países desenvolvidos (e começa a ganhar volume no Brasil), mas a reflexão sistemática sobre a nação, tipo de comunidade que, por abstrata que seja, garante a legitimidade política moderna, apare-ce como assunto de quinta categoria. Adentrar as realidades afri-canas põe em risco a ideia de superioridade ocidental inerente a esta organização política designada como Estado nacional.
Há cerca de três anos o Observatório das Nacionalidades vem se aproximando da África. Para efeito, contamos com a assesso-ria de Rosemary Galli, especialista em questões luso-africanas. Visitamos diversos países, conversamos com numerosos intelec-tuais e estabelecemos articulações com variadas entidades acadé-micas. Trata-se, obviamente, de abordagens iniciais, mas provei-tosas o bastante para permitir um número de Tensões Mundiais in-teiramente dedicado aos assuntos africanos. E, o mais importante, essencialmente produzida por intelectuais africanos.
Poder-se-ia questionar a possibilidade destes intelectuais edu-cados segundo os paradigmas teóricos e procedimentos analíticos assentados no Ocidente apresentarem uma “perspectiva africana”. Mesmo os textos francamente contrários à dominação colonial não deixam de ser contaminados pela ótica ocidental, que tende a estabelecer apriorismos enviesados sobre as sociedades subju-gadas. Mas, caberia considerar que a África é demasiado grande e diversificada para imaginar que tal perspectiva reflita a realidade.
Se for difícil distinguir um intelectual “africano” de outros inte-lectuais, é fácil constatar esforços empreendidos para criar tal iden-tidade, à revelia da discutível utilidade de tal abstração. Ocorre na África algo bem conhecido entre os latino-americanos: o interesse em pensar a própria realidade e vislumbrar o futuro fugindo da percepção eurocêntrica. Africanos e latino-americanos têm mui-to que ensinar uns aos outros e ao resmui-to do mundo. Experiências sociopolíticas vividas nestes dois universos são preciosas para compreender a dinâmica do desenvolvimento ocidental. Regimes despóticos, tragédias sociais, epidemias, guerras, instabilidades
institucionais, desagregação de comunidades e culturas ances-trais, enfim, todo o conjunto de marcas perversas da modernidade integram as vivências históricas de africanos e latino-americanos. Na seleção de matérias que compõem esta edição da revista são visíveis os esforços para firmar pontos de vista diferenciados da percepção ocidental, a começar pelas elaborações do pensador moçambicano João Paulo Borges Coelho sobre o papel estratégico do Oceano Índico e os desafios à segurança marítima da África Austral. Melhor dizendo, dos desafios à segurança dos negócios ocidentais que navegam por mares africanos.
Quanto aos problemas diretamente relacionados à constru-ção das nações africanas, essa ediconstru-ção privilegia o curioso caso da Guiné-Bissau que, segundo Christoph Kohl, experimentou durante a reconstrução pós-colonial uma iniciativa de busca de unidade nacional a partir dos “de baixo”, ou seja, à revelia de uma auto-ridade estatal sempre posta em questão. A invasão estrangeira, ocorrida entre 1998 e 1999, contribuiu para fomentar a vontade de integração social. Por seu turno, Rui Jorge Semedo concentra sua atenção no Partido para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), refletindo sobre os efeitos da ruptura do pacto co-lonial na construção das identidades das duas nações, não obstan-te seus inobstan-tensivos entrelaçamentos étnicos e políticos.
Já a narrativa de Mamadou Alpha Diallo e Lito Nunes Fernandes sobre o conflito de Casamansa aporta elementos da maior rele-vância acerca da fragmentação do extenso território da antiga Guiné tendo como referência os problemas de segurança regional da Confederação da Senegâmbia (criada em 1982 e dissolvida em 1989), que compreendia a atual República do Senegal, a Gâmbia, a Guiné-Bissau, a Guiné Conacri, o Mali e parte da Mauritânia. O fracasso desta tentativa de confederação, para os autores, teria fortalecido o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC) e aumentado a instabilidade da região.
Os Estados africanos demonstram incapacidade de cumprir seu papel básico de segurança da população. Cerca de 15 mi-lhões de pessoas foram mortas em Biafra, Ruanda, Darfur, sudes-te do Sudão, Costa do Marfim, nos Congos e em outros pontos do continente entre 1966 e 2012. Segundo Herbert Ekwe-Ekwe,
o grande desafio, para a África, é formatar Estados democráticos, amplamente descentralizados e capazes de contemplar interesses conflitivos.
Entre as recentes intervenções ocidentais no mundo árabe, o caso líbio talvez seja o de maior repercussão no continente afri-cano. Dois trabalhos examinam a guerra movida contra Khadafi. Diego Pautasso e Rafael Luiz de Azeredo discutem a doutrina da “responsabilidade de proteger” aplicada contra o regime líbio, em 2011, concluindo que esta amparou a expansão de poder dos EUA após a Guerra Fria e alterou a geografia do poder mundial. Os autores exploram as relações entre as organizações internacio-nais e a soberania dos Estados naciointernacio-nais. Já Iraê Baptista Lundin apresenta uma abrangente análise da intervenção militar na Líbia assentada nas especificidades da estruturação do Estado libanês e na complexa atuação de Khadafi. Iraê especula a respeito dos possíveis desdobramentos das mudanças na Líbia sobre o conti-nente africano e o Oriente Médio, revelando ainda aspectos pouco conhecidos das prevenções ocidentais em relação ao governante assassinado.
A oferta de ensino superior e de capacitação tecnológica re-presenta um dos mais sérios desafios para o desenvolvimento da África. Diversos esforços neste sentido foram frustrados nas últimas décadas, inclusive os conduzidos pelo próprio Khadafi. Teresa Cruz e Silva aponta como o neoliberalismo alterou o papel social e a identidade das universidades públicas em Moçambique marginalizando grupos sociais desfavorecidos. Apesar dos avan-ços nos sistemas políticos de países africanos, a autonomia das instituições de pesquisa e ensino foi prejudicada. Baseada na ex-periência das universidades moçambicanas, essa reflexão destaca os debates havidos nos anos 1990 acerca da liberdade académica na África.
É indiscutível que o Brasil passou a jogar papel crescente na África liderando, inclusive, a formação de uma comunidade de países de língua portuguesa. As diretrizes do Estado apontam a parte ocidental africana como “entorno estratégico brasileiro”. A Estratégia Nacional de Defesa (END) enfatiza a importância do ter-ritório africano na montagem do aparato de segurança do Brasil.
Mas as preocupações com a África não são recentes, como revelam as anotações de Adriano de Freixo e Jacqueline Ventapane Freitas sobre o noticiário difundido no Brasil acerca da luta de liberta-ção em Angola. Os autores consideram que, em 1975, mudanças políticas em Portugal abriram caminho para o desmantelamento do seu império colonial e, apesar de o Brasil ainda viver sob um regime ditatorial, tais acontecimentos tiveram ampla cobertura da imprensa em virtude dos interesses da política externa brasileira e de uma menor censura sobre o noticiário internacional.
Não é segredo que a disputa de interesses de potências externas se volta não apenas para as riquezas naturais do continente africa-no, mas também para as crescentes possibilidades de atendimento do mercado de bens e serviços. Eli Alves Penha expõe o quadro
atual das redes de transportes terrestres na África Subsaariana e as iniciativas para a sua expansão e melhoria. As participações da China e do Brasil são examinadas, com destaque para as comple-mentaridades e diferenças da atuação desses países.
Enfim, esperamos que esse número de Tensões Mundiais cola-bore para uma melhor compreensão do processo histórico de for-mação dos Estados nacionais africanos e do papel geopolítico re-servado a esse continente, além de estimular novas investigações.