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Literatura, ensino e um gole de chá

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP

REPOSITÓRIO DA PRODUÇÃO CIENTIFICA E INTELECTUAL DA UNICAMP

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Campinas-SP, (34.2): pp. 313-318 , Jul./Dez. 2014

LITERATURA, ENSINO E UM GOLE DE CHÁ

Joaquim Brasil Fontes

jbfontes@terra.com.br

Numa de suas fábulas, o poeta Novalis conta que um tirano ordenou, certa vez, a um filósofo: “Ensina meu canário

a cantar Homero. Todo Homero”. – “Pois não”, teria respondido o filósofo, acrescentando: “Mas preciso de dez anos para chegar a bom termo”. Aos amigos que o censuravam por tal loucura, explicou, então, sorrindo: “Daqui a dez anos, pelo menos um de nós três – o tirano, o canário ou eu – estará morto”.(GARNIER, Pierre. 1962, p. 136) 1

Num texto publicado pela primeira vez em 1996, aquele que foi para mim, com Roland Barthes e Jean Peytard, um mestre, refletia sobre a ética da leitura de textos consagrados: partindo do confronto entre o literário – que ele privilegia – com o religioso e o científico, o professor Nunes (NUNES, 1999) acompanhava assim, entre recortes de autores antigos e modernos, o duplo movimento que ocorreria nesse processo: a necessária adesão ao texto – o prazer de si no prazer do outro – e a volta a si como liberdade estética da capacidade de julgar. Nesses dois movimentos, ou se quiserem, dois momentos de um movimento, o leitor voltaria a si compreendendo o texto, e compreender, sublinhava o

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mestre citando Ricoeur, “é compreender-se diante do texto” (NUNES, 1999, p. 201). Era com a leitura longamente comentada desse escrito, e consciente da sua ancoragem no território do humanismo clássico e no conceito, para muitos modernos extemporâneo, de catarse, que eu, quase à maneira de uma provocação, abria, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, meu curso semestral sobre “Leitura e Produção de Textos”.

Meus alunos não buscavam, nessa disciplina considerada “obrigatória” para a formação de um educador, o que interpelaria estudantes, digamos, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp; esperavam uma prática do texto em sua relação com crianças e adolescentes na escola.

O escrito do professor Nunes os intrigava um pouco, mas logo se abriam para eles páginas e páginas de Walter Benjamin e, entre outras, as do Roland Barthes d’O Prazer do Texto (BARTHES, 1973) ,de tal modo que se viam, inesperadamente, no exato centro do curso, momento em que a ronda dos teóricos deixava a sala de aulas. Não sei se tinham tempo para perceber, ali, a presença de um corte, pois o professor lhes apresentava, ex abrupto, um elenco de obras ditas literárias, colhidas na herança que a escola guarda e da qual nem sempre cuida, Rabelais, Cervantes, Dante, Dostoiévski e Flaubert; Lautréamont, uma ciranda que se fechava quase sempre com Clarice Lispector ou Safo de Lesbos. Dividia a classe em grupos e solicitava de cada um deles a leitura de uma desses monumentos.

Dos alunos, um herdeiro do patrimônio cultural do Ocidente esperaria, sem dúvida, uma leitura bem feita.

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Em Passions Impunies (STEINER, 1997), um estudo datado de l997, George Steiner observa que ninguém, a não ser Chardin em seu quadro “Um filósofo ocupado a ler” pintou melhor o ato da leitura: o filósofo envergou sua roupa de cerimônia, pois a leitura é um ato de cortesia em relação ao texto, um contato com o autor e suas palavras: cercou-se de dicionários e de outros volumes, pois as palavras chegam até ele carregadas de história em potência; preparou sua pena, pois a leitura é um resposta ao texto, graças às anotações marginais, às notas, as citações que vai destacar do conjunto.

No silêncio do seu bureau, o filósofo vai decorar – isto é, aprender com o coração – muitas passagens, nas quais tornando-se por sua vez escritor, depositará sua confiança, como os grandes escritores do Ocidente, que nunca deixaram de retomar alguns temas únicos e singulares.

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Steiner lembra a cena de Cristo e a de Sócrates, mas podemos também rememorar a de Dante na floresta sombria, que reaparece na abertura dos Cantos de Maldoror, de Lauréamont, e impõe a literatura como “rede de ressonâncias”.

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O estudioso, o especialista em literatura, aquele que dela fez ou fará o seu métier reagiria, reticente sem dúvida, ao compulsar o elenco de livros apresentado pelo professor de Leitura e Produção de Textos, recuando diante da “terrível responsabilidade”, como diria Steiner, daquele empreendimento insano. Não, porém, os meus alunos, futuros educadores que se apoderavam alegremente de textos sacralizados pela tradição e os transformavam, sem remorsos, em inesperados acontecimentos, rápidos tumultos, pequenos cataclismas.

Encenavam. Transcreviam o escrito na pauta do power point. Carnavalizavam.

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Uma leitura bem feita, dizia Steiner retomando a fórmula de Péguy, vem concluir, realizar as grandes obras dos grandes mestres, mas quando recupero fluxos de minhas memórias daqueles cursos, vejo Um Amor de

Swan relido pelo cinema moderno, imagens da belle époque projetadas

numa tela e um grupo de alunas vestidas de rapazes, representando um trecho daquele livro, no qual Marcel Proust havia metamorfoseado seus amantes viris em mocinhas em flor.

*

Três moças vestidas de negro, com o rosto pintado de branco declamam uma réplica dos Cantos de Maldoror, para mim talvez uma, dentre as mais perturbadoras imagens de Lautréamont que guardo nas retinas, e estou pensando em Magritte, Dalí, Oscar Dominguez, Max Ernst.

*

Um grupo havia apresentado um panorama, digamos icônico, da Commedia dantesca e se preparava para fechar o espetáculo num amplo movimento cênico que acontecia no salão de conferências da Faculdade de Educação: entre alas de figurantes, aproxima-se uma jovem de pele

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olivácea, cabelos negros, olhos de cigana, vestida com uma túnica azul e verde, cores emblemáticas, dizendo uns versos bem conhecidos, num português que a minha memória vertia imediatamente para a língua do poeta antigo.

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Perguntarão o que poderia significar, para o professor, tais interpretações – no sentido quase musical da palavra – de algumas obras literárias consideradas maiores. Ora, numa “Carta a um crítico severo”, Gilles Deleuze observava que um livro pode ser considerado

como uma caixa que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E trataremos o livro seguinte como uma caixa contida na precedente, ou contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos explicações, escreveremos o livro do livro ao infinito. Ou (...) consideramos um livro como um pequena máquina a-signficante; o único problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para você? Se não funciona, se nada se passe, pegue outro livro. (...) Algo passa ou não passa. (...) Um livro é uma pequena engrenagem numa maquinaria exterior muito mais complexa. Escrever é um fluxo como os outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relação de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, fluxos de merda, de esperma, de fala, de ação, de erotismo, de dinheiro, de política, etc. Como Bloom, escrever na areia com uma mão, masturbando-se com a outra – dois fluxos, em que relação?(DELEUZE, 1988, pp.16-17).

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Os andróginos proustianos, as Musas Inquietantes, Capitu no papel de Beatriz: guardemos, no fecho destes fragmentos, apenas três dentre as muitas imagens daqueles cursos, pois aprendi com o narrador d’O

Caminho de Swann que o terceiro gole já diminui um pouco a virtude dos

chás que avivam a memória.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris: Seuil, 1973.

DELEUZE, Gilles. “Carta a um crítico severo”. IN Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 16-17.

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GARNIER, Pierre. Novalis. Col. Écrivains de Toujours. Paris: Seghers, 1962, p. 136. NUNES, Benedito. “Ética e leitura’. IN Barzotto, Valdir Heitor. Estado de Leitura. Campinas:

Mercado de Letras/ALB, 1999, p. 193-205.

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