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O papel das línguas bantu na génese do português de Moçambique: o comportamento sintáctico de constituintes locativos direccionais

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O PAPEL DAS LÍNGUAS BANTU NA GÉNESE DO PORTUGUÊS DE MOÇAMBIQUE: O COMPORTAMENTO SINTÁCTICO DE CONSTITUINTES

LOCATIVOS E DIRECCIONAIS1

Perpétua Gonçalves e Feliciano Chimbutane (Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique)

1 – Enquadramento geral do estudo

Moçambique situa-se na zona linguística das chamadas línguas bantu (LB), pertencentes ao grupo de línguas Níger-Congo, que são faladas em quase toda a África austral e ocidental. Embora exista alguma polémica relativamente ao número de LBs faladas neste país, estima-se que existam cerca de vinte (Sitoe & Ngunga, 2000). Quanto ao Português, declarado língua oficial a partir da independência em 1975, é falado actualmente por menos de metade da população (39 %), constituindo a língua materna (L1) de uma reduzida minoria (cerca de 6 %).2

De um modo geral, como língua segunda (L2), o Português é adquirido durante a infância por via instrucional, embora nas cidades haja também condições para a sua utilização em meio natural, através de conversas entre companheiros de bairro, dos meios de comunicação social, etc. Pode considerar-se que, devido ao facto de esta língua ser tipicamente aprendida na escola, num ambiente em que os aprendentes estão expostos a um input relativamente estruturado e têm acesso a materiais escritos nesta língua (cf. Mufwene, 1997: 49-50), está entre os principais factores (externos) que impediram o desencadeamento de um processo de crioulização do Português em Moçambique.3 Desta forma, tal como aconteceu com outras línguas ex-coloniais em regiões colonizadas por potências europeias, o Português de Moçambique (PM) emerge como uma variedade não-nativa distinta do modelo de origem, o Português europeu (PE).

No momento actual, as novas propriedades do PM estão ainda em fase de variação, verificando-se que a maior parte dos seus falantes ora produzem estruturas convergentes com a norma europeia, ora usam estruturas divergentes desse padrão. A maior parte dos falantes parece assim operar com mais do que uma gramática, revelando estar numa fase que poderia ser designada de “diglossia interna” (Lightfoot, 1999: 92). A distribuição e frequência dos traços não-padrão no discurso dos falantes não é idêntica para todos os membros desta comunidade. Com efeito, à semelhança do que acontece com outras línguas ex-coloniais, o PM apresenta um amplo espectro de variação que inclui desde as subvariedades “basilectais”, mais distantes do padrão

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europeu, dos falantes com pouco contacto com a língua-alvo, até às subvariedades mais próximas deste padrão, dos falantes mais instruídos.4

Diversos estudos sobre esta variedade do Português mostraram já o papel das L1s dos falantes, as LBs, na fixação de novas propriedades gramaticais. Estão neste caso, por exemplo, as alterações que atingem constituintes com a função de objecto directo e indirecto, as novas propriedades dos verbos agentivos e inacusativos, assim como o novo formato do sintagma do complementador. Em todas estas mudanças gramaticais, ficou demonstrado que o conhecimento da gramática das LBs por aprendentes de Português como língua segunda (L2) interfere no processamento do input, dando origem a uma nova gramática do Português (Cf. Gonçalves 1990, 2002).

No que se refere mais especificamente aos constituintes locativos e direccionais, embora existam já alguns estudos sobre esta área da gramática do PM, estes ou abrangem parcialmente o conjunto dos fenómenos aqui analisados, e/ou não tomam em consideração o papel que as LBs podem ter desempenhado no desencadeamento das mudanças que atingem esta área gramatical (Carvalho 1991, Macedo 1999, Gonçalves 1999).

O estudo do papel das LBs na fixação de novas propriedades gramaticais dos constituintes locativos e direccionais constitui pois uma perspectiva nova de investigação desta área gramatical, que, como se verá, permite articular entre si fenómenos aparentemente não co-relacionados. Na verdade, existem outros factores de relevo que deveriam ser tomados em consideração, tendo em vista a plena compreensão das mudanças que atingem estes constituintes no PM. Seria, por exemplo, igualmente importante verificar qual o papel do input no desencadeamento destas mudanças, i.e., até que ponto as estruturas linguísticas geradas pela gramática do PE desencadeiam (‘trigger’) estas novas propriedades, bloqueando a re-estruturação da interlíngua dos aprendentes e a sua convergência com o modelo-alvo. Considera-se, além disso, que o conhecimento de estágios anteriores da gramática dos aprendentes do PM, no que se refere ao formato dos constituintes locativos e direccionais, poderia lançar alguma luz sobre os processos cognitivos envolvidos na aquisição destas propriedades. Apesar da sua relevância, estes aspectos serão abordados neste estudo apenas de forma exploratória.

Assim, neste artigo, após uma descrição geral das estruturas em que se exibem alterações ao PE (secção 2), e da apresentação de uma proposta sobre as mudanças gramaticais que podem ter gerado essas estruturas linguísticas (secção 3), serão

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referidos os mecanismos gerais básicos do processo de aquisição da linguagem, que condicionam a aquisição do PE como L2, dando origem à mudança linguística (secção 4). Em seguida, apresenta-se uma descrição das propriedades das LBs, as L1 dos falantes, que podem ter induzido as mudanças no comportamento de constituintes locativos e direccionais (secção 5). Na secção 6, estas mudanças gramaticais serão reavaliadas à luz de uma hipótese de interferência das LBs no processamento do input/PE. A secção 7 sintetiza as principais contribuições deste estudo, e aponta linhas de investigação para uma visão mais aprofundada destas mudanças.

2 – O comportamento sintáctico de constituintes locativos e direccionais no PM

O principal traço que distingue o PM na realização sintáctica de argumentos locativos e direccionais é o uso da preposição em com SNs referentes a lugar.5 Embora com menos frequência, este tipo de argumentos também ocorre sintacticamente realizado como SN.6

No que refere aos casos em que é usada a preposição em, verifica-se, por um lado, que esta preposição aparece associada a argumentos locativos com a função de ‘tema’, que desempenham no PE a relação gramatical de sujeito ou objecto directo e são, por conseguinte, SNs (exemplos (1) e (2)). Por outro lado, esta mesma preposição rege também argumentos direccionais de verbos de movimento, com a função de ‘destino’ (exemplos (3)) ou ‘origem’ (exemplos (4)), que no PE são regidos respectivamente pelas preposições a/para e de. Exemplos:

(1) a. em casa dele é aqui em frente (= a casa dele é...) b. na nossa zona era fértil (= a nossa zona era...)

(2) a. conheci em casa dela (= ... a casa dela)

b. gostava de visitar aqui mesmo na cidade (= ... a cidade)

(3) a. voltou em casa (= para casa)

b. vinham carros lá na escola (= ... lá à escola)

c. levaram para lá na igreja (= ... (para) lá para a igreja) d. voltou para no Maputo (= ... para Maputo)

(4) a. está a sair no estúdio (= ... do estúdio)

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Os argumentos locativos e direccionais podem também ocorrer sintacticamente realizados como SNs, quer exprimam direcção/’destino’ (exemplos (5a, b e c)) ou direcção/‘origem’ (exemplo (5d)). Exemplos:

(5) a. não posso entrar o lugar que tem muitas mulheres (= ... no lugar) b. tive possibilidade de viajar algumas províncias (= ... para algumas províncias)

c. viemos aqui Maputo (= ... (para) aqui para Maputo) d. saímos Matalane (= ... de Matalane)

Estes diferentes tipos de realização sintáctica não padrão de argumentos locativos e direccionais7 do PM estão sintetizados no quadro abaixo. Os dados contidos neste quadro foram extraídos de um corpus-amostragem (80 frases), produzido por sujeitos adultos de diferentes graus de escolaridade, no discurso oral e escrito. Os dados orais foram extraídos das recolhas de Gonçalves (1990), Carvalho (1991) e ainda da recolha realizada no âmbito do projecto “Panorama do Português oral de Maputo” (PPOM) (Cf. Stroud & Gonçalves, 1997). O corpus de Gonçalves (1990) foi obtido através de entrevistas abertas com 37 estudantes universitários de várias regiões do país, com diferentes LBs como L1. O corpus de Carvalho (1991) foi elicitado através de entrevistas estruturadas, sobre o tópico “viagens/deslocações”, com 60 informantes residentes em Maputo, com o grau de escolaridade básico e médio. O corpus do PPOM é constituído por entrevistas semi-estruturadas com informantes residentes em Maputo, com o nível básico e médio.8 O corpus escrito, igualmente recolhido por Gonçalves (1990), e produzido pelos mesmos informantes do corpus oral, é constituído por redacções de cerca de 300 palavras cada, sobre temas livres. Tipo de Argumento Função Gramatical Estrutura Sintáctica no PM TO TAL Verbos Nº %

TEMA Sujeito SPEM 4 5 % ser

PE: SN Objecto Directo SPEM 7 11,2 % conhecer, es-pancar, fre-quentar, roubar, visitar ADV + SPEM 2

DIRECÇÃO Oblíquo SPEM 22 andar, arrancar,

Destino ADV + SPEM 6 ausentar,

PE: SPPARA + SPEM 7 chamar, chegar,

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ir, levar,

SN 4 regressar,

ADV + SN 4 sair, transferir,

SPPARA + SN 2 viajar, vir, voltar

DIRECÇÃO Oblíquo SPEM 9 desaparecer,

Origem ADV + SPEM 3 17,5 % sair

PE: SPDE SPDE + SPEM 1

SN 1

LOCATIVO Oblíquo SN 3 estar, ficar,

PE: SPEM ADV + SN 3 7,5 % parar

Realização sintáctica não padrão de argumentos locativos e direccionais no PM Tendo em vista uma maior adequação empírica das hipóteses aqui defendidas sobre as mudanças gramaticais que geram este tipo de estruturas no PM, deve destacar-se em primeiro lugar o facto de que, de acordo com os dados disponíveis, apenas ocorrem na posição de sujeito e objecto directo os sintagmas em-SN que designam ‘lugar onde’. Não se registam assim, por exemplo, contrapartes dos constituintes sujeito e objecto directo das frases (1b) ou (2a), como as que se seguem:

(1b)’ na minha mãe era fértil (cf. (1b) na nossa zona era fértil) (2a)’ conheci nesse livro (cf. (2a) conheci em casa dela)

Deve ainda assinalar-se que, no PM, a preposição em co-ocorre igualmente com a preposição até que, no PE, ora rege SNs (até [minha casa]) ora forma uma locução prepositiva com a preposição a (até [ao cais]). Exemplos: fomos até [em Dar-es-Salem], andou até [no destino], voltou até [no Maputo].

Em segundo lugar, no que respeita o formato dos argumentos direccionais, deve salientar-se que as estruturas ‘(ADV) em-SN’ (cf. (3a e b) e (4a e b)) são as mais comuns no discurso dos falantes. Por sua vez, as estruturas (3c), e mais particularmente a estrutura (3d), em que a preposição direccional para co-ocorre com o sintagma em-SN, são raras.

Por fim, quanto às frases (5), pode ressaltar-se que elas mostram que os constituintes locativos e direccionais também podem ocorrer sintacticamente realizados como ‘(ADV) SN’, mesmo em casos em que no PE é requerido um SP regido pela preposição em, como acontece na frase (5a). Tomando em consideração os

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dados quantitativos da amostragem, pode dizer-se que a realização de constituintes locativos e direccionais como SNs constitui uma estratégia alternativa à opção em-SN, menos usada pelos falantes do que esta última.

Numa síntese dos fenómenos de regência de constituintes locativos e direccionais que ocorrem no PM, Carvalho (1991:136) considera que “as sequências desviantes [do PM] relevam da perda de especialização da preposição em que ocupa novas posições distribucionais”.

3 – As mudanças gramaticais do PM

Neste estudo, admite-se que o comportamento sintáctico dos constituintes locativos e direccionais acima descrito resulta, pelo menos, de duas mudanças gramaticais relativamente ao PE.

Uma mudança gramatical consiste na reanálise da preposição em do PE como marcador morfológico de caso semântico locativo, e não como núcleo de um SP. Assim, de acordo com a análise aqui defendida, considera-se que a preposição em é usada não como uma preposição plena, mas como um instrumento morfológico destinado a assinalar a função semântica locativa dos SNs com que co-ocorre. Um efeito de superfície desta mudança é que, como mostram as frases (1) e (2), no PM o argumento em-SN pode ocupar a posição de sujeito e objecto directo. Do ponto de vista da aquisição, esta análise implica, por um lado, que, ao contrário do que poderia parecer, as frases (1) não foram geradas por uma gramática ‘selvagem’, onde a posição de sujeito está ocupada por um SP. Por outro lado, no que se refere às frases (2), esta análise implica que não houve alteração das propriedades de selecção categorial dos verbos transitivos do PE que, no PM co-ocorrem com o sintagma em-SN (cf. conhecer, frequentar, ...). Por outras palavras, considera-se que, nestes casos, estes verbos continuam a ter como traço de selecção categorial [ - SN] (e não [ - SP]), sendo que o objecto directo é realizado através do sintagma em-SN.

A segunda mudança gramatical consiste na reanálise dos verbos direccionais de movimento que, no PM, incorporam a informação sobre direcção (‘destino’ ou ‘origem’), podendo assim ser dispensadas as preposições a/para e de que, no PE, marcam estes papéis semânticos. Como se verá, no PM, é adoptado um padrão de lexicalização dos verbos direccionais de movimento segundo o qual os argumentos

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destes verbos desempenham apenas a função de locativos (e não a função de ‘direcção’), realizando-se lexicalmente como em-SN (ou como SN).10 Um efeito de superfície desta mudança é que aquelas preposições que no PE marcam a direcção (a, para e de) ou não estão realizadas lexicalmente (exemplos (3a e b), (4) e ainda (5b, c e d)), ou co-ocorrem com constituintes em-SN (exemplos (3c e d)). Dito de outra maneira, de acordo com a análise aqui proposta, não se considera que, no PM, as preposições direccionais do PE tenham sido substituídas sistematicamente pela mesma preposição, em (como mostram as frases (3) e (4)), ou tenham sido suprimidas (como mostram as frases (5)). Do ponto de vista cognitivo, uma tal análise implicaria demasiadas ‘falhas’ no processo de aquisição do Português como L2. Com efeito, no caso de se supor que estas preposições foram ‘substituídas’ por em, essa análise implicaria, por parte dos aprendentes do PM – para além da não retenção de nenhuma das preposições direccionais – a escolha da mesma preposição para desempenhar um leque muito amplo de funções semânticas, nomeadamente ‘locativo’, ‘destino’ e ‘origem’. Por outro lado, caso se considerasse que todas estas preposições direccionais foram simplesmente ‘suprimidas’, esta análise implicaria que nenhuma destas preposições foi retida pelos aprendentes, isto é, uma tal análise implicaria, do ponto de vista cognitivo, demasiadas falhas no processo de aquisição de várias preposições do PE. Em suma, uma análise destas estruturas como resultando da substituição ou supressão das preposições direccionais do PE seria pouco plausível do ponto de vista da aquisição do Português/L2.

Do ponto de vista linguístico, podem igualmente aduzir-se argumentos consistentes em favor desta hipótese de dupla mudança gramatical, que mostram que nenhuma destas mudanças, por si só, dá conta dos fenómenos acima descritos. Com efeito, caso só tivesse ocorrido a primeira mudança, relacionada com a reanálise como SNs dos SPs locativos regidos pela preposição em, uma tal mudança apenas permitiria explicar adequadamente as frases (1) e (2), onde este constituinte ocupa posições sintácticas de SN, mas não as frases (3) e (4). De facto, se só tivesse ocorrido esta mudança gramatical, os argumentos direccionais de verbos de movimento deveriam ser regidos pelas preposições direccionais que no PE realizam as funções de ‘destino’ e ‘origem’, isto é, seria esperável que estas preposições estivessem realizadas lexicalmente. Neste caso, as frases (3 a, b e c) e (4) deveriam ter o seguinte formato:

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b. vinham carros lá PARA na escola (cf. (3b) vinham carros lá na escola)

c. levaram PARA lá PARA na igreja (cf. (3c) levaram para lá na igreja)

(4)’ a. está a sair DE no estúdio (cf. (4a) está a sair no estúdio)

b. eu saiu DE lá DE no Xiquelene (cf. (4b) eu saiu lá no Xiquelene) De acordo com os dados do corpus-amostragem, este é o formato de apenas duas frases (cf. (3d)), isto é, são praticamente inexistentes as frases que validam a hipótese de se ter registado no PM apenas esta mudança gramatical.11

Por outro lado, a segunda mudança gramatical, que atinge a regência dos argumentos ‘direcção’ de verbos de movimento, não dá conta por si só da realização destes argumentos como em-SN (frases (3) e (4)), podendo apenas gerar frases do tipo de (5). Com efeito, se só tivesse ocorrido a incorporação nos verbos da propriedade semântica ‘direcção’ – marcada no PE por preposições direccionais – estes argumentos deveriam ocorrer no PM realizados como SNs, isto é, não seriam regidos por qualquer preposição. É isto de facto que acontece nas frases (5), mas não nas frases (3) e (4), que deveriam então ter o seguinte formato:

(3)’’ a. voltou casa (cf. (3a) voltou em casa)

b. vinham carros lá a escola (cf. (3b) vinham carros lá na escola) c. levaram lá a igreja (cf. (3c) levaram para lá na igreja)

d. voltou o Maputo (cf. (3d) voltou para no Maputo)

(4)’’ a. está a sair o estúdio (cf. (4a) está a sair no estúdio) b. eu saiu lá o Xiquelene (cf. (4b) eu saiu lá no Xiquelene)

Note-se, além disso, que esta segunda mudança gramatical não pode explicar, por si só, o preenchimento da posição de sujeito e objecto directo pelo sintagma em-SN (frases (1) e (2)).

Sintetizando, a mudança que atinge as propriedades lexicais dos verbos direccionais de movimento só permite validar as frases (5), deixando por explicar as estruturas das frases (1) a (4), que são quantitativamente dominantes no discurso dos falantes adultos.

Face a estas evidências, que dão conta de algum tipo de insucesso na aquisição do Português/L2 em Moçambique, uma das questões que se pode colocar, tendo em vista a explicação deste insucesso, está relacionada com o papel que as L1s dos falantes poderão ter desempenhado. Dito de outra maneira, face à não convergência com a língua-alvo/PE, pode admitir-se que ela resulta da interferência das

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propriedades da gramática das línguas bantu na fixação das propriedades dos constituintes locativos e direccionais no PM. Neste estudo, procurar-se-á identificar o papel das LBs, as L1s dos falantes, na aquisição do Português/L2, e, consequentemente, no desencadeamento das mudanças gramaticais acima apresentadas.

4 – Aquisição e mudança de línguas não maternas

Neste estudo, assume-se o modelo de aquisição de L2s defendido por Schwartz & Sprouse (1996), “Transferência total/Acesso total” (‘Full Transfer/Full Access’), que prediz que o estádio inicial na aquisição de uma L2 é a sua L1, embora a Gramática Universal (GU) também tenha um papel a desempenhar neste processo. Por outras palavras, neste estudo assume-se que, tal como na aquisição da L1, a aquisição de uma L2 é regulada (‘constrained’) pela GU, distinguindo-se pelo facto de que os aprendentes de uma L2 já têm o conhecimento da gramática da sua L1, e este conhecimento constitui o estádio inicial no processamento do input/L2.

Ao longo do seu desenvolvimento linguístico, os aprendentes vão construindo gramáticas provisórias, as chamadas ‘interlínguas’, que vão sendo reestruturadas em direcção ao modelo da língua-alvo, com base no input a que estão expostos (Klein & Martohardjono, 1999: 11). De um modo geral, tanto na aquisição da L1 como de uma L2, esta reestruturação gramatical tem lugar apenas se o input não puder ser analisado pela gramática dos aprendentes. Contudo, no processo de aquisição de L2, esta re-estruturação pode ser bloqueada devido à influência da L1, mesmo em casos em que o input (ainda) não é compatível com a gramática dos aprendentes.12 Pode admitir-se que este bloqueio se deve ao facto de essa gramática “actuar como um filtro, impedindo que certos aspectos do input da L2 sejam detectados” (White, 2000: 137, meu sublinhado). Como consequência, alguns traços gramaticais não são reestruturados, e a gramática atingida no estádio final da aquisição da L2 não converge com a da língua-alvo.

Assumindo que a mudança linguística é gerida e condicionada pela aquisição (Lightfoot 1991, 1999), pode admitir-se que é este bloqueio no processo de restruturação linguística dos aprendentes que leva à estabilização/fossilização13 de regras e traços gramaticais. Em países multilingues, onde existem comunidades importantes de falantes de L2, esta não reestruturação parcial da gramática dos

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aprendentes – para além de outros fenómenos aqui não tratados, como é o caso das inovações lexicais - dá origem a novas variedades de língua.

Neste estudo, assumindo que o desencadeamento das mudanças gramaticais no comportamento de constituintes locativos e de verbos direccionais de movimento do PM resulta da interferência das L1s dos falantes, as LBs, serão apresentadas propriedades da gramática destas línguas que podem ter afectado o processamento do input, bloqueando a reestruturação da interlíngua dos aprendentes de Português/L2. Espera-se assim identificar factores linguísticos relevantes que permitam explicar a emergência de uma nova gramática do Português em Moçambique.

5 – Comportamento sintáctico de constituintes locativos e direccionais nas línguas bantu

De acordo com a análise apresentada na secção 3, as alterações que no PM atingem o comportamento de constituintes com a função de ‘lugar’ e ‘direcção’ dão evidência da ocorrência de, pelo menos, duas mudanças gramaticais relativamente ao modelo europeu. Assim, por um lado, os constituintes com a função de ‘lugar’ são analisados como SNs, e, por essa razão, considera-se que a preposição em que co-ocorre com SNs em posição de sujeito e objecto directo (Cf. frases (1) e (2)) deve ser considerada um marcador morfológico deste caso semântico, e não o núcleo de um SP.14 Por outro lado, esta mudança co-ocorre com uma segunda mudança gramatical, que consiste na reanálise dos verbos de movimento que, no PM, passam a incorporar informação sobre ‘direcção’, diferentemente do que acontece no PE, onde estes papéis semânticos são marcados sintacticamente por diferentes preposições.

Tendo em vista a explicação destas mudanças gramaticais, e assumindo que elas resultam da interferência das L1s dos falantes no processo de aquisição do Português como L2, nesta secção serão apresentadas propriedades da gramática das LBs, que constituem o estádio inicial no processo de aquisição do Português/L2. Considera-se que estas propriedades das L1s dos aprendentes podem tê-los conduzido a um processamento dos dados do input/L2 como tendo sido gerados por regras gramaticais distintas do PE.

Não sendo possível apresentar as propriedades gramaticais de todas as LBs faladas em Moçambique, tomar-se-á o Changana como língua de referência neste estudo. Ainda que haja propriedades específicas de cada língua, considera-se que os

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padrões gramaticais que podem estar a intervir no processamento do input/L2 são de um modo geral comuns às LBs.

5.1 - Os constituintes locativos nas línguas bantu

O objectivo desta subsecção é apresentar propriedades das LBs/L1s que podem ter interferido na reanálise da preposição em por parte dos aprendentes do Português, falantes de LBs/L1s.

Em muitas línguas naturais, incluindo o Português, constituintes com referência espacial são normalmente realizados como SPs ou SADVs, sendo, por conseguinte, associados a posições sintácticas de oblíquo ou adjunto. Em contraste, os constituintes equivalentes nas LBs são normalmente realizados como SNs, com acesso a posições sintácticas de sujeito e de objecto, para além de poderem também ocupar posições de oblíquo e de adjunto.15 Ou seja, nestas línguas não há restrições quanto às posições sintácticas que estes constituintes podem ocupar.

Na sua forma mais simples, o constituinte locativo em Changana é um SN que pode exibir um dos seguintes quatro formatos: (i) nome marcado pelo sufixo locativo –eni/-ini; (ii) nome marcado pelo prefixo locativo ka-; (iii) nome co-ocorrendo com a marca locativa independente ka; e (iv) nome não marcado (locativo inerente). Exemplo:16

(6) Tin-tombhi ti-y-e kerek-eni / ka-Gaza / ka kokwani/ bazara. 10-rapariga 10MS-ir-PS 9igreja-Loc/ Loc-Gaza/ Loc 1vovó / 5mercado

‘As raparigas foram à igreja / a Gaza/ à (casa da) vovó/ ao mercado.’ Destas estratégias de codificação do locativo, o recurso ao sufixo –eni/-ini, e à forma independente ka podem ser consideradas as estratégias de codificação mais produtivas nesta língua.

O estatuto nominal dos locativos nas LBs justifica-se pelo facto de estes poderem ser modificados pelos mesmos modificadores usados em geral nestas línguas com nomes ordinários (não locativos), como sintagmas de genitivo e adjectivos (exemplos (7)). Além disso, os locativos podem ocupar posições sintácticas de sujeito e de objecto, podendo, por conseguinte, ser marcados no verbo, através de morfemas de sujeito ou de objecto (exemplos (8)). 17 Veja-se em primeiro lugar como os nomes ordinários são modificados em Changana:

(7) a. Xi-komu x-a mamani xi-nyumb-ile.

7-enxada 7-Gen 1mamã 7MS-desaparecer-PS ‘A enxada da mamã desapareceu.’

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b. Xi-komu x-a mamani i xi-tsongo. 7-enxada 7-Gen 1mamã é 7-pequena ‘A enxada da mamã é pequena.’

Conforme os exemplos mostram, o nome xikomu (classe 7) controla os morfemas de concordância da partícula genitiva –a ‘de’, em (7a), e do adjectivo -tsongo, ‘pequeno’, em (7b). Os mesmos efeitos morfo-sintácticos se desencadeiam quando os locativos desempenham funções idênticas às do nome xikomu em (7):

(8) a. Kerek-eni k-a hina i kule. 9igreja-Loc 17-Gen nós é longe

‘Na nossa igreja é longe.’ (sem equivalente no PE) b. Kerek-eni i ku-tsongo.

9igreja-Loc é 17-pequeno

‘Na igreja é pequeno.’ (sem equivalente no PE)

Nestes casos, o morfema de genitivo –a em (8a) e o adjectivo –tsongo ‘pequeno’ em (8b) recebem a marca de concordância locativa da classe 17 (ku-), o que mostra que o locativo kerekeni desencadeia a concordância com estes modificadores, tal como acontece com os nomes ordinários nesta língua (exemplos (7)). 18 Qualquer tentativa de substituir as marcas locativas da classe 17 por outras, como seja a marca de concordância da classe a que pertence o nome kereke ‘igreja’ (classe 9), leva à agramaticalidade,19 uma evidência de que é efectivamente o locativo kerekeni, e não kereke, que rege a escolha dessas marcas de concordância.

Os constituintes nominais ocupando as posições de sujeito e de objecto são marcados no verbo através de marcas de sujeito ou de marcas de objecto, tal como ilustrado a seguir:

(9) a. [Tin-tombhi] ti-nghen-ile kerek-eni. 10-rapariga 10MS-entrar-PS 9igreja-Loc ‘As raparigas entraram na igreja.’

b. Mu-fundhisi w-a-ti-tiv-a ([tin-tombhi ]). 1-pastor 1MS-PRE-10MO-conhecer-VF 10-rapariga ‘O pastor conhece-as (as raparigas).’

Em (9a) o sujeito tintombhi (classe 10) ‘raparigas’ exige que a forma verbal tinghenile ‘entraram’ exiba o morfema de concordância da mesma classe 10, ti-. Da mesma forma, quando este constituinte ocupa a posição de objecto, exemplo (9b), e está marcado no verbo, a forma verbal deve exibir a MO dessa mesma classe. Qualquer tentativa de utilização de marcas de concordância de outras classes leva à

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agramaticalidade, como em *tintombhi yinghenile e *wayitiva tintombhi, em que se usam morfemas de concordância da classe 9, classe a que pertence o nome ntombhi ‘rapariga’, a contraparte singular de tintombhi ‘raparigas’. Estas mesmas propriedades se observam quando as posições sintácticas de sujeito e de objecto são ocupadas por locativos. Exemplos:

(10) a. [Kerek-eni] ku-nghen-ile tin-tombhi. 9igreja-Loc 17MS-entrar-PS 10-rapariga ‘Na igreja entraram raparigas.’

b. Tin-tombhi t-a-ku-tiv-a ([kerek-eni]). 10-rapariga 10MS-PRE-17MO-conhecer-VF 9igreja-Loc ‘As raparigas conhecem lá (na igreja).’

Conforme se vê, o locativo kerekeni ‘na igreja’ é marcado nas formas verbais através do morfema locativo da classe 17 (ku), como sujeito em (10a) e como objecto20 em (10b), obedecendo, portanto, aos mesmos padrões de marcação verbal dos nomes ordinários.

Como foi referido atrás, para além de ocupar posições típicas de SN, os constituintes locativos/SN em Changana podem também ocupar posições que noutras línguas, incluindo o Português, são tipicamente ocupadas por SPs ou SADVs, desempenhando as funções de oblíquo ou adjunto. Os casos a seguir são elucidativos:

(11) a. B’ava mu-fundhisi a-vek-ile movha [kerek-eni]. 1senhor 1-pastor 1MS-pôr-PS 3carro 9igreja-Loc ‘O senhor pastor pôs o carro na igreja.’

b. Tin-tombhi ti-yimb-a [kerek-eni]. 10-rapariga 10MS-cantar-VF 9igreja-Loc ‘As raparigas estão a cantar na igreja.’

Como se procurou mostrar, o locativo nas LBs é considerado um SN, podendo ocupar posições nucleares (de sujeito e objecto), assim como posições não nucleares (de oblíquo e adjunto). A hipótese é que esta polivalência sintáctica dos SNs locativos das LBs tenha interferido na reanálise dos sintagmas em-SN do Português que, como já foi visto, podem ocupar no PM posições sintácticas nucleares e não nucleares.

5.2 – Os verbos de movimento nas línguas bantu

Conforme já referido, os dados do PM disponíveis fornecem evidências sobre a reanálise dos verbos de movimento, mostrando que incorporam informação sobre ‘direcção’, diferentemente do que acontece no PE, onde esta informação é expressa

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através de diferentes preposições. Pode considerar-se que esta mudança gramatical é o resultado da adopção, na gramática do PM, de um padrão de lexicalização comum nas LBs, em que o verbo incorpora informação sobre ‘direcção’. Para motivar esta análise, serão descritos em primeiro lugar os mecanismos gerais de codificação dos elementos do ‘evento movimento’ (secção 5.2.1) e em seguida far-se-á a descrição de propriedades das LBs que interferiram na reanálise dos verbos direccionais no PM (secção 5.2.2).

5.2.1. O evento movimento e a sua estrutura interna

Na teoria proposta por Talmy (1985, 1991), o termo ‘evento movimento’ (‘motion event’) é usado em sentido lato, cobrindo quer situações em que um objecto se move, quer aquelas em que um objecto se localiza/situa em relação a outro objecto. Nesta linha, a noção ‘verbo de movimento’, por exemplo, englobará quer items lexicais que impliquem efectivamente movimento, como correr, passar ou entrar, quer aqueles que exprimam localização estática, como morar, ficar e localizar-se.21

Um ‘evento movimento’ simples compreende uma ‘figura’ (‘figure’)22, objecto que se move ou se localiza em algum lugar, e um ‘fundo’ (‘ground’), espacialidade em relação à qual a ‘figura’ se desloca ou se situa. Estes dois primitivos semânticos são os elementos centrais da teoria de Talmy.

Para além da ‘figura’ e do ‘fundo’, concebe-se que a estrutura semântica do evento movimento engloba ainda um ‘percurso’ (‘path’) e um ‘movimento’ (‘motion’). O ‘percurso’ é definido como sendo o curso/trajectória percorrido pela ‘figura’ relativamente ao ‘fundo’. O ‘movimento’ designa a presença em si de ‘movimento’ ou localização no ‘evento movimento’. Adicionalmente, o ‘evento movimento’ pode integrar ainda elementos designados externos como ‘modo’ (‘manner’) e ‘causa’ (‘cause’). A seguir, ilustra-se a estrutura contendo as componentes internas de um evento movimento (in Talmy, 1985:61):

(12) The pencil rolled off the table. Figura Mov+Mod Percurso Fundo

(15)

Nesta frase, the pencil ‘o lápis’ funciona como ‘figura’ e the table ‘a mesa’ como o ‘fundo’. A partícula verbal off exprime o ‘percurso’, e a forma verbal rolled ‘rolou’ exprime ‘movimento’ e ao mesmo tempo ‘modo’, já que descreve a forma como ‘o lápis’ se moveu da mesa, ‘rolando’.

Dependendo da relação de predicação, o ‘fundo’ pode exprimir ‘lugar’, ‘trajectória’, ‘origem’ ou ‘destino’ (‘alvo’). A função semântica ‘lugar’ designa o espaço em que o ‘evento movimento’ ocorre; a função ‘origem’ corresponde ao espaço a partir do qual o ‘movimento’ da ‘figura’ se inicia; a função ‘destino’ corresponde ao espaço almejado ou em que o ‘movimento’ da ‘figura’ termina; a ‘trajectória’ corresponde a um ponto intermédio do ‘percurso’, diferente de ‘origem’ e ‘destino’, por onde a ‘figura’ se move.

Para Talmy (1985), na expressão destes elementos semânticos do ‘evento movimento’, as línguas naturais servem-se de elementos da estrutura de superfície como Verbo, Preposição/Posposição (‘Adposition’), Oração Subordinada e Satélite (‘satellite’).23 Em (12), por exemplo, o SN the table exprime o ‘fundo’ e o satélite off exprime ‘direcção-origem’.24 Talmy mostra, contudo, que na maior parte das vezes a relação entre a estrutura semântica e a estrutura sintáctica não é de ‘um-para-um’, podendo um mesmo elemento da estrutura de superfície exprimir diferentes elementos da estrutura semântica. Por exemplo, em (12), o verbo ‘rolled’ exprime simultaneamente ‘movimento’e ‘modo’.

Nesta linha, e tomando como base a informação semântica expressa pelos verbos de movimento de diferentes línguas naturais, Talmy (1985, 1991) nota que, para além de ‘movimento’, estes verbos tendem a incorporar também ‘percurso’, ‘modo/causa’ ou ‘figura’. Assim, por exemplo, umas línguas privilegiam a fusão entre ‘movimento’ e ‘percurso’, ao passo que noutras há fusão entre ‘movimento’ e ‘modo/causa’. Por exemplo, o Inglês lexicaliza preferencialmente o paradigma em que ocorre a fusão entre ‘movimento’ e ‘modo/causa’ (exemplo (12)), ao passo que o Português (Batoréo, 2000), e as línguas românicas em geral, privilegia a fusão entre ‘movimento’ e ‘percurso’25. Exemplo:

(13) O cão saiu de a cozinha. Figura Mov+Fora Or Fundo

Este exemplo mostra que em Português o verbo sair incorpora ‘movimento e ‘percurso’, representado no esquema pela expressão ‘fora’.

(16)

Schaefer (1996) constatou que as línguas africanas também lexicalizam preferencialmente o ‘movimento’ e o ‘percurso’, uma característica confirmada por Sitoe (2001) em relação ao Changana.

Nestes casos, em que os verbos de movimento exprimem simultaneamente ‘movimento’ e outro elemento do ‘evento movimento’ (normalmente, ‘percurso’, ‘modo/causa’ ou ‘figura’), Talmy refere que a língua adopta o padrão de lexicalização designado ‘verb-framing’.26 Nos casos em que o verbo de movimento exprime apenas ‘movimento’, cabendo a satélites a expressão de outros elementos semânticos, este padrão é designado por Talmy como ‘satellite-framing’.

Como se ilustrou a partir do exemplo (12), na expressão de ‘movimento’ e ‘modo’, o Inglês adopta preferencialmente o padrão ‘verb-framing’, uma vez que estes dois elementos estão ambos incorporados no verbo. No entanto, na expressão de ‘movimento’ e ‘percurso’, esta língua adopta preferencialmente o padrão ‘satellite-framing’, ao passo que o Francês adopta o padrão ‘verb-framing’. Vejam-se os exemplos a seguir, extraídos de Schaefer (1996):

(14) a. The boy moved across the road. (Inglês) b. Le garçon a traversé la rue. (Francês) ‘O rapaz atravessou a rua.’

Enquanto no exemplo do Inglês (14a) a ideia de ‘movimento’ é expressa através do verbo move e o ‘percurso’ através do satélite across, no caso do Francês (14b) estes dois elementos estão incorporados na mesma forma lexical, o verbo traverser. O Inglês é assim classificado como uma língua ‘satellite-framing’ e o Francês é considerado uma língua ‘verb-framing’ (cf. Talmy, 1985, 1991; Schaefer, 1996). A classificação de uma língua como ‘verb-framing’ ou ‘satellite-framing’ não significa, contudo, que nessa língua não possam ocorrer estruturas que obedeçam ao padrão alternativo. Por exemplo, apesar de o Inglês ser um caso de língua eminentemente ‘satellite-framing’, o evento descrito em (14a) poderia ser alternativamente codificado como em (15), onde o verbo cross27 ‘atravessar’ incorpora simultaneamente ‘movimento’ e ‘percurso’, tal como no exemplo (14b) do Francês.

(15) The boy crossed the road.

Antes de finalizar esta secção, e tendo em vista uma descrição apropriada das LBs, importa referir que o elemento semântico ‘percurso’ encerra certa complexidade. Com efeito, o ‘percurso’, para além de cobrir a expressão de uma variada gama de

(17)

especificações semânticas como exterioridade (fora/‘out’), interioridade (dentro/‘in’), trajectória (por/‘via’), distanciamento (para longe de / ‘away-from’), subsume também a expressão da ‘direcção’ propriamente dita, como ‘origem’ (de/‘from’) e ‘destino’ (para/‘to’). Numa relação de predicação, podem estar contidos diferentes elementos semânticos do ‘percurso’. Em relação a este aspecto, as línguas distinguem-se quanto às estratégias que adoptam para a expressão desses elementos semânticos. Por exemplo, tipicamente, o Inglês e o Português exprimem a ‘direcção’ a partir de preposições, mas distinguem-se quanto à expressão de especificações semânticas como ‘fora’ e ‘dentro’. No Português estas noções estão normalmente incorporadas no verbo de movimento, ao passo que o Inglês as exprime normalmente através de ‘satélites’. Exemplos:

(16) The dog went out of the kitchen. Mov fora Or

‘O cão saiu da cozinha.’

(17) O cão saiu de a cozinha. (idem (13)) Mov+fora Or

Nestes dois casos, o ‘percurso’ definido inclui os elementos semânticos ‘fora’ e ‘origem’. No caso do Inglês, estas noções são expressas a partir do satélite ‘out’ (‘fora’) e da preposição ‘of’ (origem), não estando portanto incorporadas no verbo. Em contraste, no caso do Português, a noção ‘fora’ está incorporada no verbo, ao passo que a ‘direcção-origem’ é expressa pela preposição ‘de’. Este é o padrão típico de expressão do ‘percurso’ em Português. Como se verá na secção a seguir, nas LBs os diferentes elementos semânticos do ‘percurso’ são, no geral, inteiramente expressos pelo verbo de movimento.

5.2.2 – Lexicalização de ‘movimento’ e ‘percurso’ nas LBs

O objectivo desta subsecção é apresentar uma descrição de propriedades da gramática das LBs que interferiram na reanálise dos verbos direccionais no PM.

As LBs enquadram-se no tipo de línguas em que o verbo de movimento incorpora preferencialmente ‘movimento’ e ‘percurso’, incluindo a ‘direcção’ (‘origem’ e ‘destino’). Para se ilustrar este padrão de lexicalização, considerem-se os seguintes exemplos do Changana, extraídos de Sitoe (2001:26):

(18) a. Tin-tombhi ti-hum-a [kerek-eni]. 10-rapariga 10MS-sair.de-VF 9igreja-Loc

(18)

‘As raparigas saem da igreja’.

b. Tin-tombhi ti-nghen-a [kerek-eni]. 10-rapariga 10MS-entrar.em-VF 9igreja-Loc

Mov+Dentro+Dt ‘As raparigas entram na igreja.’

Conforme se pode ver, as formas verbais tihuma ‘saem’, em (18a), e tinghena ‘entram’, em (18b), exprimem simultaneamente ‘movimento’ e ‘percurso’. O ‘percurso’ abarca os elementos semânticos ‘exterioridade’ (18a) e ‘interioridade’ (18b), e ainda ‘direcção-origem’ (18a) e ‘direcção-destino’ (18b). O facto de em ambos os casos os verbos co-ocorrerem com o mesmo locativo SN kerekeni ‘na igreja’ pode ser usado como uma forte evidência de que, para além dos elementos do percurso ‘fora’ e ‘dentro’, os verbos de movimento incorporam também a ‘direcção’ (‘origem’ ou ‘destino’). Por essa razão, a ‘direcção’ não é expressa por nenhum outro elemento lexical ou morfológico.

Note-se que no caso do Changana, a incorporação da ‘direcção’ no verbo é inteiramente válida quanto à ‘direcção-destino’, dado que estes verbos não co-ocorrem nunca com marcas formais alternativas para a sua expressão. Contudo, no que diz respeito à ‘direcção-origem’, esta língua dispõe da preposição direccional hi para a expressão deste tipo de ‘direcção’. Esta preposição é facultativa com verbos orientados para a ‘origem’, mas obrigatória com verbos orientados para ‘destino’. Para ilustrar estes casos, considerem-se os exemplos a seguir:

(19) Tin-tombhi ti-hum-a [kerek-eni] / [hi kerek-eni]. 10-rapariga 10MS-sair.de-VF 9igreja-Loc / de 9igreja-Loc ‘As raparigas saem da igreja.’

(20) a. B’ava a-fik-ile [ka-Maputsu]. 1papá 1MS-chegar.a-PS Loc-Maputo ‘O papá chegou a Maputo.’

b. B’ava a-fik-ile [hi [ka-Maputsu]]. 1papá 1MS-chegar.a-PS de Loc-Maputo ‘O papá chegou de Maputo.’

Em (19) o verbo de movimento huma ‘sair.de’ tanto pode ocorrer com o SN locativo kerekeni ‘na igreja’ quanto com o SP [hi kerekeni] ‘de na igreja’ sem que isso altere o sentido da frase. Em ambos os casos a relação semântica que se estabelece entre o verbo e o locativo é a mesma, uma vez que kerekeni funciona como

(19)

o ponto inicial do movimento, mostrando assim que a preposição hi não é crucial na expressão da ‘direcção-origem’.

Em contraste, em (20), onde ocorre o verbo fika ‘chegar’, orientado para o ‘destino’, a presença ou ausência da preposição hi é crucial na interpretação das frases. Com efeito, em (20a) o locativo kaMaputsu ‘em Maputo’ apenas pode ser interpretado como exprimindo o lugar de ‘destino’. Para que este mesmo locativo exprima a ‘origem’, é necessário que seja regido pela preposição direccional hi que, como se viu, exprime esta função semântica (cf. (20b)).

Pode considerar-se que o facto de os verbos de movimento nas LBs incorporarem informação sobre ‘direcção’, constitui um factor de relevo no abandono das diferentes preposições direccionais do PE pelos aprendentes do Português/L2. De acordo com a análise a ser aqui proposta, admite-se que os aprendentes reanalisem os verbos de movimento como incorporando ‘direcção’, à semelhança do que acontece nas suas L1s, e por essa razão, estes verbos co-ocorrem com o constituinte locativo (em-SN ou SN), sendo dispensadas as preposições direccionais do PE.

6 – Papel das LBs no desencadeamento das mudanças gramaticais no PM Neste estudo, assumindo que as mudanças no comportamento sintáctico de constituintes locativos e de verbos direccionais resultam do processo de aquisição do PM por falantes com L1s bantu, foram apresentadas as propriedades gramaticais destas línguas que podem ter interferido no processamento do input/PE, bloqueando a reestruturação da interlíngua dos aprendentes. Estas mudanças serão agora retomadas, procurando-se estabelecer de que forma o conhecimento das LBs afectou o estabelecimento destas propriedades, impedindo a convergência com a língua-alvo, o PE.

No que se refere à mudança que atinge os constituintes locativos, pode considerar-se que tem um papel determinante na reanálise da preposição em a “polivalência” sintáctica destes constituintes nas LBs, nomeadamente a ausência de restrições relativamente às posições sintácticas que podem ocupar. Assim, como se viu, embora nestas línguas os constituintes locativos sejam considerados SNs – realizados morfologicamente através de marcas específicas (cf. exemplo (6)) – eles podem ocupar posições sintácticas que, noutras línguas, são tipicamente ocupadas por sintagmas preposicionais ou adverbiais.

(20)

No PM, uma primeira evidência da interferência desta propriedade das L1s dos falantes reside na atribuição da categoria nominal aos constituintes locativos, que são assim realizados como SNs propriamente ditos ou como sintagmas em-SN. Em qualquer dos casos, estes constituintes exibem alta mobilidade sintáctica, uma vez que podem ocupar posições de sujeito, objecto directo e oblíquo. Como se viu, a primeira opção é mais fraca, uma vez que, tanto quanto as evidências empíricas mostram, na gramática dos adultos sobrevivem poucos casos em que estes constituintes são realizados como SNs (cf. frases (5)), sendo a opção em que estes constituintes apresentam o formato em-SN aquela que tem tendência a prevalecer (cf. frases (1) a (4)).

No que se refere mais especificamente a este último formato, foi aqui referido que a preposição em não constitui o núcleo de um sintagma preposicional, devendo antes ser interpretada um marcador “morfológico” de caso (semântico) locativo. Face aos dados aqui apresentados sobre as propriedades dos constituintes locativos nas LBs, pode considerar-se que esta reanálise da preposição em resulta da interferência das L1s dos falantes, nas quais estes constituintes são marcados através de diferentes estratégias (prefixos, sufixos, morfemas livres, etc.). Pode assim admitir-se que a perda de traços sintácticos da preposição em resulta de um fenómeno mais geral, de acordo com o qual, sendo os locativos fixados como constituintes nominais, a preposição em constitui a estratégia morfológica de codificação locativa. Dada esta reanálise, no PM os constituintes nominais locativos em-SN podem ocupar posições típicas de SNs (de sujeito e objecto directo), como acontece nas frases (1) e (2), sem que isso represente uma violação dos princípios da gramática universal.

É provável que a escolha da preposição em como marcador morfológico de caso locativo esteja relacionada com a ambiguidade das evidências geradas pela gramática do PE para aprendentes com L1s bantu. Com efeito, o input gerado pela gramática do PE contém muitas estruturas em que os sintagmas preposicionais regidos pela preposição em correspondem nas LBs a SNs locativos. Estão neste caso os chamados complementos circunstanciais de lugar, que co-ocorrem no PE com verbos como estar, dormir, viver, etc. Exemplos:

(21) PE: As raparigas rezam/dormem/vivem na igreja. Changana: Tinthombi tikhongela/tiyetlela/tihanya kerekeni

(21)

Como se pode ver, o sintagma preposicional locativo do PE, na igreja, corresponde nas LBs a um SN locativo, kerekeni. Face a este tipo de evidências, pode admitir-se que, ao longo do desenvolvimento linguístico dos aprendentes, tenha emergido uma propriedade gramatical de acordo com a qual a preposição em, que no PE rege os constituintes locativos, é fixada como marcador morfológico deste tipo de constituintes, com uma função equiparável às diferentes estratégias usadas na codificação destes constituintes nas LBs. Assim, uma vez fixado este papel não sintáctico para esta preposição, os sintagmas referentes a lugar, regidos pela preposição em já não são tomados como sintagmas preposicionais propriamente ditos, e, como tal, podem ocupar as posições típicas de SNs locativos.

Pode admitir-se que, em termos de aquisição do Português como L2, este fenómeno decorre da ambiguidade do input para aprendentes com L1/LBs, resultando do facto de os sintagmas em-SN do PE poderem ser analisados pelos aprendentes desta língua como uma estratégia de codificação de constituintes locativos, equiparável às que estão disponíveis nas L1s/LBs. Conforme já demonstrado por Gonçalves (2002: 326), certas estruturas gerada pela gramática de uma dada língua podem ser ambíguas apenas para os aprendentes dessa língua como L2, devido à influência do conhecimento que já têm da gramática da sua L1, i.e., a ambiguidade da L2 resulta da possibilidade de as evidências geradas pela sua gramática poderem ser analisadas na base de propriedades gramaticais das L1s dos aprendentes. Esta perspectiva de análise do processo de aquisição de uma L2 implica assim que é necessário articular o conhecimento prévio da L1 com o formato das evidências geradas pela gramática da língua-alvo/L2, que consituem o input para os aprendentes. Apesar da importância do input no desencadeamento das mudanças gramaticais que atingem os constituintes locativos e direccionais no PM, está para além dos objectivos deste estudo uma análise mais aprofundada desta componente do processo de aquisição.28

No que se refere à mudança que atinge os verbos direccionais de movimento (cf. frases (3) a (5)), pode considerar-se que ela resulta não só da adopção do padrão de lexicalização destes verbos nas L1s dos falantes, como tem igualmente de ser articulada com a fixação dos locativos como constituintes nominais (em-SN ou SNs propriamente ditos) na gramática do PM.

Vejam-se em primeiro lugar alguns aspectos relacionados com propriedades dos verbos direccionais de movimento. Como se viu na secção 4, embora as LBs e o

(22)

PE fixem o padrão ‘verb framing’ para este tipo de verbos, estas línguas são distintas no que se refere à codificação de ‘percurso-direcção’: nas LBs os verbos incorporam este elemento semântico, ao contrário do que acontece no PE, onde este é expresso através de preposições direccionais. A título de exemplo deste contraste, retome-se a frase (18a) do Changana, aqui renumerada (22a), e veja-se a estrutura da sua correspondente no PE (22b):

(22) a. Tinthombi tihuma________ kerekeni. Mov +Fora+Or Fundo b. As raparigas saem_____ de a igreja. Mov +Fora Or Fundo

Como se pode verificar, enquanto no PE a ‘direcção’ (neste caso ‘origem’) é marcada pela preposição de, nas LBs pode não estar marcada por nenhum elemento lexical, e, por essa razão, o verbo pode co-ocorrer apenas com o constituinte (nominal) da classe locativa (kerekeni). Em frases equivalentes do PM, este mesmo verbo apresenta uma estrutura idêntica às LBs, isto é, tal como nestas línguas, co-ocorre apenas com o constituinte (nominal) locativo, não existindo nenhum elementos lexical (preposição ou outro) que desempenhe a função de ‘direcção-origem’. As frases (4) e (5b), aqui renumeradas (23), dão conta desta propriedade:

(23) a. está a sair [SN/locativo no estúdio ]

b. eu saiu lá [ SN/locativo no Xiquelene ]

c. saímos [ SN/locativo Matalane ]

Como se viu anteriormente, se a adopção no PM do padrão de lexicalização dos verbos das LBs pode explicar a não realização das preposições direccionais do PE, esta mudança gramatical não explica, só por si, por que razão estes verbos co-ocorrem no PM com sintagmas em-SN (frases (23a e b)), e não apenas com SNs como acontece na frase (23c). A fim de dar conta deste fenómeno, foi aqui defendido que a mudança gramatical que atinge os verbos direccionais de movimento no PM tem de ser articulada com a mudança no formato dos constituintes locativos. Com efeito, se se considerar que os sintagmas em-SN no estúdio (23a) e no Xiquelene (23b) representam constituintes nominais locativos, verifica-se que estas frases apresentam uma estrutura semântica idêntica à que foi atribuída à frase do Changana (22a):

(23)’ a. está a sair________ no estúdio Mov +Fora+Or Fundo

(23)

b. eu saiu________ lá no Xiquelene Mov +Fora+Or Fundo

Como se viu anteriormente, esta análise exclui a hipótese de a preposição em estar a ser usada ‘em-vez-de’ uma preposição direccional, mostrando-se por isso mais adequada.

Resumindo os argumentos sobre o comportamento sintácticos dos verbos direccionais de movimento no PM, pode considerar-se que, por um lado, houve interferência das L1s dos falantes, verificando-se que é atribuído a estes verbos o mesmo padrão de lexicalização fixado pela gramática das LBs. Em consequência desta interferência, a informação sobre ‘percurso’ está codificada no verbo e, por essa razão, no PM as preposições direccionais do PE não estão realizadas lexicalmente. Por outro lado, a fim de dar conta da realização dos complementos destes verbos como em-SN (cf. frases (3) e (4)), é necessário admitir que estas frases foram geradas por uma (nova) gramática, distinta do PE, em que os constituintes nominais locativos podem apresentar o formato em-SN.

Conforme foi assinalado, as frases (3c e d), aqui renumeradas (24), apresentam uma estrutura um pouco mais complexa do que as frases (3a e b) e (4), uma vez que contêm, para além do sintagma em-SN, a preposição direccional para:

(24) a. levaram para lá na igreja b. voltou para no Maputo

Embora este tipo de estruturas tenha pouca relevância quantitativa nos dados produzidos pelos falantes adultos, elas são sem dúvida importantes como “fósseis” de estágios anteriores do desenvolvimento linguístico dos aprendentes (cf. Nota 11). Com efeito, nos dados de interlíngua, este tipo de estruturas é relativamente frequente, mostrando assim a existência de um estágio anterior, em que já está fixado o formato em-SN para os constituintes locativos, mas em que, no que se refere aos verbos direccionais de movimento, ainda não foi fixado o padrão ‘verb framing’ que se exibe na gramática dos adultos. Observadas numa perspectiva de aquisição, as frases (24), em que a preposição direccional para está presente e co-ocorre com constituintes em-SN, podem considerar-se evidências de um estágio intermediário no desenvolvimento linguístico dos falantes, em que, por interferência das LBs, os constituintes locativos já apresentam o formato em-SN, mas em que ainda é adoptado o padrão de lexicalização dos verbos direccionais de movimento fixado pelo PE.29 Apesar da

(24)

importância que esta perspectiva de aquisição possa ter para a compreensão das mudanças gramaticais aqui analisadas, não é possível desenvolvê-la no contexto deste estudo, dedicado ao papel das L1s no formato da gramática do PM.

7 – Conclusões

Este estudo teve como principal objectivo mostrar o papel das L1s dos falantes do PM no desencadeamento das mudanças gramaticais que afectam constituintes locativos e verbos direccionais de movimento. Assim, tomando como base uma descrição destas áreas da gramática das LBs, mostrou-se que, em qualquer dos casos, aquelas duas mudanças gramaticais têm de ser articuladas com a interferência do conhecimento prévio das propriedades destas línguas no processamento do input. Dito de outra maneira, ao articular aquelas mudanças gramaticais com a gramática das L1s dos falantes do PM, fica não só mais bem fundamentada empiricamente a análise aqui defendida, como também ficam afastadas hipóteses explicativas pouco verosímeis do ponto de vista cognitivo. Recorde-se que, tal como foi referido na secção 2, seriam pouco plausíveis hipóteses em que se admitisse que a gramática do PM é compatível com uma gramática ‘selvagem’ (caso se considerasse por exemplo que a posição de sujeito é ocupada por sintagmas preposicionais), ou em que se admitisse um grande número de falhas na aquisição do PM (caso se considerasse por exemplo que as diferentes preposições direccionais do PE não foram retidas, sendo substituídas pela preposição em).

Apesar da validade e relevância da análise aqui apresentada, considera-se que esta área do PM necessita ainda de ser investigada noutras perspectivas. Como se viu, a hipótese de interferência das L1s no desencadeamento das mudanças não dá conta por si só da emergência dos novos traços gramaticais no PM. Com efeito, se é verdade que as L1s desempenham um papel de relevo, também é verdade que essa interferência não explica por que razão não chegou a ocorrer a reestruturação da interlíngua dos aprendentes. Para explicar a fossilização dos novos traços gramaticais, é necessário tomar em consideração outras componentes do processo de aquisição do Português/L2, nomeadamente avaliar de que forma o input gerado pela gramática do PE desencadeia (‘trigger’) esses novos traços. Esta componente do processo de aquisição foi aqui pouco aprofundada, apesar de ela poder, sem dúvida, contribuir para uma melhor compreensão destas mudanças. Além disso, como se viu, os dados de interlíngua podem fornecer informação adicional sobre estágios do

(25)

desenvolvimento desta área da gramática do PM, revelando estratégias intermediárias de aquisição, anteriormente estabelecidas pelos aprendentes, que acabam por fossilizar no estádio final da aquisição.

Estas são perspectivas ainda em aberto para futuras investigações sobre esta área do PM, que não só podem contribuir para uma clarificação dos mecanismos que conduzem às mudanças gramaticais no comportamento de constituintes locativos e de verbos direccionais de movimento, como também podem ser tomadas como evidência empírica para generalizações mais amplas sobre a aquisição de L2s em contextos multilingues.

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1

Este estudo foi realizado no quadro do projecto de investigação “A expressão do espaço e do movimento no Português de Moçambique” (Faculdade de Letras/Universidade Eduardo Mondlane, 2002-03), financiado pela Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional (ASDI/SAREC).

2

Cf. Firmino (2000).

3

Esta situação difere da história do Português no Brasil onde se admite que possa ter ocorrido um processo de crioulização, devido à actuação de um conjunto diversificado de factores históricos e sociais. Vários autores defendem assim a hipótese de formação de um “semi-crioulo” (Holm 1992) ou de ocorrência de um processo de crioulização “leve” (não radical) em contextos de transmissão linguística irregular (Baxter 1998; Lucchesi & Baxter no prelo). Note-se, contudo, que esta é ainda hoje uma questão polémica, havendo igualmente autores que refutam que o Português do Brasil tenha uma história crioula (cf. Naro & Scherre (1993) ou Tarallo (1993)).

4

Ao destacar a variação do PM ao longo de um continuum, pretende-se apenas mostrar que, provavelmente devido ao facto de este ser adquirido como língua não materna, a distância entre os vários lectos deste continuum é mais nítida do que em línguas adquiridas como L1, como é o caso do PE, onde existe igualmente variação a vários níveis (dialectal, social, etc.).

5

É interessante assinalar que, no Português do Brasil, esta mesma preposição é também usada com complementos de verbos de movimento com a função de ‘direcção’ (destino) (ir, chegar), mas não com constituintes locativos ou direccionais (relativos a ‘origem’), como acontece no PM. Num estudo sobre a regência de argumentos do verbo ir, Mollica (1996), assumindo que a regência não padrão pela preposição em não é aleatória, estabelece alguns factores contextuais que podem condicionar a sua escolha, nomeadamente a ‘configuração do espaço’ e o ‘grau de definitude’ do referente. A autora conclui que a preposição em é preferida às preposições a/para em contextos em que o nome locativo é

[+ fechado] (cf. cinema ou casa) e é [+ definido], sendo acompanhado pelo artigo definido ou pronome possessivo/demonstrativo. Como se verá, uma tal perspectiva de análise não parece dar conta das regras que condicionam a utilização da preposição em com constituintes locativos e direccionais no PM.

Referências

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