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O ESPELHO DO OUTRO: O CINEMA, O ESPECTADOR E AS RELAÇÕES DE ALTERIDADE NA TRILOGIA DAS CORES DE KRZYSZTOF KIEŚLOWSKI

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O ESPELHO DO OUTRO: O CINEMA, O ESPECTADOR E AS RELAÇÕES DE ALTERIDADE NA TRILOGIA DAS CORES DE KRZYSZTOF

KIEŚLOWSKI

Bruna Nunes da Costa Triana Martha Celia Ramirez-Galvez (Orientadora)

RESUMO

Procurando ressaltar o olhar da Antropologia sobre as imagens, adotamos neste trabalho o cinema como campo de pesquisa, passível de observação e interpretação. Dessa maneira, nosso objetivo é analisar a especificidade da relação entre cinema e sociedade sob a abordagem antropológica, pensando os filmes como produtos culturais que criam, constroem e fazem circular representações, traços culturais e valores coletivos. Para isso, pressupomos, como Jameson, que as imagens projetadas acompanham o espectador mesmo depois que o filme acaba, marcando-o em lembranças e modelando seu comportamento, seus gestos e suas idéias. Deste modo, tomando o cinema, sobretudo, como uma arte do espetáculo, buscamos refletir acerca do alcance global das imagens cinematográficas, seus mecanismos de produção, circulação e consumo como mercadorias visuais, haja vista que os filmes se transformaram, hoje, nos grandes veículos de construção e divulgação de imaginários, conceitos, valores e significados. Portanto, nossa abordagem privilegia a Antropologia para analisar a experiência cinematográfica, tentando perceber, como o fez Morin, de que forma o cinema, e em particular os três filmes da Trilogia das Cores, de Krzystof Kieslowski, através dos processos de projeção-identificação dos espectadores com as imagens, narra e constrói legítimas relações de alteridade.

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A arte, como atenta Geertz (1997), é um elemento essencial da vida social, já que ela denota e divulga modos de se pensar a vida. Os sentimentos que um povo tem pela vida surgem e são transmitidos na moral, no direito, na ciência e, sobretudo, na arte. Dessa forma, a expressão artística deve ser entendida como um sistema cultural, assim como a religião e o parentesco, que igualmente revela maneiras de estar no mundo e que estão incorporadas nas atitudes e formas de expressões sociais.

A variedade, que os antropólogos já aprenderam a esperar, de crenças espirituais, de sistemas de classificação, ou de estruturas de parentesco que existem entre os vários povos, e não só em suas formas mais imediatas, mas também na maneira de estar no mundo que encorajam e exemplificam, também se aplica a suas batidas de tambor, a seus entalhes, a seus cantos e danças (GEERTZ, 1997, p.146).

Em vista disso, percebemos a preocupação desse autor em advertir que uma expressão artística é conseqüência de uma sensibilidade coletiva, formada na totalidade da vida social; isso nos faz compreender que a ligação entre arte e vida não se dá no plano instrumental, mas sim no plano semiótico. Partindo desta abordagem da arte proposta por Geertz, entendemos que ela não é um mero reflexo da vida, mas uma maneira de se pensar sobre esta; isto é, as representações artísticas oferecem modos de experimentar a realidade e materializar preocupações recorrentes da vida. A arte, assim, é uma fala da sociedade sobre a própria sociedade, uma vez que ela é capaz de sintetizar experiências coletivas e cotidianas. As expressões artísticas fazem sentido, deste modo, porque se relacionam com uma sensibilidade coletiva da qual fazem parte e que ajudaram a criar.

Dentro deste contexto, consideramos o cinema como campo de pesquisa, passível, portanto, de observação e interpretação; logo,

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procuramos analisar a especificidade da relação entre cinema e sociedade, pois os

[...] chamados filme de ficção [...] [são] documentários preciosos sobre nosso imaginário, sobre nossos valores e aspirações. Como antropólogos e cientistas sociais, interessa-nos o cinema como campo de expressão imagética de valores, categorias e contradições de nossa realidade social (CAIUBY-NOVAES, 2009, p.53).

Nesta perspectiva, o cinema, como um produto cultural, é resultado de um trabalho de equipe em que várias sensibilidades individuais, vários olhares, se unem para realizá-lo; e, ainda, é direcionado para um público determinado, que é capaz de interpretar e compreender seus significados. Aqui, cremos que todo filme é uma ficção – isto é, algo inventado, criado –, e que sua relação com a vida social é que ele penetra e é produto de uma experiência coletiva que o transcende. Deste modo, entendemos que o cinema pode ser uma maneira profícua para se pensar questões presentes nas análises antropológicas, como, por exemplo, a alteridade.

O fato de uma obra ser uma obra de ficção tanto aos olhos de seu autor quanto aos olhos do público não a define necessariamente como alheia ou oposta ao real, não só porque este constitui, sob diversos aspectos, sua matéria-prima, mas porque, em torno e a propósito da obra, podem nascer fenômenos sociais coletivos (AUGÉ, 1998, p.105).

Logo, pensamos que o cinema pode ser refletido numa perspectiva antropológica e que a Antropologia, como define o antropólogo francês (1998, p.9-10), é quem se preocupa com o lugar do outro no conhecimento, quem problematiza, de fato, as questões centrais

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de identidade e de alteridade. As aproximações entre a Antropologia e o cinema já foram pensadas por vários autores, como Canevacci (1990a; 1990b), Barbosa e Cunha (2006), Caiuby-Novaes (2008; 2009), Shohat e Stam (2006), Hikiji (1998). Na verdade, esses dois campos de conhecimento surgiram no final do século XIX, auge do imperialismo colonialista, e, portanto, desenvolveram-se com um olhar específico sobre o outro, visto como estranho, exótico.

Fue un momento en el cual el conocimiento del mundo, de la existencia de modos diferentes, se hizo más patente por los cambios ocurridos en Europa y por la expansión de Ocidente. [...] La cuestión fundamental de las ciencias sociales fue la de explicar esos cambios que se producían en el mundo europeo. [...] Si bien el encontro intercultural no era nuevo y siempre despertó una actitud de asombro ante lo distinto [...], la diferencia se constituyó en objeto de explicación científica (BOIVIN; ROSATO; ARRIBAS, 2004, p.8).

Percebemos, então, que a Antropologia, como ciência que se constituía, se voltou para a explicação da diferença entre os homens; e o cinema, que também nascia nesta mesma época, foi utilizado, juntamente com a fotografia, em trabalhos de campo e em experiência etnográficas, como podemos observar nas fotos que Malinowski (1978), considerado um dos principais fundadores da Antropologia Social, expõe nos Argonautas do Pacífico Ocidental. O que queremos ressaltar aqui é como as novas tecnologias foram introduzidas na pesquisa antropológica como instrumentos para dar a conhecer o outro, que estava distante do Ocidente. Não obstante sua utilização, as fotos e filmes eram considerados como instrumentos secundários de pesquisa, visto que apenas ilustravam as observações etnográficas e eram anexadas às dissertações. Assim, num primeiro momento, as imagens se configuram como ferramentas acessórias da pesquisa, e é só com a experiência de Margaret Mead e Gregory Bateson, na década de 1930, que a fotografia e os filmes

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etnográficos vão ganhar visibilidade no processo de trabalho de campo e pesquisa, sendo acompanhados de análises antropológicas e não servindo como mera ilustração dos fatos105.

Embora o filme etnográfico, desde então, tenha ganhado espaço nas pesquisas de campo, sendo desenvolvido, por exemplo, por Claudine de France (2000) como metodologia de pesquisa antropológica, interessa-nos aqui, em particular, a relação entre cinema “de ficção”106 e Antropologia; ou seja, pretendemos enxergar a especificidade da relação entre cinema e sociedade. Para isso consideramos, retomando a discussão inicial, que o filme é uma experiência capaz de invocar sentidos e construções sociais, pois desenvolve uma questão acerca da vida, um ponto de vista de como estar e se relacionar no mundo e, portanto, desvenda e reflete os sentidos, as representações, as memórias e as experiências pessoais de cada um; isto porque, como sugere Caiuby-Novaes (2008, p.464), através de metáforas e sinestesias, as imagens envolvem a imaginação do espectador, favorecendo a identificação com as imagens da tela. Da mesma forma, como observou Jameson (1995, p.1), os “filmes são uma experiência física e, como tal, são lembrados e armazenados em sinapses corpóreas que escapam à mente racional”. Segundo este mesmo autor, o cinema é um vício que deixa marcas no corpo e que, como uma atividade tão profundamente assinalada em nosso cotidiano e em nossos corpos, seu estudo não pode ser restrito a uma disciplina especializada.

É justamente essa a preocupação da Antropologia com o outro, com a alteridade, que nos incentiva a abordar o cinema como campo desta pesquisa. Como Shohat e Stam (2006, p.19) atentam, devemos ter consciência do legado eurocêntrico que constituiu, e ainda se faz presente,

105 Essa experiência foi muito importante e é lembrada por todos os autores que trabalham com a análise de

imagens na Antropologia. Ver, por exemplo: Barbosa e Cunha (2006), Hikiji (1998), Canevacci (1990a; 1990b).

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Queremos nos referir aqui ao cinema conhecido como ficcional, como comercial, que é produzido e distribuído mundialmente, não mais aos filmes etnográficos, sabidamente de pouca circulação, principalmente acadêmica.

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nos debates intelectuais de nossa disciplina e nas imagens do cinema e da televisão. Destarte, “a crítica antropológica deve tentar penetrar na forma-cinema a fim de tentar compreender o enigma mítico de seu poder de atração” (CANEVACCI, 1990b, p.25); quer dizer, a Antropologia do cinema deve procurar, a partir da crítica imanente, compreender e desvelar o encanto do cinema e seu poder de atrair e influenciar seu público. Estamos aqui nos posicionando ante a importância do cinema no mundo atual, ou seja, assumimos, de acordo com Canevacci (1990b), que o cinema modificou categorias de pensamento (como tempo e espaço, por exemplo) e, por conseguinte, contribuiu grandemente na formação e reprodução de valores, de comportamentos e de gostos.

Dessa maneira, e tendo em vista que nossa sociedade dá grande importância ao elemento visual, atualmente assistir a algum meio de comunicação audiovisual de massa é uma experiência cotidiana para a maioria das pessoas – logo, esses meios fazem a mediação de nossas relações com o mundo, são veículos, portanto, de representação e divulgação de valores e traços culturais. O cinema faz um recorte na realidade, problematiza e dramatiza o cotidiano comum ao espectador, revelando os gestos sutis e as particularidades do meio que nos envolve. Porém, é importante lembrar que o cinema é produto do trabalho de uma equipe, é o resultado de um cruzamento de olhares (do diretor, do roteirista, dos atores, figurinistas e todos os outros membros envolvidos na produção); assim como a Antropologia, e em particular a Antropologia Visual, que também trabalha com o cruzamento de olhares, e “é nesse cruzamento de intencionalidades que reside a possibilidade de pensar a imagem como um objeto fértil para a reflexão antropológica” (BARBOSA e CUNHA, 2006, p.54).

Compreendemos, então, que o cinema faz parte da vida social contemporânea, hoje mais do que nunca, basta pensarmos na circulação mundial de filmes que ultrapassa fronteiras territoriais e culturais. Diante

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disso, podemos afirmar que a relação entre cinema e sociedade se constitui numa dupla interferência: o cinema produz imagens de nossos desejos, de nossas fantasias e necessidades e constitui “nossos imaginários, nossas relações com o Outro, nossos conhecimentos, nossas opiniões” (FRANÇA, 2005, p.34). A relação dos filmes com o imaginário, tendo este como “uma dimensão do real, [...] uma dimensão necessária da própria percepção que temos de nós mesmos e das coisas” (MENEZES, 1996, p.89), pode ser percebida quando notamos que o cinema “dispõe do encanto da imagem, ou seja, renova ou exalta a visão de coisas banais” (MORIN, 1983, p.153).

Percebendo essa interferência indiscutível do cinema na vida social, observamos que ao assistir a um filme ocorrem “verdadeiras transferências entre a alma do espectador e o espetáculo na tela” (MORIN, 1983, p.154); o que queremos dizer é que “o filme pode transformar a audiência psicologicamente e politicamente. [...] A sala escura [...] permite que nos transportemos para outro mundo, o que significa voltar a ver este mundo já com outros olhos” (SZTUTMAN, 2005, p.122). Entendemos, deste modo, que o cinema, como uma arte do espetáculo, um espetáculo das multidões – haja vista o alcance mundial das imagens cinematográficas –, teve sua linguagem aprendida e assimilada durante seu desenvolvimento histórico, criando um repertório imagético no espectador. Destarte, percebemos, também, que os filmes se transformaram nos grandes veículos de construção e divulgação de comportamentos, gostos, gestos. Refletindo, então, acerca da preocupação de Benjamin com o declínio da arte de narrar e da própria experiência (Erfahrung), enxergamos no cinema uma capacidade de renovar e recriar essa arte da narrativa, de transmitir experiências através de histórias. Faz parte do espetáculo do cinema contar histórias, narrar imageticamente; e é no cinema, nos filmes mesmos, que hoje as pessoas se abrem para ver e ouvir as narrativas de países longínquos, as histórias que invocam provérbios e morais.

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Para Benjamin (1993, p.198), a modernidade se caracterizava pelo declínio da arte de narrar, que nos conduziria à privação “de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. Porém, o cinema nos afeta, produz um impacto emocional, já que este é o seu propósito genuíno. O cinema nos conta histórias, e, como reflete Cabrera (2006, p.21), “é claro que um filme sempre pode ser colocado em palavras. [...] Só que isto só será plenamente compreensível somente vendo-se o filme, instaurando a experiência correspondente, com toda a sua força emocional”. Isto significa que um filme é, sobretudo, uma experiência, pois propõe uma participação afetiva e uma reflexão acerca do mundo. As histórias que o cinema nos conta fazem dele o instrumento do narrador contemporâneo, tendo em vista que, segundo Benjamin, o narrador é aquele que sabe transmitir experiências, continuar uma história. Os filmes, mais que simples histórias, expõem experiências coletivas, formas e problematizações de como estar no mundo, revelam ideologias e concepções acerca da realidade social, ou seja,

[...] os conceitos-imagem do cinema, por meio desta experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc. e que tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo através de seu componente emocional. (CABRERA, 2006, p. 22).

Portanto, notamos que estabelecer a ligação entre cinema e sociedade – entre o que o cinema fala ao homem e o que fala deste homem – é uma proposta profícua, visto que, como asseverou Carrière (1995, p.16), durante sua história o cinema “forçou caminho no mundo das idéias, da imaginação, da memória e dos sonhos” dos espectadores,

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até que dominasse nossa percepção e nossa forma de ver o mundo, nos perseguindo “mesmo quando fechamos os olhos”. É necessário ressaltar, uma vez mais, que o filme é uma reflexão sobre a sociedade e sobre o mundo que o cerca, não um mero reflexo desta sociedade; ao contrário, ele propõe uma visão, dentre as várias possíveis, de alguns aspectos da sociedade, ele constrói um recorte determinado da realidade social. As representações, os discursos, as idéias e os valores que um filme produz e faz circular, são elementos que destacam a importância da análise antropológica do cinema e seu papel enquanto agente social.

A abertura à interpretação do espectador, a habilidade de fazer refletir, a partir de imagens, as experiências e sinestesias provocadas pelo cinema fazem dele um campo onde a subjetividade se faz muito presente. Portanto, para fazer a análise das imagens, a contribuição da semiótica permite uma organização dos elementos visuais e sonoros que o cinema aplica em sua constituição; as imagens propõem variadas mensagens; porém, embora cada plano sugira diferentes interpretações, a disposição dele ao longo do filme induz a uma determinada leitura, em função da montagem, dos movimentos de câmera, do roteiro, da posição dos objetos e personagens em cena. Outra contribuição profícua para a análise fílmica é o estudo dos discursos que eles difundem, a estética a que estão ligados, as ideologias que representam e apresentam ao público; esse exame do discurso cinematográfico deve considerar o contexto histórico da produção dos filmes, pois, como atenta Ferro (1988), o imaginário inscrito nos filmes são fontes e documentos de eventos e representações correntes de uma época.

Nesse contexto, e compreendendo a Antropologia como um exercício do olhar, temos que, conseqüentemente, os filmes podem ser objetos passíveis de estudos antropológicos, haja vista que eles são, também, um exercício do olhar. Como nos lembra MacDougall (2009, p.68), “antes que os filmes sejam uma forma de representar ou

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comunicar, eles são uma forma de olhar. Antes de expressar idéias, eles são uma forma de olhar. Antes de descrever qualquer coisa, eles são uma forma de olhar”. Aqui, nos voltando para a proposta de Geertz (1989) de uma Antropologia interpretativa, apreendemos que os filmes são recortes do mundo, descrições de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados, interpretações de segunda ou terceira mão. Nesta perspectiva, entendemos a necessidade do estudo de técnicas do cinema, as intenções das tomadas, a função significativa do close, os ângulos e movimentos de câmera como detalhes que influenciam o ritmo do filme tanto quanto a trilha sonora, o roteiro e a atuação das personagens, pois é este conjunto de elementos que dá dramaticidade e expressividade ao produto final que é o filme. Essas questões permitem que o pesquisador selecione os aspectos mais representativos dentro do conjunto, os que mais manifestam a discussão e as categorias de sua pesquisa e de seu eixo de análise.

Com efeito, ao enfatizar a questão do olhar e da alteridade como aspectos da Antropologia, escolhemos a Trilogia das Cores, de Kieślowski, como objeto de estudo porque encontramos nestes filmes um diálogo com o outro, uma criação de situações onde o real é múltiplo e irredutível a dualismos simplistas. A Trilogia, narra e constrói uma imagem do outro muito característica. Ao se propor a trabalhar com os ideais “universais” do homem – Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que formavam o lema da Revolução Francesa e sustentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, – o diretor Kieślowski retira as maiúsculas desses valores e os coloca para serem vivenciados em situações realmente concretas e particulares, procurando, dessa forma, problematizar a universalidade desses ideais. Dentro da Trilogia podemos observar a inquietação em olhar para a subjetividade das personagens, mostrando o universal dentro de uma situação específica e particular, problematizando esses valores, que já não podem ser vividos plenamente no mundo contemporâneo diante das circunstâncias políticas e históricas concretas em que nos

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encontramos. Kieślowski nos mostra, de tal modo, que não existem Liberdade, Igualdade ou Fraternidade como verdades universais; sua questão é descobrir, com isso, de que maneira é possível viver esses ideais no presente, ou seja, “de que maneira suscitar pequenos acontecimentos que forcem a vivência destes valores não como entidades absolutas, mas como pequenas sementes de experimentação que se modificam para cada nova situação, para cada novo encontro” (FRANÇA, 1996, p.16).

Na Trilogia das Cores, percebemos claramente que um diálogo se estabelece entre a subjetividade do autor e a do espectador; ou seja, há um desejo de falar ao outro e de ouvi-lo. Os filmes mostram indivíduos lançados fora de suas individualidades e que precisam estabelecer contato com o novo. Ao propor este novo olhar, ao propor o diálogo e a amizade em seus filmes como possibilidade de salvamento do si mesmo, Kieślowski também nos mostra a importância do cinema não apenas como construtor de imaginários, mas também, e sobretudo, o seu papel como questionador destes imaginários já criados e consolidados.

Notamos, portanto, que os três filmes narram e constroem uma imagem do outro, mas não uma imagem etnocêntrica, onde “o „outro‟ torna-se o bando de contemporâneos perfeitamente idêntico ao próprio e, portanto, a si mesmo” (CANEVACCI, 1990b, p.167). Diante das novas maneiras de estar e se relacionar no mundo contemporâneo, enxergamos a inquietação do autor da Trilogia em apontar para uma possibilidade de salvamento: ao invés de um esquecimento do outro, do refúgio na interioridade, percebemos, principalmente no último filme, Rouge, uma preocupação do diretor em “criar e recriar formas de relacionamento voltadas para o mundo, para o espaço público, tais como a amizade, a cortesia, a civilidade, a solidariedade, a hospitalidade, o respeito” (ORTEGA, s/d, p.3).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Disponível em:

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