• Nenhum resultado encontrado

Do Presidente (da Província) ao Sociólogo: Interpretações em consonância sobre a emancipação dos escravos no Rio Grande do Sul

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Do Presidente (da Província) ao Sociólogo: Interpretações em consonância sobre a emancipação dos escravos no Rio Grande do Sul"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

Do Presidente (da Província) ao Sociólogo:

Interpretações em consonância sobre a emancipação dos escravos no Rio Grande do Sul

Rodrigo de Azevedo Weimer1

O presente artigo tem como objetivo discutir a interpretação de Fernando Henrique Cardoso, na obra Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (1977, original de 1962) a respeito da emancipação dos escravos no Rio Grande do Sul, especialmente em seu capítulo VI – O negro na sociedade de classes em formação – de forma paralela com os relatórios do Dr. Rodrigo de Azambuja Vilanova, presidente provincial por ocasião do processo de abolição. O presente empreendimento encontra justificativa, apesar do aparente disparate cronológico e ideológico entre um sociólogo dos anos 60, preocupado com as relações raciais no meridiano brasileiro, e um porta-voz de frustrações senhoriais contemporâneo ao processo de emancipação dos escravos, por diversas consonâncias, que pretendo demonstrar, nas respectivas leituras acerca do processo de libertação.

A obra de Cardoso foi alvo de vigorosas críticas por parte da historiografia acerca da escravidão, encontrando em Sidney Chalhoub seu principal crítico. Em Visões da liberdade (1999, original de 1990) o autor demonstra que o sociólogo se aferra a uma idéia de passividade e reificação diante do cativeiro por parte dos escravos, visão esta que se deve, antes do que das condições reais da sociedade escravocrata, a uma apropriação acrítica e incapaz de perceber as entrelinhas documentais das fontes utilizadas, produzidas pelos próprios senhores. Um alvo particularmente significativo, na análise de Chalhoub, consiste na pretensa auto-representação do escravo como coisa, isto é, na internalização da representação senhorial, que na concepção do autor, não encontra eco nas fontes, desde que adequadamente criticadas:

O problema, todavia, é que ele [Fernando Henrique Cardoso] interpreta o sentido da liberdade para os escravos única e exclusivamente a partir das visões de liberdade inventadas para os negros pelos cidadãos-proprietários dos brasis daquela época. (Chalhoub,1999, original de 1990 p. 80).

1 Licenciado e Bacharel em História pela UFRGS. Mestre em História pela Unisinos. Doutorando em História pela UFF.

(2)

Exatamente por isso, coloca-se como central no projeto investigativo do autor a análise de valores e normas de conduta próprias dos cativos, extrapolando a assunção das representações senhoriais pressuposta por Fernando Henrique Cardoso. Como veremos, as críticas de Chalhoub à apropriação acrítica de Cardoso às fontes aplicam-se também ao período do pós-abolição.

A análise de Chalhoub refere-se, grosso modo, à sua abordagem a respeito do sistema escravista durante sua vigência e em seus anos finais, e não ao período imediatamente subseqüente, de inserção dos antigos escravos em um mundo em que o cativeiro como instituição não mais existia. Isso não significa que inexistam abordagens historiográficas que façam a crítica do modo como a dita Escola Sociológica Paulista, da qual Cardoso fazia parte, abordou a temática do pós-abolição. No entanto, as mesmas dirigiram-se sobretudo a Florestan Fernandes e Roger Bastide, em cuja obra efetivamente o período posterior a 1888 ganha um lugar de maior relevo.

Contrapondo-se a Freyre (2005, original de 1933), reconhecido por traçar um quadro idílico da relação entre brancos e negros –conhecido como “democracia racial” e caracterizado pela suposta inexistência de conflitos raciais no Brasil e pela não-atenção a oportunidades desiguais de acesso a empregos e recursos2 – tais autores carregam as tintas em sentido oposto. Para a Escola Sociológica Paulista, a escravidão teria legado aos cativos e descendentes imensos obstáculos – no limite, impossibilidade – para atuar no mundo capitalista que sucedeu ao escravismo. A dificuldade de inserção no mercado de trabalho, a ojeriza ao trabalho produtivo, e a inviabilidade de estabelecer relações familiares3 são trabalhadas exaustivamente por Bastide e Fernandes (1971), alegando que, ao contrário do que Freyre propunha, a escravidão legou uma realidade de desigualdade e iniqüidade social e possibilidades diferenciadas de ascensão.

A historiografia que faz a sua crítica (ver Rios, 1990, Xavier, 1996, Andrews, 1998, Rios e Mattos, 2005, Gomes, 2005, Fraga Filho, 2006) ressalta que, se essa abordagem desconstrói o mito freyriano de democracia racial, muito facilmente se converte em uma perspectiva vitimizadora ao não levar em conta a capacidade dos indivíduos de agir e reagir frente aos problemas colocados pelo seu tempo. Além de incapacitante, a herança nefasta do escravismo surge como hereditária e avassaladora,

2 Mesmo reconhecendo que a obra de Gilberto Freyre é complexa e multifacetada, Rios e Mattos (2005 p. 18) sublinham que sua ênfase é no caráter paternalista e na acomodação de conflitos do escravismo. 3 Não obstante diversos estudos posteriores terem sublinhado a importância de laços de parentesco entre escravos desde as senzalas – ver Florentino e Góes (1997), Slenes (1999) e Rocha (2004).

(3)

levando gerações a fio a uma situação de desestruturação social denominada anomia pelos autores. No entanto, cabe ainda discutir o quadro traçado por Fernando Henrique Cardoso para o pós-escravidão no Brasil Meridional. Ainda que similar ao estabelecido por Bastide e Fernandes, cabe realizar sua crítica, quer pelo grau de confluência, setenta anos mais tarde, com a fonte senhorial por ele utilizada, quer porque esta crítica poderá enriquecer as possibilidades interpretativas da vida em liberdade no imediato pós-1888 – fazendo a leitura a contrapelo a que Cardoso não se arriscou ou não se propôs fazer.

O destino dos ex-escravos na interpretação sociológica de Fernando Henrique Cardoso.

A negação do trabalho produtivo por parte dos ex-escravos constitui uma das tônicas da análise de Fernando Henrique Cardoso a respeito de suas vidas em liberdade. Segundo sua argumentação, o ócio representou, antes de mais nada, uma recusa ao caráter degradante e desumanizador assumido pela categoria “trabalho” durante a vigência do escravismo. Afirma, portanto, que incapazes de distinguir o trabalho em geral daquele prestado aos ex-senhores, os libertos recusaram-se à labuta.

O processo alienador da sociedade escravocrata havia contaminado de tal forma a consciência e o sentido das ações humanas que o trabalho aparecia como qualidade anti-humana por excelência, sendo necessário, por isso, que o homem negro se afirmasse primeiro como ocioso, para sentir-se livre e poder recomeçar todo o caminho da lenta e penosa reconstrução de si na sociedade de classes que começava a formar-se (Cardoso, 1977, original de 1962 p. 248)

Se o ócio era um momento para a auto-construção de si, nesse esforço para divorciar-se da situação que os havia colocado como objetos, teriam destruído a si mesmos como seres produtivos.

Tiveram de destruir-se como seres produtivos porque iriam destruir assim, ipso facto, a situação de trabalho que haviam criado para eles, mas contra eles. (Cardoso, 1977, original de

1962 p. 244-245)

Tal perspectiva é convergente com a abordagem de Bastide e Fernandes (1971), de quem Cardoso era discípulo, já delineada aqui em linhas muito gerais. Através do conceito de anomia, também empregado pelo autor discutido, pretendia-se que os antigos cativos haviam sido podados pela herança escravocrata das possibilidades de inserção no mercado de trabalho capitalista e levados a uma

(4)

desorganização social de conseqüências longas e funestas. Em Cardoso, tal anomia, no que tange ao mercado de trabalho, traduz-se então como uma recusa genérica a atividades laborais por associá-las à traumática experiência escravista.

Uma limitação, contudo, da abordagem apresentada é tomar a ociosidade atribuída aos ex-escravos como um pressuposto, e não como um problema a ser investigado. Com efeito, historiografia mais recente tem destacado que o que estava em jogo, para os ex-cativos, não era necessariamente o trabalho como categoria abstrata, o trabalho em geral, e sim o trabalho para outrem (ver, por exemplo, Scott, 1991 e Holt, 1992 e 2005). Em relação ao contexto brasileiro, Maria Helena Machado (1994) esmiuça o código de valores dos escravos nos movimentos sociais que antecederam à abolição do cativeiro, destacando também que em lugar de uma rejeição ao trabalho, abstratamente, havia sim uma aspiração ao trabalho para si.

Se a interpretação de Cardoso contém limitações, cabe indagar a origem delas. À parte o quadro teórico de que parte o autor, já esboçado anteriormente, é possível observar com mais atenção as fontes nas quais embasa sua análise e a relação por ele estabelecida com elas. Nesse sentido, os relatórios do presidente provincial Rodrigo de Azambuja Vilanova são um prato cheio.

Rodrigo de Azambuja Vilanova e “a mais horrorosa das escravidões” Rodrigo de Azambuja Vilanova governou o Rio Grande do Sul no lapso entre 25 de abril 1887 e 27 de outubro 1887 e, novamente, entre 27 de janeiro de 1888 e 9 de agosto de 1888. Apesar do breve lapso de tempo em que esteve à frente da Presidência Provincial, produziu dois relatórios que constituem fonte de importância fundamental para o processo de emancipação dos escravos na região. Seu autor era natural de Taquari e médico de formação. Apesar de pertencer aos quadros do Partido Conservador, pelo qual se elegera em diversas ocasiões à Assembléia Provincial, devia sua indicação como Presidente a Gaspar Silveira Martins, liderança liberal. Apesar de sua aproximação com os liberais e de formalmente declarar-se a favor da libertação dos escravos, é perceptível, nas entrelinhas (ou nem tanto) de seus relatórios arraigadas convicções escravocratas (Weimer, 2008 p. 91).

(5)

Dentre elas, estava a crença de que os antigos escravos jamais seriam capazes de gerir, por conta própria, suas próprias vidas, a não ser mediante acompanhamento e tutela dos antigos senhores. O Presidente Provincial naturalizava tal incapacidade, associando-a a uma suposta “degradação nativa” daqueles e a qualidades negadas pelo Criador, muito embora matizasse tal generalização através do argumento de que eles não haviam sido preparados para o exercício da liberdade. Diante do fato consumado, nada mais cabia do que a expectativa de que aqueles permanecessem junto aos seus “benfeitores” – isto é, os antigos senhores – que os guiariam nas veredas da vida em liberdade e a quem deveriam permanecer atados por laços de gratidão. Também prescrevia a criação de escolas de ofícios e colônias de trabalho sob a direção estatal que, contudo, nunca saíram do papel.

Diante deste quadro, porém, Vilanova revelava também sua frustração, já que nada que prognosticara se estava cumprindo. Entendia ele que o processo de emancipação dos cativos no Rio Grande do Sul não se dera com o grau de controle que acreditava desejável. Diante da onda de alforrias que sacudira o Rio Grande do Sul na década de 1880 (ver Moreira, 2003), Vilanova relatava a evasão dos cativos assim que se viam de posse da carta de alforria, burlando as cláusulas contratuais de prestação de serviços. Diante desta “ingratidão”, jogavam-se a uma vida errante, de “ociosidade”, “vícios”, “embriaguez” e “prostituição”. Seus destinos eram cadeias, asilos de mendicidade e hospitais. Nesta situação, entendia ainda, encontravam-se em um patamar pior do que o anteriormente ocupado, posto que eram relegados à “mais horrorosa das escravidões, que é a da miséria”

Portanto, percebe-se que o ócio dos ex-escravos não deve ser tomado como um dado de realidade a ser tomado acriticamente, e muito menos pode servir como pressuposto de uma análise sociológica da situação dos ex-cativos no Rio Grande do Sul do imediato pós-abolição. Pelo contrário, trata-se de uma construção discursiva feita em um momento político delicado, constituída e alimentada por uma forte frustração senhorial diante das dificuldades para manter o controle que até então se havia exercido sobre a população negra.

Fernando Henrique Cardoso e Rodrigo de Azambuja Vilanova: qualquer semelhança não será mera coincidência.

(6)

Relendo a obra de Fernando Henrique Cardoso, o teor de suas considerações acerca da temática aqui discutida pareceram estranhamente familiares, reprisando aspectos do discurso de Rodrigo de Azambuja Vilanova por mim discutidos em minha dissertação de mestrado. Não que o autor deixe de citar suas fontes – pelo contrário, os Relatórios do Presidente da Província de 1887 e 1888 são importante documentação por ele citada e são devidamente creditados. Ainda assim, há uma continuidade quase linear entre sua argumentação e a de Vilanova, o que faz com que as observações do presidente provincial sejam mais do que uma fonte de pesquisa, mas estejam na gênese de um discurso apropriado sem mediações e de forma acrítica.

Isso não significa que os textos de Vilanova não possam – e devam – ser utilizados como fontes para a análise daquele processo histórico. O que ocorre é que eles devem ser utilizados como expressão daquilo que realmente foram – representações e medos senhoriais em relação à libertação dos escravos4 – e não como um retrato fiel desta. É o que Fernando Henrique faz e declara textualmente. Após esta longa citação de Vilanova,

Com efeito, o que estamos presenciando nesta capital? Uma grande parte dos libertos de 1885, violando a fé dos contratos e a todos surpreendendo pela sua ingratidão, abandonaram precipitadamente a casa de seus benfeitores tão depressa estiveram de posse da carta de alforria; outra não tardou muito a ser despendida como meio de se livrarem os senhores dos aborrecimentos das constantes infidelidades dos seus criados.Mais de duas terças partes dos contratados daquele tempo andam vagando pela cidade maltrapilhos, sem abrigo e sem pão, freqüentemente hóspedes da cadeia e do hospital. Na campanha a situação não é diferente; os libertos vivem em correrias, vagando durante o dia pelas estradas e tabernas e repartindo a noite entre o deboche e a rapina. Apesar da falta de braços não se encontra hoje um jornaleiro que se sujeite ao trabalho por algum tempo, devido aos hábitos de ociosidade que estão neles arraigados. Assim, ao passo que escasseiam os braços para os trabalhos de criação e lavoura, o serviço doméstico acha-se também completamente desordenado (...)

(Cardoso, 1977, original de 1962, p. 244 e Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça, 3o vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de Azembuja Vilanova, 2o vice-presidente ao passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul Em 27 de outubro de 1887 p. 71)

o autor aponta que “Este texto indica o que sucedeu” (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 244). Embora o verbo “indicar” não implique necessariamente em que Cardoso lhe

(7)

atribua uma representação fidedigna do processo descrito, na prática é o que acontece. O autor não discute o texto, suas condições de produção e inclinações ideológicas, não o indaga, não o questiona. Mais do que indicar, para Cardoso o texto de Vilanova é um registro do que ocorreu, e é um registro conveniente pois corrobora sua própria interpretação do processo.

Os escravos, ao tornarem-se homens livres, viram-se na contingência de agir como “lumpen”: precisavam primeiro libertar-se da condição passada, negando completamente o jugo que lhes havia sido imposto. Para isso, precisavam divorciar-se por inteiro da situação na qual os haviam plasmado como objetos. (Cardoso, 1977, original de 1962, p.

244. Grifos originais).

A ação dos ex-escravos, de posse da condição de liberdade, traduziu-se, portanto, como uma “revolta inconsciente”, da qual o relato de Vilanova é uma “descrição sombria, e verdadeira, do que ocorreu depois de 84 [e que] não deixa

margem para dúvidas quanto ao comportamento dos ex-escravos” (Cardoso, 1977,

original de 1962, p. 245. Grifos meus). A descrição senhorial, segundo Fernando Henrique Cardoso, é suficiente para não deixar margem a dúvidas acerca de como os ex-escravos agiram... Em seguida, para enriquecer a descrição, mas talvez para demonstrar o vigor do argumento do Presidente Provincial, cita a continuação do trecho apresentado anteriormente:

a vadiagem progride desenfreadamente; o abuso da aguardente marcha a par com a degradação moral; a prostituição toma proporções inquietadoras e o pauperismo aumenta com esse grande número de indivíduos que, lançados de chofre em um meio muito diferente daquele em que viviam e cercado de novas e urgentes necessidades, estragam-se pela maior parte na orgia vegetando em lastimável miséria, onde fatalmente perecerão, arrastando a sua descendência.

(Cardoso, 1977, original de 1962, p. 245 e Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça, 3o vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de Azembuja Vilanova, 2o vice-presidente ao passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul Em 27 de outubro de 1887 p. 71)

A citação textual de Vilanova transparece, novamente, quando Cardoso procura fundamentar a idéia do ócio como rejeição ao trabalho, necessariamente associado à condição não-humana. Segundo o Presidente provincial, era necessário tomar medidas

senão para extirpar, ao menos modificar o mal, mesmo por interesse especial dessa pobre classe, algoz de si mesma, que de outra sorte terá ainda de maldizer do benefício da liberdade, que lhe outorgaram sem os requesitos que a deviam

(8)

acompanhar. (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 248 e

Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça, 3o vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de Azembuja Vilanova, 2o vice-presidente ao passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul Em 27 de outubro de 1887 p. 72)

É bem verdade que aqui o sociólogo procura enxergar as condições sociais que levaram a esta situação, enquanto o Presidente Provincial as naturalizava, nelas pretendendo enxergar hábitos arraigados, uma condição inerente ao negro. É o único momento em que Cardoso enxerga a leitura de Vilanova como uma redefinição que os brancos faziam das representações que mantinham sobre os escravos (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 248). Em um ponto, ao menos, ambos convergem, que é quanto a considerar acriticamente a rejeição ao trabalho como uma verdade objetiva. Tal era o motivo pelo qual se trataria de um grupo social algoz de si: fosse pela anomia, fosse pelos hábitos morais degenerados.

Embora geralmente o cite, o autor chega a tomar como suas as palavras de Vilanova – sem aspas. É o que faz quando afirma que os ex-escravos foram jogados à escravidão da miséria – “a mais horrorosa de todas”:

Suprimida a escravidão, os negros continuariam irremissivelmente sujeitos a outras modalidades de escravidão e alienação: à escravidão da miséria ou à condição de párias de uma sociedade de classes em formação, engajados automaticamente, como ficariam, no exército proletário de reserva. (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 245. Grifo meu) Mais do que desonestidade intelectual, parece-me haver uma espécie de “contaminação” do discurso do intelectual pelo discurso de sua fonte – erro este ao qual todo estudioso está sujeito. Até mesmo o fatalismo expresso pela palavra “irremissivelmente” ecoa Vilanova. De resto, a noção de que a miséria induz a uma modalidade de escravidão detestável e, em Vilanova, pior do que aquela dos tempos de cativeiro, está em consonância com a matriz teórica representada pelo autor. O discurso senhorial praticamente adquire o estatuto de termo analítico: de fato, se nosso Presidente da Província tivesse tido acesso à literatura sociológica das décadas de 1950 e 1960, talvez tivesse dito que a anomia é a pior de todas as escravidões...

Brincadeiras à parte, é necessário reconhecer que Fernando Henrique Cardoso não é tolo. Trabalhando com o conceito sociológico de estereótipo, admite de bom grado que a construção social do estereótipo se dá a partir da seleção de aspectos objetivos da realidade, deformados de forma consciente ou inconsciente, generalizados

(9)

e convertidos em preconceito (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 251). Ora, sob este prisma, se havia os “ociosos” e os “escravos da miséria”, também havia os que não o eram. O autor percebe de bom grado a existência de modalidades de trabalho especializado entre cativos, no que a escravidão “despia-se da aparência de atividade anti-humana que o caracterizava enquanto se resumia ao emprego da força bruta sem qualquer qualificação” (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 240)5.

A questão, porém, não me parece ser esta. Admitidos “ociosos” ou “não-ociosos”, “escravos da miséria” ou “não-escravos da miséria”, parece-me que essas categorias não são intrínsecas aos ex-cativos, e sim categorias senhoriais externamente imputadas, cuja crítica Fernando Henrique Cardoso não faz por serem convergentes com sua própria proposta teórica.

Em outros termos, e é isso que foge a Vilanova e a Cardoso: muitos ex-escravos que poderiam ser considerados ociosos poderiam trabalhar para si, mas um trabalho desta ordem foi desconsiderado no momento de imputar-lhes o “ócio” e a “vagabundagem” porque os senhores não mais podiam contar com sua força de trabalho. Concluo dizendo que entre o “ócio” e o “trabalho para si”, ou entre o “trabalho” e a “ausência de trabalho” existiam muitas nuances que escapam a uma leitura acrítica de fontes senhoriais. A especificidade das formas de ação de um grupo social não pode ser reduzida a “anomia”, sob pena de cair no etnocentrismo. Efetivamente, releituras do mesmo corpo documental (Moreira, 1993, Weimer, 2008) foram capazes de enxergar a existência de atuações autônomas e significados conferidos à vida em liberdade distintos daqueles esperados pelos ex-senhores.

Eis o que une Fernando Henrique Cardoso e Rodrigo de Azambuja Vilanova: ao contrário de qualquer similaridade ideológica, o que os leva a pensar de forma tão semelhante é a sua recusa em considerar qualquer ação autonômica6 por parte

dos escravos que fugisse aos moldes senhoriais. Sua ação que fugiu ao controle e às expectativas da classe dominante foi interpretada como vadiagem, ócio, degradação

5 Fernando Henrique Cardoso reconhece aqui uma contradição do escravismo – ou talvez, de sua construção sobre o escravismo – porém o faz associando-a à idéia de mestiçagem e aos escravos domésticos, o que é uma equivalência possível mas não necessária. Porém, essa possibilidade de não-desumanização do cativo é vista sob o caráter de exceção, quando Chalhoub (1999, original de 1990) demonstrou que mesmo na gestão do trabalho escravo mais brutal, era necessário distinguir a qualidade humana do trabalhador.

6 Cardoso o admite explicitamente, em relação aos cativos: “Os senhores representavam-nos como instrumentos de trabalho e eles se comportavam, efetivamente, como seres incapazes de ação autonômica”. (Cardoso, 1977, original de 1962, p. 239).

(10)

moral por Vilanova – e deveria ser objeto da ação repressiva estatal – e como anomia por Cardoso – e deveria ser objeto da análise arguta do cientista social.

Fontes

Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Sr. Dr. Joaquim Jacinto de Mendonça, 3o vice-presidente por S. Ex. o Sr. Dr. Rodrigo de Azembuja Vilanova, 2o vice-presidente ao passar-lhe a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul Em 27 de outubro de 1887.

Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Vilanova passou a administração da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul a S. Ex. o Snr. Barão de Santa Tecla, 1o vice-presidente no dia 9 de agosto de 1888.

Bibliografia

ANDREWS, George R. Negros e brancos em São Paulo: 1888-1988. Bauru: Edusc, 1998.

BASTIDE, Roger e FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. [Coleção Brasiliana, vol. 305]

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 [original de 1962].

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 [original de 1990].

FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, c. 1790- c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade. Campinas: Editora da

UNICAMP, 2006.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2005.

HOLT, Thomas C. The problem of freedom: race, labor, and politics in Jamaica and Britain, 1832-1938. Baltimore / London: The Johns Hopkins University Press, 1992.

(11)

________. A essência do contrato – A articulação entre raça, gênero sexual e economia política no programa britânico de emancipação, 1838-1866. In: COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Além da Escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

MACHADO, Maria Helena. O Plano e o Pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, EDUSP, 1994.

MOREIRA, Paulo Roberto S. Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre na segunda metade do século XIX. 1993. Dissertação (Mestrado em História)– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.

________. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre: EST, 2003.

RIOS, Ana L. Família e Transição (famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920). Dissertação apresentada ao curso de mestrado em História da Universidade Federal Fluminense. Niterói: UFF, 1990.

________. e MATTOS, Hebe Maria. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2005.

ROCHA, Cristiany M. Histórias de famílias escravas. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004

SCOTT, Rebecca. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalho livre 1860-1899. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.

SLENES, Robert W. Na Senzala, uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

WEIMER, Rodrigo de A. Os nomes da liberdade. Ex-escravos na serra gaúcha no pós-abolição. São Leopoldo: Oikos, 2008.

XAVIER, Regina Célia L. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória UNICAMP, 1996.

Referências

Documentos relacionados

A sociedade local, informada dos acontecimentos relacionados à preservação do seu patrimônio e inteiramente mobilizada, atuou de forma organizada, expondo ao poder local e ao

Todas as outras estações registaram valores muito abaixo dos registados no Instituto Geofísico de Coimbra e de Paços de Ferreira e a totalidade dos registos

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

psicológicos, sociais e ambientais. Assim podemos observar que é de extrema importância a QV e a PS andarem juntas, pois não adianta ter uma meta de promoção de saúde se

A metodologia utilizada no presente trabalho buscou estabelecer formas para responder o questionamento da pesquisa: se existe diferença na percepção da qualidade de

Por meio destes jogos, o professor ainda pode diagnosticar melhor suas fragilidades (ou potencialidades). E, ainda, o próprio aluno pode aumentar a sua percepção quanto

Dessa forma, os dados foram coletados por meio da observação participante, de entrevistas estruturadas - realizadas com dirigentes e funcionários versando sobre o histórico

Later on, Metzger [21] proved that each Rovella map admits a unique absolutely continuous (w.r.t. Lebesgue) invariant probability measure (SRB). We shall refer these measures as