AS BASES TEÓRICAS DA CRÍTICA TEXTUAL. Ruy Magalhães de Araujo (UFRJ, UERJ, CiFEFiL)
ruymar1@gmail.com e ruymar1@hotmail.com
FUNDAMENTOS HISTÓRICOS
Os textos, a rigor, dizem respeito aos seguintes segmentos históricos: antigos, medievais, renascentistas, modernos. Para efeito metodológico, entretanto, melhor será considerarmos os textos inse-ridos nas quatro fases tradicionais da divisão histórica: antigos, me-dievais, modernos e contemporâneos.
Desde os tempos mais antigos até os nossos dias, as ativida-des filológicas foram basicamente as mesmas (ou se constituíram nas mesmas atividades): fixar, restaurar, comentar e interpretar os textos, embora sob rótulos e nomenclaturas diversas: crítica textual, ecdóti-ca, codicologia, crítica verbal, crítica genétiecdóti-ca, em consonância com a evolução que se processou em vários países e em épocas diferentes. Numa rápida perspectiva diacrônica, podemos mencionar os seguintes filólogos alexandrinos como grandes nomes da crítica tex-tual de sua época: Zenódoto de Éfeso (cerca de 280 a.C) foi o pre-cursor da edição crítica, ao colaborar com a edição das obras de Ho-mero. Foi também o primeiro diretor da biblioteca de Alexandria. Eratóstenes de Cirene (236-194 a.C.) foi o primeiro a se chamar filó-logo e possuía vastíssima erudição. Aristófanes de Bizâncio (por vol-ta de 257-183 a.C) deu continuidade e aperfeiçoou os trabalhos de Zenódoto de Éfeso quanto às edições críticas das obras de Homero. Estabeleceu os textos críticos de Hesíodo, Píndaro, Alceu, Anacreon-te e também de seu homônimo Aristófanes. A ele se atribui a criação dos sinais diacríticos e a introdução do chamado cânon crítico. Aris-tarco fez duas edições de Homero e juntamente com Aristófanes de Bizâncio atingiu o ápice da investigação filológica de Alexandria.
De acordo com Segismundo Spina,
(...) a sucessão destes sábios incumbiu-se de restaurar os textos lite-rários antigos, tornados ininteligíveis às gerações da época, sobretudo os poemas de Homero – recuados cinco séculos e conhecidos através de versões discrepantes, desfiguradas por erros e interpolações. [Spina: 1977, 61].
Em Roma, contudo, não se comprovou avanço semelhante. As atividades filológicas só tiveram começo quando entraram em declínio as que se desenvolveram na Grécia, registrando-se al-guma repercussão a partir do século I d.C. com o gramático e geó-grafo Tiranião, preso como escravo depois da invasão do Ponto Eu-xino (71 d.C.) por Lúculo, e liberto posteriormente. Tiranião, prove-niente da cidade de Amiso, devotou-se ao ensino, organizou a biblio-teca de Apelicão de Teos, além de fazer amizade com intelectuais e escritores romanos, dentre os quais Cícero.
Destacaram-se, ainda, alguns trabalhos de gramáticos: Varrão com a sua obra De lingua latina, porém mais próximo à escola de Pérgamo (que privilegiava assuntos filosóficos sobre as leis da lin-guagem) ao contrário dos representantes de Alexandria (mais volta-dos para a crítica volta-dos textos). Valério Probo procurou emendar as e-dições de Terêncio, Vergílio, Pércio, Horário e Lucrécio, contudo sem grande expressividade e valor para a crítica textual.
Na Idade Média, destacou-se São Jerônimo (373-420), que, utilizando-se dos métodos empregados por Orígenes (outro filólogo alexandrino) sobre a Bíblia, elaborou a edição da Vulgata.
Na atualidade, Karl Lachmann (1793-1851), filólogo alemão, criou os princípios da moderna crítica textual, com as edições do Novo Testamento Grego e com a obra de Lucrécio De Rerum Natu-ra. Seu trabalho está dividido em varias etapas, às quais emprestou nomenclaturas latinas. Outras figuras de destaque foram o italiano Giorgio Pasquali (1885-1952) e o francês J. Bédier (1864-1938).
Ainda sobre o assunto, ouçamos Segismundo Spina:
Dada a especificidade dos textos referentes à cultura ocidental, cuja tradição tem como baliza a aparição da Imprensa no século XV, pode-mos periodizar a Edótica em quatro momentos: uma edótica clássica, que se aplica aos códices de textos clássicos, gregos e latinos, até o fim do período helenístico e da Baixa Latinidade; uma edótica medieval, para os códices pertencentes à Alta e à Baixa Idade Média; uma edótica mo-derna, para o texto impresso, desde os primeiros (os incunábulos) até os textos do século XIX; e uma edótica contemporânea.[Spina: 1977:88}.
DEFINIÇÃO
Entendemos por crítica textual moderna a ciência e a arte de reconstrução de um texto, - (ou da sua fixação)- quer literário, quer histórico, quer jurídico, quer filosófico, quer político, etc, o qual nos foi transmitido com erros e imperfeições. Essa reconstrução se faz através do exame meticuloso de cada uma das suas palavras e por meio de cada uma das versões constantes dos exemplares com que o mesmo foi editado ou publicado.
A crítica textual é a expressão da cultura individual e coletiva por intermédio dos textos. Também se configura como uma ciência autônoma, posto que a linguagem humana tem sido objeto de espe-culação por parte de outras ciências.
Os seus objetivos agrupam-se, grosso modo, em: * Investigar a autenticidade dos textos;
* Fazer o levantamento de toda a tradição textual, em caso de análise;
* Classificar os testemunhos de manuscritos e impressos; * Estabelecer critérios para a publicação de novas edições; * Avaliar a fidedignidade das transcrições, tanto em edições an-tigas quanto em modernas.
É de sua competência:
* Preparar edições críticas de textos cuidadosamente estabeleci-dos;
* Apontar o texto mais representativo da última vontade lúcida do autor;
* Preparar um trabalho cuidadoso das variantes; * Preparar a edição crítica comentada.
O seu ponto culminante é a publicação da edição crítica. Edição crítica é a reconstrução de um texto viciado, imperfei-to e defeituoso em sua transmissão, com base na comparação dos di-ferentes estados em que se encontra o mesmo nos vários exemplares
apresentados, aproximando-o, tanto quanto possível, daquele que o autor considerou definitivo.
Uma edição crítica possui, muitas vezes, maior número de páginas do que a própria obra criticada.
ETAPAS PRINCIPAIS E OUTROS PROCEDIMENTOS A seguir, transcreveremos as etapas principais da edição críti-ca de Karl Lachmann, aqui por nós adaptadas:
1. Considerações prévias
1.1. Aspectos históricos e culturais: o contexto.
1.2. Aspectos biobibliográficos: dados da vida do autor, livros do autor e livros sobre o autor.
2. Momentos da preparação da edição crítica:
2.1. A Recencio. Recensão. Consiste na pesquisa e coleta do material da tradição direta e indireta: códices manuscritos e im-pressos, edições, publicações, etc., abarcando uma garimpagem em bibliotecas públicas e em acervos de instituições particulares e de colecionadores. Igualmente merecem registro a garimpa-gem nos sítios da internet.
2.2. A Collatio. Colação ou cotejo compreende a comparação, o confronto de todos os códices coletados em relação a um texto que se tomará por base, isto é, o que se supõe seja o mais repre-sentativo da última vontade lúcida do autor.
2.3. A Eliminatio codicum descriptorum representa a elimina-ção ou rejeielimina-ção de cópias coincidentes. A seguir: classificaelimina-ção dos textos não eliminados; separação dos mesmos textos. 2.4. A Estemática (originem detegere, revelar a ascendência). A palavra é grega στήμμα, pelo latim stemma, coroa, grinalda, diadema e representa uma espécie de árvore genealógica dos textos (stemma codicum) ou o parentesco entre os mesmos, como se filiam entre si e como se verificou sua transmissão:
vertical, transversal, por contaminação. Não há regras fixas e cada caso é um caso à parte a ser considerado.
2.5. A Emendatio ou a emenda é o conjunto de operações que busca a correção de falhas e erros encontrados nos códices, por descuido de copistas e amanuenses ou pela intervenção desca-bida de editores de textos.
3. Outros procedimentos para a preparação da edição crítica propriamente dita:
3.1. A escolha do texto de base determinará o documento que irá reunir todas as condições ecdóticas necessárias.
3.2. Fixação exaustiva das variantes em notas de pé de página. (As variantes constituem modificações introduzidas pelo au-tor e seu registro representa uma fonte riquíssima de informações).
3.3. A fixação do texto crítico é o texto apurado, definitivo, pronto a ser editado. (Atualização ortográfica, revisão geral, in-cluindo-se a tipográfica, se for o caso).
3.4. Organização da introdução crítico-filológica: motivos, pla-nos, critérios adotados, aspectos histórico-sociais, etc.
3.5. Registro filológico (também chamado “apparatus criticus”, aparato crítico).
3.6. [Comentários filológicos], no final do volume.
Os Comentários filológicos representam os esclarecimentos de ordem gramatical, semântica e estilística, bem como as interpreta-ções (exegese e hermenêutica) da obra.
3.7. Glossário.
3.8. Reprodução de fac-símiles se houver. 3.9. Bibliografia.
Obs. Os três últimos itens constituem partes não essenciais da edição crítica, embora necessários.
a) Mostrar a história da criação do texto: * O pré-texto: fase de mentalização.
* O prototexto: redação dos manuscritos, que atualmente consti-tui uma moderna ciência denominada crítica genética ou ma-nuscriptologia. Os manuscritos podem ser autógrafos e apógra-fos.
b) Examinar e provar a fidedignidade e a autenticidade dos tex-tos: autor, época, fatores de ordem histórico-social, econômica, jurídica, política, ideológica, religiosa, etc.
Os textos podem ser:
autógrafos ou autênticos – de autoria comprovada; apócrifos – de falsa procedência ou de fonte duvidosa; apógrafos – copiados e sem assinatura.
c) Organizar e publicar as boas edições.
d) Supervisionar trabalhos de textos escritos para gravações so-noras: discos, fitas magnéticas, além de trabalhos informatiza-dos.
Afora a edição crítica, também se conhecem outras edições: * Edição diplomática ou paleográfica: reproduz um texto inte-gralmente, isto é, ipsis litteris virgulisque.
* Edição diplomático-interpretativa (ou semidiplomática): altera a edição diplomática, separando palavras que apareciam unidas, colocando as abreviaturas por extenso, atualizando a ortografia, superando, enfim, toda e qualquer omissão ou falha que se ve-nha comprovar.
* Edição fac-similar ou fotomecânica: reproduz um texto por meio da fotografia, da fototipia (ou heliotipia) e da xerografia. Atualmente, também através de impressoras acopladas a compu-tadores ou de procedimentos informatizados, tais como cópias e digitalizações.
BIBLIOGRAFIA BÁSICA
AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de. Iniciação em crítica textual. São Paulo: Presença/Edusp, 1987.
HOUAISS, Antônio. Elementos de bibliologia. Rio de Janeiro: INL, 1967.
LAUFER, Roger. Introdução à textologia. Trad. de Leda Tenório da Motta. São Paulo: Perspectiva, 1980.
SILVA NETO, Serafim da. Textos medievais portugueses e seus problemas. Rio de Janeiro: MEC/FCRB, 1956.
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica. São Paulo: Cultrix, 1977.