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Título: Estranhando a formação de professores de línguas

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Título: Estranhando a formação de professores de línguas

Elio Marques de Souto Júnior (mestrando em Linguística Aplicada – UFRJ)1

Resumo: levando em conta uma abordagem erótica da educação, que permite uma pedagogização da sexualidade (WOOKS, 2001), o objetivo desse artigo é estudar a relevância de um currículo queer na formação de professores de línguas. Ultimamente, a sociedade tem testemunhado um grande crescimento da homofobia nas escolas devido ao fato de que os/as professores/as não abordam o tema (CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004). O currículo, entendido como um artefato cultural e discursivo (JUNQUEIRA, 2009), constrói identidades, legitimando ou marginalizando sujeitos (LOURO, 2004). Portanto, um currículo baseado na teoria queer, que objetiva desconstruir as oposições binárias que moldam a compreensão do gênero e da sexualidade, subverteria a produção do conhecimento e dos sujeitos (LOURO, 2004). Em resumo, um currículo queer conscientizaria os/as professores/as sobre o fato de que o gênero e a sexualidade são construídos social e discursivamente (BUTLER, 2003; FOUCAULT, 2001) para que eles/elas possam ensinar de forma responsável.

Palavras-chave: formação de professores, teoria queer, teoria do currículo;

Abstract: taking into account an erotic approach to education, which allows a pedagogization of sexuality (WOOKS, 2001), the aim of this article is to study the relevance of a queer curriculum in language teacher education. Lately, society has witnessed a huge increase of homophobia in schools due to the fact that teachers do not address the issue (CASTRO, ABRAMOVAY e SILVA, 2004). The curriculum, understood as a cultural and discursive artfact (JUNQUEIRA, 2012), constructs identities, legitimating or marginalizing subjects (LOURO, 2004). Therefore, a curriculum, based on the queer theory which aims at deconstructing the binary oppositions which shape the comprehension of gender and sexuality, would subvert the production of knowledge and subjects (LOURO, 2004). In short, a queer curriculum would make teachers aware of the fact that gender and sexuality are socially and discursively constructed (BUTLER, 2003; FOUCAULT, 2001) so that they can have a more responsible teaching.

Keywords: teacher education, queer theory, curriculum theory;

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1. Introdução

Segundo Freud (1905 [2006]), a sexualidade é uma das forças fundamentais do ser

humano, perpassando sua existência individual, coletiva e constituindo um dos maiores e

mais complexos enigmas da condição humana. Foucault (2001) ressalta que a sexualidade é

a base das identidades sociais além de ser o saber que abarca todos os outros saberes.

Ambos os autores, pois, destacam a centralidade da sexualidade na vida humana. Contudo,

no século XIX, os discursos jurídico, médico e psiquiátrico criaram uma verdadeira taxonomia

das sexualidades a partir do ponto de vista normativo (FOUCAULT, 2001). Tais discursos

tomaram a heterossexualidade como referência, norma e considerada normal. Seguiu-se,

assim, classificação das sexualidades e das práticas sexuais desviantes. Nesse contexto, o

homoerotismo passou a ser considerado uma expressão patológica da sexualidade, um crime

e pecado contra a natureza. Desde então, os sujeitos homoeróticos vêm sendo submetidos a

preconceitos e discriminações de diversas ordens.

Na contemporaneidade, porém, as posições de gênero e sexualidade se

multiplicaram, tornando as classificações tradicionais insuficientes para dar conta dos novos

modos de subjetivação (LOURO, 2004). As fronteiras, pois, vêm sendo intensamente

atravessadas, subvertendo a lógica binária sob a qual a sociedade ocidental está alicerçada

(DERRIDA, 2004; LOURO, 2004). Consequentemente, as minorias sexuais estão mais

visíveis, o que contrasta com o aumento da violência homofóbica em todas as esferas sociais

(LOURO, 2004).

As sexualidades não heterossexuais ainda não foram assimiladas pela educação,

apesar dos esforços do Governo Federal na criação de ações para o enfrentamento da

homofobia no ambiente escolar (BRASIL, 2004; JUNQUEIRA, 2009). O ambiente escolar,

assim como a sociedade, é marcado por uma cultura falocêntrica de dominação masculina

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heterossexual e homofóbico (BOURDIEU, 2004). Dessa forma, as práticas pedagógicas

reforçam a suposta superioridade masculina, buscando exorcizar todo traço de feminilidade, o

que acarreta a perpetuação do sexismo e da homofobia (JUNQUEIRA, 2009; 2012). A escola,

tradicionalmente o espaço da regra, da disciplina e da norma, produz sujeitos sexuados,

generificados e sexualizados, ou melhor, heterossexualizados por meio da normalização e

normatização dos corpos, dos desejos e da sexualidade (LOURO, 2004). Nesse quadro, a

homofobia é incentivada e ensinada (LOURO, 1997) através de discursos, contidos no livro

didático (LD), no texto curricular e na prática docente, que fazem circular preconceitos e

discriminações (JUNQUEIRA, 2012). Os LDs, quando abordam a sexualidade, apenas

ressaltam o coito heterossexual de uma perspectiva biologizante e cujo objetivo seria a

procriação (LEONÇO; DINIZ, 2009). Assim, o homoerotismo é silenciado e, se mencionado,

não é problematizado. Esse silêncio dos LDs apenas reforçam a noção de normalidade que a

heterossexualidade goza na sociedade. Ademais, ao não abordar as sexualidades não

heterossexuais, os LDs perpetuam a concepção de que só há uma expressão da sexualidade

legítima, normal e, portanto, natural, a heterossexualidade. Os conhecimentos, presentes nos

LDs, refletem os saberes que o currículo escolar considera pertinentes na formação de um

determinado sujeito (SILVA, 2003a). O texto curricular é fundamentado em uma visão

heteronormativa da educação, valorizando o sujeito heterossexual e excluindo os sujeitos

cuja sexualidade não se enquadra nesse padrão.

O silêncio eloquente dos/as professores/as frente à violência homofóbica contribui na

perpetuação da homofobia no espaço escolar (CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004). Tal

fato pode ser justificado pela falta de conhecimento dos/as professores/as a respeito da

sexualidade e, especificamente, a respeito do homoerotismo (BRITZMAN apud LOURO,

2004). Destarte, compreendendo o currículo como um documento de identidade, no qual

identidades são construídas, este artigo objetiva investigar a relevância de um currículo queer

na formação de professores de línguas. Para tanto, enfatizar-se-á a dimensão erótica da

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2001). Além disso, os pressupostos da teoria queer, que busca desnaturalizar as categorias

de gênero e sexualidade, desconstruindo, assim, a noção binária do currículo (LOURO, 2004;

SILVA, 2003a), serão utilizados a fim de fundamentar o currículo queer.

Um currículo queer na formação de professores de línguas estaria atento à produção

simbólica da diferença, que constituiria a base de uma pedagogia da diferença (SILVA,

2003b). Ademais, um currículo queer buscaria questionar o aspecto heteronormativo da

formação de professores a fim de conscientizar os/as docentes a respeito do fato de que as

identidades de gênero e sexuais são construídas no e pelo discurso e, por isso, não são dadas

a priori.

2. A dimensão erótica da educação

Jager (2001) afirma que, na antiguidade grega, a educação era marcada por uma

dimensão erótica, a paideia erotikos, evidenciando o papel de Eros no processo pedagógico.

Há três histórias principais sobre a origem de Eros: o primordial, o filho de Afrodite e o

platônico. Em Hesíodo (2003), Eros surge no início dos tempos ao lado de Caos, Gaia e

Tártaro, todos responsáveis pela criação do mundo. Eros representa a força responsável pela

harmonia do universo, pela união do masculino e feminino, garantindo a reprodução e como o

ser que traz luz às trevas primordiais. O Eros, filho de Afrodite, pode ter nascido das pegadas

da Deusa na ilha de Chipre ou da sua união com outro Deus, a saber, Ares, Marte ou Hermes

(BRANDÃO, 2008). O Eros platônico, fruto da união de Penúria e Recurso ou Riqueza, não é

um Deus, mas um espírito que estaria entre o mundo mortal e o imortal (PLATÃO, 2001).

Desde o advento do conhecimento filosófico na Grécia antiga no século VI a. C., o

mito, como meio para explicar e interpretar a realidade havia sido abandonado por conta da

ênfase no logos, na razão (CHAUÍ, 2002). Contudo, Platão (2001), ao abordar o conceito

mítico de Eros, o amor, por meio do método dialético, relaciona-o à educação (PAVIANI,

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A versão mítica sob o ponto de vista pedagógico adquire gradualmente feição filosófica, embora ambas as formas, o logos e o mito, expressem os mistérios da natureza humana e da sexualidade, ligados ao problema da virtude, da verdade e do conhecimento (PAVIANI, 2008, p. 83).

Assim, uma união entre logos e Eros é instaurada, passando o amor e o desejo a

terem uma estreita relação com o saber. Essa relação fica evidente quando Platão (2001)

afirma que Eros, não possuindo a sabedoria típica dos deuses, é filósofo, pois tal qual o

filósofo, estaria sempre em busca da sabedoria. Essa visão está presente na etimologia da

palavra filosofia que, segundo Chauí (2002), foi criada por Pitágoras de Samos e é formada

pela junção das palavras philía, amor, e sophia, sabedoria, ou seja, a filosofia é o desejo de

saber.

Um dos maiores exemplos da comunhão entre Eros e educação é a relação

pederástica (DOVER, 2007). Na Grécia antiga, a pederastia surge como uma tradição

aristocrática, educativa e de formação moral na qual estavam envolvidos um jovem, erômenos

ou amado e um adulto, erástes ou amante, que não pertencia à família próxima do jovem.

Vrissimtzis (2002) assim define a relação pederástica:

Um adulto educado era encarregado de transmitir seus conhecimentos e experiências a um adolescente (éphebos) e de ajudá-lo a se tornar um cidadão responsável. O adulto, por sua vez, admirava e desfrutava a beleza, a força e o vigor do jovem. Havia, pois, uma transmissão recíproca, criada para benefício de ambos (VRISSIMTZIS, 2002, p. 103).

A pederastia era, destarte, uma instituição pedagógica que ocorria após a educação

básica e servia aos interesses do Estado (DOVER, 2007). Todavia, os autores divergem

quanto a existência de atos sexuais entre erástes e erômenos. Vrissimtzis (2002) afirma que a

relação era estritamente pedagógica e qualquer tipo de prática sexual estaria fora de questão.

Para autores como Dover (2007) e Spencer (1999) a relação sexual fazia parte do processo.

Como foi exposto acima, a tradição de paideia ocidental foi instituída sob a relação

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dificuldade em abordar a relação entre Eros e práxis pedagógica ocorre devido à

compreensão de Eros apenas como potência sexual (WOOKS, 2001). Apesar de o aspecto

sexual de Eros não poder ser negado, quando somente ressalta-se essa dimensão,

nós tornamos exposta nossa alienação relativamente ao resto da natureza [...] damos a entender que a realização ou potencial em direção aos quais nós nos movemos é sexual – a conexão romântico-sexual – entre duas pessoas (KEEN apud WOOKS, 2001, p. 118).

Destarte, compreender Eros para além da potência sexual, implicaria reconhecer que

Eros é uma força que intensifica nosso esforço global de autorialização, de que ele pode nos fornecer uma base epistemológica que nos permita explicar como conhecemos aquilo que conhecemos, possibilita tanto professores quanto estudantes a usar tal energia no contexto da sala de aula de forma a revigorar a discussão e estimular a imaginação crítica (WOOKS, 2001, p. 118).

O retorno à dimensão erótica da educação depende do entendimento de que Eros é

uma energia que impulsiona e faz surgir uma postura crítica por parte dos/as alunos/as.

Pensar a educação, considerando os atores sociais envolvidos no processo de

ensino/aprendizagem como descorporificados e dessexualizados, é conceber o/a professor/a

e os/as alunos/as como sujeitos sem desejo. Como afirma Britzman (1996) apud Louro,

(2004), a curiosidade a respeito da sexualidade é um fator a se considerar na prática

pedagógica na medida em que o desejo é o que torna possível a aprendizagem.

3. A teoria queer: uma poética da transgressão

A teoria queer se propõe a “pensar o impensável” (SILVA, 2003a, p. 107) a respeito das categorias de gênero e sexualidade, transgredindo, assim, os esquemas binários, tal

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fundamentam a lógica ocidental (DERRIDA, 2004; LOURO, 2004). Os termos dos pares

binários não estão em uma relação dicotômica, mas são complementares, o que significa que

eles são interdependentes, ou seja, cada termo só se define em relação ao outro (DERRIDA,

2004; SILVA, 2003b). A lógica binária é responsável por perpetuar a heteronormatividade,

noção fundamental na teoria queer (BUTLER, 2003; LOURO, 2004). Segundo Miskolci

(2012), a heteronormatividade “seria a ordem sexual do presente na qual todo mundo é criado para ser heterossexual, ou – mesmo que não venha a se relacionar com o sexo oposto – para que adote o modelo da heterossexualidade em sua vida” (MISKOLCI, 2012, p. 15).

A heteronormatividade, por sua vez, é sustentada por um logos heterossexual

(RUFFOLO, 2009) que objetiva manter o status da heterossexualidade como única forma de o

sujeito viver sua sexualidade. Esse logos encontra respaldo na teoria performativa da

linguagem de Austin (AUSTIN, 1999). Tal teoria distingue dois tipos de atos de fala, os

constativos, que apenas descrevem a realidade, e os performativos, que cria a realidade ao

nomeá-la. Tomando emprestado o conceito de performatividade, Butler (2003) afirma que o

gênero é performativo, pois ele é materializado por atos linguísticos repetidos com vistas a

regular e afirmar essa categoria partir de diferenças materiais. Nesse sentido, Butler (2001)

argumenta que

o sexo é um cconstruto ideal, que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas (BUTLER, 2001, p. 154).

Desse modo, a matriz heterossexual, baseada em uma suposta sequência

sexo-gênero-sexualidade, é assegurada e reproduzida, o que torna a heterossexualidade

compulsória (BUTLER, 2003). Butler (2001, 2003), enfatizando o caráter essencialista e

biologizante com o qual o gênero é compreendido, destaca o fato de que o gênero é social e

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Da mesma forma, ao ressaltar o papel do discurso na construção da sexualidade,

Foucault (2001) argumenta que

A partir do século XVI, a “colocação do sexo em discurso”, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrário, submetido a um mecanismo crescente de incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e implantação das sexualidades polimorfas (FOUCAULT, 2001, p. 17).

Desta feita, Foucault deixa clara a relação entre discurso, saber e poder que permite

o controle dos corpos e dos prazeres. Para o autor, “não há saber sem uma prática discursiva definida e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma” (FOUCAULT, 2005, p. 205). O discurso também é veículo e instrumento do poder (FOUCAULT, 2002).

No século XIX, o discurso jurídico e médico-psiquiátrico cria a espécie do sujeito

homoerótico e, ao produzir um saber sobre essa sexualidade herética, classifica o

homoerotismo como desvio, doença, perversão e sinal da degradação do ser humano. O

sujeito homoerótico, pois, passa a ser compreendido a partir da sua sexualidade, ou seja,

“nada daquilo que ele é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas” (FOUCAULT, 2001, p. 43). Dessa forma, percebe-se que para Foucault (2001), a sexualidade é a verdade do sujeito.

4. Estranhando o currículo da formação de professores

O currículo, de acordo com Silva (1999, 2003a), além de determinar qual saber é

válido, define a relação de professores e alunos/as, estabelecendo relações de autoridade. Ao

selecionar determinado conhecimento, o currículo constrói identidades e subjetividades

específicas, incluindo certos sujeitos e excluindo outros. Um currículo pós-estruturalista, visto

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identidades e saberes estão sendo privilegiados e como esse fato reflete relações

assimétricas de poder (SILVA, 1999). Segundo Silva (2000), pós-estruturalismo é um

termo abrangente, criado para nomear uma série de análises e teorias que ampliam e, ao mesmo tempo, modificam certos pressupostos e procedimentos da análise estruturalista. Particularmente, a teorização pós-estruturalista mantem a ênfase estruturalista nos processos linguísticos e discursivos, mas também desloca a preocupação estruturalista com estruturas e processos fixos e rígidos de significação. Para a teorização pós-estruturalista, o processo de significação é incerto, indeterminado e instável (SILVA, 2000, p. 92-3).

Percebe-se, pois, a influência da virada linguística nas Ciências Humanas e Sociais,

que enfatizou a centralidade da linguagem e do discurso na construção do social (SILVA,

1999). Ao trazer à baila a importância dos processos de significação, o pós-estruturalismo, ao

contrário do estruturalismo que concebia o significado como dado e fixo, compreende o

significado como múltiplo, mutável e construído socialmente. Nesse sentido, como argumenta

Derrida (2004), a linguagem não é transparente ou neutra, mas, segundo Bakhtin (2004), ela

está a serviço dos interesses das diversas classes. Consequentemente, Silva (1999) ressalta

que “o currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e o político” (SILVA, 1999, p. 10). Articulando discurso, poder e saber, o currículo não só estabelece e sustenta hierarquias, como também

(re)constrói identidades.

Refletindo acerca da noção do discurso como ação, Fairclough (2001) ressalta que o

discurso é “uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Nesse sentido, o discurso é visto como prática social, que constrói a realidade e os sujeitos. Dessa

forma, o significado “é um construto negociado pelos participantes, isto é, não é intrínseco à linguagem” (MOITA LOPES, 2002, p. 31).

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O currículo pós-estruturalista rejeita a noção do sujeito cartesiano, considerado como

unificado, racional e coerente, e adota a concepção de sujeito como fragmentado,

contraditório e fluido (HALL, 2011; MOITA LOPES, 2002, SILVA, 2003b). Portanto, a

fragmentação, a mutabilidade, típica das identidades sociais, é central na construção de um

currículo queer.

O currículo queer, compreendido como um documento de identidade (SILVA, 2003a),

deveria pensar a identidade em relação à diferença (LOURO, 2004; SILVA, 2003b). De fato, a

identidade carrega o traço do que ela não é, ou seja, da diferença e esta, por sua vez, também

só pode ser definida a partir da identidade. A identidade e a diferença são social, cultural e

simbolicamente construídas, estando “em uma estreita relação de dependência” (SILVA, 2003b, p. 74) e, por isso, “são mutuamente determinadas” (SILVA, 2003b, p. 76). Nesse sentido, ambas não estão em oposição, mas são complementares, sendo uma a condição

para a existência da outra. Ademais, como são construídas social, cultural e, sobretudo,

simbolicamente, tanto a identidade quanto a diferença são produzidas por atos linguísticos

que, ao nomeá-las, as cria (SILVA, 2003b). Os processos de produção da diferença devem

ser, pois, o princípio fundamental de um currículo queer (LOURO, 2004).

Segundo Louro (2004), um currículo queer implicaria

passar dos limites, atravessar-se, desconfiar do que está posto e olhar de mal jeito o que está posto; colocar em situação embaraçosa o que há de estável naquele “corpo de conhecimentos”; enfim fazer uma espécie de enfrentamento das condições em que se dá o conhecimento (LOURO, 2004, p. 64).

Nesse quadro, um currículo queer deveria questionar o regime de saber/poder,

baseado na oposição heterossexualidade/homoerotismo, que dá sentido às práticas sociais,

desconstruindo, assim, os processos de produção da diferença pelos quais

alguns sujeitos se tornam normalizados e outros marginalizados, tornando evidente a heteronormatividade, demonstrando quanto é necessária a

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constante reiteração das normas sociais regulatórias a fim de garantir a identidade sexual legitimada (LOURO, 2004, p. 49).

A identidade heterossexual, considerada legítima, estaria em oposição às

identidades sexuais desviantes, as homoeróticas, que deslocariam a sequência

sexo-gênero-sexualidade, contestando o caráter natural da heterossexualidade. Dessa

maneira, um currículo queer buscaria subverter os esquemas binários que objetivam

normalizar e normatizar a educação (LOURO, 2004).

Na formação de professores, um currículo queer buscaria questionar e,

consequentemente, subverter os conhecimentos e as formas de produzi-los que normalizam e

naturalizam o gênero e a sexualidade como se fossem pré-discursivos e, portanto, dados a

priori (LOURO, 2004). Outras expressões da sexualidade, que não se enquadrassem no

padrão da heterossexualidade compulsória, estariam fadadas a ocupar um lugar abjeto na

sociedade.

Desta feita, um currículo queer na formação de professores não só estaria

condizente com o paradigma educacional emergente, mas também garantiria os direitos

humanos e a cidadania dos sujeitos excluídos da prática educacional (KAMEL e PIMENTA,

2008). Nesse sentido, em 2004, o Governo Federal criou um documento que, entre seus

objetivos, está o de “fomentar e apoiar curso de formação de professores na área da sexualidade” (BRASIL, 2004, p. 23). No currículo da formação de professores, ainda prevalece um certo silêncio a respeito do gênero e da sexualidade. No entanto, Louro (2000)

afirma que “a sexualidade e o gênero estão, mais do que nunca, no centro dos discursos; estão a deixar o silêncio e o segredo e, por bem ou por mal, estão a provocar ruído, a fazer

barulho e a fazer falar” (LOURO, 2000, p. 38). Portanto, seguindo as reflexões de Foucault (2001), os discursos sobre o sexo não param de proliferar e multiplicar na sociedade e,

consequentemente, na educação.

Um dos grandes desafios de um currículo queer na formação de professores é a

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sexualidade, tomando como base a heteronormatividade (KAMEL e PIMENTA, 2008). De

fato, o gênero e a sexualidade são construídos discursivamente em um momento

sócio-histórico determinado (BUTLER, 2003; FOUCAULT, 2001). O gênero não é uma

categoria pré-discursiva, mas está enredado nas práticas sociais e culturais, sendo, portanto,

aprendido através de uma série de atos linguísticos repetidos (BUTLER, 2003). Segundo

Foucault (2001), a sexualidade é construída no interior do regime de saber/poder,

caracterizado por relações assimétricas de poder. Dessa forma, sujeitos são normalizados por

discursos que objetivam vigiar e controlar constantemente a sexualidade, os corpos e os

prazeres.

5. Considerações finais

Foucault (2001) ressaltou como a cultura ocidental, ao criar a scientia sexualis,

instaurou uma estreita relação entre saber e sexo. Na mesma linha de raciocínio, Sedgwick

(1990) afirmou que a sexualidade, sendo a expressão do conhecimento e da identidade,

tornou-se a força central da homofobia generalizada. De fato, a produção de conhecimento no

ocidente é fundamentada na oposição heterossexualidade/homoerotismo que, enfatizando

uma concepção binária e polarizada da sociedade, produz desigualdades e injustiça para

aqueles que não se enquadram no padrão da sexualidade normal, a saber, a

heterossexualidade.

Esse pensamento binário, dicotômico e polarizado perpassa toda a prática

pedagógica que normaliza os sujeitos, seus corpos e sua sexualidade através de estratégias

disciplinares (JUNQUEIRA, 2009, 2012). Dessa forma, cria-se uma pedagogia do armário que

visa tornar os sujeitos homoeróticos invisíveis no ambiente escolar (JUNQUEIRA, 2012).

Sedgwick (1990) aponta que o armário é um meio de controle do comportamento dos sujeitos

que não adotam o modelo da heterossexualidade compulsória. A pedagogia do armário é

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vítimas de preconceitos e discriminações na forma de xingamentos e apelidos pejorativos

(JUNQUEIRA, 2009).

No espaço escolar, caracterizado por uma concepção patriarcal e heterocêntrica da

sociedade, a homofobia se faz presente nos materiais didáticos, que privilegiam apenas uma

identidade sexual, a heterossexual, considerada natural, em detrimento das outras,

consideradas desviantes (LEONÇO; DINIZ, 2009), e o currículo escolar, pautado por uma

noção heteronormativa que potencializa os binarismos e, consequentemente, perpetua

preconceitos e discriminações (CASTRO; ABRAMOVAY; SILVA, 2004; JUNQUEIRA, 2009,

2012; LOURO, 2004). Os/As professores/as, como mediadores/as das relações assimétricas

na sala de aula (MOITA LOPES, 2002), ao silenciarem frente à violência homofóbica, acabam

por reforçar os atos discriminatórios contra os sujeitos homoeróticos (CASTRO;

ABRAMOVAY; SILVA, 2004).

Portanto, um currículo queer na formação de professores de línguas permitiria uma

maior compreensão por parte dos/as professores/as a respeito da sexualidade. Um currículo

queer questionaria, assim como a teoria queer, a visão heteronormativa sob a qual o conhecimento está assentado, desconstruindo, pois, as oposições binárias que estão no

centro das discriminações e dos preconceitos por gênero e sexualidade (LOURO, 2004).

Ademais, um currículo queer deveria estar baseado na produção social, cultural e simbólica

da diferença a fim de que se percebesse que a diferença também é constitutiva do sujeito

(SILVA, 2003b). Um currículo queer, enfim, questionaria a visão biologizante e essencialista

das identidades de gênero e sexuais, reconhecendo o fato de que elas são construídas social

e discursivamente (BUTLER, 2003; FOUCAULT, 2001; LOURO, 2004).

Referências

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método

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BOURDIEU, P. A dominação masculina. 3ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

BRANDÃO, J. Mitologia grega: dicionário mítico-etimológico I. 5ª edição. Petrópolis: Vozes, 2008.

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