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TATUAGEM: A ARTE DE LER O FUNCIONAMENTO DESSA LINGUAGEM GRAVADA NA PELE TATTOO: AN ART OF READING THE FUNCTIONING OF THAT LANGUAGE WRITTEN ON THE SKIN

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TATUAGEM: A ARTE DE LER O FUNCIONAMENTO DESSA

LINGUAGEM GRAVADA NA PELE

TATTOO: AN ART OF READING THE FUNCTIONING OF THAT

LANGUAGE WRITTEN ON THE SKIN

Naiara Souza da Silva1 Ercília Ana Cazarin2

Resumo: Este texto visa refletir, no âmbito da Análise de Discurso (AD) de tradição pecheuxtiana, sobre a

relação da tatuagem, enquanto gesto simbólico materializado no corpo do sujeito, com a construção da identidade desse sujeito tatuado, pois entendemos que através da escritura de si, quando o sujeito expõe seu corpo como espaço de textualização, concomitantemente, sentidos e sujeitos se constituem.

Palavras-chave: Tatuagem. Corpo. Sujeito. Identidade.

Abstract: This text aims to reflect, in the scope of Discourse Analysis (DA), in Pêcheux tradition, on the relationship of the tattoo, as a symbolic gesture materialized in the citizen’s body, with the construction of the identity of this tattooed citizen, for we understand that through writing itself, when the citizen exposes his or her body as a textualization space, senses and citizens are constituted concomitantly.

Keywords: Tattoo. Body. Citizen. Identity.

Introdução

Este texto visa refletir, no âmbito da Análise de Discurso (AD) de tradição pecheuxtiana, sobre a relação da tatuagem, enquanto gesto simbólico materializado no corpo do sujeito, com a construção da identidade desse sujeito que deseja se tatuar, pois entendemos que através da escritura de si, quando o sujeito expõe seu corpo como um espaço de possível textualização discursiva, sentidos e sujeitos constituem-se concomitantemente.

Dito de outra maneira, o corpo é a materialidade do discurso, este apreendido por meio da textualização da tatuagem. Discurso que instiga os sujeitos à busca utópica de um corpo belo e individualizado em suas condições sócio-históricas. É o discurso do corpo possível de ser (re)inventado, moldado e criado através de vários procedimentos/intervenções, dentre eles a tatuagem. Orlandi (2012b) destaca que a relação do sujeito com seu corpo aparece como transparente, mas não é, pois “linguagem, sujeito e história não têm transparência porque têm materialidade. Em sua relação contraditória. E estão afeitos ao funcionamento da ideologia” (p. 86).

Neste mesmo texto, a autora acrescenta que o sujeito tem sua materialidade, “significando ‘o’ e significando-se ‘no’ espaço urbano, que havia uma especificidade em seu processo de significação que se relacionava fortemente ao seu corpo” [grifos da autora] (ORLANDI, 2012b, p. 86). Nesse entendimento, a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia produz uma forma de sujeito histórica com seu corpo que é social. Ainda segundo o

1 Mestre em Letras (UCPEL). Doutoranda em Letras e bolsista CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas (PPGL/UCPEL). Membro do Laboratório de Estudos em Análise de Discurso (LEAD).

2 Doutora em Letras (UFRGS). Docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da

Universidade Católica de Pelotas (PPGL/UCPEL) e uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos em Análise de Discurso (LEAD)

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estudo da autora, o corpo do sujeito está ligado ao corpo da cidade, ao corpo social, e, isto é constitutivo, é parte do processo de significação e não apenas algo exterior a ele.

A interpelação do indivíduo em sujeito nos leva à noção de assujeitamento do sujeito e, conforme lembra Orlandi (2012a), o assujeitamento não é quantificável, pois “diz respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva com o simbólico: se é sujeito pelo assujeitamento à língua, na história” (p. 100). Em outras palavras, para dizer ou para realizar o gesto de tatuar-se, o sujeito se submete à língua, sem isto, não teria como se subjetivar.

Dessa forma, como referimos anteriormente, sentidos e sujeitos se constituem ao mesmo tempo. Para a autora recém citada, a forma-sujeito histórica tem a sua materialidade e o indivíduo, interpelado em sujeito, tem também seu corpo interpelado. Nas suas próprias palavras, “a ideologia, como sabemos, na perspectiva discursiva, é uma prática e esta prática envolve, afeta e faz parte do processo de significação do corpo do sujeito” (ORLANDI, 2012b, p. 87). Assim, ao textualizar seu corpo, os sujeitos transitam na sociedade, deslocando-se na história.

Pois bem, se os sentidos e os sujeitos se constituem concomitantemente, como pensar acerca da identidade desses sujeitos? De acordo com os pressupostos basilares da teoria a qual fizemos parte, entendemos que as palavras significam porque já significaram, e isso também ocorre com o corpo, ou seja, pensando ideologicamente, tem-se uma imagem social do corpo, seja ele, corpo de mulher, de homem, de pobre, de rico etc., em que existem sentidos estabelecidos e determinados que o condicionam. Diante disso, talvez pudéssemos pensar num imaginário social sobre o corpo dos sujeitos que promove sua identificação e, consequentemente, sua aceitação e/ou discriminação no contexto social em que está inserido.

Entendemos que o sujeito, marcado pela historicidade e atravessado pelo inconsciente, na sua dimensão imaginária, materializa, pelo viés da tatuagem os saberes que atribui como próprios ao lugar social em que está inscrito. Parafraseando Sercovich (1977), podemos escrever que o imaginário discursivo não se explica através de uma determinada realidade, e sim como se derivando de determinados interesses sociais que, no caso, se manifestam pela textualização da tatuagem.

Isso nos faz retornar às palavras de Orlandi (2012b), quando afirma que “não há corpo que não esteja investido de sentidos, e que não seja corpo de um sujeito que se constitui por processos nos quais as instituições e suas práticas são fundamentais para a forma com que ele se individualiza” (p. 93). O corpo do sujeito é, nessa perspectiva, parte do corpo social tal como ele está significando na história, ou melhor, entendemos que o sujeito relaciona-se com seu corpo já atravessado por uma memória, e não de forma objetiva.

Nessa maneira de considerarmos a produção de sentidos, não banalizamos a noção de criatividade dos sujeitos. O que ocorre é o jogo, é o movimento dos sentidos, entre a paráfrase e a polissemia, atestando o confronto entre o simbólico e o político no seu dizer, materializado pela língua, no caso em pauta, pela tatuagem que materializa o discurso no qual opera a ideologia.

Com relação à tatuagem, Orlandi (2004) salienta que há sujeitos que gostam de comprar uma joia e há aqueles que gostam de tatuar o próprio corpo. É possível encontramos testemunhos que nos mostram essa relação do sujeito com seu corpo e com a tatuagem – “sinal que o ser humano não para de explorar-se simbolicamente” (idem, p. 120). A tatuagem como forma de significar o corpo pode ser índice de outro modo do sujeito viver no social, pois ao apropriar-se do seu espaço (corpo), publiciza sua presença por meio da textualização da tattoo.

É nessa perspectiva, que este texto se insere, pois entendemos que ainda há espaço para estudos que interpretem a prática de tatuar o corpo, relacionando esse processo aos pressupostos ideológicos e às suas condições de produção, observando a questão da

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construção imaginária da identidade desse sujeito que deseja se tatuar. Se o sujeito se identifica com a língua para poder dizer, ele também se identifica com o seu corpo para significar e, através da tatuagem, esse sujeito grava no tecido da pele o seu desejo, a sua interpretação e a sua interpelação. Pele que, como explica Abreu (2013), “se transforma em texto em uma junção de linguagens – palavras, imagens, cores, que ganham estatuto na história” (p. 143).

Nessa instância, direcionar nosso olhar à escrita corporal será uma arte de ler, interpretar e desvendar o funcionamento da tatuagem, uma linguagem gravada na pele, transformada num texto que relaciona corpo, discurso, imaginário, escrita e subjetividade. Visto isso, discorremos, a seguir, acerca de algumas noções importantes a este estudo e, no segundo momento, traremos algumas figuras (imagens) que selecionamos, a partir da observação de fotos de celebridades tatuadas contidas no site de pesquisa Google3, dentre

algumas que compõem o nosso corpus. Acreditamos pertinente salientar aos leitores deste texto que, no gesto de leitura empreendido, deparamo-nos com um grande número de sujeitos tatuados, em diferentes contextos sócio-históricos, assumindo posições-sujeito diferenciadas e transmitindo sentidos diversos – e o que mais nos chamou atenção é a exaustividade de marcas pelo corpo, o desejo de possuir uma tattoo, somado ao desejo de ser visto/percebido pelo outro.

1. A constituição do sujeito e de sentidos

A tatuagem, foco deste artigo, não é um fenômeno novo na sociedade, ao contrário, ao longo dos tempos e em diferentes culturas, o sujeito sempre marcou o corpo senão com tatuagens, o fez através de pinturas. Verificamos, então, a tentativa de subjetivação, entre tantos modos de subjetivar-se, na sociedade em que vivemos. Dito de outra forma, tatuar-se seria um projeto individual para ocupar um lugar sócio-histórico e cultural (cf. LEITÃO, 2000).

Souza (2006), ao falar de subjetividade, diz que o sujeito sente necessidade de construir uma nova percepção de si e do seu corpo, como sintoma de subjetivação a algo que falha. Nesse caminho, se a subjetivação é uma forma de subjetivar algo que falha, o que é que falha? Seria apropriado relacionar o gesto como uma tentativa de encaixe a um grupo, a partir da falta de um Outro ao qual se apoiar, já que estamos à mercê de várias formas de identificações como escreve Dufour (2005). Em seu texto, o autor refere-se a um sujeito “precário, acrítico e psicotizante, [...] aberto a todas as flutuações identitárias e, consequentemente, pronto para todas as conexões mercadológicas. O cerne do sujeito progressivamente dá lugar ao vazio do sujeito, um vazio aberto a todos os ventos” (p. 21-22), que seria preenchido, portanto, pela figura desse Outro que o interpela e o faz (re)inventar uma identidade fluida.

Ainda em relação à subjetivação e à identificação, é possível identificar a existência de uma modalidade de identificação horizontal com aqueles que têm os mesmos traços de gozo. Estamos diante de dois elementos: o corpo marcado e as vicissitudes das identificações em tempos de fragilidade de referências simbólicas consistente. Para Siqueira (2009), a publicidade é o Outro da ideologia que instiga o sujeito a expressar-se de maneira acentuada como forma de apelar a um lugar, se distinguir do outro, se colocar como sujeito, ter reconhecimento e visibilidade por meio da tatuagem.

O até aqui posto nos faz pensar que “onde há desejo, há inconsciente, onde há inconsciente, há sujeito e onde há sujeito, há um corpo que fala e que, ao falar, falha, pois

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tudo não se diz e todo não se é” (FERREIRA, 2013, p. 105). Na perspectiva da AD, isso nos leva a entender que o corpo está relacionado a novas formas de assujeitamento e, portanto, associado às noções de ideologia e de inconsciente, as quais o sujeito se encontra submetido, vivendo na ilusão da subjetividade.

Nesse contexto, o que nos interessa enfatizar é que atualmente encontramos inúmeros sujeitos tatuados, estampando significações no corpo. São sujeitos de diferentes idades, classes sociais, gênero, profissão e etnia, ocupando diferentes lugares na sociedade. Até pouco tempo, a tatuagem, de modo geral, esteve restrita a alguns grupos e não, de maneira expandida, aventurando outros corpos e colonizando quase toda a sociedade (cf. LEITÃO, 2000).

Recorrendo aos estudos de Grigoletto (2006) para pensarmos na relação desses sujeitos tatuados com a noção de identidade, tal como ela trabalha, entendemos que a escrita, de uma maneira geral,

tanto pressupõe a singularidade do sujeito quanto a determinação do outro – o(s) sujeito(s) a quem se dirige, o lugar que ele próprio ocupa socialmente, mas também o lugar que o seu leitor ocupa, as condições de produção da sua escrita etc. Produz, assim, um efeito ideológico. Por isso, ela pode ser tomada como uma materialidade discursiva lacunar, porque abriga em sua constituição a alteridade do sujeito, a qual está marcada pela dimensão inconsciente dos sujeitos que se inscrevem nesse processo (GRIGOLETTO, 2006, p. 207).

Nessa perspectiva, se bem entendemos as proposições da autora citada, podemos relacioná-las ao objeto de estudo do presente texto, entendendo que a identidade do sujeito se constrói em/no processo da escrita, na textualização da tatuagem, o qual é afetado pela dimensão social, ideológica e histórica do dizer/tatuar. Mais ainda, compreendemos que “não podemos falar de uma identidade fixa, una e completa do sujeito, mas, sim, de uma identidade heterogênea, fragmentada, incompleta, já que, na busca da construção de singularidade do eu, o sujeito é abalado, desestabilizado o tempo inteiro pelo outro” (GRIGOLETTO, 2006, p. 207).

Nessa busca de singularidade do sujeito, consideramos que há também a busca de aceitação no contexto social em que está inserido. Quando se trata da tatuagem, lembramos que há saberes instituídos na sociedade, aos quais os sujeitos estão submetidos, inclusive, existem aqueles relacionados ao gênero na medida em que a tattoo também reflete os padrões construídos culturalmente. Com base nos paradigmas entre feminino e masculino, Pérez (2006) escreve sobre as partes do corpo destinadas a cada gênero, de acordo com os sentidos impostos socialmente como erotismo às mulheres, tatuando o pescoço, e virilidade aos homens, tatuando o braço.

O até aqui posto pode visto com mais clareza por meio de figuras que apresentamos a seguir nas quais se pode notar claramente a relação entre o lugar da tatuagem e o que ela representa no corpo feminino e no corpo masculino, na medida em que “o corpo é uma construção cultural e, como tal, sinalizado, fragmentado e sexualizado em cada uma de suas partes” (PÉREZ, 2006. p. 192).

Vejamos:

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Rodrigo Andrade. Fonte: Disponível em: Cléo Pires. Fonte: Disponível em: <http://entretenimento.band.uol.com.br> <http://www.linkatual.com.br/tatuagens-cleo-pires.html>

Acesso em: 1 fev. 2014. Acesso em: 1 fev. 2014.

Na figura 1, Rodrigo Andrade, ator Global, mostra a sua nova tatuagem localizada no bíceps do braço direito. É possível reparar que no instante em que mostra a sua tatuagem, não o faz de qualquer maneira, mas sim de uma forma em que destaca também o seu músculo. Não é somente a tatuagem que é valorizada neste caso, temos exibido ao olhar do outro um corpo forte e sarado, padrão masculino incentivado pela mídia e cultivado pela sociedade. Como sustenta Pérez (2006), “no caso dos homens, os braços e as costas são relacionados à força e à virilidade, atributos dominantes da masculinidade” (p. 192-193).

Já na figura 2, Cléo Pires, também atriz Global, mostra a sua tatuagem de forma sensual. A tattoo é uma frase da música de Paul McCartney que diz "Live and Let Die", que significa em português "Viva e deixe morrer", localizada no quadril. Cabe pensar aqui, o porquê a atriz tatuou-se no quadril e não no braço, já que o tamanho da tatuagem permitiria que fosse nesse membro. Outro fator que chama a atenção diz respeito ao gesto de mostrar a tatuagem, Cléo, para mostrar a tattoo, é fotografada exibindo quase todo o corpo, numa pose sexy. E a tatuagem que seria o objeto a ser fotografado é colocada em outra imagem, à direita, para que possa ser vista. Nos dois casos, Rodrigo e Cléo, exibem em seus corpos sentidos estigmatizados pela sociedade e difundidos pelos meios de comunicação.

Em síntese, muda-se a materialidade do significante, como uma linguagem gravada na pele, mas não há mudança no que diz respeito ao controle social, ao que é aceito e/ou não aceito nos moldes padronizados. Ferreira (2007) salienta que se é no corpo que se experimenta e vive o controle social, é também “na superfície da pele que alguns encontram um espaço liso disponível à projeção, à celebração e à luta pela construção e reconhecimento de uma identidade imaginada” (p. 319) como singular, autêntica e emancipada, estendida num estilo de vida que escape à normatividade imposta.

É o caso do cantor Tico Santa Cruz, vocalista da banda Detonautas. Tico não é conhecido apenas pela música, ele já se envolveu em polêmicas, deixa claro seu envolvimento político e ainda é fascinado pela tatuagem como estilo de vida. O cantor considera que tenha mais de 60% de seu corpo coberto por tinta. Entre as tatuagens estão desenhos na cabeça, chaves, os nomes dos filhos, homenagem à mulher, símbolos de momentos marcantes, tribais, estilizados e outra infinidade de arte que denuncia problemas sociais. O cantor explica, pela sua crença, que a água é quem transporta toda a energia do universo e que o corpo humano é feito 90% de água. Portanto, a tatuagem é troca de energia. Assim sendo, o olhar do outro faz com que haja troca de energia, resultando em equilíbrio.

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Tico Santa Cruz. Fonte: Disponível em: <http://www.artenocorpo.com/1256/significado-das-tatuagens-de-tico-santa-cruz> Acesso em 3 fev. 2014.

A tatuagem, nessa instância, configura uma forma de demarcação estilística através da qual algumas pessoas constroem e dão a (re)conhecer não só a sua identidade pessoal, mas também o modo como percebem e se relacionam com o mundo, consubstanciando um sentido de (des)filiação perante a ordem cultural e social estabelecida.

Se relacionarmos o que propõe Ferreira (2007) ao que escreve Pêcheux (1988/2009)4, quando trata dos movimentos identificatórios do sujeito, podemos compreender que ambos referem-se às modalidades das tomadas de posição e, este processo de tomada de posição relaciona-se com a constituição da identidade do sujeito. As modalidades das tomadas de posição do sujeito, pensadas por Pêcheux (1988/2009), são concebidas como um movimento de identificação/desidentificação/contraidentificação do sujeito com a formação discursiva5 em que o sujeito se inscreve e constitui a sua identidade.

De acordo com o trabalho de Grigoletto (2006), entendemos que estamos diante de processos identificatórios do sujeito que compreendem, em sua constituição, as representações das imagens do(s) outro(s) que está(ão) em jogo no processo de interlocução. Em síntese, a autora evidencia que “os movimentos de identificação do sujeito são do nível da formulação do dizer, a identidade, sendo do nível da constituição do discurso, pode trabalhar/mobilizar vários desses movimentos” (p. 208).

Nesse caminho, os sujeitos buscam, através da palavra, ou melhor, da textualização do seu corpo, construírem-se enquanto tais e (re)afirmarem suas identidades. Desse modo, é que pensamos o sujeito tatuado na contemporaneidade. Um sujeito dividido desde a sua constituição e que, interpelado pela ideologia do corpo, faz uso da sua pele como materialidade, na textualização dos sentidos, para significar num contexto sócio-histórico preciso. Esse funcionamento pode se dar por vários fatores, dentre eles: distinguir-se do outro, identificar-se com o outro, colocar-se como sujeito, ter reconhecimento e visibilidade, rejeitar os padrões estipulados pela sociedade e gozar por meio da tatuagem.

Conforme Leitão (2000), a tatuagem representa mais do que uma mera opção, nas suas palavras, “estão em jogo uma série de atitudes e apropriações simbólicas da imagem do ‘ser tatuado, gostar de tatuagem’ na definição de um status e de uma posição dentro de um grupo e em relação aos que estariam fora dele” [grifo do autor] (p, 30).

Como um possível exemplo, temos a atriz e modelo americana Megan Fox. Ela já foi considerada duas vezes a mulher mais sexy do mundo por uma revista masculina portuguesa e, geralmente, está no Top 100 das listas criadas pela imprensa. Seu corpo escultural, nos padrões estéticos da sociedade contemporânea, apresenta oito (08) tatuagens em lugares que

4 A formatação desta bibliografia está disposta na seguinte ordem: 1988 refere-se a sua 1º edição/2005 refere-se

a edição que estamos utilizando no estudo. A partir deste momento, poderão ser encontradas no presente texto referências dispostas nesse modelo.

5 A formação discursiva (FD) se define como aquilo que, numa formação ideológica (FI) dada, determina o que

pode e deve ser dito. Visto que a palavra ganha um sentido “x” ou “y” dependendo das posições de quem a emprega em conformidade ou não com a forma-sujeito, isto é, recebe um sentido em relação às formações discursivas nas quais essas posições se inscrevem na relação entre classes.

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estimulam ainda mais sua sensualidade e feminilidade, dentre elas, uma despertou um interesse maior para nossa análise devido à repercussão na mídia nos últimos anos.

Trata-se do rosto de Marilyn Monroe, localizado no interior do seu antebraço direito, realizado no ano de 2004, quando tinha 18 anos. A tatuagem, nessa época, obtinha mais prestígio entre os adolescentes, todavia para os adultos, uma adolescente tatuar-se aos 18 anos era deprimente.

Eis, abaixo:

Figura 4

Megan Fox. Fonte: Disponível em: <http://papelpop.com/2013/01> Acesso em: 3 fev. 2014.

Megan, em 2004, nutria uma enorme admiração pela atriz Marilyn Monroe, considerando-a sua heroína. Neste ano, sua carreira profissional estava excelente, mesmo assim, ela precisava construir uma nova percepção de si e do seu corpo a fim de obter destaque das demais atrizes da época. Então, tatuou a estrela Marilyn representando o glamour hollywoodiano dos anos 50, em que sua aparente vulnerabilidade e inocência, junto com sua inata sensualidade, tornaram-na uma das mulheres mais desejadas do século XX.

Nesse contexto sócio-histórico, o sujeito (Megan) deixou a tatuagem visível no seu corpo, trazendo esses saberes do interdiscurso ao plano intradiscursivo, na materialidade da pele. Os sentidos arraigados sob o rosto de Marilyn emergem na textualização do corpo, gravando no tecido da pele o desejo, a interpretação e a interpelação do sujeito diante os pressupostos ideológicos vigentes na época, que incitavam as atrizes a beber da fonte da glamourosa hollywoodiana.

Nesse viés, podemos pensar que o sujeito (Megan) buscou, através da palavra, ou melhor, da textualização do seu corpo, construir-se enquanto tal e (re)afirmar sua identidade de atriz semelhante a sua referência simbólica Marilyn. Recorrendo, novamente, aos estudos de Grigoletto (2006), podemos afirmar que a identidade do sujeito é uma construção sócio-histórica e ideológica, que mobiliza as dimensões simbólica e imaginária do sujeito. Na formulação da autora, “essa construção é da ordem da constituição tanto do sujeito quanto do discurso e só é possível graças aos movimentos identificatórios entre o eu e o outro, resultantes de ações subjetivas inconscientes do sujeito, que são da ordem da formulação do dizer” (GRIGOLETTO, 2006, p. 209).

Ainda em relação ao caso em tela, ocorre que sete anos mais tarde, já com 25 anos, a atriz decide remover a tatuagem, salientando que estava farta dela. Disse ainda, em entrevistas, que algumas coisas fazem sentido quando se é criança e quando se atinge outra idade, não fazem mais. Esse gesto da atriz nos remete a um texto de Orlandi (2001), quando destaca algumas características da noção de identidade. A autora salienta que a identidade é um movimento na história, o que significa que não é sempre igual a si mesma, e, consoante a isso, Grigoletto (2006) escreve que a identidade “é heterogênea e está sempre em transformação, conforme os movimentos identificatórios do sujeito do discurso” (p. 209).

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O fato é que se está diante de outro contexto sócio-histórico, onde os pressupostos estabelecidos socialmente são outros. Sendo assim, a tatuagem foi (re)significada pelo sujeito, repleta de efeitos de sentido, de acordo com as condições sócio-históricas contemporâneas que estimulam os sujeitos à autenticidade.

Assim, o processo de remoção da tattoo, na materialidade do corpo, foi uma forma de apagamento de saberes que ainda emergem do interdiscurso, tais como: a loira queridinha da América é uma personagem que traz sentimentos negativos diante o sofrimento que teve com os distúrbios psicológicos e sintomas de bipolaridade, ela é prostituta, ela é promíscua etc., que denigrem a sua imagem de atriz, sendo o seu corpo um dispositivo de visualização e que atualmente carrega estes sentidos e não mais os outros.

Na perspectiva de Orlandi (2001), a identidade é um movimento na história, justamente porque todo processo de significação é uma “mexida” em redes de filiação de tal modo que o sujeito se (re)produz ao mesmo tempo como repetição e como deslocamento. Assim, precisamos observar o modo comoo sujeito que deseja se tatuar relaciona-se com a ordem do simbólico e do imaginário.

Na textualização do corpo, o sujeito afetado pelo imaginário do corpo perfeito, tenta chegar mais perto possível dos padrões estipulados pela sociedade com a ilusão de controle e poder sobre a linguagem, entretanto é vítima de uma ideologia de mercado que faz dele fantoche no teatro da vida, pois o processo de remoção da tatuagem faz apagar a imagem da materialidade do corpo, mas os efeitos de sentido que produziram, ao olhar do outro, não são apagados, tampouco esquecidos. Sob os encobrimentos da tatuagem, o político, entendido como relações de força, marca presença oscilando, por vezes, num movimento paradoxal: quanto mais busca se mostrar invisível, mais aumenta o efeito de visibilidade.

Considerações finais

Este texto provém de uma tentativa de interpretação do funcionamento da tatuagem. Nele buscamos compreender um pouco o funcionamento discursivo da mesma, enquanto texto repleto de significações, bem como seus efeitos de sentido materializados no corpo do sujeito. O interesse centralizou-se na relação da tattoo com a construção da identidade do sujeito tatuado.

Na direção de um efeito de fechamento do texto, entendemos, conforme Ferreira (2007), que o corpo sempre tem, em potência, uma dupla capacidade de se revelar “lugar de conformação e confrontação social, de controle e resistência, de autoridade e subversão, de contenção e excesso, de disciplina e transgressão, de poder e evasão, (...) de reprodução e inovação” (p. 293).

E a tatuagem, entendemos nós, ganhando cada vez mais espaço, é mais do que interferir na pele, é texto, é discurso, é um modo de identificação, de lançar-se e arriscar-se ao olhar do outro, à leitura do outro..., pois não se tem controle dos efeitos de sentido que uma tatuagem pode fazer emergir. Por fim, tratando-se da necessidade do ponto final, terminamos ilusoriamente nosso texto, com a certeza de que muito ainda se tem a dizer sobre tatuagens.

Referências

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