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MORTE, A RAINHA DO CEMITÉRIO : SOBRE PRÁTICAS FÚNEBRES NA IRMANDADE SÃO MIGUEL E ALMAS, PORTO ALEGRE, SÉCULO XX

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MORTE, A “RAINHA DO CEMITÉRIO”: SOBRE PRÁTICAS FÚNEBRES

NA IRMANDADE SÃO MIGUEL E ALMAS, PORTO ALEGRE, SÉCULO XX

Mauro DillMann

Doutorando em História/Unisinos maurodillmann@hotmail.com

INTRODUçÃO

A Irmandade São Miguel e Almas (ISMA) foi fundada em 1773, um ano após a fundação oficial da cidade de Porto Alegre/RS, ocasião em que contava com menos de 1500 habitantes. Naquela pequena cidade às margens do rio Guaíba, um grupo de leigos católicos1 organizou a sua devoção ao Arcanjo protetor das almas do purgatório, logo após a fundação da irmandade do Santíssimo Sacramento, ocupando um altar lateral na igreja matriz. O primeiro compromisso da então instituída irmandade do Arcanjo São Miguel e Almas data de 1775 e está transcrito na íntegra no primeiro livro de atas da associação. É através deste compromisso que podemos entender a intenção dos irmãos que – bem de acordo com o pensamento religioso da época – previam louvar São Miguel com fervor e zelo para conseguir a intercessão deste afim de livrarem-se da condenação do inferno e das penas do purgatório para usufruir da “eterna glória”.

Como um defensor da Igreja Católica e dos fieis, São Miguel conduziria as almas entre as diferentes instâncias e estágios da vida após a morte. A ele eram devotadas orações nos momentos de morte e a ele eram dedicadas diversas missas em intenção às almas pecadoras que se encontravam provisoriamente no purgatório (CAMPOS, 1998; TAVARES, 2008). Tido como intercessor para a salvação das almas, durante o século XVIII, São Miguel era invocado nas orações, com a finalidade de garantir uma boa 1 A primeira mesa administrativa, os fundadores da irmandade, era formada por políticos locais que ocu-param cargos na primeira Câmara municipal de Porto Alegre como o de vereador, tesoureiro e procurador. Os fundadores eram: José Bernardo de Meirelles, João da Costa Severino, Manoel Francisco de Sá, João de Azevedo Moreira, Domingos de Lima Veiga, José Antônio de Vasconcelos, João Pereira Chaves, José Guedes Luiz, Domingos Martins Pereira, José Manoel Henriques, Pedro José de Almeida, José Carneiro Giraldes, Estevão da Silva, Baltazar Manoel Anjo, Manoel Marques de Sampaio e Joaquim José Vieira. Muitos destes nomes podem ser conferidos em SPALDING, 1967, quando este analisa os primeiros gover-nos municipais.

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No decorrer do século XIX outras questões pautaram as discussões dos irmãos de São Miguel, como o interesse em construir um cemitério, uma igreja própria e edificar um hospital para atender pobres, desvalidos e miseráveis. No entanto, um projeto, de fato, não foi abandonado: o de conseguir seu próprio cemitério. No ano de 1850, a Santa Casa de Misericórdia ganhou a atribuição de administrar um cemitério público extramuros, ficando com a incumbência de enterrar também pobres, desvalidos e escravos. A ISMA, no entanto, não desistiu do intento. Doze anos após a aprovação do regimento do cemitério extramuros, em 1862, num Apêndice ao Compromisso, foi registrado: “a irmandade, só

ou junta a outras irmandades, pedirá à Assembleia Provincial autorização para edificar

um cemitério”2.

Para não deixar de oferecer aos seus irmãos enterros em locais privados sob a proteção de São Miguel, a Irmandade comprou um terreno dentro do espaço cemiterial da Santa Casa de Misericórdia, em 1866. Foi o provedor Joaquim Maria de Azevedo Guerra quem propôs à Santa Casa a compra de uma quadra de terreno localizada a leste do quadro então existente.

O espaço cemiterial no interior do cemitério da Santa Casa era particular, mas a ISMA ainda não estava totalmente satisfeita e, portanto, não abandonou o projeto de possuir um cemitério próprio. Apenas no início do século XX, os irmãos conseguiram adquirir o primeiro terreno – dos muitos anexos que seriam feitos nestas primeiras décadas – e que daria lugar ao chamado “novo cemitério”.

Em 1907, o provedor da irmandade consultou a mesa sobre a autorização para a compra de terreno para o “alongamento do cemitério”, uma vez que “a irmandade já está lutando (...) por falta de espaço”3. A compra foi feita, iniciando-se logo as obras de construção de catacumbas para, em 1909, inaugurarem o cemitério. Foram construídas 48 catacumbas no novo cemitério, número considerado muito “diminuto” pelos irmãos, por estarem, já em 1910, “quase todas ocupadas”4.

Assim, a partir do final da primeira década do século XX, a ISMA estaria com um novo cemitério e suas atenções voltaram-se quase que exclusivamente para ele. Até a década de 1940, grandes foram os empreendimentos, o aumento e as mudanças do cemitério. A irmandade sempre esteve preocupada em bem cuidar das atividades cemiteriais e dos mortos. Após a inauguração de seu cemitério, a irmandade passou a dispensar toda sua atenção às práticas fúnebres, o que levou o irmão José Maria Granja a observar em 1910, num tom crítico, que irmandade “só presta homenagens aos mortos”5.

2 Nosso grifo, Ata, 18 dezembro 1862, fl. 3-6.

3 ISMA (Irmandade São Miguel e Almas), Ata, 25 julho 1907, fl. 5. 4 ISMA, Ata, 17 março 1910, fl. 25.

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Esta comunicação, então, tem por objetivo refletir sobre morte e práticas fúnebres6 e cemiteriais nas primeiras décadas do século XX, a partir da documentação da irmandade São Miguel e Almas, principalmente das atas, que tratam dos registros da gerência administrativa e religiosa da irmandade e do cemitério7. Logo, abordar as questões que pautavam as discussões da época, como a compra de terrenos para ampliação do cemitério, a construção de catacumbas, a perpetuação de jazigos de família, as reformas e mudanças nos transportes fúnebres, a presença da Igreja e dos irmãos no cemitério a realizar consagrações religiosas, pronunciamentos e discursos, e por fim, a verticalização e modernização do cemitério, é pensar a morte, é refletir sobre suas representações, sobre o imaginário e os sentimentos de uma época, e sobre as atitudes e formas como foram concebidos os locais dos mortos. Por isso, se se verificar as mudanças cemiteriais e práticas fúnebres é pensar sobre a morte, o contrário também é correto: a análise da morte no século XX implica, também, no exame das práticas fúnebres e dos cemitérios.

Morte e práticas fúnebres

Nas primeiras décadas do século XX, o cemitério foi crescendo, aumentando seu espaço físico, devido as constantes compras de terrenos anexos. Novos túmulos iam sendo construídos e podiam ser arrendados ou perpetuados, de acordo com a vontade e a condição financeira dos irmãos. Perpetuar um túmulo – fosse sepultura ou catacumba – foi uma prática apreciada pelos irmãos que tinham seus parentes enterrados no cemitério. Ela significava perpetuar a lembrança individual ou familiar, auxiliando na construção de imagem ideal de existência (RIBEIRO, 2008: 16). Túmulos perpétuos, de família, podiam abrigar várias gerações; nesse caso, as catacumbas adquiriam e forneciam marcas de identidade familiar, tão valorizadas nesse período, especialmente para os mais favorecidos socialmente. O cemitério tornava-se, então, naturalmente, seletivo socialmente em função dos custos de adesão, associação e arrendamentos. Pobres em geral, miseráveis ou operários, não tinham representatividade entre os irmãos ou mesmo na lista de perpetuidades de terrenos. Pela leitura das atas e análise das imagens dos túmulos, percebem-se a participação de políticos, funcionários públicos, militares e comerciantes. A imagem abaixo mostra o túmulo do mineiro Carlos Peixoto Filho (1871-1917), político mineiro que participou da assembleia que anistiou os marinheiros da Revolta da Armada, vindo a faleceu em 1917, vítima de tuberculose, aos 46 anos8.

6 As práticas fúnebres da irmandade eram representações, isto é, formas institucionalizadas de relação com o mundo social, que denotam, simbolicamente, as concepções de morte e morrer do grupo social que a constituía.

7 Para cada administração, diferentes eram as inquietações, sendo que as temáticas mais recorrentes nas atas eram aquelas que moviam o interesse coletivo dos irmãos ou da mesa em contextos específicos. 8 Disponível em http://www.uba.mg.gov.br/mat_vis.aspx?cd=6579. Acessado em 10 maio 2012.

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FONTE: ISMA

Para essa camada mais abastada do ponto de vista econômico, possuir uma tumba perpétua e rica em detalhes, com monumentos e imagens religiosas, podia significar proteção, descanso eterno e distinção. Nem sempre, porém, os irmãos adquiriam autorização da mesa administrativa para erigir mausoléus de familiares mortos a seu bel prazer e próprio gosto, pois havia a necessidade de observar normas estéticas reconhecidas pelas mesas administrativas, como por exemplo, a obrigação de se colocar, nos túmulos, pedras de mármore, como se percebe na imagem abaixo, de 1923.

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FONTE: ISMA

A essa vontade de se destacar o túmulo familiar no cemitério, com jazigos decorados com arte sacra em mármore, deve-se atentar para o fato de o cemitério ser um lugar de reprodução simbólica do universo social (URBAIN, p.85). Na Europa, a perpetuação de túmulos já vinha ocorrendo desde meados do século XIX. Interessante notar que em 1857, ano da publicação na França de O Livro dos Espíritos, Allan Kardec trazia a opinião do que viria se consolidar como Espiritismo, dizendo ser a perpetuação um ato de orgulho e a suntuosidade dos monumentos fúnebres uma determinação dos parentes que desejam honrar a memória do falecido. Destacava que os parentes queriam se glorificar a si mesmos e que todas estas demonstrações eram para ostentar sua riqueza (KARDEC, p.321).

No entanto, mesmo com a busca de status social, é possível perceber aí novas concepções de morte, que implicavam muito mais gastos, mas não menos sentimentos. As intensas visitas feitas ao cemitério (os mesários da irmandade, por exemplo, realizavam visitações semanais), a construção de túmulos grandiosos para expressar a lembrança de modo peculiar e particular do morto – cada família escolhia o formato e as esculturas para seus jazigos – e a valorização da memória individual e identidade familiar parecem confirmar que acompanhando o desejo de distinção social na morte, os túmulos, como o da imagem abaixo, em todo o seu simbolismo indicavam a dificuldade de encarar a morte, a perda, a ausência.

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Fonte: ISMA

Estas primeiras décadas do século XX se caracterizaram pela intensificação do culto aos mortos no cemitério, resultante, em grande medida, da privatização dos túmulos – mediante concessão perpétua –, e que permitiu que fossem, simbolicamente, reforçados os elos do parentesco (CATROGA, 2010). Estas atitudes secularizadas diante da morte acentuavam a importância do monumento fúnebre, como elemento capaz de preservar a memória do defunto, de salvar a alma, ou, então, de garantir imortalidade na memória dos vivos. De toda forma, a catacumba, o mausoléu e o jazigo contribuíam para atenuar a “angústia da morte” efetivamente sentida pelos sobreviventes enlutados.

Portanto, catacumbas e túmulos, comprados e perpetuados, foram práticas comuns no cemitério da ISMA, a garantir juntamente com a dimensão cerimonial do ritual fúnebre, o que se considerava no período uma boa morte.

A compra e perpetuação do jazigo de família eram mudanças que se davam no caráter dos funerais, que passavam a ser mais privados, quando comparados às práticas fúnebres dos séculos XVIII e XIX, que envolviam irmandades com seus pálios, sinos, opas, na organização de verdadeiras procissões fúnebres. Modificava-se a concepção de como gerenciar essas práticas, mas no início do século XX, os funerais eram ainda bastante públicos, publicizados e ostentados. Eduardo Prado – membro do IHGB no final do século XIX – destacou sobre a cidade de São Paulo: “Músicas, sanefas pretas, quilômetros de discursos, banalidades das coroas, tolices das dedicatórias. Negociantes e pedantes, ganhando a sua vida! Ruído, palavras, poeira mesquinha, tudo isto. Paz! Paz! Paz! Para

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o morto. Para fora todos os que vêm fazer ruído à porta do templo de Imortalidade” (LEONZO, 1983: 84). Essa passagem demonstra o quanto a dimensão pública da morte e a freqüência ao cemitério eram constantes entre o final do XIX e o início do XX e também demonstra expressões de sensibilidade no desejo de silenciar no cemitério e de paz aos mortos. O comparecimento a enterros era, inclusive, divulgado na imprensa, sob a forma de convites e considerado – até, pelo menos, a década de 1940 – como “ato de caridade cristã”, “ato de religião” e “ato de caridade”9.

Um outro fator a evidenciar as novas práticas fúnebres em Porto Alegre e representações da morte foi a compra e reforma de carros fúnebres. Se, era tempo de exibir nos funerais e nos cemitérios a distinção social com intenção de promover a admiração e valorização do morto ou da família do mesmo, o transporte fúnebre era um elemento fundamental. Ícone do refinamento, bom gosto e posteriormente de modernidade, a carruagem fúnebre com suas parelhas devidamente paramentadas ou o auto-fúnebre, já na década de 1920, transformavam as práticas fúnebres em acontecimentos públicos.

As pompas barrocas do XVIII e parte do XIX, marcadas por cantorias, são substituídas, nas primeiras décadas do século XX, por pompas majestosas, caracterizadas pela beleza do enterro, pela associação entre morte e arte, com obras artísticas e arquitetônicas a indicar a modernidade e o progresso.

No final do século XIX, duas companhias de carruagens atenderam a irmandade através da firmação de contratos: a do irmão Franklin Ferrugem e a de Roberto Mariante. Cavalos providos de adereços, carros cobertos de panos em evidência, cocheiros devidamente fardados conferiam destaque ao cortejo fúnebre, já que um bom carro fúnebre para a condução dos mortos fazia parte da pompa que consolava os vivos, sendo ainda um elemento de destaque da procissão fúnebre. A suntuosidade da morte não perdia suas características no início do século XX, ao contrário, era reforçada pelos carros, pela decoração dos mesmos com folhas de ouro, metais, molduras e demais aparatos.

A irmandade se empenhou em possuir mais de um carro fúnebre, sua própria garagem, e em contratar, ela própria, seu chauffeur. Símbolos de prestígio para uma classe social mais acomodada, os carros mais bem equiparados faziam a diferença entre pessoas notórias e pessoas comuns. Os adornos dos carros tornavam o funeral mais bonito, atrativo e importante simbolicamente aos olhos da população, constituindo-se em certo espetáculo fúnebre, do qual podiam usufruir certos grupos sociais. Por isso, no final da década de 10, a irmandade buscou transformar suas carruagens em automóveis, trocando pneus de 9 Veja-se os exemplos de anúncios fúnebres nos jornais de São Paulo – Correio Paulistano, Folha de São Paulo, Folha da Manhã e O Estado de São Paulo – anexados no artigo de WITTER, 1983: 90-99. Essa atenção religiosa ao enterro já era divulgada amplamente pelos católicos desde pelo menos o século XVIII. Dizia João de Castro: “Enterrar os mortos é a sétima obra corporal de misericórdia que estabelece a doutri-na católica” e “a sétima obra espiritual de misericórdia é rogar a Deus pelos vivos e defuntos”. CASTRO, 1882, p. 281.

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madeira e chapa metálica por pneus de borracha e, principalmente, substituindo as parelhas de cavalos por um motor, uma máquina capaz de produzir o movimento. A irmandade foi se especializando no transporte fúnebre, implementando constantes reformas nos carros até substituir totalmente a tração animal pela tração motorizada, um elemento novo e moderno nas práticas fúnebres. Mas tal substituição foi lenta, consolidando-se apenas nos anos 1920. Carruagens e automóveis ainda dividiriam por muito tempo as ruas de acesso ao cemitério.

Estas mudanças nas concepções cemiteriais eram reflexos das transformações pelas quais passavam a sociedade e pelos novos modos de representar a morte. Com o constante aumento da perpetuação de túmulos e jazigos e com a motorização dos carros fúnebres, o cemitério São Miguel e Almas cresceu, ganhando novas proporções com suas obras de prolongamento, como chamavam os irmãos. Em 1930, registraram orgulhosos, possuírem um cemitério “sem similar em nosso país e quiçá na América Latina”, referência às obras de verticalização, que ocorriam desde a década de 1920, conforme se percebe na imagem abaixo, seguindo modelos europeus. A construção era de “elevadas proporções” e, na opinião do irmão Eduardo Duarte, “bela na sua grandiosidade, no seu formoso estilo, despertando a atenção de todos pela originalidade”. Essa expansão foi reflexo da demanda por enterramento nos moldes católicos, da moderna concepção de morte e cemitério que se construía, já que os novos túmulos trariam um “suave conforto” aos “mortos queridos”, numa evidente referência ao simbolismo funerário como simulação da “presença” do ausente, ou nas palavras de Fernando Catroga, na “poética da ausência” (2010: 39).

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A cada novo espaço cemiterial adquirido ou construído, bênçãos cristãs eram expedidas a partir da presença do Arcebispo. A morte estava no âmbito do sagrado, o cemitério privado da irmandade era o lócus religioso, ainda tratado como “campo santo”, um reduto católico que tanto agradava àqueles que por ele podiam pagar e que desejavam a distinção e diferenciação, preservando a tradição e a identidade religiosa. Em tempos de secularização, mas não de descristianização – pois a sociedade não perdeu seus sentimentos religiosos e não deixou de manifestá-los – o cemitério São Miguel e Almas assumia valores cristãos e clericais.

As relações da irmandade com a Igreja foram intensas, tanto que no ano de 1931, o provedor lembrava que “as considerações expedidas pela Cúria Metropolitana merecem todo o acatamento, pois a Irmandade nasceu no seio da Igreja Católica e aí se tem mantido até hoje com honra e dignidade”10. E a Igreja não deixava de se pronunciar sobre a morte. No Boletim Eclesiástico Unitas, instruía como o clero deveria tratar o corpo morto: para os defuntos que fossem transportados diretamente para o cemitério, dever-se-ia aspergir, “segundo o costume”, o cadáver com “água benta” e, em meio a versículos cantados, realizar o ritual de absolvição do corpo presente no túmulo11.

Se a hierarquia eclesiástica estava presente, não menos assíduos nas visitas ao cemitério eram os irmãos e as famílias dos mortos, pois estas primeiras décadas do século XX eram tempos de culto aos mortos e aos túmulos. Especialmente nos dias de finados, haviam verdadeiras “romarias à necrópole nos primeiros dias de novembro” (PIMENTEL, 1945: 507). O finados era ocasião de ritos e solenidades, de orações aos mortos e discursos públicos cerimoniais dos irmãos de São Miguel, mas também de comércio de flores e alimentos. O cemitério, assim, ganhava uma dimensão de sociabilidade (MOTTA, 2009: 80), por se constituir em espaço onde a coletividade compartilhava momentos de devoção, cultos e rituais relativos à morte, onde não apenas se assegurava um bom lugar para o morto no além, mas, também, de um lugar na terra, mantido sob os cuidados das famílias, da irmandade e do Arcebispo.

CONSIDERAçõES FINAIS

As práticas fúnebres da irmandade São Miguel e Almas representam bem a compreensão da morte e os modos de encará-la nas primeiras décadas do século XX. Com a importância atribuída, no cemitério, aos túmulos, aos jazigos, aos mausoléus, aos adornos e às esculturas, tem-se o que se configurou chamar de “culto aos túmulos” e, conseqüentemente, aos mortos. A materialidade do túmulo, privado e perpetuado aponta 10 ISMA, Ata, 31 agosto 1931, fl. 163.

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para a morte sob a alçada familiar, com pleno domínio sob o destino do espaço destinado à lembrança do corpo, a garantir memória e identidade de um grupo.

A partir de 1909, o cemitério católico São Miguel e Almas serviu a uma parcela da sociedade porto-alegrense expressarem seus pesares pela perda dos entes queridos em construções grandiosas e esteticamente belas em arte, para gerar efeitos afetivos, edificar a memória e negar a morte, o ausente (CATROGA, 2010: 168) As perpetuações ajudavam a construir o sentimento de auto-reconhecimento dos parentescos e o patrimônio simbólico de reprodução do grupo familiar (CATROGA, 2010: 174).

Somada a este desejo de visibilidade, distinção e negação da morte, estavam as conduções fúnebres, que passaram a apresentar certo requinte, pois, somados à novidade do motor, receberam apurada decoração. Mesmo com a transição da tração animal para a tração motorizada, as carruagens não deixaram de circular nos espaços públicos da cidade, em direção aos cemitérios, seja como conduções fúnebres, seja como meio de transporte para os visitantes.

Quando no cemitério, vivos e mortos transitavam, missas eram rezadas, discursos eram proferidos, bênçãos realizadas e visitas recebidas. A aproximação dos mortos e do mistério da morte, levava os vivos a procurar o entendimento religioso. Embora, como se tem dito, no século XX a morte é alcança um estágio de tabu, na medida em que sobre ela se deve silenciar e dos cemitérios se deve distanciar, pelo terror que provocam (ARIÈS, 2000; CYMBALISTA, 2002), no cemitério São Miguel e Almas de Porto Alegre havia aproximação e presença de irmãos leigos e religiosos, dada as constantes reformas pela qual passou nas primeiras décadas do XX.

Quando da inauguração de uma nova galeria de catacumbas, o irmão Eduardo Duarte, em discurso destacou:

Meus irmãos. Façamos silêncio por um momento; recolhamos o nosso espírito, aliciando-o das exterioridades da vida; volvamos o olhar para além, para o desconhecido, para o mistério do insondável desconhecido, onde os sentidos materiais não penetram; pelos que tão caros nos foram na vida, deixando-nos imersos num mar de funda saudade; pelos nossos mortos, pelos nossos irmãos – o nosso pensamento admirativo, o nosso respeito, a nossa homenagem.

A expressão “façamos silêncio por um momento”, não indica o silenciar de “não falar sobre”, mas é indicativa de uma sensibilidade que indica a necessidade de aproximar-se dos mortos e do mistério da morte, procurando entendê-los religiosamente. A ideia de silêncio aqui destacada estava possivelmente carregada do sentido de aproximação, entendimento, contato entre dois mundos e expressão de sentimentos. A morte, no discurso do escrivão, era um além desconhecido e, aos vivos, restava o “mar de funda saudade”, admiração e a homenagem.

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Dessa forma, a morte no período aqui analisado esteve entre a ostentação e o pesar, representados pelas práticas fúnebres que a documentação nos permitiu revelar. Nas primeiras décadas do século XX, a Irmandade São Miguel e Almas esteve voltada aos mortos e a morte adquiriu majestade, sendo, nas palavras de Philippe Áries, a “rainha do cemitério” (2000: p. 139).

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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CASTRO, João Mestre da Vida que ensina a viver e morrer santamente. Novamente correto por um Religioso da Ordem dos Pregadores e oferecido à Virgem Santíssima do Rosário por mãos da sua prodigiosa imagem que se venera na Vila do Barreiro. Nova edição. Lisboa: Editores Rolland & Semiond, 1882.

CATROGA, Fernando. O culto dos mortos como uma poética da ausência. ArtCultura, Uberlândia, v.12, n.20, p.163-182, jan.-jun. 2010.

CYMBALISTA, Renato. Cidades dos vivos. Arquitetura e atitudes perante a morte nos

cemitérios do estado de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2002, p. 82-83.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 130ª Ed. Araras/SP: IDE, 2000.

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PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Porto Alegre. Volume 1 e 2. Porto Alegre: Imprensa Oficial, 1945.

RIBEIRO, André Luiz Rosa. Urbanização, poder e práticas relativas à morte no sul da

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TAVARES, Mauro Dillmann. Irmandades, Igreja e devoção no sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos/Unisinos, 2008.

URBAIN, Jean-Didier. La Société de Conservations. Étude sémiologique dês cimetiéres

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