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LIÇÕES DO FEDERALISMO FISCAL ESPANHOL PARA O BRASIL: A BUSCA POR EQUIDADE TERRITORIAL NA OFERTA DE POLÍTICAS SOCIAIS. Márcia Miranda Soares

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LIÇÕES DO FEDERALISMO FISCAL ESPANHOL PARA O BRASIL: A BUSCA POR EQUIDADE TERRITORIAL NA OFERTA DE POLÍTICAS SOCIAIS

Márcia Miranda Soares

Publicus – Núcleo de Estudos em Gestão e Políticas Públicas

Departamento de Ciência Política

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG

Encarnación Murillo García

Grupo de investigación de alto rendimiento en Análisis Económico de las Políticas Públicas

Departamento de Economía de la Empresa (ADO), Economía Aplicada II y Fundamentos Análisis Económico

Universidad Rey Juan Carlos – URJC

12º Encontro da ABCP

Área Temática: Estado e Políticas Públicas 19 a 23 de outubro de 2020 – Evento online

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RESUMO

O objetivo do artigo é analisar, sob a perspectiva da equidade, o financiamento de duas políticas sociais, pilares do Estado de Bem-Estar Social e com alto grau de descentralização territorial na Espanha e no Brasil: educação básica e saúde. Isso é feito a partir da comparação das desigualdades socioeconômicas e fiscais dos governos subnacionais nos dois países e dos mecanismos e resultados na correção dessas desigualdades no financiamento dessas políticas. A análise comparada dos dois países utiliza bibliografia especializada, legislação nacional e documentos governamentais para descrever os desenhos das duas políticas e seus mecanismos de financiamento. Fontes secundárias de dados fiscais são utilizadas para apresentar os gastos das unidades governamentais com cada uma das políticas, o que possibilita discutir as diferenças nas desigualdades territoriais no financiamento da educação e da saúde nos dois casos. A conclusão geral é que a experiência espanhola é um modelo bem-sucedido de correção dos desequilíbrios fiscais horizontais, com destaque para um desenho institucional que garante elevado nivelamento de gastos sociais às Comunidades Autônomas. Por isso, apresenta importantes lições para o caso brasileiro, que configurou seu federalismo fiscal com pouca preocupação em conciliar distribuição de competências, de recursos e equidade, o que resultou em um quadro bastante desigual de financiamento das políticas sociais universais entre estados e municípios.

Palavras-chave: Federalismo fiscal, Políticas Sociais, Equidade, Espanha, Brasil.

ABSTRACT

Lessons from Spanish Fiscal Federalism to Brazil: the search for equality in social policies

The objective of the article is to analyze, from the perspective of equity, the financing of two social policies, pillars of the Welfare State and with a high degree of territorial decentralization in Spain and Brazil: basic education and health. This is done by comparing socioeconomic and fiscal inequalities of subnational governments in the two countries and the mechanisms and results in correcting these inequalities in financing these policies. The comparative analysis of the two countries use specialized bibliography, national legislation, and governmental documents to describe the designs of the two policies and their financing mechanisms. Secondary sources of fiscal data are used to present the expenditures of government units with each policy, which will make it possible to discuss differences in territorial inequalities in the financing of education and health in both cases. The general conclusion is that the Spanish experience is a successful model for correcting horizontal fiscal imbalances, with emphasis on an institutional design that guarantees a high level of social spending in the Autonomous Communities. Therefore, it presents important lessons for the Brazilian case, which shaped its fiscal federalism with little concern in reconciling distribution of skills, resources and equity, resulting in a rather unequal framework of financing universal social policies between states and municipalities.

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INTRODUÇÃO

Brasil e Espanha são países que abandonaram o centralismo autoritário na terceira onda de democratização (Huntington, 1994), que se iniciou na Europa meridional com Portugal, Grécia e Espanha e estendeu-se para América Latina nos anos 70 e 80, abarcando Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Peru e Uruguai, entre outros. São também países que associaram ao processo de democratização iniciativas de descentralização territorial e busca por avanços no Estado de Bem-Estar Social (EBES). Contudo, são realidades que apresentam um legado e uma situação socioeconômica bem distintos.

A despeito da economia brasileira figurar entre as maiores do mundo, ocupando a 8ª posição do PIB em PPP (Purchasing Power Parity), enquanto a espanhola ocupava a 15ª posição em 2017 (CIA, 2020a), seus indicadores de bem-estar são bem inferiores. O PIP per capita PPP brasileiro, de U$15.660,00 em 2017, não alcançou nem metade do valor do PIB per capita espanhol no mesmo ano, sendo este de U$38.300,00 (CIA, 2020b). No Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 2018, a Espanha se situava dentre os países de muito alto desenvolvimento humano, na 25ª posição mundial e com pontuação de 0,893; enquanto o Brasil se situava no grupo de alto desenvolvimento, na posição 79ª, com 0,761 pontos (UNDP, 2020). Em desigualdade na renda familiar medida pelo Gini, para o ano de 2017, a Espanha apresentava o valor de 0,347, índice bem inferior ao 0,533 do caso brasileiro, que colocava o país nas primeiras posições em desigualdade no mundo (Banco Mundial, 2020a). Esses dados indicam que o objetivo comum de avanço em um Estado de Bem-Estar social, presente nas duas constituições, a Constituição Espanhola de 1978 (CE/78) e a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), se apresenta com muitos maiores desafios para a democracia brasileira.

E dentre os principais desafios para o Brasil se encontra minimizar as desigualdades sociais, cujas causas são multivariadas, assim como os instrumentos disponíveis ao Estado para combatê-las. Esse artigo analisa a equidade territorial horizontal no financiamento de políticas sociais, que diz respeito a igualdade de receitas entre entes governamentais para fazer frente às suas necessidades de gastos, e um aspecto institucional importante para sua promoção: o federalismo fiscal em dois países descentralizados1. Mais especificamente, o objetivo é apresentar e analisar, em perspectiva comparada, os modelos atuais de financiamento das políticas de educação básica e saúde, configuradas como universais e com

1 A Espanha apresenta características que possibilitam defini-la como um Estado federal, como a faz o Forum of Federations (http://www.forumfed.org/). Contudo, o termo é controverso no país e não aparece na CE/1978, que caracteriza a forma de Estado como “Estado Autonômico” e o processo de descentralização de poder territorial a partir de “Comunidades Autônomas”. Já o termo federalismo fiscal encontra maior acolhida na literatura científica para designar o sistema de financiamento das Comunidades.

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alto grau de descentralização na Espanha e no Brasil, e seus resultados em termos de equidade nos gastos subnacionais.

São duas as perguntas que guiaram a investigação: como se estrutura o federalismo fiscal na Espanha e no Brasil, na perspectiva de promoção de equidade no financiamento de políticas sociais entre os entes subnacionais, especificamente na educação básica e na saúde? À luz da experiência espanhola, quais as principais diferenças do caso brasileiro e que aspectos daquela experiência podem servir de referência para reformas no federalismo fiscal brasileiro rumo à maior equidade?

A pesquisa adotou métodos mistos de investigação social. O estudo qualitativo utilizou legislação nacional, literatura acadêmica e documentos governamentais para apresentar o desenho das duas políticas sociais, destacando a distribuição de competências e os modelos de financiamentos. A parte quantitativa fez uso de indicadores socioeconômicos e fiscais dos dois países para caracterizar as desigualdades territoriais entre eles e, principalmente, as diferenças subnacionais de recursos e gastos com as políticas de educação e saúde. As fontes secundárias utilizadas incluem agências internacionais como Banco Mundial, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Organização Mundial da Saúde, entre outros, e bases de dados disponíveis em Brasil e Espanha, destacadamente de agências governamentais.

Os resultados apontam que a Espanha é exemplo bem-sucedido de equalização no financiamento das políticas sociais entre os entes subnacionais, as Comunidades Autônomas (CCAA), porque apresenta um modelo de transferências intergovernamentais (tigs) desenhado para esse propósito. Já o modelo brasileiro, com maiores desafios que o espanhol em função de um grande passivo de desigualdades sociais, apresenta um sistema complexo de financiamento das políticas sociais, com grande variação entre as políticas de educação básica e saúde, e pouco efetivo na equalização dos gastos entre os níveis subnacionais de governo.

O artigo está organização em quatro seções, além dessa introdução e das conclusões. A primeira seção sintetiza a teoria sobre federalismo fiscal e sua relação com equidade territorial na execução de políticas sociais A segunda seção apresenta o quadro das desigualdades econômicas e fiscais em Espanha e Brasil a partir de alguns indicadores dos entes governamentais: PIB per capita e participação nas receitas e gastos públicos per capita – aqui se compara as comunidades autônomas espanholas com estados e municípios brasileiros. A terceira seção apresenta breve desenho das políticas de educação básica e saúde, destacando o sistema de financiamento dessas políticas, e o quadro de desigualdades

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entre os entes subnacionais dos dois países nos gastos com cada uma das políticas. Por fim, como conclusões, são discutidas as lições o caso espanhol pode oferecer para o caso brasileiro, na direção de promover maior equidade territorial nos gastos sociais, com a definição de pontos de aperfeiçoamento para o federalismo fiscal.

1. FEDERALISMO FISCAL E DESIGUALDADES TERRITORIAIS

O federalismo fiscal, de forma sintética, pode ser entendido como a distribuição das competências de tributação e gastos entre os entes governamentais dotados de autonomia em um sistema político descentralizado. Essa distribuição resultará em graus diferenciados de participação dos governos subnacionais no total de receitas e gastos públicos, consistindo esses em importantes indicadores de descentralização fiscal em um país. Contudo, conforme Rodden (2005), é preciso considerar também a distribuição de competências normativas aos governos para melhor configuração do federalismo fiscal. O autor sustenta que “a descentralização do gasto governamental pode dizer muito pouco sobre o locus da autoridade” (p.11), sendo necessário verificar também “a estrutura regulatória das finanças subnacionais”. Isso porque um governo subnacional pode ter grande participação nas receitas e gastos públicos, mas estar fortemente constrangido por leis do governo central em relação à destinação dos recursos, em termos de políticas e beneficiários.

Os efeitos do federalismo ou da descentralização fiscal sobre os governos e as políticas públicas é um tema clássico da literatura política e econômica, mas com variações importantes. Um aspecto fundamental do debate contrasta duas correntes de autores: os preocupados com a eficiência política e econômica (Tiebout, 1956; Oates, 1972; Musgrave, 1983 e outros) e os preocupados com a equidade social (Pierson, 1995; Dafflon e Vaillancout, 2003; Obinger, Leibfried e Castles, 2005, Boadway, 2006; dentre outros). Situado nesta segunda corrente, o que não significa a exclusão do desiderato de eficiência, o presente trabalho analisa os mecanismos de repartição de recursos entre as Comunidades Autônomas espanholas, cuja última reforma nacional data de 2009, que proporcionaram avanços importantes na equalização do financiamento das políticas sociais de educação e saúde; e que lições para o caso brasileiro podem ser derivados dessa experiência.

Os que buscam associar o federalismo a maior eficiência nos gastos públicos enfatizam os benefícios da descentralização fiscal ao aproximar governos e cidadãos, e valorizam a competição na oferta de políticas públicas como meio para maior qualidade e menores custos. Um dos pressupostos dessa perspectiva é que os cidadãos podem se comportam no setor público de forma semelhante ao mercado, o que significa a possibilidade de eles escolherem as melhores localidades e governos na oferta de políticas públicas. O que é questionável, dado que a escolha por localidades e governos padece de anomalias que

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também se verificam na lógica de competição do mercado, como a assimetria informacional. Sem contar que essa é influência também por outros aspectos socioeconômicos, como vínculos comunitários, laços familiares, empregabilidade, fazendo essa escolha ser resultado de múltiplos fatores.

Sob a perspectiva da equidade, pode-se defender o seu alcance como um fim em si mesmo, ou seja, todos os cidadãos de um país deveriam ter acesso a bens e serviços públicos que lhe permitam uma vida digna. É também preciso destacar que a perspectiva de um Estado de bem-estar social entende a importância de conciliar equidade com eficiência, o que algumas vezes pode significar uma interação positiva, quando diminuir as desigualdades proporciona desenvolvimento econômico, e o caso da educação pública é o mais lembrado neste aspecto. Porém, há também situações concretas nas quais aumentar a equidade pode significar perda de eficiência. É exemplar as transferências intergovernamentais, que são essenciais na equalização de gastos sociais, mas que também distanciam quem arrecada de quem gasta, o que pode estimular o mau uso dos recursos públicos pelos governos, principalmente quando essas transferências são incondicionais e pouco controladas. Como distinguir e lidar com essas situações?

Primeiro, é preciso romper com uma simplificação valorativa na análise da descentralização, que “não é boa nem ruim para a eficiência, equidade ou estabilidade macroeconômica; os seus efeitos dependem de desenho institucional específico.” (Litvack; Ahmad and Bird, 1998, p. vii). Segundo, a análise empírica e comparada possibilita identificar diferentes modelos institucionais com resultados distintos sobre as políticas públicas. Nessa linha, a proposição desse artigo é que o modelo espanhol pode servir de referência para o caso brasileiro na correção de inequidades territoriais nos gastos sociais.

O foco do trabalho está na equidade horizontal, mas considera também a equidade vertical. Essa última diz respeito a congruência entre competências tributárias e gastos, ou seja, quanto cada nível de governo dispõe para financiar suas necessidades de gastos por meio de sua arrecadação própria (León, 2015, p. 107). A equidade vertical estimula a transparência e a eficiência nos gastos públicos, ao aproximar quem arrecada de quem gasta, sendo um princípio a ser buscado no desenho do federalismo fiscal. Contudo, é uma realidade distante na maioria dos países, dado que as receitas obtidas por meio de tributos pelos entes subnacionais, geralmente, são insuficientes para financiar as necessidades de gastos no cumprimento de suas competências. As principais causas desse desequilíbrio são econômicas, ganhos de escala em uma arrecadação mais centralizada ou baixa capacidade de arrecadação própria dos territórios mais pobres; ou políticas, interesse do nível central em controlar a arrecadação e sua distribuição. O mecanismo para corrigir esse gap tem sido as transferências intergovernamentais do governo central.

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As transferências intergovernamentais são, ainda, o principal mecanismo utilizado em experiências federativas, mas também unitárias, para promoção da equidade horizontal, que corresponde a capacidade fiscal dos governos subnacionais para fazer frente a suas necessidades de gastos. As inequidades neste aspecto são derivadas, predominantemente, das desigualdades socioeconômicas entre os territórios, o que “faz com que os territórios mais pobres tenham menor capacidade fiscal para cobrir suas necessidades de gasto, ou ainda que em determinados territórios seja mais custoso prover serviços (e, portanto, suas necessidades de gastos são maiores).” (León, 2015, p. 109)

Países apresentam diferentes graus de desenvolvimento econômico ao longo do seu território. Essa é uma lógica definida a partir da dinâmica histórica e das relações econômicas atuais. A perspectiva de um Estado de Bem-Estar Social é que as desigualdades na produção de riquezas não se traduzam em proporcional desigualdades nas condições de vida dos cidadãos. Para isso, é necessária a atuação do governo central no sentido de definir regras para a distribuição de recursos e gastos entres os entes, de forma a prover acesso universal e mais igualitário a políticas sociais, dentre essas a educação básica e a saúde. As transferências intergovernamentais têm papel destacado na promoção de maior equidade territorial – vertical e horizontal - no financiamento das políticas sociais.

2. DESIGUALDADES ECONÔMICAS, TRANSFERÊNCIAS INTERGOVERNAMENTAIS E DESEQUILÍBRIOS FISCAIS

O Brasil é um país mais desigual territorialmente que a Espanha. O PIB PPC Per Capita brasileiro não alcançou metade do valor espanhol (U$15.660,00 contra U$38.300,00, em 2017, conforme CIA, 2020b). O PIB PC das unidades subnacionais, considerando as CCAA e os estados brasileiros para 2017, conforme Tabela 1, mostra um quadro bem mais desigual nos estados. A diferença entre a Comunidade de maior PIB PC (Madri) e menor (Estremadura) é quase o dobro (1,9); enquanto entre São Paulo e Maranhão é bem mais que o triplo (3,6). 25% das CCAA mais ricas têm, em média, € 31.610,00 de PIB PC, contra € 19.190,00 das 25% mais pobres; 25% dos estados brasileiros mais ricos têm, em média, R$ 38.711,00 de PIB PC, contra R$ 14.945,00 dos 25% mais pobres. O coeficiente de variância entre os estados brasileiros é de 0,39, quase o dobro daquele encontrado para as CCAA, de 0,21.

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Tabela 1: PIB Per Capita das CCAA, em Euros, e dos Estados Brasileiros, em Reais (2017)

Espanha (1) Brasil (2)

PIB PC, em Euros - CCAA PIB PC, em Reais – Estados

Nacional 24 969 Nacional 31 089

Comunidade de Madri 34 041 São Paulo 45 796

País Basco 32 167 Rio de Janeiro 38 659

Navarra 30 508 Santa Catarina 38 220

Catalunha 29 722 Rio Grande do Sul 37 044

Ilhas Baleares 27 134 Paraná 36 588

Aragão 27 115 Mato Grosso 35 961

La Rioja 26 528 Mato Grosso do Sul 34 304

Castela e Leão 23 169 Espírito Santo 27 891

Cantábria 22 767 Minas Gerais 27 061

Galiza 22 411 Goiás 26 977

Astúrias 21.981 Rondônia 24 218

Comunidade Valenciana 21 859 Amazonas 22 151

Região de Múrcia 20 766 Tocantins 21 444

Ilhas Canarias 20 457 Roraima 19 176

Castela- Mancha 19 632 Pernambuco 18 879

Andaluzia 18 501 Rio Grande do Norte 18 192

Estremadura 18 170 Bahia 17 994 Amapá 17 963 Pará 17 858 Sergipe 17 554 Ceará 16 098 Acre 15 955 Alagoas 15 767 Paraíba 15 445 Piauí 13 823 Maranhão 12 583

Fontes: 1: ESPANHA, Contabilidad Regional de España - Revisión Estadística (2019); 2. BRASIL, IBGE, Sistema de Contas Regionais – SCR (2018).

Em relação ao tamanho do Estado, medido pela carga tributária em proporção do PIB2, os dois países apresentaram patamares semelhantes ao longo dos anos 2000, com aproximadamente um terço do PIB (33,7% Espanha, e 32,3% Brasil, em 2017). Esses valores são similares aos países da OCDE, cuja média foi de 34,5%, mas bem superiores aos 22,8% da média dos países da América Latina e Caribe.Com isso, tem-se que a Espanha apresenta uma situação mais confortável em termos de pressão tributária, porque apresenta patamares similares aos seus pares. O Brasil, com uma carga tributária bem mais elevada que seus vizinhos, tem como justificativa a necessidade de um Estado com função redistributiva mais acentuada. Contudo, esse argumento fica comprometido quando verificamos a composição da carga tributária brasileira, marcada pela regressividade, dado sua concentração no consumo de bens e serviços, em detrimento de renda, lucro e ganhos de capital, o que penaliza as famílias mais pobres. Neste aspecto, sua realidade é diferente da Espanha e da

2 Todos os dados apresentados sobre carga tributária nesse parágrafo, para Espanha e para o Brasil, são de 2017 e podem ser encontrados em: BRASIL. Ministério da Economia. Receita Federal. Carga Tributária no Brasil 2018: análise por tributos e bases de incidência, março de 2020. Disponível em: https://receita.economia.gov.br/dados/rec eitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf. Acesso em: 27 jul. 2020. Acesso em: 15 set. 2020.

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OCDE: 14,3% da carga tributária brasileira é de bens e serviços, contra 9,8% da Espanha e 11,1%, da OCDE; 7% do PIB é a tributação brasileira sobre renda, lucros e ganhos de capital, contra 9,8% da Espanha e 11,4% da OCDE. O foco do artigo está na distribuição territorial dos gastos sociais, mas vale o registro que a arrecadação injusta de tributos no Brasil sobrecarrega a outra ponta, ou seja, torna mais desafiador a busca de equidade pelo lado das despesas.

A participação dos entes subnacionais nas receitas e gastos públicos totais, em 2018, conforme Gráfico 1, aponta para maior centralização de arrecadação no caso espanhol (72,2% contra 67,5%) e maior centralização de gastos no caso brasileiro (62,3% contra 56,1%). Os estados brasileiros arrecadaram mais que as CCAA (25,9% contra 17,4%) e gastaram menos (22,6% contra 32,4%). Os municípios brasileiros arrecadaram menos que o nível local espanhol3 (6,6% contra 10,4%) e gastaram mais (15,2% contra 11,5%). A diferença entre receitas e gastos remete às transferências intergovernamentais e os dados indicam que elas são mais expressivas, no caso espanhol, no financiamento das CCAA. No caso brasileiro, elas favorecem, principalmente, os municípios. Esse ponto é importante para a discussão que segue sobre o financiamento das políticas de educação básica e saúde, dado que elas são descentralizadas para as CCAA, no caso espanhol, e para estados e municípios, no caso brasileiro.

Gráfico 1: Receitas e Gastos por Nível de Governo, Espanha e Brasil (2018)

Fontes: 1. Espanha: OECD (2020); 2. Brasil: dados de receitas são de: BRASIL. Ministério da Economia. Receita Federal. (2020); dados de gastos são de: Brasil, Secretaria do Tesouro Nacional - STN (2020).

3 Províncias e municípios conformam a administração local espanhola.

72, 2 17, 4 10, 4 56, 1 3 2 ,4 11, 5 67, 5 25, 9 6, 6 62, 3 22, 6 15, 2 G O V . C E N T R A L C C .A A N ÍV E L L O C A L G O V . C E N T R A L CCAA N ÍV E L L O C A L G O V . C E N T R A L E S T A D O S M U N IC IP IO S G O V . C E N T R A L E S T A D O S M U N IC IP IO S R E C E I T A S G A S T O S R E C E I T A S G A S T O S E S P A N H A B R A S I L

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Os tamanhos do Estado espanhol e brasileiro, combinado com a centralização fiscal, que envolve a concentração de receitas no governo central, mas também a capacidade que tem o governo central, nos dois países, em definir regras de distribuição de recursos e direção dos gastos públicos, apontam para a presença de elementos importantes para correção das desigualdades territoriais por meio de transferências intergovernamentais. Contudo, o desenho dessas transferências é fundamental para o alcance desse resultado e, neste ponto, as diferenças entre os dois casos se apresentam e tem implicações diretas no financiamento das políticas sociais.

A Constituição Espanhola de 1978 definiu diretrizes de equidade para as receitas e gastos públicos. Os artigos 31 e 32 estabelecem que “todos contribuirão para a manutenção dos gastos públicos de acordo com sua capacidade econômica, mediante um sistema tributário justo e inspirado nos princípios da igualdade e progressividade (...)” e que “os gastos públicos seguirão uma distribuição equitativa dos recursos públicos, e sua programação e execução responderão a critérios de eficiência e economia”. A Constituição estabelece, ainda, que o orçamento do governo central pode fazer aportes às CCAA, em função da descentralização, e que haverá um Fundo de Compensação com o objetivo de “corrigir desequilíbrios econômicos interterritoriais e fazer efetivo o princípio da solidariedade.” (art. 158).

A Lei Orgânica de Financiamento das Comunidades Autônomas (LOFCA) – Lei nº 8 de 1980 – estabelece dentre os princípios do federalismo fiscal a autonomia financeira das CCAA, a equidade horizontal na prestação dos serviços fundamentais (educação, saúde e serviços sociais)4 e a equidade vertical5. A lei detalha as receitas das CCAA: receitas patrimoniais, tributos próprios, tributos cedidos pelo governo central, aportes adicionais do governo central, participação em fundos, operações de crédito, dentre outros (art. 4). O Conselho de Política Fiscal e Financeira das Comunidades Autônomas, segundo a lei, é o órgão responsável por definir regras de descentralização e repartição tributária, a partir de uma avaliação quinquenal das medidas implementadas.

A Lei nº 8 teve vigência até 1986, quando passou pela primeira reforma. Sem obedecer a periodicidade quinquenal, foram realizadas mais quatro reformas fiscais que modificaram a LOFCA. As cincos reformas vigoraram de: 1) 1987 a 1991; 2) 1992 a 1996; 3) 1997 a 2001; 4) 2002 a 2008; e 5) 2009 até os dias atuais. A última reforma, estabelecida pela Lei Orgânica nº 3/2009 aprofundou a descentralização tributária, aproximando mais receitas e gastos, e o

4 “A garantia de um nível básico equivalente de financiamento dos serviços públicos fundamentais, independente da Comunidade Autônoma de residência.” (art. 2c).

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nivelamento de gastos dos entes subnacionais. A grande inovação foi a criação do Fundo de Garantia dos Serviços Públicos Fundamentais (Fondo de Garantía de Servicios Públicos

Fundamentales), que se tornou o principal mecanismo de equalização horizontal dos gastos

sociais entre as CCAA, buscando nivelar os gastos com saúde, educação e serviços sociais. O Fundo é composto por 75% da arrecadação tributária normativa6 das CCAA e por complementações da Administração Central. A distribuição entre as CCAA é feita através de uma fórmula que calcula as necessidades de gastos das comunidades a partir da população ajustada. Isso significa que o tamanho da população tem o maior peso na distribuição, mas que ela é ponderada por outras variáveis, dentre as quais: o tamanho da população de 0 a 16 anos, como indicador de necessidade de gastos com educação; e o tamanho da população com idade superior a 65, o que indica necessidade de gasto com saúde. O resultado, conforme Gráfico 2, são transferências intergovernamentais das comunidades mais ricas, que arrecadam mais do que suas necessidades de gastos, para as comunidades mais pobres.7

Gráfico 2: Distribuição do FGSPF, Comunidades Autônomas, em Milhões de Euros (2018)

Fonte: Espanha. Ministerio de Hacienda. (2020)

Um desvio importante no desenho de financiamento das CCAA é o chamado regime especial ou foral, estabelecido em 1982, na primeira disposição adicional da CE/78, sob a justificativa de direitos históricos, e que beneficia duas comunidades: País Basco e Navarra. Esse regime significa um modelo paralelo de financiamento autonômico, com as duas comunidades tendo expressiva autonomia na definição e uso de seus tributos, sem participar

6 Considera a capacidade tributária das CCAA a partir dos tributos que estão sob sua competência normativa, desconsiderando isenções e outros aspectos que poderiam levar a comportamento oportunistas.

7 De acordo com o Fundo, “as comunidades cujas necessidades fossem superiores a 75% de suas receitas receberiam os recursos necessários para financiar os serviços fundamentais, enquanto as que tivessem receitas acima de suas necessidades de serviços essenciais efetuariam uma transferência para as primeiras (transferência negativa). Com este instrumento, em princípio, ficou mais claro o nivelamento horizontal entre comunidades ricas e pobres.” (Fernández e Carbonell, 2019, p. 86).

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do regime de solidariedade interterritorial, no qual tem destaque o Fundo de Garantia. Em se tratando de comunidades ricas, o resultado é desigualdade territorial, com “um volume de recursos por habitante consideravelmente maior que o resto das comunidades autônomas” (León, 2015; Fernández e Carbonell, 2019).

No Brasil, a Constituição de 1988 manifesta perspectiva igualitária para as receitas e gastos públicos territoriais ao estabelecer que os orçamentos públicos “terão entre suas funções a de reduzir desigualdades interregionais, segundo critério populacional.” (art. 165). As principais transferências intergovernamentais estão definidas na Constituição. Da União, o Artigo 159 estabelece que 49% da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza (IR) e sobre produtos industrializados (IPI), os dois maiores em arrecadação no nível central, serão destinados aos entes subnacionais, cabendo 21,5% ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE); 24,5% ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM); e 3% a instituições de fomento produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Essas transferências são incondicionais e têm objetivos redistributivos. Dos estados em direção aos municípios, o Artigo 158 estabelece que 25% do Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS), maior tributo arrecadado no país, pertencem aos municípios, sendo essa transferência incondicional e predominantemente devolutiva, ou seja, sua distribuição tem como critério principal a devolução aos municípios de parte do que foi arrecadado em suas bases (Mendes, Miranda y Cosio, 2008).

O diagnóstico de estudiosos é que o sistema de transferências intergovernamentais brasileiro foi construído para descentralizar recursos do governo central, tendo como principal foco os municípios, mas com pouca preocupação em corrigir desequilíbrios verticais e horizontais da federação (Rezende, 2010). O resultado são transferências da União, pretensamente redistributivas, FPE e FPM, com baixa capacidade para corrigir inequidades subnacionais. O volume é insuficiente para minimizar desigualdades territoriais tão expressivas, mas o problema maior reside nos critérios de distribuição dos dois Fundos nacionais.

Reformas no federalismo fiscal ocorreram desde a Constituição e, diferente do caso espanhol, não tiveram um planejamento de médio prazo orientado por princípios claros, como descentralização tributária e nivelamento de gastos subnacionais, foram mais pontuais, incrementais e marcadas por fatores conjunturais, mais preocupadas com o equilíbrio fiscal das contas públicas do que com a equidade territorial e eficiência do gasto. Houve avanços importantes em regras de disciplinamento fiscal e na definição de competências e gastos sobre as políticas sociais. Na distribuição mais equitativa de recursos públicos, as inovações e melhorias vieram de transferências setoriais, com destaque para saúde e educação básica. Estudos apontam que as transferências da União no âmbito do Sistema Único de Saúde

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(SUS) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) apresentam resultados redistributivos (Mendes, Miranda y Cosio, 2008); Baião, Cunha y Souza, 2017).

O Gráfico 3 apresenta a desigualdade de receitas totais entre os estados brasileiros, em termos per capita, e indica o efeito pouco redistributivo das transferências intergovernamentais. Os três estados com maior receita per capita (Roraima, Acre e Amapá), acima de seis mil reais, são entes novos criados na Região Norte do país, pobres e com baixa população, mas altamente beneficiados com as tigs. Eles são seguidos por Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, dois estados mais prósperos, e Tocantins, todos com receita per capita superior a cinco mil reais, e tigs PC acima de um mil reais. Entre 3.500 e 5000 reais, temos os estados mais ricos das regiões Sul e Sudeste, e dois estados da Região Norte (Rondônia e Amazonas), um da região Centro Oeste (Goiás) e um da região Nordeste (Sergipe). Abaixo dos 3.500 reais, tem-se oito estados da região Nordeste e um da região Norte (Pará). Comparando esse gráfico com o Gráfico 1, de PIB PC por estado, observa-se que os estados mais pobres são também os de menor receita pública per capita, sendo que eles não se situam dentre aqueles mais beneficiados pelas tigs.

Gráfico 3: Receitas e Transferências Intergovernamentais dos Estados Brasileiros, em Valor Per Capita em Reais (2018)

Fonte: BRASIL, STN, 2019.

Os municípios brasileiros gastam bem mais do que arrecadam, o que aponta para alta dependência em relação às transferências intergovenamentais. Em 2018, 66,1% das receitas municipais eram de tigs, sendo que a arrecadação própria representou 19,1% de suas receitas e 14,8% foram oriundas de outros tipos de receitas (Bremaeker, 2019). Os dados de receitas

6 .8 6 1 6 .7 3 7 6 .2 2 1 5 .7 7 3 5 .4 9 9 5 .4 1 7 4 .8 5 0 4 .6 5 0 4 .5 2 9 4 .3 9 2 4 .3 4 8 4 .3 0 0 4 .2 9 6 4 .2 3 6 3 .9 3 5 3 .9 3 1 3 .5 3 4 3 .3 8 6 3 .3 0 8 3 .1 3 9 2 .9 4 7 2 .8 9 1 2 .8 9 0 2 .7 6 2 2 .7 3 2 2 .4 1 2 4 .6 2 0 4 .0 7 4 3 .9 3 0 1 .1 5 1 1 .4 3 0 2 .7 7 7 1 .9 4 9 736 666 1 .1 5 1 830 1 .2 9 1 696 1 .2 0 6 701 1 .8 3 3 562 1 .3 4 5 1 .4 3 8 986 1 .2 6 7 1 .2 9 6 864 935 919 1.0 4 1

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totais per capita, por recorte regional, apontam para inequidades horizontais e baixo efeito redistributivo das transferências intergovernamentais, que variam pouco entre as regiões em valor per capita: Sul (2.562), Centro-Oeste (2.429), Sudeste (2.204), Nordeste (2.107) e Norte (2.033). Com isso, as regiões mais ricas do país apresentam valor total de receita per capita bem superior às regiões mais pobres: Sul (3.977), Sudeste (3.795) e Centro-Oeste (3.505), por um lado, e Nordeste (2.638) e Norte (2.509), por outro (Bremaeker, 2019: 10).

3. O FINANCIAMENTO DE POLÍTICAS SOCIAIS: EDUCAÇÃO E SAÚDE

Espanha e Brasil fizeram a transição para a democracia e conformaram uma nova ordem institucional baseada na descentralização do poder político e na busca por avanços nas políticas sociais universais e igualitárias, dentre as quais a educação básica e a saúde. Historicamente, as políticas sociais nos dois países vieram, primeiramente, alicerçadas ao mundo do trabalho, em uma perspectiva “meritocrática” e produtivista, enfatizando a previdência, a saúde e a educação aos trabalhadores formais e à elite econômica, deixando à massa dos trabalhadores informais e aos mais pobres as ações residuais de assistência social filantrópica, destacadamente da igreja católica. Essa realidade sofreu alterações ao longo do tempo, mas ainda persistiram grandes desafios para os atuais regimes democráticos, particularmente no caso brasileiro.

A comparação do financiamento subnacional da educação básica e saúde nos dois países, sob a perspectiva da equidade, terá como unidades de análise as comunidades autônomas espanholas e os estados e municípios brasileiros, por duas razões: a maior relevância do município brasileiro nos gastos públicos totais e no provimento das políticas de educação básica e saúde, em contraste com as administrações locais espanholas, que se subdividem em províncias e municípios.

3.1 Estrutura, competências e financiamento subnacional da educação básica em Espanha e Brasil

A educação básica é direito social constitucionalizado na Espanha no Brasil, sendo dever do Estado a oferta de três níveis de ensino: infantil, primário (fundamental) e secundário (médio), compreendendo ao menos 14 anos de educação pública, obrigatória e gratuita. Nos dois países, ela é descentralizada, concentrando nos níveis subnacionais o gasto com a política. Contudo, há diferenças no volume desses gastos, em sua trajetória mais recente, nos modelos de financiamento subnacional e nos resultados de equalização territorial dos gastos. Na Espanha, a política de educação tem seus primórdios na Constituição absolutista de 1812, mas somente em 1836, com o Real Decreto, estabeleceu-se a oferta pública e gratuita para o ensino primário, restrita aos mais pobres. No período da ditadura militar de Francisco Franco (1939-1975), a Lei Geral de Educação de 1970 estabeleceu a educação

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pública, obrigatória e gratuita dos seis aos 14 anos, deixando de fora a educação infantil. Ao período democrático coube ampliar a oferta obrigatória e gratuita dos 03 aos 16 anos (Ley de

Ordenación General del Sistema Educativo - LOGSE, de 1990)8. O período atual é marcado por uma profusão de leis nacionais que buscam avançar na qualidade e equidade da educação9. O diagnóstico é de impasse na política, em função de conflitos ideológicos sobre a mesma e das instabilidades econômicas e políticas que marcaram o país nos anos 2000.

A história da educação pública na Espanha é marcada pela centralização, algo que atingiu seu ápice na ditadura franquista. A CE/78 restabeleceu as liberdades fundamentais e a descentralização democrática, o que propiciou um processo de transferências de competências da educação pública rumo às CCAA que foi finalizado em 2002. A descentralização de gastos precedeu a de receitas, algo que foi sendo ajustado com as reformas no financiamento autonômico. Na atualidade, a educação é financiada pelo Fundo de Garantia dos Serviços Fundamentais (FGSF). Um aspecto controvertido no uso desses recursos é o “sistema de concertação”, que destina a centros de ensino privado recursos públicos para o atendimento de alunos mais carentes. Contudo, há pouco controle sobre o uso desses recursos e muitas dúvidas sobre seus efeitos “republicanos”.

Diferente do caso espanhol, e educação pública brasileira atravessou os séculos XIX e XX combinando descentralização e exclusão, o que resultou em amplo atraso e desigualdades educacionais. Na Carta Constitucional de 1988, finalmente, a educação é definida como direito e ganha perspectiva universalizante e igualitária, primeiro com o ensino fundamental e, posteriormente, com a educação infantil e o ensino médio (Emenda Constitucional nº 59, de 2009) 10. Em um país tão desigual, a descentralização da educação

básica aos estados desde o Império, com pouca interferência do governo central, que concentrou sua atenção e recursos no ensino superior, deixou como legado para a atual democracia federal enormes atrasos educacionais e inequidades territoriais (Abrucio, 2018).

8 A etapa básica de educação na Espanha compreende na atualidade três níveis: educação infantil (dividido em

dois ciclos, o primeiro, de 0 até 3 anos e não obrigatório, e o segundo, de 3 até 6 anos, obrigatório e gratuito); educação primária, de 6 até 12 anos, obrigatória e gratuita; e a educação secundária obrigatória, dos 12 até 16 anos, obrigatória e gratuita. O dever de oferta do Estado de ensino obrigatório e gratuito abrange, portanto, 14 anos, dos 3 aos 16 anos de idade, conforme Espanha, Ministério de Educación y Formación Profesional (2020a).

9 Seis leis orgânicas foram elaboradas no nível nacional para regulamentar o texto constitucional, sendo que se

encontram em vigor 4 dessas: Ley Orgánica reguladora del Derecho a la Educación (LODE), de 1985; Ley Orgánica de Ordenación General del Sistema Educativo de España (LOGSE), de 1990; Ley Orgánica de Educación (LOE), de 2006; Ley Orgánica para la Mejora de la Calidad Educativa (LOMCE), de 2013.

10 De forma similar à Espanha, a educação básica brasileira compreende três níveis: educação infantil (creche, de 0 a 3 anos, não obrigatória, e pré-escola, de 4 a 5 anos, obrigatório e gratuita); ensino fundamental, de 6 a 14 anos, e ensino médio, de 15 a 17 anos. O dever de oferta do Estado de ensino obrigatório e gratuito abrange ao menos quatorze anos, dos 4 aos 17 anos de idade, conforme Emenda Constitucional nº 59/2009.

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A CF/88 estabeleceu que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino” (art. 211). Na educação básica, cabe à União, privativamente, estabelecer as “diretrizes e bases da educação nacional” (art. 22) e exercer funções redistributivas e supletivas de financiamento junto aos entes subnacionais, para promover maior equidade e qualidade na oferta de ensino (art. 211). Aos municípios cabe prioritariamente a oferta do ensino fundamental e da educação infantil; e aos estados e ao Distrito Federal (DF) a atuação prioritária no ensino fundamental e médio (art. 211).

A União tem primazia sobre a legislação de educação, cabendo aos estados e municípios suplementar a regulamentação nacional na organização dos seus sistemas de ensino. Por ser extensa e detalhada, a legislação nacional tem prevalecido na definição do financiamento da política. A Constituição estabeleceu patamares mínimos de gastos anuais com a educação: ao menos 18% para União e 25% para os estados, o Distrito Federal e os municípios da receita de impostos e transferências intergovernamentais (art. 212). Isso possibilitou um incremento nos gastos com educação, mas de forma desigual. Muitos entes locais sequer tinham condições financeiras para assumir o ensino fundamental.

Duas emendas constitucionais trouxeram mudanças importantes no financiamento da educação básica, o que possibilitou expressivo avanço na municipalização do ensino fundamental e na maior igualdade de gastos. A Emenda Constitucional nº 14/1996 criou o Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), que estabeleceu 27 fundos contábeis (em 26 estados e no Distrito Federal) para o financiamento da educação fundamental, sendo aportado para cada fundo 15% das receitas de impostos e transferências recebidas pelo estado e seus respectivos municípios, além de complementações da União para os fundos estaduais com menos recursos. A distribuição dos recursos entre os entes subnacionais, no âmbito de cada estado (fundo) era realizado de acordo com número de alunos atendidos pelas redes estaduais e municipais de ensino. Em 2006, a Emenda Constitucional n.º 53 criou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em substituição ao Fundef. A estrutura de fundos estaduais e distrital foi mantida, mas houve ampliação de recursos e níveis de ensino contemplados: 20% das receitas de estados e municípios deveriam ser aplicadas na educação infantil, ensinos fundamental e médio via o fundo.

Espanha e Brasil têm trajetórias positivas de gastos com educação pública no período democrático, o primeiro passou de 2,2% do PIB em gastos com a política, em 1978, para 4,3%, em 2015; o segundo passou de 4,6% do PIB, em 1995, para 6,2%, em 2015 (Banco Mundial, 2020b). Esses percentuais apontam para uma situação melhor de gastos totais para o caso brasileiro, algo enfatizado quando comparado a outros países da América Latina e

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Caribe (média de 4,9% do PIB, em 2015), sendo que Espanha apresenta patamares inferiores a países da União Europeia (4,9%) e da OCDE (5,1%). Em relação ao gasto público total, Espanha compromete 9,8%, valor inferior à média da União Europeia (11,9%) e OCDE (13%); e o Brasil, com 16,2%, também apresenta patamares menores em relação à América Latina e Caribe (18,1%) (Ibidem)

Os gastos em educação pública são mais descentralizados na Espanha que no Brasil. Em 2015, o governo central participava com 4,2% dos gastos públicos, as Comunidades Autônomas com 90,3% e as Administrações Locais – Províncias e Municípios – com 5,4% (Espanha, MEFP, 2020b). No Brasil, o governo central tem uma maior participação nos gastos em educação, com 29,4%, os entes subnacionais respondem por 70,6%, distribuídos entre estados e Distrito Federal (32,5%) e municípios (38,2%). (Brasil, INEP, 2018)

O Brasil passou a ter um sistema redistributivo de financiamento da educação a partir do Fundef (1996) e, principalmente, do Fundeb (2006). Diferente do caso espanhol, ao invés de um fundo conjunto para as políticas sociais consideradas fundamentais, com aportes de recursos das CCAA e do governo central, com redistribuição dos valores entre os entes de acordo com a população ajustada, o Fundeb funciona a partir de uma lógica contábil estadual, sendo a redistribuição feita nesse espaço territorial. Alguns estados, os mais pobres, recebem complementação do governo central para atingir um valor mínimo anual de gasto por aluno, definido em legislação nacional, mas esses são insuficientes para promover mais equidade entre estados e entre municípios de diferentes estados. Persistem também desigualdades de gastos dentro dos estados, dado que o Fundeb só abarca 20% das receitas vinculadas e os governos estadual e municipais podem aportar recursos adicionais à educação básica para além do mínimo exigido, o que favorece maiores gastos em educação aos entes mais ricos e/ou que priorizam essa política.

A Tabela 2 apresenta os gastos per capita por aluno com educação nos dois países11. Observa-se que o gasto per capita (PC) do País Basco é o dobro do gasto da Comunidade de Madri. Os 25% das CCAA com maiores gastos apresentam uma média de € 7.653 PC, contra € 5.080 PC de média das 25% com menos gastos, uma diferença de 50%. O coeficiente de variância entre as CCAA é de 0,17 e o Gini indica uma desigualdade entre os entes de 0.095625. Nota-se ainda que País Basco e Navarra estão no topo dos gastos, contribuindo para maior desigualdade entre as Comunidades. No Brasil, comparando o gasto per capita subnacional – o que considera a soma de estados e municípios, tem-se uma diferença de 2,4 nos gastos entre São Paulo e Alagoas. Os 25% entes que gastam mais por aluno apresentam

11Para o caso brasileiro, o dado se refere ao gasto na função educação e cultura, sendo que essa última política compromete um percentual muito pequeno do total de gastos na função.

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uma média R$ 8.300, contra R$ 4.831 de média dos 25% que menos gastam, uma diferença de 72%. O coeficiente de variância é de 0,20 e o Gini de 0,11752.

Tabela 2: Gastos públicos por aluno com educação básica, Espanha e Brasil (2017)

Espanha (1) Brasil (2) CCAA Gasto por aluno, em Euros Estados Gasto por aluno, estados, em Reais Gasto por aluno, municípios, em Reais Gasto subnacional por aluno, em Reais

País Basco 9.298 São Paulo 8.626 10.155 9.395

Navarra 7.456 Goiás 10.554 7.243 8.632 Galiza 6.932 Paraná 10.096 6.998 8.575 Astúria 6.927 Roraima* 8.663 6.484 7.643 Cantábria 6.864 Mato Grosso do Sul 7.486 7.082 7.254 Castela e Leão 6.761 Rio de Janeiro 8.574 6.589 7.181 Estremadura 6.539 Santa Catarina 5.991 7.848 7.092

Ilhas Baleares 6.493 Tocantins 7.408 6.657 6.995

La Rioja 6.215 Mato Grosso 6.874 6.840 6.857

Aragão 6.213 Amapá 7.344 5.204 6.532 Ilhas Canárias 5.903 Rio Grande do Sul 4.366 8.526 6.490 C. Valenciana 5.609 Acre 7.043 2.617 6.248 Catalunha 5.557 Minas Gerais 5.025 7.156 5.999 R. de Múrcia 5.262 Paraíba 7.196 5.031 5.817 Castela- Mancha 5.255 Sergipe 5.884 5.728 5.785 Andaluzia 5.077 Rondônia 5.510 8.825 5.659

C. de Madri 4.727 Espírito Santo 4.671 6.049 5.582

Ceará 7.194 5.021 5.551 Rio Grande do Norte 5.956 5.308 5.539 Bahia 5.957 5.197 5.412 Amazonas 6.060 4.825 5.365 Pernambuco 5.151 5.320 5.262 Maranhão 8.778 4.205 4.999 Piauí 5.334 4.767 4.970 Pará 5.652 4.062 4.509 Alagoas 4.025 3.835 3.883

Fontes: Espanha, MEFP (2020b); Brasil, Ipea (2020) – dados de gastos; Brasil, INEP (2019) – dados de matrículas.

A comparação entre os dois países aponta que a Espanha recebeu um melhor legado de educação básica pública e universal e o aperfeiçoou na democracia atual, com expansão dos anos de estudo e nos gastos públicos. A descentralização rumo às Comunidades Autônomas ocorreu a partir dos anos 1980, combinada com um processo de descentralização de recursos, cujo modelo privilegiou as transferências intergovernamentais redistributivas e

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vinculadas a políticas sociais, por meio do Fundo de Garantia dos Serviços Fundamentais (FGSF). Contudo, três elementos representam desafios no avanço dessa política, sob a perspectiva de equidade: a queda nos gastos totais com a educação pública nos últimos anos: em 2009, o gasto total em percentual do PIB atingiu 5%, com decréscimos posteriores até alcançar 4,3%, valor que se mantem em 2017 (Espanha, MEFP, 2020b), em um contexto de expansão de demanda, principalmente pela incorporação de imigrantes; o regime foral; e as escolas concertadas.

Os maiores desafios brasileiros são o legado para o período democrático de uma descentralização excludente na educação básica; e a persistência de inequidades no financiamento da política entre os estes subnacionais, dado um sistema geral de transferências intergovernamentais pouco redistributivo. Contudo, diferente do caso espanhol, a trajetória recente da política foi de ampliação dos gastos, com consequentes avanços na universalização da educação básica. Também, é preciso reconhecer os ganhos redistributivos proporcionados pelas políticas de fundos estaduais: Fundef e Fundeb, a despeito das persistências de desigualdades interterritoriais superiores ao caso espanhol.

3.2 Estrutura, competências e financiamento subnacional das políticas de saúde em

Espanha e Brasil12

Reivindicações por um sistema público de proteção social estavam presentes na Espanha no início do século XIX, por ocasião da Constituição Espanhola de 1812. Contudo, a população continuaria a contar com ações residuais de beneficência da Igreja Católica até o século XX (Moreno e Sarasa, 1993). Em 1883, a Comissão de Reformas Sociais foi constituída com o objetivo de propor melhorias para o bem-estar social da classe trabalhadora, no contexto da Revolução Industrial. Em 1900 surgiu o primeiro seguro social, a Lei de Acidentes de Trabalho; em 1903 foi criado o Instituto de Reformas Sociais, que em 1908 se tornaria o Instituto Nacional de Previdência (INP), gestor das diversas caixas de seguros que foram surgindo. Paralelo ao INP, outros mecanismos de seguro social surgiram por iniciativas de setores trabalhistas (Espanha, MISSM, 2020).

No período de ditadura franquista, a Lei de Bases da Seguridade Social de 1963 buscou unificar a proteção social e introduziu uma maior participação do Estado na sua gestão e financiamento. Mas persistiram problemas de unicidade, financiamento e grande desigualdades até a redemocratização, quando se configura o Sistema de Seguridade Social “para todos os cidadãos” (art. 41 da CE/78). Esse sistema foi aperfeiçoado nas décadas de

12 Agradecemos à Amanda Pianetti e à Camila Dafne Ferreira, bolsistas de iniciação científica da Pesquisa

Federalismo Fiscal na Espanha e no Brasil, pela valiosa contribuição no levantamento de informações e dados para essa seção.

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1980 e 1990, com a revalorização das pensões e a extensão da proteção social, inclusive com a regulamentação das pensões não contributivas (Espanha, MISSM, 2020)

O Seguro Obrigatório de Enfermidade (SOE) surgiu em 1942, no âmbito do INP, com assistência e indenização aos trabalhadores de mais baixa renda em situação de enfermidade ou maternidade. É com a nova ordem democrática que se institui um sistema universal de saúde. Suas diretrizes estão na CE/78, que reconhece o direito à saúde e o dever do poder público de “organizar e tutelar a saúde pública por meio de medidas preventivas e pela prestação de serviços necessários” (art. 43).

Em 1986, a Lei Geral de Saúde (Lei nº 14)13 estabelece o Sistema Nacional de Saúde (Sistema Nacional de Salud), constituído pelos sistemas de saúde da Administração Central e das CCAA, com o dever de garantir cobertura universal, integral e igualitária aos cidadãos espanhóis e aos estrangeiros residentes. A oferta dos serviços de saúde, conforme o art. 56, seria organizada pelas CCAA a partir de “Áreas de Saúde”, onde seriam prestados dois níveis de atenção: a primária, voltada à cura, prevenção, reabilitação e diagnóstico, ofertada principalmente em centros de saúde e consultórios locais; e a especializada, com serviços de maior complexidade, ofertada em hospitais e centros de especialidades.

A descentralização na oferta dos serviços de saúde do governo central às CCAA ocorreu de forma gradual desde os anos 1980. Catalunha foi a primeira comunidade a receber tais competências, em julho de 1981 (Real Decreto nº 1517), e Castela e Leão foi a última, em dezembro de 2001 (Real Decreto nº 1480). Apesar da prevalência e autonomia das CCAA na oferta dos serviços, a legislação reservou ao governo central competências importantes sobre a política. Conforme art. 149 (Inciso 16) da Constituição, cabe à Administração Central competência exclusiva para estabelecer as bases e coordenação geral da saúde, para legislar sobre produtos farmacêuticos e sobre a saúde exterior. Também cabe ao governo central papel importante na definição do financiamento da política, com ênfase para a distribuição de recursos. As CCAA atuam na formulação, administração e financiamento das políticas de saúde, além da prestação dos serviços à população.

Sobre o financiamento, a Lei nº 14/1986 enfatiza a diretriz constitucional de solidariedade interterritorial, ao afirmar que “os poderes públicos orientarão suas políticas de gasto com a saúde de forma a corrigir desigualdades sanitárias e garantir a igualdade de acesso aos Serviços Sanitários Públicos em todo o território espanhol.” (art. 12). Para isso, os

13 Outras leis nacionais buscaram avançar na qualidade da saúde pública: Lei de coesão e qualidade do Sistema Nacional de Saúde (2003); Lei de garantias e uso racional de medicamento (2006), Lei Geral de Saúde Pública (2011); e Real Decreto-Lei de medidas urgentes para a sustentabilidade do Sistema Nacional de Saúde e melhoria da qualidade e seguridade (2012).

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serviços de assistência sanitária serão realizados segundo o Sistema de Financiamento Autonômico (SFA), vigente em cada momento (art. 82).

No caso brasileiro, os primórdios da saúde pública remetem ao final do século XIX, quando no âmbito do governo federal, em 1896, foi criada a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), com ações específicas: organização de dados sanitários, fiscalização do exercício da medicina, dentre outros. De forma similar ao caso espanhol, os serviços de saúde surgem atrelados ao desenvolvimento da previdência social. Primeiramente, nos anos 1920, a partir das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), que nos anos 1930 evoluem para os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP). Apesar de aporte de recursos públicos, a lógica era do seguro restrito, sendo os serviços de saúde contratados do setor privado e oferecidos a trabalhadores formais, segmentados em categorias, uma minoria em uma sociedade marcadamente rural (Menicucci, 2014).

No período da ditadura militar (1964-1985) houve a fusão dos IAP, em 1966, no Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), unificando e expandindo o sistema de atendimento médico previdenciário para todos os trabalhadores formais. A expansão dos serviços públicos de saúde, no entanto, veio atrelada ao crescimento expressivo do setor privado a partir de incentivos do governo central, como a compra pelo poder público de serviços privados e a oferta de empréstimos e subsídios fiscais (Meniccuci, 2014). Nos anos 1980, a redemocratização impulsionou o aparecimento de movimentos sociais e propostas de rompimento com a lógica laboral das políticas sociais. O movimento pela reforma sanitária foi um dos mais expressivos, com atuação destacada na defesa de um sistema público e universal de saúde no processo constituinte de 1987, em contraposição a uma perspectiva “privatizante” de setores empresariais já institucionalizados e com forte atuação política. O resultado foi um sistema dual de saúde, no qual se fortalece a ação estatal a partir de um sistema público com pretensões de universalidade, mas sem abandonar as garantias e benefícios aos setores privados (Ibidem)

A Constituição Federal de 1988 estabelece a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (art. 196). Também estabelece que “as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único.” A regulação desse sistema veio com a leis 8.080 e 8.142, de 1990, que definiram o formato e o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo essas leis, o SUS é parte da seguridade social, juntamente com previdência e assistência social, devendo ser financiado por um orçamento específico em cada nível de governo; está organizado de forma

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descentralizada, privilegiando a prestação de serviços pelos municípios; mas também de forma regionalizada e hierárquica.

Os serviços são prestados em três níveis de atenção hierárquicos: primário ou básico, concentrado nos munícipios e ofertados principalmente por meio da Unidades Básicas de Saúde (UBS), considerada a “porta de entrada do sistema”; secundário ou de média complexidade, ofertados em destaque por hospitais e centros ambulatoriais, sob a gestão de municípios de maior porte ou do governo estadual; terciário ou de alta complexidade, o que envolve hospitais de grande porte, geralmente sob gestão dos governos estaduais, alguns do governo central. Buscando atuar de forma integralizada e coordenada, a média e alta complexidade devem ser prestadas a partir de regiões de saúde, organizadas pelos governos estaduais e municipais.

De acordo com a Constituição Federal e a Lei nº 8.080, a organização e a gestão do SUS é tarefa compartilhada pelos três níveis de governo, com várias atribuições em comum. De forma específica, cabe à União, dentre outras coisas: participar da formulação e implementação das políticas; executar ações de prevenção, de vigilância sanitária e epidemiológica; produzir normas e exercer controle, sobre o SUS e o sistema privado de saúde; prestar cooperação técnica e financeira aos entes subnacionais. Aos estados, cabe, descentralizar ações e serviços de saúde para os municípios, complementar às ações sob a jurisdição da União, acompanhar e controlar as redes de saúde do SUS, prestar apoio financeiro aos Municípios e executar supletivamente ações e serviços de saúde, entre outros. Por fim, dentre as competências municipais, tem-se o planejamento, gestão e execução das políticas de saúde em seu território, participar e colaborar com ações dos outros entes de governo e normatizar, de forma complementar, a política de saúde em seu âmbito de atuação.

A União prevalece na regulamentação da política de saúde no Brasil, por meio da Constituição, de leis infraconstitucionais e de normativas do Ministério da Saúde. Assim ocorre no financiamento, no qual as emendas constitucionais nº 29, de 2000, e nº 86, de 2015, estabeleceram patamares mínimos de gastos das receitas líquidas com a política de saúde: 12% aos estados; 15% aos municípios e à União. A regulamentação do que é considerado gasto com saúde veio com a Lei Complementar nº 141, de 2012.

Espanha e Brasil apresentam gastos similares com serviços de saúde em percentual do PIB, com ligeira vantagem para o Brasil, mas divergem profundamente nos gastos per capita e na participação do setor público nos gastos. Em 2018, conforme OECD (2019), o gasto total em saúde da Espanha foi de 8,9% do PIB, bem próximo da média OCDE (8,8%), sendo que 71% do total de gastos são públicos (6,3% do PIB), igual a média da OCDE. Em termos per capita, o gasto espanhol foi de 3.323 USD (United States Dollar) PPP, abaixo dos

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3.994 USD PPP da OCDE. No Brasil, o gasto total com saúde representou 9,2% do PIB em 2018, sendo de 43% a participação do setor público nos gastos totais (4% do PIB). O gasto per capita foi de 1.282 USD PPP. Esses dados mostram que a realidade do financiamento da saúde pública brasileira destoa da Espanha e dos países OCDE, com consequências negativas para efetivar as diretrizes de integralidade, universalidade e equidade do SUS.

A Tabela 3 mostra a distribuição de gastos com saúde, nos dois países, entre os entes de governo. Observa-se muito maior descentralização dos gastos na Espanha rumo às CCAA, sendo a participação dos outros dois níveis residual. No Brasil, tem-se os gastos distribuídos de forma mais equilibrada entre os três níveis, com o governo central tendo participação importante nos gastos e os municípios prevalecendo como principais financiadores da política.

Tabela 3: Gastos com Saúde Pública, por Nível de Governo, Espanha e Brasil (2018)

Espanha

Em milhôes de Euros Participação %

Total Gov.

Central CC.AA Nível local

Gov.

Central CCAA Nível local

72.811,00 920,00 71.225,00 666,00 1,3 97,8 0,9

Brasil

Em milhões de Reais Participação %

Total Gov.

Central Estados Município

Gov.

Central Estados Municípios

407.345,90 131.529,42 102.574,74 173.241,74 32,3 25,2 42,5

h

Fontes: Espanha, Ministerio de Sanidad (2020a); Brasil, Ministério da Saúde, Siops (2020).

A Tabela 4 possibilita comparar os gastos per capita com saúde realizados pelos níveis subnacionais de governo. Na Espanha, tem-se País Basco com um gasto superior em 1,4 ao da Andaluzia. Os 25% das CCAA com maiores gastos apresentam uma média de € 1.677 PC, contra € 1.323 PC de média das 25% com menos gastos, uma diferença de 27%. O coeficiente de variância entre as CCAA é de 0,09 e o Gini indica uma desigualdade de 0.05525 entre elas. Assim como na educação, as duas Comunidades do Regime Foral, País Basco e Navarra, estão no topo dos gastos, enfatizando o desvio desse regime no modelo de solidariedade interterritorial. Os valores espanhóis são bem inferiores em desigualdade ao observado para o caso brasileiro, no qual a diferença entre Roraima e Maranhão é de 2,2. Os 25% dos entes subnacionais com maiores gastos no Brasil, considerados juntos os gastos de estados e municípios, apresentam média de R$ 1.802, contra R$ 1.070 dos 25% com menos gastos, uma diferença de 68%. O coeficiente de variância é de 0,19 e o Gini indica uma desigualdade entre os entes de 0.10712.

O dados indicam, portanto, que os gastos subnacionais são inferiores no caso brasileiro, consequência do subfinanciamento público na saúde, e o federalismo fiscal é outro

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fator de inequidades. Conforme apontado, as principais transferências intergovernamentais, FPE, FPM e Cota-parte do ICMS, apresentam baixos efeitos redistributivos e não são condicionadas. As vinculações constitucionais de gastos dos entes com saúde e as transferências intergovernamentais da União, no âmbito do SUS, têm proporcionado expansão dos gastos14 com efeitos redistributivos territorialmente (Baião, 2017), mas são insuficientes para fazer frente as imensas desigualdades territoriais em um sistema de saúde que conta, além do governo central, com 26 estados, 1 Distrito Federal e 5.570 municípios. E não há mecanismo de solidariedade interterritorial horizontal como acontece na Espanha. Dessa forma, a correção das desigualdades fica dependente do volume de transferências da União no âmbito do SUS.

Tabela 4: Gastos Público Per Capita com Saúde, Espanha e Brasil (2017)

Espanha Brasil CCAA Gasto PC, em Euros Estados Gasto PC Estados, em Reais Gasto PC Municípios, em Reais Gasto PC Estados e Municípios, em Reais

País Basco 1.753 Roraima 1.342 688 2.030

Astúrias 1.676 Tocantins 1.113 779 1.892

Navarra 1.651 Mato Grosso do Sul 632 1.235 1.867

Estremadura 1.626 Acre 1.175 452 1.627

Aragão 1.601 Mato Grosso 589 1.004 1.593

Castela e Leão 1.577 Amapá 971 501 1.471

R. de Múrcia 1.567 Paraná 480 971 1.451

Cantábria 1.543 Rio Grande do Norte 570 870 1.441

Galiza 1.491 São Paulo 513 927 1.440

La Rioja 1.477 Santa Catarina 500 940 1.440

Castela- Mancha 1.438 Espírito Santo 780 619 1.399

Catalunha 1.432 Minas Gerais 369 1.022 1.391

C. Valenciana 1.415 Rio Grande do

Sul 463 920 1.383

Ilhas Baleares 1.407 Piauí 447 934 1.382

Ilhas Canárias 1.399 Rondônia 668 689 1.357

C. de Madri 1.274 Alagoas 434 889 1.323 Andaluzia 1.212 Paraíba 415 891 1.306 Rio de Janeiro 370 870 1.240 Amazonas 731 490 1.220 Goiás 351 825 1.176 Pernambuco 572 597 1.169 Sergipe 524 642 1.167 Ceará 415 702 1.118 Bahia 401 639 1.039 Pará 393 602 995 Maranhão 341 590 931

Fontes: Espanha, Ministerio de Sanidad (2020b). Brasil, Ministério da Saúde, Siops (2020).

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4. CONCLUSÕES: QUAIS LIÇÕES O CASO ESPANHOL PODE OFERECER PARA REFORMAS FISCAIS NO BRASIL?

Espanha e Brasil passaram por processos de redemocratização e descentralização territorial, a partir dos anos 1970, e buscaram conciliar essas mudanças com avanços no Estados de Bem-Estar social. Essa tarefa foi bem-sucedida, com a expansão nas políticas sociais universais nos dois casos. Contudo, apesar de apresentar um quadro de expressivas desigualdades territoriais, o Brasil não conseguiu estabelecer um desenho de federalismo fiscal voltado para equidade, tanto na perspectiva vertical – de garantir suficiência de recursos as entes subnacionais para a execução de suas competências – quando na perspectiva horizontal – de garantir um nivelamento mínimo de gastos na prestação de políticas consideradas fundamentais ou essenciais, como educação, saúde e assistência social.

A Espanha demarcou muito claramente, desde a CE/78, o propósito de descentralização e solidariedade interterritorial, e conseguiu avançar nessa direção. Por isso, pode ser considerada um exemplo bem-sucedido de federalismo fiscal para a experiência brasileira, e para os outros países que buscam aperfeiçoar seus sistemas de financiamento de políticas sociais descentralizadas. Três aspectos podem ser destacados do caso espanhol:

1. Gradualismo nas reformas rumo a maior eficiência e equidade

A CE/78 e legislações posteriores definiram que o financiamento autonômico seria uma construção gradual, com reformas incrementais realizadas a partir de avaliações periódicas, combinando descentralização de políticas e de receitas com procedimentos de equalizações vertical e horizontal. As transferências do governo central, inicialmente, eram as principais fontes de financiamento das CCAA, o que gerava pouco estímulo à tributação própria (Fernández e Carbonell, 2019). Essas transferências foram recuando ao longo do tempo com o avanço da descentralização tributária e de mecanismos mais sofisticados de nivelamento fiscal entre as CCAA.

No Brasil, a CF/88 descentralizou receitas sem uma definição clara de competências e estabeleceu as principais transferências intergovernamentais de forma incondicionada e com critérios pouco redistributivos. Legislações posteriores amenizaram o problema com o aumento de vinculações de receitas a gastos com educação básica e saúde. Também estabeleceram critérios mais redistributivos para os gastos com as políticas, mas inequidades expressivas persistem, combinadas com alta dependência dos municípios de tigs da União.

2. O financiamento das políticas sociais prioritárias (fundamentais), estabelecido de forma integrada e com solidariedade entre os entes, a partir de um processo redistributivo desenhado pelo governo central, mas que não está centrado somente em tigs verticais da União.

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