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SAUDADE E SAUDOSISMO: RESSONÂNCIAS DO PASSADO NA POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS E AUGUSTO CASIMIRO

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Academic year: 2021

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SAUDADE E SAUDOSISMO: RESSONÂNCIAS DO PASSADO NA POESIA DE ÁLVARO DE CAMPOS E AUGUSTO CASIMIRO

Marcelo Ferraz de Paula – USP1

Resumo: O trabalho discute a importância da saudade como matéria poética fecunda na poesia portuguesa do início do século XX. A partir da teoria saudosista defendida por Teixeira de Pascoaes e propagada pela revista A Águia, fazemos uma leitura do poema “O Poeta e a Nau”, de Augusto Casimiro, para em seguida o confrontarmos com “Lisbon Revisited – 1926”, no qual Álvaro de Campos, supostamente o mais futurista dos poetas portugueses, recorre à melancolia e a nostalgia para elaborar uma poesia marcada pela saudade, no entanto, com um sentido bastante distinto do otimismo nacionalista que o termo adquire na teoria de Pascoaes.

Palavras-chaves: Poesia portuguesa; Fernando Pessoa; Saudosismo; Augusto Casimiro

Subject: The work discusses the importance of the Saudade like poetic fertile matter in the portuguese poetry of the beginning in century XX. From the theory defended by Teixeira de Pascoaes and propagated by the A Águia magazine, we do a reading of the poem “ O poeta e a Nau”, of Augusto Casimiro, next confronting with “Lisbon Revisited – 1926” in which Álvaro de Campos, supposedly the most futurist of the Portuguese poets, resorts to the sadness in order that prepares a poetry marked by the longing. However, with a sense quite different from the optimism nationalist whom the term acquires in the theory of Pascoaes.

Keywords: Portuguese poetry; Fernando Pessoa; Saudosismo; Augusto Casimiro

No ano de 1912, os membros do grupo Renascença Portuguesa confirmam o relançamento da revista A Águia, cuja primeira série havia circulado em Portugal entre os anos de 1910 e 1911. A revista funcionaria como principal meio de divulgação das idéias do grupo e vislumbrava lançar em suas páginas toda uma geração de novos poetas e, mais que isso, propagar uma nova mentalidade, com o intuito maior de re-construir Portugal através da arte e da educação. Daí ficarem os seus integrantes conhecidos como intelectuais pedagógicos.

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Simultaneamente a essa movimentação, aparecem os primeiros versos de Fernando Pessoa, a essa altura um dos novos nomes que surgiam no cenário da poesia portuguesa, publicando seus poemas nas muitas revistas de arte que começavam a circular pelo país nesse período. O que demonstra, portanto, certa proximidade – não somente temporal, como veremos – entre os poetas da Renascença e a figura ímpar de Fernando Pessoa. Vale lembrar, inclusive, que Pessoa verá impresso em A Águia alguns de seus primeiros textos, como “Impressões do Crepúsculo” e o célebre ensaio em que anuncia a necessária chegada de um novo Camões nas letras lusitanas. Dessa maneira, fica implícito na grande maioria das obras um constante diálogo entre os autores que participaram deste período de agitação cultural e que marca não só a diversidade de projetos estéticos como também o constante embate entre as idéias desses autores que, por mais antagônicas que fossem suas posturas literárias, liam-se mutuamente.

É com base nessa relevante constatação que realizaremos uma breve leitura do poema “O Poeta e a Nau”, de Augusto Casimiro2, publicado no primeiro número da segunda série de A Águia. Trata-se de um poema exemplar dos ideais que moviam os intelectuais saudosistas, sobretudo pela confiança que o poema demonstra no papel dos escritores como aqueles que colocariam Portugal novamente nos trilhos do esplendor cultural e moral.

Em seguida faremos algumas considerações sobre as relações – semelhanças e divergências – que a temática desenvolvida estabelece com “Lisbon Revisited – 1926”, um dos poemas característicos da última fase de Álvaro de Campos, um dos principais heterônimos pessoanos. A escolha desses poemas atende a uma clara intenção de estabelecer uma proveitosa analogia entre a representação que os dois poetas fazem da idéia de saudade, bem como analisar a posição em que o poeta se coloca em cada uma das obras, seja na sua relação com a poesia em si, como também no seu papel diante da conturbada realidade de Portugal no início do século XX.

No poema de Casimiro podemos facilmente observar uma perfeita consonância com as matizes da Renascença Portuguesa, movimento no qual estava inserido, e com o

2 Augusto Casimiro foi um dos poetas mais atuantes do movimento Renascença Portuguesa. Possui uma vasta obra que inclui, além de livros de poesia, crônicas, textos de intervenção e estudos memorialistas. Contribuiu ativamente com a revista A Águia e, dez anos mais tarde, foi diretor da revista Seara Nova. Embora pouco estudado – ocupa um lugar secundário, meio que à sombra de Pascoaes e Jaime Cortesão – foi,

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saudosismo, idealizado por Teixeira de Pascoaes nos editoriais de A Águia. A grande novidade trazida pela revista era o abandono do pessimismo do fim de século, tendo como horizonte a reconstituição de uma alma portuguesa que se perdera num passado próspero, culturalmente falando. Assim, a função maior do grupo Renascença Portuguesa e, por extensão, da revista, era, nas palavras de Pascoaes: “Ressuscitar a pátria portuguesa... onde a sepultaram longos séculos de escuridade física e moral” (A ÁGUIA, 1912, v. 1, p. 3). No entanto, acrescenta que “a palavra Renascença não significa mero retorno ao passado. Não! Renascer é regressar as fontes originárias da vida, mas para criar outra vida” (IDEM).

Portanto, na visão saudosista, a única maneira de superar aquela aura de decadência literária, política e religiosa que pairava sobre Portugal, era recuperar aquilo que destacava o povo português de todos os outros povos, que o tornava único, a sua alma, ou seja, a

saudade, “considerada em seu sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-idéia onde tudo o que existe assume sua unidade divina” (A ÁGUIA, 1912, v. 1, p. 3), como resume Pascoaes no editorial de estréia da segunda série da revista.

Com isso os poetas ligados ao movimento passam a ter uma missão bem definida: resgatar esse espírito perdido – contido no conceito de saudade – e, com isso, recolocar a nação portuguesa em seu caminho singular e promissor. Dessa maneira, encontraremos nesses poetas uma visão extremamente otimista da realidade vivida, que surge com base na confiança de que a poesia assumiria seu poder salvador, de transformadora daquela sociedade em crise, pois dela viria a revelação de uma identidade específica. E vale observar como esses conceitos desenvolvidos por Pascoaes estão todos sintetizados como matiz do poema de Augusto Casimiro, o qual transcrevemos a seguir exatamente como publicado nas páginas do primeiro volume de A Águia:

O Poeta e a Nau

Vai errante, no Mar, uma nau sem governo... O oceano é chão, o céu azul fundindo em aço... As velas mortas... Nem sequer vento galerno As vem inchar para dormir no seu regaço!... Sobre o antigo convés pesa um velho cansaço, E ou destino fatal ou maldição do inferno, O mastro grande em vão aponta para o espaço...

sem dúvida, um dos nomes mais atuantes e conhecidos pensadores do movimento.

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— Sobre as ondas a nau é um cárcere eterno! Dominando em redor, lá na gávea mais alta, Um marujo, a cantar, fala do Além, e exalta Um passado esplendor sobre a nau sepulcral... “Porque o vento há de vir aninhar-se nas velas!” “Porque a nau voará, - tocará nas estrelas!...” — O marujo é Poeta — e a nau.. Portugal!

É basicamente o “papel restaurador” do poeta que está presente no poema de Casimiro. A metáfora utilizada, do marujo que conduzirá a nau às estrelas – onde, evidentemente, o marujo ocupa o lugar do poeta e a nau atracada ao chão-mar simboliza o Portugal atrasado daquela época – atuará como síntese precisa da confiança que essa geração que colaborava com a revista nutria no poder didático da poesia e, conseqüentemente, no futuro de Portugal.

Do outro lado de nossa análise encontramos o engenheiro-poeta Álvaro de Campos, aquele que queria se exprimir como máquina, seguramente o mais controverso dos heterônimos de Pessoa – com fases literárias diversas, marcadas por oscilações temáticas e formais no decorrer de sua trajetória3. Comparar sua poesia de vanguarda com o soneto de forte cunho decadentista de Casimiro pode, num primeiro momento, soar como uma provocação.

O caminho mais óbvio naturalmente seria confrontar os poemas da revista A Águia com sua fase futurista – sobretudo com as colossais “Ode Marítima” e “Ode Triunfal” – criando, assim, uma oposição radical entre o saudosismo de Pascoaes, que criticava abertamente os males da modernidade, sobretudo o cientificismo que, segundo ele, cobria de neve o espírito do povo português e ao mesmo tempo excluía Portugal da marcha civilizatória; e no outro extremo, a idolatria ao movimento e às máquinas, presente nas odes de Campos. Nesse aspecto o antagonismo entre os dois autores nos parece extremamente acentuado. Embora as odes de Campos não sejam estritamente futuristas, no sentido que

3 SEABRA (2003) fala em três momentos distintos: o primeiro corresponderia a poemas como “Opiário” e “Soneto já antigo”, marcados por um tom decadentista com visíveis influências de Sá Carneiro; o segundo momento seria de forte tendência futurista, da qual o exemplo mais sintomático seria a “Ode Marítima”; e, por fim, aponta para uma poesia melancólica, nostálgica, com sucessivas leituras da infância e tensão com a memória.

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pregava Marinetti - numa célebre passagem da “Ode Triunfal” há inclusive um breve retorno às origens provincianas e arcaicas - o que mais se destaca na confrontação desses estilos é a forte oposição entre duas visões de mundo distintas.

Temos aqui o que foi um embate aberto em que modernistas criticavam o que, para eles, era uma posição deprimida e idealista dos saudosistas. Os principais exemplos desses ataques são os manifestos de Almada Negreiros constantemente ridicularizando a melancolia da raça e conclamando a uma tardia destruição desses valores “ultrapassados” que tinham como principal bastião A Águia, ou como ele mesmo diz no Ultimatum

Futurista: “o sentimento-síntese do povo português é a saudade e a saudade é a nostalgia mórbida dos temperamentos esgotados e doentes... A saudade prejudica a raça tanto no seu sentido atávico porque é decadência, tanto no seu sentido adquirido porque definha e estiola” (NEGREIROS, 1997, p. 65).

Do outro lado os saudosistas se defendem com as mesmas armas, criticando a europeização desses autores que, segundo eles, se escondiam atrás do pretensioso rótulo de moderno para atacar os valores “intrínsecos” do povo português, como a saudade e o sebastianismo. Ou seja, enquanto Teixeira critica a mecanização do homem, resultante do progresso tecnológico, o Campos futurista, do outro lado, vai justamente cantar essa fusão completa entre máquina e espírito.

Entretanto, parece-nos mais produtivo fugir momentaneamente dessa relação quase dicotômica – e por conta disso simplificadora – para discutir uma outra vertente desse heterônimo pessoano, a mais melancólica, que surge junto ao regresso ficcional de Campos a Lisboa, e que vai se aproveitar da nostalgia para configurar a aflição do sujeito que reencontra a cidade de sua infância, mas já não são – nem a cidade nem o indivíduo – capazes de estabelecer um elo que não existe mais, como podemos ler no poema:

Lisbon Revisited - 1926 Nada me prende a nada.

Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo. Anseio com uma angústia de fome de carne O que não sei que seja -

definidamente pelo indefinido...

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto de quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

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Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua. Não há na travessa achada o número da porta que me deram. Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido. Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados. Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos; escrevo por lapsos de cansaço;

e um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme; não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;

ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso. Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma... E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei, nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa (e o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas), nas estradas e atalhos das florestas longínquas onde supus o meu ser,

fogem desmantelados, últimos restos da ilusão final,

os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido, as minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus. Outra vez te revejo,

cidade da minha infância pavorosamente perdida... Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, E aqui tornei a voltar, e a voltar.

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram, uma série de contas-entes ligados por um fio-memória, uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim? Outra vez te revejo,

com o coração mais longínquo, a alma menos minha. Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,

transeunte inútil de ti e de mim, estrangeiro aqui como em toda a parte, casual na vida como na alma,

fantasma a errar em salas de recordações, ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem no castelo maldito de ter que viver... Outra vez te revejo,

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um momento a uma luz fúnebre desconhecida, e entra na noite como um rastro de barco se perde na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,

mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico, e em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim - um bocado de ti e de mim!...

Daí o interesse em escolher “Lisbon Revisited – 1926” para, a partir do tema do reencontro com a cidade natal e com o passado que ela guarda, evocados distorcidamente na memória do eu-lírico, confrontá-lo com o otimismo inexorável que tão bem caracteriza a geração saudosista na qual está inserido o poema “O Poeta e a Nau” e que transforma essa nostalgia, que em Campos é pura perda, em algo positivo, regenerador.

Numa primeira leitura, o que mais nos chama atenção é sem dúvidas a diferença formal entre os dois poemas. Considerando que pouco mais de uma década separa a publicação das duas obras isso ganha uma aura ainda mais reveladora, comprovando a heterogeneidade das manifestações e visões estéticas que circulavam em Portugal nas primeiras décadas do século XX; embora a história literária muitas vezes insista em limitar essa expressão literária ao grupo ligado à Orpheu. “O Poeta e a Nau” só não se mostra um soneto padrão, com a mais tradicional das formas, pelo destaque dado ao 8º e ao 14º versos, e expressa imagens tipicamente simbolistas/decadentistas, como a da nau atracada ao chão e o enorme mastro apontando para o céu. O poema de Álvaro de Campos, por sua vez, adota o verso livre, o ritmo inumerável, com períodos longos, prosaicos, buscando a velocidade caótica do pensamento e das sensações. Tais opções formais se explicam pelas intenções de cada autor.

Sobre Casimiro, José Seabra afirma que “se trata de um poeta não liberto de alguma incongruência adstrita ao alegorismo ocasionalmente engendrado com elementos do imaginário decadentista, que rege o seu corpo de composições em sonetos e quadras de decassílabos tradicionais por uma entoação enfática” (SEABRA, 2003, p. 84). A nosso ver, porém, Casimiro, assim como a grande maioria dos colaboradores de A Águia, preocupados em recuperar uma tradição literária, vão se apropriar dos grandes modelos poéticos; o que não significará, necessariamente, um parnasianismo conservador, sendo essa retomada um processo de diversidade dentro da tradição e muitas vezes pretensiosamente original –

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como não deixa de ser o já citado destaque que o poeta dá ao 8º e ao 14º versos, “desmontando” a estrutura tradicional do soneto italiano. Numa visão bem geral, podemos afirmar que os saudosistas tentam conciliar elementos tanto do Romantismo, como do Simbolismo, além, é claro, dos modelos clássicos.

Curiosamente, o que nos permite fazer tais afirmações é exatamente o fato de não haver nas muitas obras críticas de Pascoaes uma sistematização formal do que seria a poesia saudosista. O poeta e pensador falará apenas em retomar os grandes escritores e citará uma série de “modelos” a serem seguidos. Não se trata de uma falha do idealizador do saudosismo, mas de manter uma coerência, visto que o movimento não almeja se impor como escola literária, o que demandaria programas e modelos dados a priori, mas espera sim uma atuação mais abrangente, em que a literatura seria apenas um dos meios de propagação de um pensamento mais amplo que também seria religioso, político e social.

Como diz o crítico Jorge de Sena na apresentação da obra de Pascoaes, “o movimento não se desapegou nunca da estrita tradição que lhe era estritamente anterior – Antero, João de Deus, Cesário Verde, Antônio Nobre” (apud PASCOAES, 1965, p. 14) ou como diz o próprio Pascoaes no livro A Arte de Ser Português , “a obra de nossos grandes escritores, Camões, Bernadim, Gil Vicente, Vieira, Camilo e Antônio Nobre tem essência e tem forma, e ante elas, vibra com a mesma intensidade” (PASCOAES, 1978, p. 33). Assim, a partir do norte desses grandes autores, a nova geração tinha uma relativa liberdade para se locomover dentro dessas formas consagradas.

“Lisbon Revisited – 1926” coloca-se exatamente no campo oposto. Trata-se de um típico poema vanguardista, o que se mostra na irregularidade do discurso e na velocidade desarmônica com que as imagens e reflexões do eu-lírico são assimiladas na poesia. O poema se divide em dois momentos: numa primeira parte, a voz enunciativa se revela enquanto sujeito inquieto e angustiado, numa espécie singular de confissão em que a poesia aparece como forma de vencer – ou prolongar – tal situação. Num segundo momento, há o diálogo propriamente dito com a cidade revisitada: a voz poética fala diretamente com a cidade, que passa a ganhar uma conotação quase metonímica, pois não é somente a cidade enquanto meio físico, senão o fragmento concreto de uma imagem mais ampla, "Lisboa e Tejo e tudo", condensada na complexidade de ser a cidade da infância perdida, do presente atribulado e, ao mesmo tempo, nenhuma das duas. E se a cidade adquire esse caráter

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multi-temporal, da mesma maneira o sujeito seguirá esse movimento e se perde no abismo do tempo, já não sabe se é "o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei, e aqui de novo tornei a voltar...”.

O que o aproximará do poema de Augusto Casimiro é que ambos partem da mesma situação de olhar para um Portugal presente e, a partir dele, evocar um passado perdido – embora no caso de “O Poeta e a Nau” essas marcas temporais, passado, presente e futuro tenham um sentido coletivo e não baseado na experiência íntima do indivíduo.

No mais, esse “olhar para o passado” gerará desdobramentos e interpretações totalmente diferentes em cada um dos poemas. Casimiro analisa o passado sob o viés da positividade; o passado surge como "esplendor da nave sepulcral" e termina com uma conclusão otimista, muito próxima de uma promessa, de que "o vento há-de vir" e "a nave tocará os céus". Evidentemente a outra parte da metáfora – o marujo que guiará a nau para a glória - aponta mais uma vez para a confiança no poder da poesia e explica o projeto político que norteia a elaboração do poema.

Em Campos toda essa positividade se esvai. Re-encontrar Portugal é, para a voz do poema, se chocar contra a parede da memória, que se mostra incapaz de estabelecer um elo com um passado que não mais existe. Olhar o passado é, para ele, descobrir a angústia de um vazio contido na impossibilidade de retorno e que inunda também o presente, dado o seu teor igualmente fugaz e estéril. Escrever não se mostra uma forma de contraponto a essa perda inevitável, muito menos representa a ilusão de recuperar o que passou por meio de um projeto literário, pelo contrário, é tão somente uma maneira de confirmar sua impenetrabilidade. Não há, no plano do poema, nenhuma intenção socializante, ou um valor nobre que reja o ofício de escrever – "escrevo por lapsos de cansaço” –, e a melancolia que inunda o momento é o único artifício, e mesmo assim contraditório, que alimenta sua poesia: "não sei que palmares de literatura me darão ao menos um verso".

A imagem do futuro como aurora do passado, presente em “O Poeta e a Nau” atestará, mais uma vez, a confiança e o compromisso educador da Renascença Portuguesa e nos permite afirmar que a inquietante aflição que percorre “Lisbon Revisited – 1926” revela uma forma ainda mais aterradora de nostalgia. Pois, para Campos, não há nenhuma possibilidade de retorno ao passado ou de reconstituição de sua essência no presente, e mesmo cantá-lo através da poesia é um exercício vazio, pois uma outra certeza rege a

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elaboração do poema, a de que "o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas"; nesse caso inclusive a evocação daquilo que já foi vivido se limita ao campo da sensação presente. A repetição do refrão "outra vez te revejo" nos mostra as muitas faces da cidade revisitada, sendo que o termo "revejo" abarca tanto a visão material desse espaço afetivo ausente, como também expande o olhar pelas lembranças, adulteradas pela inquietação do momento presente.

Sempre que direciona o seu olhar para a cidade esta já é outra e, mais que isso, o sujeito já é outro; daí a conclusão presente no forte verso que pode funcionar como síntese desse processo de alheamento que o sujeito passa ao entrar em contato com "a Lisboa de outrora de hoje”, como aparecerá no “Lisbon Revisited – 1923”: “Estrangeiro aqui como em toda parte", ou seja, a ruptura definitiva não com a cidade em si, mas com os elos pretéritos, por conta de uma inadequação às transformações desfiguradoras do tempo. É o verso que define Campos como o heterônimo cosmopolita, incapaz de se identificar com qualquer espaço, inclusive – ou principalmente – aquele que lhe resgata as sensações afetivas de uma infância longínqua.

Será basicamente este o retrato da nostalgia que marca o último Campos, sistematizado em poemas que renegam com essa mesma veemência o fantasma das lembranças adulteradas como “Lisbon Revisited – 1923”, “Na estrada de Cintra” ou “Apontamento”. Há outros exemplos, porém, em que essa nostalgia chega a citar diretamente a infância como período de ingenuidade e de relativa unidade; seria esse o caso, por exemplo, de “Aniversário” que se inicia com o saudoso – mas não sem uma boa dose de ironia - verso: "no tempo em que festejavam o dia dos meus anos eu era feliz e ninguém estava morto".

Para terminar, retornamos ao pensamento de Teixeira de Pascoaes que no editorial do segundo volume de A Águia arrisca uma sucinta definição de saudade como "amor carnal espiritualizado pela dor" (A ÁGUIA, 1912, v. 2, p. 4). Talvez Pascoaes não tenha, como imaginava, descoberto uma alicerce essencial do homem português ou aquilo que ele chamava de alma lusitana. Talvez, ao exigir da poesia a construção de uma nova realidade social e política – num contexto em que a balança sempre pesa mais para o outro lado – tenha sido, como vão dizer seus detratores, um romantismo tardio. Se já no início do século Antônio Sérgio, personagem de uma das mais duradouras polêmicas envolvendo o

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pensamento de Pascoaes, dizia que “as idéias de Pascoaes seriam belas, não fossem ultrapassadas e incompatíveis com o nosso tempo” (apud PASCOAES, 1988, p. 45) que diria então o leitor do século XXI, ainda mais desconfiado de idéias absolutas que ambicionam soluções quase míticas para uma “nação” e uma “raça”, sendo que até esses termos mostram-se, hoje, carregados de valores negativos por conta de nossa recente e trágica história de conflitos, culminando no discurso fascista e no holocausto?

No entanto, comparando dois poetas tão distintos, e de desproporcional grandeza, como o são Augusto Casimiro e Fernando Pessoa em seu heterônimo mais produtivo, é preciso não nos distanciar muito dos projetos literários nos quais estes autores estão inseridos, pois poderíamos facilmente ceder a erros imperdoáveis.

Acusar de ingenuidade as aspirações presentes em A Águia em prol de uma supervalorização da “lucidez” angustiada de Campos seria apenas uma maneira de não compreender as duas partes. Cada um precisa ser analisado em suas especificidades, não como movimentos díspares, mas como visões de mundo que fundamentam formas literárias específicas, sendo cada um dos poemas resultado das preocupações imediatas de seus autores, mas também de seu período histórico, marcado pela agitação artística e pela diversidade estética.

Como pudemos notar até aqui, boa parte das noções desenvolvidas pela geração de

A Águia serão retomadas, ainda que para serem contestadas, por Pessoa. A saudade está presente e, mais que isso, é o centro emotivo de “Lisbon Revisited – 1926”, ainda que convertida em angústia. É possível que a serenidade quase utópica com que os saudosistas encaravam a ausência, o que lhes propiciavam uma visão até certo ponto positiva de sua própria melancolia, fosse o grande desejo impossível do Campos sensacionista – embora Pessoa logo trate de negar numa de suas cartas a Sá Carneiro: “Não trocaria o que em mim causa esse sofrimento pela felicidade de entusiasmo que tem homens como Pascoaes” (apud PASCOAES, 1965, p. 18).

E se é bem verdade que a nau de Casimiro em momento algum chegou a voar, ele e Pascoaes podem se gabar de que os mais diferentes poetas – inclusive o mais futurista dos poetas portugueses – continuaram, e continuarão cantando a saudade como traço marcante da identidade portuguesa, ora com orgulho, ora com raiva, ora com esperança.

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Referências Bibliográficas:

FERREIRA, Manuel Patrício. O messianismo de Teixeira de Pascoaes e a Educação dos

portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional, 1995.

NEGREIROS, Almada. Ultimatum Futurista. In: Obras Completas Lisboa: Imprensa Nacional, 1997, vol. 6.

PASCOAES, Teixeira de. A Saudade e o Saudosismo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988. PASCOAES, Teixeira de. Poesias. Ed. de Jorge de Sena. Rio de Janeiro: Agir, 1965. PASCOAES, Teixeira de. A Arte de Ser Português. Lisboa: Delraux, 1978.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. São Paulo: FTD, 1992

MOTTA, Paulo. Rotas de papel: de cidades e províncias. Revista Semear, Rio de Janeiro, n. 6, 2003.

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SEABRA, José Ferreira. Neo-Romantismo Saudosista. In: História da Literatura

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