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3 UNIVERSALIDADE CRISTÃ E PLURALISMO RELIGIOSO

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Academic year: 2021

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Introdução

Os cristãos de todos os tempos vivem a convicção de que sua religião tem uma missão universal. Não é uma religião de uma etnia para uma etnia, mas é um apelo dirigido a todos. A consciência de conservar a memória histórica de Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo, o único salvador da humanidade, impulsiona a comunidade cristã a sempre sair de si para dar testemunho d’Ele. Entretanto, essa universalidade da fé cristã nem sempre foi adequadamente objetivada. Percebe-se historicamente que prevaleceu certa tendência à intolerância para com sociedades e culturas que viviam sob outras crenças. A universalidade vivida e representada por um determinado grupo já não é apenas um simples conceito teórico; torna-se operatória em razão mesmo do engajamento do grupo no que ele acredita.

A reflexão sobre a singularidade de Cristo e a conseqüente universalidade cristã não é algo abstrato. Tem que ser histórica. A longa história do cristianismo mostra as reais conseqüências dessa pretensão cristã. Depois de termos considerado no capítulo precedente a universalidade e singularidade de Cristo, como é confessada pela Igreja, e quais as implicações disso para o diálogo inter-religioso hodierno, neste capítulo vamos lançar um olhar panorâmico sobre como o cristianismo concretizou historicamente sua abertura à universalidade.

1.

A universalidade cristã diante do pluralismo religioso

Claude Geffré defende a possibilidade de um diálogo teológico inter-religioso que não esteja em contradição com o respeito pelo outro. Ao contrário, é o enraizamento na própria crença que pode ajudar a melhor compreender a fé dos que professam outra fé.150 Mesmo sendo uma atitude intelectualmente difícil, é

possível olhar o outro a partir de seu próprio universo de crenças, sem renunciar à própria capacidade de discernimento e crítica. O respeito à alteridade do parceiro do diálogo conduz a uma melhor compreensão da identidade de quem dialoga,

150 GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje – hermenêutica teológica, op. cit., p. 309.

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além de estimular uma busca sincera e mais compreensiva da verdade particular que cada membro do diálogo reclama para sua tradição religiosa. Essa atitude dialógica das crenças respectivas faz toda a diferença entre uma reflexão teológica das religiões e o que seria uma história comparada das religiões. Também é importante distinguir o debate do diálogo inter-religioso. O debate se situa na ordem da argumentação. O diálogo implica aliar à fé a argumentação e a convicção.151 É certo também que o diálogo pode soar falso se a convicção vier acompanhada de uma argumentação insuficiente. Mas, em contrapartida, a convicção pode nutrir e estimular a argumentação. A teologia de Geffré procura manter-se fiel a essa concepção de diálogo.

Nosso autor considera que o primeiro campo fecundo do diálogo está entre as três grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo. Além de monoteístas, ele prefere chamá-las escriturárias.152 Se elas foram ou são

intolerantes umas com as outras no curso da história, é porque cada uma faz referência a um Livro considerado como Palavra de Deus, quer se trate da Torah, da Bíblia ou do Corão.

1.1.

A mediação de uma Escritura

Nas três tradições religiosas, há uma tensão necessária entre a Escritura (o livro sagrado) e a Palavra de Deus. O livro sagrado é um livro humano, escrito em hebraico, grego ou árabe. Portanto, não pode haver uma perfeita adequação entre ele e a Palavra de Deus. Mesmo os muçulmanos, que reivindicam tal adequação, admitem certa distância entre o Corão escrito (Mushaf) e a Palavra de Deus. O livro que coincide com a Palavra de Deus é um livro incriado e que nos é inacessível.153 Ao propósito do nosso estudo, interessa apenas ressaltar a

necessária reinterpretação que cada tradição religiosa precisa fazer enquanto peregrinar na história.

No caso do cristianismo, pode-se dizer também que a interpretação coincide com o ato do nascimento da religião cristã como tal. O corpo escriturário

151 GEFFRÉ, C. “Révélation chrétienne et révélation coranique”, art. cit., p. 244. 152 Id. Ibid., 244.

153 Id. Ibidem. Para maior aprofundamento desta temática refletida a partir da tradição muçulmana,

Geffré remete à obra de M. Arkoun, Ouvertures sur L’Islam. Paris: Jacques Grancher éditeur, 1989.

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do Novo Testamento condensa, mas não encerra, os diversos testemunhos suscitados pelo acontecimento Jesus Cristo. Eis porque resulta problemática uma identificação do cristianismo como uma religião do livro. Isso fica mais claro quando comparamos cristianismo e islamismo. Se para o islamismo o Corão é a Palavra definitiva, para o cristianismo esse status cabe ao próprio Jesus Cristo como a Palavra de Deus encarnada. Por outro lado, as Sagradas Escrituras cristãs não se remetem apenas a uma comunidade interpretante como é o caso do judaísmo e do islamismo, mas a um outro pólo ausente e, ao mesmo tempo, presente, a saber: o Ressuscitado, que coincide com todos os momentos da história humana.154

Ao tratar do conceito de revelação, Geffré afirma que este é um conceito plural, sempre dependendo do sistema religioso onde ele se verifique. Mas, a despeito dessa diversidade, ele aponta sempre para uma transcendência que, de alguma forma, interage com a consciência humana como fonte exclusiva de sentido. Eis porque a revelação é sempre correlativa de uma experiência religiosa específica, que se pode chamar crença, fé ou sentimento religioso. No contexto cristão, pode-se dizer que a fé é a condição de possibilidade da revelação e que a fé designa o conteúdo mesmo da revelação.155

Está sempre implícita na noção de revelação uma irrupção do divino no espírito humano que se percebe atraído para os fundamentos de sua existência. Para bem se compreender a originalidade de uma experiência religiosa, é preciso superar a oposição entre o objetivo e o subjetivo. A revelação não se identifica com a comunicação de um saber objetivo, mas ela é também mais que a descoberta da profundidade de nossa existência. Mesmo tomando cuidado com as analogias, é importante constatar que toda existência humana comporta experiências que apresentam algo que uma reinterpretação meramente subjetiva não dá conta de explicar. Sobretudo na experiência do amor e na experiência estética vivenciamos qualquer coisa que transcende nossa experiência e nos remete a uma nova descoberta da realidade que nos cerca. Interpretação e experiência estão intimamente ligadas. Mas a interpretação é sempre ato segundo,

154 GEFFRÉ. C. “Révélation chrétienne et révélation coranique”, art. cit., p. 245.

155 Id. “Révélation et Révélations”. In: Encyclopédie des Religions.Paris: Bayard Éditions, Tomo

II, 1997, p. 1415-1424, aqui p. 1415.

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pois faz referência à irrupção de qualquer coisa “nova” que surge na trama de nossas vidas.156

A revelação é sempre indireta: ela se deixa perceber através dos sinais que a acompanham. A história das religiões mostra que estes sinais podem ser diversos. A manifestação do sagrado pode se dar através de acontecimentos históricos, de objetos, de ritos ou personagens sagrados, de um livro ou de uma palavra profética. Cada religião, portanto, experimenta uma tensão entre essa irrupção do divino, naquilo que ele tem de incondicional e inacessível, e as mediações dessa revelação. A idolatria resulta da identificação de tal ou qual objetivação do sagrado com aquilo que ele tem de propriamente infinito. Disso resulta a variada tipologia que as religiões apresentam. Geffré, então, insiste na necessidade de compreender a revelação em sentido estrito.

A experiência religiosa de Israel traz algo de novo à história religiosa da humanidade. Nas religiões ditas “pagãs”, Deus ou os deuses se tornavam presentes aos homens mediante os sinais sagrados misturados no cosmos e nas coisas criadas, ou então na interioridade mística da consciência religiosa. A originalidade da revelação bíblica consiste em acentuar mais a Palavra e a Escritura, ou seja, a importância conferida às mediações históricas. Uma revelação em sentido estrito se desenvolve necessariamente a partir da palavra de um sujeito divino que fala e da voz prolongada nas Escrituras consideradas como testemunhas privilegiadas. A religião de Israel introduz uma polaridade nova na esfera religiosa: uma palavra recebida da divindade para provocar uma ação historicamente concreta. O Deus de Abraão, Isaac e Jacó não é o Deus da natureza, mas o Deus da história. Não é o Deus da fecundidade ou da imortalidade, mas o Deus que faz bem todas as coisas e que faz aliança com seu povo. A divinização do mundo ou a sacralidade da natureza recuam diante da importância dada à Palavra, à vinculação ética ou à história.

No judaísmo, a idéia de revelação designa a ação de Deus na história. Ela não é uma revelação imediata, no sentido de que seria composta por palavras pronunciadas por Deus mesmo a um redator puramente passivo. Deus se revela nos acontecimentos da história, que já são Palavra de Deus. Toda a história é santa porque Deus está presente e agindo nela.157

156 GEFFRÉ, C. “Révélation et Révélations”, art. cit., p. 1416. 157 Id. Ibid., p. 1417.

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No cristianismo, a revelação está concentrada numa Pessoa: Jesus de Nazaré. Para o cristianismo, o livro da Bíblia não se fecha sobre si mesmo e não se autojustifica. A Escritura Sagrada sempre reenvia àquele que é seu sentido último: Jesus Cristo, a revelação pessoal de Deus.

Geffré afirma que a originalidade cristã está em que os dois pólos identificáveis também no judaísmo e no islamismo - o Povo e o Livro - são remetidos a um terceiro pólo, ao mesmo tempo, ausente e presente: o Ressuscitado, que coexiste com todos os momentos da história. Isso permite que se supere uma concepção puramente linear do tempo. Dessa forma, o Corpo das Escrituras é indissociável do Corpo do Ressuscitado e da Igreja, que também é seu Corpo. Há, então, uma relação dialética entre os três termos: Jesus Cristo, a Igreja e a Bíblia. Jesus é a resposta definitiva do Pai ao ser humano e resposta total do ser humano a Deus. A Igreja é a comunidade reunida por ele e que atualiza sua memória. É na Bíblia que a comunidade eclesial toma consciência mais profunda de sua própria identidade.158

Assim, para o cristianismo é impossível atribuir a uma escritura a única mediação entre Deus e o ser humano. A fé cristã confessa que a Palavra se fez carne. Este é o grande acontecimento da história da salvação. Deus não se fez presente aos homens somente através da proclamação de uma palavra, mas por uma automanifestação, pela irrupção do invisível no visível. Este é o primeiro e mais importante nível da revelação da Palavra de Deus.

Mas a Palavra se revela também de forma escrita. A isso se chama Sagradas Escrituras. Elas reúnem o conjunto dos testemunhos suscitados pelo mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo. O Corpo das Escrituras Sagradas cristãs seria letra morta sem a interpretação da Igreja, sob a guia do Espírito Santo. Nessa convicção se fundamenta a noção de Tradição no cristianismo.159

Nas três religiões nascidas de Abraão, a revelação tem sua origem no silêncio de Deus, diz Geffré.160 O silêncio de Deus, que pode ser visto como um escândalo, é um chamado a sublinhar a originalidade da revelação judaico-cristã em seu face a face com outras tradições religiosas. O Deus da revelação bíblica não se impõe por sinais e prodígios, mas provoca o ser humano a buscar por Ele

158 GEFFRÉ, C. “Révélation et Révélations”, art. cit., p. 1418. 159 Id. Ibid., p. 1418.

160 Id. Ibid., p. 1420.

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mesmo. Paradoxalmente, poder-se-ia dizer que Deus se revela mais por seu silêncio do que por suas palavras. A Palavra de Deus não atinge o ser humano de forma violenta, antes é o silêncio de Deus que expõe o ser humano às suas próprias questões. Por isso, a Bíblia não pode ser lida como um receituário ou como um catálogo das respostas de Deus às nossas questões, mas como um conjunto de testemunhos dos crentes que buscaram a Deus às apalpadelas e, mesmo assim, não hesitaram em expor-lhe suas questões. A Bíblia testemunha, então, não somente as questões postas pelos seres humanos crentes, mas também o processo da busca de Deus empreendida pelos seres humanos.161

1.2.

A especificidade histórica do cristianismo

Segundo a concepção bíblica, somente considerando a história é possível perceber o alcance da Revelação de Deus. O Deus de Israel é o Deus da história, não somente do cosmos, é um Deus voltado para o futuro. A religião de Israel é essencialmente uma religião da promessa da salvação de Deus. O Êxodo é o acontecimento paradigmático dessa ação divina. Deus age antes de falar. Deus escreve uma história antes de um livro. E no vértice da Revelação, ou seja, da automanifestação de Deus aos homens, Jesus Cristo é inseparavelmente um acontecimento histórico e um acontecimento da palavra. É o homem Jesus de Nazaré, seus gestos e palavras; também o que se disse sobre ele, e o que ele continua a dizer nos sucessivos momentos históricos que necessita ser considerado. Essa noção bíblica e histórica da Revelação nos permite manter distância de uma concepção exclusivamente nocional da Revelação, identificada com um conjunto de verdades sobrenaturais. A Revelação traria, então, uma informação que seria mediada pela Igreja sobre certo número de verdades concernentes a Deus e ao ser humano. Ora, a Revelação não é apenas um ensinamento teórico composto de múltiplos ensinamentos, mas uma ação do Deus desejoso de estabelecer relações com o ser humano, até atingir sua plenitude na pessoa, nas palavras e nas ações de Jesus Cristo.

Devido a esse pressuposto irrenunciável de historicidade, é necessário que se reconheça uma estrutura fundamental capaz de distinguir, sem separar, o

161 GEFFRÉ, C. “Révélation et Révélations”, p. 1421.

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mistério inefável da Palavra de Deus e as expressões humanas e históricas desta Palavra. Trata-se de construir uma situação hermenêutica que seja capaz de ler os textos sagrados para tirar deles o que realmente é normativo para a fé e os costumes. Seja qual for a fonte que se atribua ao texto sagrado (ditado diretamente por Deus, o carisma de um profeta ou a inspiração divina a um redator) é preciso considerar a passagem da Palavra ao texto escrito. A Palavra originária em hebraico, grego ou árabe está irremediavelmente perdida. Por isso não se pode ascender automaticamente de um texto fixado graficamente até seu pretenso sentido originário.

Aqui emerge a importância da Tradição como instância interpretativa. Se, como considera o cristianismo, a Tradição é viva e dinâmica, ela tem que trazer sempre uma novidade. Devido a uma experiência histórica sempre nova, o passado precisa ter uma recepção ativa. A tradicionalidade circula numa dialética sutil entre o espaço da experiência que nos precede e que nos liga a gerações anteriores, e um horizonte histórico sempre inédito.162 Portanto, o cristianismo, enquanto religião revelada, também não pode excluir-se do fato de que a mensagem transmitida de geração a geração é sempre a tematização de uma experiência originária. Como reviver essa experiência originária em outro contexto histórico sem reinterpretar a mensagem que permanece semanticamente idêntica?

Essa dificuldade é mais clara ainda para uma religião como o cristianismo, legitimamente herdeiro do sentimento de eleição da primeira Aliança e também vocacionado à universalidade. Uma visão obtusa da eleição-aliança trouxe não poucos problemas ao cristianismo ao longo dos séculos, exatamente pela falta de clareza do em que consiste tal universalidade. Cremos que, historicamente, contribuiu para isso certa leitura feita da virada constantiniana que atribuía à providência de Deus a vitória política do cristianismo no século IV como um prenúncio de sua verdade universal. Outra convicção importante era de que não havia nada de errado em impor pela lei a verdade universal. Teologicamente essa convicção se apoiava na certeza de que o reconhecimento de Cristo como salvador era inseparável da pertença visível à comunidade que o testemunha. Restava

162 GEFFRÉ, C. “Révélation chrétienne et révélation coranique”, art. cit., p. 248 – “En fonction

d’une experience historique toujours nouvelle, il n’y a pas d’efficience du passé sans reception active du passé”.

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explicitar quais os níveis possíveis dessa pertença. O desfecho desse processo foi a cristandade como representação legal e social da proeminência da Igreja e de sua legitimidade em dizer a verdade teórica e prática sobre o imprescindível para a realização plena do ser humano em todo tempo e lugar.163 Freqüentemente a universalidade prática do cristianismo se confunde com sua organização visível, mediação obrigatória para o encontro com Jesus Cristo. Ao se tratar de uma norma objetiva, ela desconsidera qualquer outra que se lhe apresente.

Isso é sério quando o cristianismo se encontra com outras culturas e religiões. Ao não se vislumbrar nenhum rasgo de positividade nos outros, não resta outra saída senão a conversão deles. Ocorre que a condição da conversão às vezes é mais onerosa do que a própria conversão, já que se impõe renunciar à própria história e à própria cultura. Ao falar da relatividade histórica do cristianismo, Geffré aponta para outra maneira de se conceber sua universalidade.164 Nenhuma realidade humana consegue encarnar o ideal. Nesse

sentido, a dispersão do divino, própria ao contexto plurireligioso de hoje, pode ser vista de maneira benéfica. Admitir uma relação autêntica com Deus fora das margens históricas do cristianismo implica em rever o que ainda pode se entender como o universal cristão. O pluralismo religioso atual nos convoca a concebermos a universalidade cristã, da qual estamos convictos e a qual não devemos abandonar, em termos de respeito pela legítima alteridade das outras tradições religiosas. O específico da universalidade histórica do cristianismo estaria na sua situação semper reformanda165, o que não lhe permitiria fechar-se sobre si mesmo.

163 DUQUOC, Ch. “O cristianismo e a pretensão à universalidade”. In: Concilium 155

1980/5 p.

634-686, aqui, p. 636.

164 GEFFRÉ, C. “La singularité du christianisme à l’âge du pluralisme religieux”. In: Penser La

Foi, op. cit., p. 362 – “De même que l’Eglise n’intègre pás et ne replance pas Israël, il est permis d’avancer que le christianisme n’intègre pas et ne remplance pas les richesses authentiques des autres traditions religieuses.

165 DUQUOC, Ch. “O cristianismo e a pretensão à universalidade”, art. cit., p. 639: “O universal é

constituído no particular da obra, desde que dê chance de nascer a outras obras. É precisamente seu limite como chance para uma outra obra que constitui sua marca de universalidade”. Essa idéia se aproxima muito do que propõe Geffré.

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1.3.

A originalidade da salvação cristã

A Declaração Nostra Aetate afirma: “Por meio de religiões diversas procuram os homens uma resposta aos profundos enigmas para a condição humana, que tanto ontem como hoje afligem intimamente os espíritos dos homens”. (NA 1). Essa busca tão significativamente profunda do ser humano deve ser considerada seriamente no contexto sociocultural hodierno. Esse tempo marcado pela globalização e por um individualismo apresentado como algo cada vez mais valioso, faz surgir também experiências religiosas influenciadas por tais valores. Afirma-se sempre mais o que alguns estudiosos chamam de “religião à la carte”, 166 marcadamente emocional e intimista, cuja principal característica é a relativização dos elementos institucionais e das tradições normativas. O critério único seria a autenticidade da experiência na busca de realização plena da pessoa.167

Como já assinalamos acima, a palavra salvação é cheia de ambigüidades. Principalmente porque sua origem judeu-cristã a refere sempre a um salvador. Ao admitir-se que mesmo as religiões não teístas podem ser caminhos de salvação para seus membros, ao menos salvação no sentido de libertação ou transformação da existência humana, alguns problemas se colocam.

Geffré diz que uma teologia cristã das religiões não pode contentar-se com uma mera análise comparativa entre elas.168 Também não pode ceder à tentação de fechar-se numa atitude apologética estreita que não permita considerar a diferença irredutível de cada tradição religiosa e nem discernir seus valores salvíficos. Reconhecer o valor da diferença permite assimilar os valores dos outros ao invés de considerá-los apenas como degradações ou preparações remotas para a acolhida da versão normativa de toda a religião, que é o cristianismo. É preciso levar em conta cada elemento religioso particular, quer seja de ordem doutrinal, cultual ou ética, dentro da globalidade do sistema religioso ao qual pertença. Por

166 O termo “religião à la carte”, com todas as suas variantes, foi proposto por renomados

estudiosos franceses como Champion, F. “Religieux flotant, écletisme et syncrétisme”, in: DELUMEAU, J (dir.) Le Fait Religieux.Paris: Fayard, 1993, p. 741-771. E também por Hervie-Léger, D. La Religion pour Mémoire.Paris: Cerf, 1993. Outro texto emblemático dessa autora é “Les manifestations contemporaines du christianisme et la modernité”, in: VVAA. Christianisme et modernité. Paris: Cerf, 1990, p. 295-316.

167 GEFFRÉ. C. “Un salut au pluriel”. In: Lumière et Vie. Nº 250, avril-juin, 2001, p. 21-38 168 Id. “Le comparatisme en théologie des religions”. In: BOESPFLUG, F e DUNAND, F. (dir.)

Dans le comparatisme en histoire des religions. Paris: Cerf, 1997, p. 415-431.

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isso, se algum comparatismo entre as religiões é possível, ele não deve ser feito em termos de elementos estruturais. É muito mais fecundo buscar as aproximações em termos de analogia quanto à maneira como cada religião compreende o que chamamos salvação. Do ponto de vista antropológico, a aspiração à salvação se enraíza no desejo mais profundo do espírito humano em sua busca por uma Alteridade. Sem prejulgar a existência ou não dessa Alteridade, é superficial dizer que esse fenômeno humano deve-se apenas a certa carência ou alienação. Nosso autor considera que a religião é a resposta a um chamado misterioso. Sua origem é o transcendente e não apenas o imanente como começo e fim.169

Afirma ainda que uma das causas da sedução que outras religiões exercem sobre os cristãos atuais é a carência de uma boa catequese. O pouco conhecimento das riquezas da salvação cristã, aliado à crescente perda de credibilidade de um cristianismo mais ensinado que praticado, também serve para ilustrar essa afirmação. Não é o caso aqui de estudar de maneira rigorosa as diversas ofertas de sentido e de salvação oferecidas pelas outras religiões. Correr-se-ia o risco de simplificar ou de sacrificar certas nuances fundamentais. Como nosso propósito é investigar a singularidade cristã diante do pluralismo religioso a partir da teologia de Geffré, cremos ser suficiente registrarmos aqui uma hipótese formulada por esse autor: o homem ocidental contemporâneo, inserido nesse universo plurireligioso, desejoso de uma experiência religiosa autêntica, busca nas outras religiões uma salvação sem mediação, uma salvação que seja uma arte de viver o cotidiano e uma salvação pessoal e solidária.170

As religiões monoteístas atribuem à salvação um caráter teologal. Deus toma a iniciativa, mas o ser humano precisa responder livremente. É Deus quem salva. Ora, muitos de nossos contemporâneos não consideram necessária qualquer mediação para elaborarem sua própria maneira de pensar o Absoluto. De outro lado, ao se conscientizarem de sua condição terrestre, de sua precariedade biológica, de suas limitações históricas, eles buscam uma forma de superação disso tudo. Freqüentemente apelam para uma espécie de intervenção exterior de Deus com esse objetivo.

169 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 24. 170 Id. Ibid., p. 25

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A partir daí pode-se entender como uma religião tal qual o budismo é tão bem aceita no ocidente. O budismo se apresenta como uma medicina de salvação que liberta não do pecado, mas da finitude humana. Isso se faz sem apelo à mediação de uma ajuda ou de alguma outra fonte exterior ao homem. É um caminho de salvação sem Deus, uma salvação não teologal. Não é um ateísmo no sentido de negação de toda transcendência e da afirmação da auto-suficiência do homem. O esforço ascético budista não liberta por ele mesmo. Ele consiste em descobrir o que sempre esteve dentro do homem. O caminho budista pode somente possibilitar a irrupção do nirvana. O Buda não é um salvador. Ele mostra o caminho da salvação. A salvação que se aspira não é somente a libertação do sofrimento e da culpabilidade, mas de tudo o que se refere à nossa condicionalidade. Aos olhos de certos contemporâneos nossos este caminho da sabedoria budista pode aparecer mais viável do que uma existência marcada pela fatalidade do pecado e de um perdão sempre renovável. Geffré diz que o budismo será a maior provocação religiosa para o homem do terceiro milênio, tão marcado por um contexto de violência, guerras, enfermidades e sofrimentos tão diversos. Para esse homem, a visão de um Buda pacificado pode fascinar mais do que a visão do Cristo crucificado.171

Mesmo para numerosos cristãos, a experiência religiosa resume-se na arte de viver o cotidiano. Uma concepção de salvação como uma vida eterna ou como a ressurreição depois da morte, como ainda apresentam certas catequeses, começa a soar estranho. Em nossos dias, uma salvação que se apresente como uma arte de viver que ajude a assumir a vida no mais ordinário do cotidiano parece mais sedutora. A salvação oferecida pelas religiões monoteístas não tem somente uma dimensão teologal, mas também uma dimensão escatológica. As religiões consideradas messiânicas como o judaísmo e o cristianismo vivem sempre sob tensão do “Já” e do “Ainda não” do Reinado de Deus. Mesmo o Islã, que não é propriamente uma religião messiânica, fala em termos de uma retribuição no paraíso à pessoa que leva uma vida correta. No entanto, as grandes religiões orientais, chamadas religiões da imanência quando comparadas com outras religiões que apelam para uma transcendência, apresentam também, sob várias nuances, uma tensão entre uma salvação intramundana e uma salvação

171 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 27.

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extramundana. Mesmo o complexo quadro religioso chinês aponta para um caminho de sabedoria que ultrapassa a esfera unicamente moral da existência sem ser explicitamente religioso. O caminho de salvação por excelência, segundo a religião chinesa, 172 é a busca do caminho reto e da bondade, algo já marcado no coração do homem, que o faz conduzir-se pela terra rumo ao céu. Na ordem do agir humano, o famoso Tao, ou a Via dá mais importância à mística e à ascese do que à sabedoria. A verdadeira sabedoria, segundo o Tao, é um saber, um não-agir, um certo deixar-ser. A salvação vinculada ao cotidiano consiste em fazer chegar ao homem a sua verdade. Uma vida feita de altruísmo e de bondade. Alcançar uma vida santa sem apelar diretamente à divindade. Proposta muito sedutora para nossos dias.173

As grandes religiões orientais propõem uma salvação pessoal e solidária. De fato, pondera nosso autor, certa maneira de apresentar a salvação cristã em termos excessivamente sobrenaturalista e individualista empalideceu sua profundidade. Uma salvação pessoal que não mude em nada a situação precária em que se encontra grande parte dos homens e mulheres é posta em xeque por aqueles que percebem um hiato entre o que propõem os programas das instituições religiosas ocidentais e a ineficácia prática em socorrer os mais pobres dessa terra. É preciso entender a salvação pessoal e solidária, não somente com os semelhantes, mas também com o meio ambiente e com todo o universo, como uma característica marcante das religiões orientais. Diante das ameaças do caos que se vislumbra como conseqüência do aquecimento global, uma proposta salvífica precisa alcançar proporções cósmicas. Talvez o fascínio das religiões orientais no Ocidente cristão deva-se ao fato delas, no seu conjunto, não serem tão dualistas. Deva-se também ao fato de não apresentarem uma distinção entre a alma e o corpo, entre o ser humano e o restante do universo, entre o ser pessoal e alma do mundo. O ínfimo como o infinitamente grande, o corpo humano e o corpo do mundo participam da mesma energia cósmica.

Para o budismo e para o hinduísmo, por exemplo, essa inter-relação entre tudo o que existe se traduz na compaixão ao se olhar todos os seres vivos num

172 Não é nosso propósito aprofundar aqui todas as nuances do complexo religioso chinês. Apenas

apresentamos uma síntese dos desafios que as religiões orientais, em especial as de matriz chinesa, trazem para o Ocidente cristão. O que chamamos sinteticamente religião chinesa é o resultado complexo do encontro entre o taoísmo, o budismo e o confucionismo.

173 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 29.

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sentido não-antropocêntrico. No taoísmo em particular, o indivíduo é ontologicamente ligado à sua família, por isso ele não é salvo independentemente de seus ancestrais. As faltas dos ancestrais recaem sobre seus descendentes. Ao mesmo tempo, os descendentes podem contribuir para a salvação dos ancestrais através de atos meritórios e de ritos apropriados. Já no hinduísmo a salvação integral do homem consiste em fusionar o seu corpo e a sua alma com a força divina que anima o mundo. A sabedoria chinesa considera o ser humano como um verdadeiro microcosmo. Não há uma salvação individual que não seja ligada com a harmonia universal do mundo. Essa solidariedade profunda que existe entre tudo o que vive é uma característica de grande valor nas religiões orientais. Não existe uma salvação individual fora dessa inserção orgânica na totalidade do universo.174

Essa breve descrição da diversidade e da riqueza das vias de salvação propostas pelas religiões orientais deve nos incitar a recolocarmos as bases da pretensão cristã como detentora da única via de salvação verdadeira. Tal pretensão é muitas vezes vista como exorbitante e mesmo insultante pelas outras religiões. Que resposta uma teologia cristã das religiões pode dar a esse problema? Geffré se propõe a contribuir com essa resposta em duas etapas: a partir da fé recebida dos Apóstolos e que nos remete à universalidade da salvação de Jesus Cristo; e da universalidade cristã que não pode servir como justificativa de monopólio do cristianismo ou da Igreja em ordem da salvação.175

A fé recebida dos Apóstolos nos assegura que somente Deus salva. Mais: somente Jesus Cristo é a realização plena da vontade divina de salvar o ser humano. Em Jesus Cristo, a aliança eterna e definitiva de Deus com a humanidade se cumpriu, e Deus concretizou sua vontade de fazer com que todos os homens participassem da filiação divina de Jesus. No entanto, mesmo se ao longo dos séculos a Igreja reivindicou uma universalidade que não se apartava da de Cristo, é preciso cautela em identificar a universalidade do Cristo com a universalidade do cristianismo como religião histórica. De fato, como já apontamos no capítulo precedente, nosso autor considera a centralidade do mistério da Encarnação como chave hermenêutica imprescindível ao diálogo inter-religioso. Mas, os cristãos e a Igreja não são os proprietários nem de Deus, nem de sua salvação. Eles são somente testemunhas do Reinado de Deus que já veio em Jesus Cristo e que vem

174 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 30-31. 175 Id. Ibid., p. 31.

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aos corações humanos e à história que acontece além das fronteiras eclesiásticas.176

Considerada assim a unicidade da mediação de Cristo, é possível reconhecer as experiências salvíficas das outras religiões como sinais ou mediações da vontade universal de Deus que abarca toda a história. Uma história nunca privada da presença do Verbo de Deus e dos dons do Espírito Santo. Uma história que testemunha a busca recíproca de Deus e do ser humano. Por isso tudo, pode-se falar de “valor salutar” presente nas outras religiões, que, segundo as palavras da João Paulo II, “tiram seu sentido e seu valor unicamente da mediação de Cristo” (RM 5).

Enquanto produtos humanos, as religiões do mundo não estão isentas de ambigüidades. Alguns de seus elementos constitutivos podem até servir de obstáculos à plena manifestação da graça. Mesmo assim, é possível estabelecer algum critério objetivo de discernimento das sementes de bondade, de verdade e de santidade presente nelas. As religiões devem favorecer o descentramento de si, aliado à abertura a uma Alteridade transcendente e ao mesmo tempo à alteridade do outro. É esse o critério objetivo. Considerando a existência dessa Alteridade, essa busca não pode ser definida como simples projeção a partir da experiência de uma carência. Uma religião que possibilite isso pode ser considerada como uma mediação possível para uma autêntica experiência salvífica. Toda experiência religiosa autêntica tem qualquer coisa de pascal, ao menos no sentido que ela implica certa morte de si. Como somente Jesus Cristo é o fundamento último da salvação, pode-se também dizer que, respeitada a parte irredutível de cada religião, elas trazem em si valores crísticos que somente serão recapitulados no último dia. Ou seja: nenhuma religião pode ser autêntica sem essa referência última ao mistério da páscoa de Jesus Cristo. Isso pode ser ilustrado por essa bela afirmação do Vaticano II: “Com efeito, tendo Cristo morrido por todos, e sendo uma só a vocação última do homem, isto é divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22).

176 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 32 – “Les chrétiens dans l’Église ne sont les

propriétaires ni de Dieu ni du salut. Ils sont seulement les témoins du Royaume de Dieu advenu en Jésus-Christ, tout en sachant que Royaume advient dans les coeurs et dans l’histoire bien au-delà des frontiers de l’Église”.

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O irredutível de cada religião não é necessariamente um implícito cristão. É um irredutível diferente, mesmo mantendo uma relação misteriosa com Cristo. É uma virtualidade do mistério de Cristo, mas o mistério da diferença entre as religiões permanece inteiro. Ele somente será clarificado em termos escatológicos. O processo histórico do diálogo inter-religioso visto a partir do cristianismo visa reinterpretar a salvação cristã em vista de uma melhor compreensão das outras ofertas de salvação. Isso poderá nos ajudar a estender certas virtualidades da salvação cristã para além de suas expressões históricas.177

O diálogo inter-religioso deve levar a uma melhor compreensão da crença do interlocutor no respeito à sua diferença própria, mas também na fidelidade à sua própria identidade. O diálogo deve ir além dele mesmo, possibilitando a cada uma das partes uma transformação da visão que cada uma tinha de si mesma e da outra. Uma das conseqüências será perceber certas equivalências juntamente com diferenças insuperáveis. Quer dizer: é preciso aceitar que o outro tenha sua própria verdade e considerar legítimo o seu direito a testemunhá-la. Uma boa teologia das religiões não pode se contentar em apenas “apreciar” a fé e os limites respectivos das outras religiões.178 Ela terá que ser uma teologia dialógica, motivada a mostrar seriamente essa realidade transreligiosa que é a salvação. Essa abertura pode ser ocasião de melhor compreender nossa noção cristã de salvação.

A salvação cristã é primeiramente um dom gratuito. É uma justificação além dos méritos humanos. Nossa maneira habitual de pensar nos leva a conceber uma noção utilitarista da salvação, onde Deus aparece mais como “meio” do que como causa da salvação. Essa função utilitarista precisa ser superada.179

Além de ser dom gratuito, a salvação cristã também é libertação integral do ser humano. A salvação compreende a redenção do pecado, a reconciliação com Deus e o dom da vida eterna. A doutrina bíblica da criação pronuncia um juízo positivo da condição humana como existência histórica. Não é um mal ser uma criatura finita e a temporalidade ser o lugar da redenção. A salvação de Jesus Cristo resulta em uma nova criação e a sua ressurreição não é somente a vitória sobre a morte no fim da vida, ela é também a vitória sobre todas as negatividades

177 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit. p. 33.

178 Id. De Babel à Pentecôte, op. cit., p. 234 – “Or on sait bien que chaque élément religieux

particulier, qu’il soit d’ordre doctrinal, cultuel ou éthique, ne prend son sens que ressaisi dans La globalité du système auquel il appartient”.

179Id. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 35.

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da condição humana que são as alienações, o sofrimento psíquico e moral, a ignorância, a culpabilidade, a solidão e a decrepitude já no tempo presente. A salvação cristã é uma espécie de “sanação” que restitui o projeto criador original de Deus sobre o ser humano. Dessa forma, a salvação integral é não somente a reconciliação do pecador com Deus, mas a reconciliação da criatura com ela mesma e com o conjunto da criação.180

A salvação cristã pode ainda ser compreendida como solidariedade entre Deus e o ser humano. Hoje uma questão intrigante é: como justificar Deus na presença lancinante do excesso do mal no mundo? Uma teologia que insistisse menos na redenção do pecado do ser humano e mais na solidariedade de Deus na cruz de Cristo com o sofrimento humano ajudaria a esclarecer essa questão. Um artigo emblemático de nosso autor da década de 1980 já apontava nesta direção

O Deus da ciência onto-teológica é o Deus da identidade, da coincidência consigo mesmo, da perfeição não afetada por qualquer alteridade, da auto-suficiência e da contemplação de si. A vida de Deus que se revela em Jesus Cristo é uma vida diferenciada. [ ] A loucura do logos da cruz (1Cor 1,18) é a última palavra sobre o Pai de Jesus. No momento em que Jesus renuncia à presença de um Pai idealizado, ao fazer a experiência de seu silêncio e de sua ausência, o próprio Deus manifesta sua solidariedade com o sofrimento e com a morte do homem. Dá a prova de diferir radicalmente do Deus todo poderoso e apático da tradição filosófica....Deus renuncia às suas prerrogativas para apagar-se na humanidade do crucificado....Mas devemos ir até o extremo de uma teologia da cruz, se quisermos fazer brilhar a novidade do Deus Pai de Jesus, tanto no que diz respeito ao Deus da razão quanto ao Deus de Israel, embora não se trate de um outro Deus.181

Somos convidados, então, a aprofundar a singularidade cristã à luz da cruz. A cruz tem um valor simbólico universal. Não é possível manter a identidade cristã no diálogo inter-religioso fora da cruz de Cristo como figura do amor absoluto de Deus. Jesus não foi morto somente para expiar nossos pecados, mas para manifestar o excesso de amor de Deus em resposta ao excesso do mal. Essa concepção guarda certa semelhança com a compaixão budista ou com a não violência hindu para vencer a violência humana. Mas é nas fontes bíblicas que essa noção de salvação cristã encontra sua raiz. O conjunto da tradição judaica testemunha que a redenção prometida a Israel seria um acontecimento público que se produziria na cena da história e no coração da comunidade judaica. É certo que

180 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit., p. 36.

181 Id. “Pai – Nome próprio de Deus”. In: Concílium 163 – 1981/3, p. 50-59, aqui p. 56 e 59.

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a salvação cristã nem sempre insistiu em sua relevância para o mundo. Mas, principalmente no século XX, sobretudo graças às teologias da libertação, a Igreja redescobriu, na sua fidelidade ao messianismo de Jesus, que tem uma responsabilidade histórica quanto à libertação integral do ser humano.182

Nossos contemporâneos são conscientes do caráter irrisório de uma salvação individual que não leve em conta o lado trágico da história humana. Uma salvação solidária implica também nossa parceria com Deus na sua luta contra as forças do mal. Essa experiência solidária da salvação leva o ser humano a não somente apelar a Deus quando as coisas vão mal, mas a juntar-se a Ele e ajudá-lo em seu combate em nosso favor.

Por fim, Geffré afirma que a unicidade do cristianismo é a unicidade de um devir, não de uma totalidade já construída, mas de um devir feito de consentimento e de serviço. Diz nosso autor:

São, portanto, as próprias exigências do diálogo inter-religioso que nos convidam a encontrar a diferença cristã. Diferença sempre tem a ver com a tensão entre o logos grego e o logos da cruz. Segundo seu gênio próprio, o cristianismo não é comparável a nenhuma outra religião, na medida em que se define essencialmente em referência ao Evangelho, isto é, pela transposição da letra pelo espírito, pela distância em relação a toda lei, a todo código, mesmo religioso, que pretenderia justificar o ser humano por ele mesmo. [ ] É no paradoxo de Jesus crucificado e glorificado que o cristianismo cumpre os valores positivos das outras religiões,valores que podem ter sido suscitados pelo próprio Espírito de Deus.183

182 GEFFRÉ, C. “Un salut au pluriel”, art. cit. p. 38. 183 Id. Crer e Interpretar,op. cit.p. 171.

(18)

2.

A singularidade do cristianismo como religião do diálogo

O esforço de Claude Geffré é ajudar a delinear uma teologia pluralista das religiões. No entanto, antes de fundamentar sua reflexão num teocentrismo generalizado, ele insiste em partir da mensagem cristã propriamente dita, a saber: a manifestação de Deus na particularidade histórica de Jesus de Nazaré, como a prova do caráter não imperialista e dialogal do cristianismo. É justamente porque o cristianismo reivindica legitimamente ser a religião da revelação final que as diferentes configurações históricas que assumiu não podem definir a sua essência como religião da revelação última sobre Deus. Dessa forma, abre-se um espaço para a necessária desabsolutização do cristianismo como religião histórica.184 Geffré prefere apresentar a singularidade do cristianismo a partir de três pistas teológicas.

2.1.

A dualidade de Israel e da Igreja

Em conformidade com o ensinamento do Concílio Vaticano II, a maior parte dos teólogos que refletem sobre o lugar das religiões não-cristãs prefere apresentá-las como “preparações evangélicas” que teriam sua realização plena na religião da nova Aliança inaugurada por Cristo. Isso não é falso, mas devemos reinterpretar essa noção de realização plena num sentido não totalitário e que considere seriamente as outras religiões na sua diferença. Uma reflexão sobre a dualidade Israel-Igreja pode ajudar em tal tarefa.185

A maioria dos teólogos aceita dizer seguindo o Vaticano II, que, mesmo a despeito da reprovação divina pela não aceitação de Jesus como o Messias prometido e esperado, Israel continua depositário das promessas de Deus. Afirma taxativamente a Nostra Aetate

Testemunha a Sagrada Escritura que Jerusalém não conheceu o tempo de sua visitação; e que os judeus em grande número não aceitaram o

184 GEFFRÉ, C. “La responsabilité de la théologie chretienne à l’âge du pluralisme religieux”. In:

DEMAISON, M. (Dir.). La Liberté du Théologien.Paris: Cerf, 1995, p. 123-135, aqui p. 131 – “C’est justement parce que Le christianisme revendique à juste titre d’être la religion de la révélation finale qu’aucun des divers christianismes historiques depuis vingt siècles ne peut prétendre definir l’essence du christianisme comme religion de la révélation derniére sur Dieu”.

185 Id. De Babel à Pentecôte,op. cit. p. 75.

(19)

Evangelho, sendo que não poucos opuseram obstáculos à sua difusão. Segundo o Apóstolo, no entanto, os judeus ainda são amados por causa de seus pais, porque Deus não se arrepende dos dons e da sua vocação. (NA 4.)

Assim, Israel representa um irredutível que não se deixa integrar à Igreja durante sua peregrinação na terra.186 Por isso, pode-se afirmar que não há contradição em dizer que as promessas feitas ao Povo de Deus se realizaram plenamente na nova Aliança e que, no entanto, a Igreja não substitui Israel. Da mesma forma, a Igreja é considerada sempre no Novo Testamento como a realização plena do Antigo, mas isso não significa que ele seria desprovido de sentido fora de seu fechamento. Quer dizer, a novidade do Evangelho é uma “ruptura” que não abole a parte irredutível da Lei e dos Profetas.187 A ruptura originária entre Israel e a Igreja nascente é um indício de um diálogo originário que se inscreve na gênese do cristianismo.

Mesmo se tratando de uma analogia, é possível reportar ao início do cristianismo, a partir dessa continuidade-descontinuidade com Israel, um modelo exemplar para a situação atual, quando o Evangelho se encontra com as outras religiões e culturas. Assim como a Igreja não aboliu os privilégios irredutíveis do povo de Israel, ela não pode simplesmente integrar em si mesma as riquezas autênticas das outras tradições religiosas. Esse é mais um argumento forte que o autor usa a favor da afirmação de que há um pluralismo religioso de princípio que revela o desígnio do Deus criador e libertador. Pode-se continuar falando em termos de “recapitulação” de todas as religiões em Jesus Cristo, mas na condição de que os valores salutares delas não sejam vistos como degraus inferiores e transitórios, que desapareceriam completamente quando se deparassem com a mensagem cristã. Cada experiência religiosa guarda qualquer coisa de irredutível na medida em que pode ser suscitada pelo Espírito de Deus que sopra aonde quer. Esses valores positivos não precisam ser abolidos, se consideramos que podem ser metamorfoseados pela ação do Espírito de Cristo para que se tornem sempre mais

186 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit. p. 75.

187 Id. Ibid., p. 76. Em termos semelhantes em “La singularité du christianisme à l’âge du

pluralisme religieux”, art. cit., p. 359. Também em “La responsabilité de la théologie chretienne à l’âge du pluralisme religieux”, art. cit., p. 132.

(20)

semelhantes ao Cristo mesmo.188 Essa confluência com o Mistério de Cristo, porém, jamais será totalmente tematizada no cristianismo histórico. Daí não ser possível confundir a universalidade de Cristo com a universalidade do cristianismo como religião histórica.189

2.2.

A dialética da cruz

A cruz de Jesus pode ser considerada como o fundamento último da abertura do cristianismo às outras religiões na sua alteridade. A cruz é o símbolo mais eloqüente para expressar como uma particularidade pode ter um alcance universal. Jesus morre à sua particularidade para renascer na figura da universalidade concreta, na figura do Cristo.190 É a kénose do Cristo de sua igualdade com Deus que permite sua ressurreição no sentido mais profundo do termo. A vida de Jesus pode ser descrita em termos de uma “existência para os outros”. De fato, sua solicitude para com os pobres, pecadores e marginalizados demonstra isso. Essa perene doação de si tem seu cume em sua entrega na ceia eucarística (Mt 26, 26-28; Mc 14,24; Lc 22, 14-20; Jo 13, 1-17) e na sua morte de cruz (Mc 15,39).

Essa solidariedade incondicional de Jesus Cristo com a humanidade é de grande importância para uma fundamentação teológica do diálogo inter-religioso. Os textos neotestamentários asseguram um sentido singular à morte de Jesus. Ela não pode ser vista apenas como o resultado de uma vida humana empenhada na solidariedade irrestrita para com as pessoas. Isso outras figuras históricas também

188 GEFFRÉ,C. “La responsabilité de la théologie chretienne à l’âge du pluralisme religieux”, art.

cit. p. 132 – “Cela est certes légitme, mais à condition de ne pas entendre les ‘valeurs salutaires’ des ces religions comme des degrés inférieurs et transitoires qui disparaissent complètement quand elles trouvent leur accomplissement dans Le christianisme. Chaque figure religieuse garde quelque chose d’irréductible dans la mesure où elle a pu être suscitée par l’Esprit meme de Dieu”. Também em “The Word of God and Word Religions and Cultures”. Conference of Interfaith Dialogue (mimeo). Bangkok, Thailand, February – 2001, p. 9.

189 BRIGHENTI, A. “O gnosticismo na Igreja Antiga e na atualidade”. In: REB 267 – Julho 2007,

p. 645: “É possível a salvação sem a fé em Jesus, mas jamais sem a fé de Jesus, isto é, sem haver praticado as obras de Jesus, mesmo sem sabê-lo”.

190 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit. p. 77 – “La Croix de Jésus a une valeur universelle.

Elle est Le symbole d’une universalité toujours liée au sacrifice d’une particularité. Jésus meurt à as particularité pour renaître em figure d’universalité concrète, em figure de Christ”. Também “La responsabilité de la théologie chretienne à l’âge du pluralisme religieux”, art. cit., p. 133. E em termos semelhantes e mais aprofundados em “Paul Tillich et l’avenir de l’oecuménisme interreligieux”, art. cit. p. 9-10.

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podem vivenciar. O sentido salvífico universal da morte de Jesus na cruz está no fato de que ele o fez “por nós”, quer dizer, “em nosso lugar”, em vista de nossa reconciliação definitiva com Deus. Porque viveu completamente voltado para Deus e a serviço dos outros, somente Jesus poderia dar ao sacrifício da cruz uma dimensão universal. Em resumo poderíamos dizer

[ ]que há uma continuidade entre a vida terrena e a morte violenta de Jesus, mas que o sentido pleno dessa morte não se esgota apenas como conseqüência histórica de sua ‘existência-para-os-demais’, se respeitamos de fato os textos neotestamentários. Intimamente relacionada a essa afirmação está a questão da consciência que teve Jesus de sua morte. Mesmo concedendo-se a possibilidade de interpretações plurais da morte de cruz, revela-se bastante implausível que o sentido do evento central de

nossa salvação tenha passado despercebido ao próprio Jesus Cristo. 191

A mediação salvífica de Jesus tem, então, um caráter totalmente peculiar. Só a ele compete o título de Salvador único e universal, uma vez que, como Filho de Deus encarnado, ele não é apenas a manifestação, mas a realização histórica do amor incondicionado de Deus para com toda a humanidade. A encarnação do Verbo não apenas implicou em assumir nossa condição humana, em não somente solidarizar-se com os pobres e marginalizados, mas, sobretudo, em entregar a própria vida por nós. “Na pessoa do Crucificado, aparece o compromisso incondicionado de Deus conosco”.192

Numa vida assim como a de Jesus, o que pode haver de prepotência ou de soberba? O que pode haver de autoritarismo em uma pessoa tão modesta e simples assim? Que arrogância existe na figura de quem se fez tão radicalmente igual a nós, tão radicalmente solidário com os pobres e marginalizados de todas as espécies (Mt 25, 31-46)? O que pode ser opressivo num ensinamento como o do Evangelho de Jesus que coloca a centralidade do amor ao próximo e de uma vida reconciliada com todos acima de rituais e sacrifícios? Como uma vida como a de Jesus pode ser um entrave para o diálogo com as outras religiões? São questões que a teologia de Geffré pretende enfrentar e responder reconhecendo a pessoa de Jesus Cristo não só como normativa, mas constitutiva da salvação.193 Por isso, apresenta a cruz como um exemplo eloqüente de uma particularidade que chega à proporção universal.

191 FRANÇA MIRANDA, M. O cristianismo em face das religiões,op. cit., p. 55.

192 Id. Ibid., p. 59, apud: HOPING, H. “Stellverttretung. Zum Gebrauch einer theologischen

Kategorie”. In: ZKTh 118 (1996), p. 357-360.

193 Como demonstramos no Capítulo precedente ao aprofundarmos a cristologia desse autor.

(22)

Esta dialética da particularidade (Jesus de Nazaré) e de seu desaparecimento (morte de Cruz) para a abertura a um outro (o Cristo), sem deixar de ser ela mesma, é importante para repensarmos o problema da articulação entre a universalidade da mensagem cristã e o contexto plurireligioso em que nos encontramos. Ao renunciar a toda absolutização na ordem da verdade e da experiência religiosa, cada comunidade cristã e, por extensão, todo o cristianismo entenderá sua singularidade em termos relacionais. Dessa forma, é possível manter a singularidade do cristianismo no concerto polifônico das religiões do mundo. Não é uma unicidade de exclusão, nem de inclusão. Mas uma unicidade relacional, ou seja, tanto mais o cristianismo se insere na dinâmica do diálogo, quanto mais ele tem claro sua própria identidade.

2.3.

Uma nova figura histórica do cristianismo

Depois de vinte séculos de cristianismos históricos, podemos ver hoje com mais clareza em que consiste nossa singularidade cristã. Para isso, é forçoso avaliar se o casamento feliz entre o cristianismo e o helenismo, por exemplo, foi realmente fecundo. Hoje, certo policentrismo cultural é uma realidade na Igreja Ocidental. Por isso ela é levada a considerar positivamente também o que não é nem judeu, nem grego, o que Geffré chama de tertium quid.194 O dualismo que separa o que é Ocidental do que não é Ocidental precisa ser superado. Não se trata mais de derrubar somente o muro da inimizade entre judeus e gentios, mas entre gregos e “bárbaros”. Fala-se de uma passagem aos “novos bárbaros” referindo-se ao recuo de um eurocentrismo como uma tarefa irrenunciável ao processo de inculturação do cristianismo nas culturas não-ocidentais. Entretanto, isso não pode favorecer uma espécie de regionalismo cultural, que faria do cristianismo uma religião de geometria variável, dependendo sempre da cultura em que se encontre. Não existe um cristianismo quimicamente puro que se encarne sucessivamente nas diferentes culturas. A nova figura histórica do cristianismo deverá ter escala mundial e ser policêntrica. O cristianismo assumirá sempre mais ser um lugar de fecundação mútua e criativa entre as riquezas próprias de certa tradição cristã secular e as riquezas antropológicas, culturais e religiosas não-ocidentais. Um

194 GEFFRÉ, C. “La responsabilité de la théologie chretienne à l’âge du pluralisme religieux”, art.

cit., p. 134.

(23)

cristianismo mundial, como resultado da interação entre as pessoas das várias culturas e das reflexões teológicas enraizadas nas diversas culturas particulares, resistiria aos perigos de um particularismo cultural fechado e a um modelo de globalização unidimensional.195

3.

A mensagem universal do cristianismo em tempos de pluralismo religioso

O cristianismo terá sempre um papel de exceção entre as grandes religiões do mundo. Como qualquer outra religião, ele pretende que sua mensagem tenha um alcance universal. O diferencial cristão é que a universalidade de sua mensagem se refere à mediação histórica de Jesus Cristo, que, por sua vez, coincide com a irrupção do Absoluto mesmo que é Deus. Nenhuma outra religião tem a pretensão de reclamar para a pessoa de seu fundador não somente ser um profeta, mas ser o próprio Filho de Deus. A universalidade da mensagem cristã não deriva somente do mandato de Jesus: “Ide, formai discípulos meus e batizai em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” (Mt 28, 19), mas principalmente do fato de que a Igreja não pode fazer outra coisa que não seja anunciar Jesus Cristo e o Reino de Deus que nele veio para todo ser humano.196

3.1.

A vocação universal da Igreja

Nenhum cristão pode contestar a vocação universal da Igreja. No entanto, essa universalidade não pode continuar a servir de pretexto para justificar a pretensão universalista do cristianismo como religião histórica. Tal pretensão não só é um sério obstáculo ao diálogo real sob as bases da igualdade entre as religiões, mas contradiz nossa nova experiência histórica e a nova maneira de considerar a particularidade cristã.

Hoje, passada a euforia da expansão missionária do final do século XIX, podemos ver com mais objetividade porque não ocorreu a esperada vitória do cristianismo sobre as outras grandes religiões. Além disso, mesmo com o expressivo desenvolvimento dos meios de comunicação e da difusão do

195 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit. p. 79. 196 Id. Ibid., p. 279.

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Evangelho, a missão da Igreja está longe de estar concluída. Ao contrário, a missão é urgente hoje como talvez nunca tenha sido. A extraordinária circulação de informações que se dá no mundo contemporâneo torna ainda mais séria a missão da Igreja, uma vez que também as outras grandes religiões se tornam mais conhecidas.197 Essa conjunção de fatores contribui para que a consciência da relatividade histórica do cristianismo seja cada vez mais forte.

Mas, se a universalidade da mensagem cristã é irrenunciável, como adequá-la às exigências próprias dos tempos atuais? Como compreender a universalidade cristã depois que o Concílio Vaticano II pronunciou um juízo positivo sobre as outras religiões? É certo que o Concílio não chegou a dizer que elas seriam “caminhos de salvação”, mas incentivou a que sejam vistas com respeito sincero. (NA 2).

É possível levar a sério a particularidade histórica do cristianismo sem renunciar à sua vocação universal. A verdadeira universalidade se enraíza sempre numa particularidade concreta.198 Ao olharmos a história, perceberemos que o cristianismo nem sempre soube articular adequadamente o conteúdo de sua mensagem com as formas históricas que foi adquirindo. O resultado foi a construção de uma espécie de “ideologia unitária”, com a pretensão de testemunhar e realizar na história a união entre o Reino de Deus e a história profana.199 O grande desafio sempre foi descobrir como manter a eficacidade do cristianismo e, ao mesmo tempo, salvaguardar a gratuidade de sua mensagem. As sucessivas fases históricas que viveu demonstram que ele, por vezes, oscilava entre um messianismo paradoxal200 como o de Jesus, e um messianismo em continuidade com a experiência histórica de Israel. Isso repercute diretamente na oscilação entre uma tendência de atribuir ao cristianismo o poder de transformar o

197 GEFFRÉ, C. “Pour un christianisme mondial”, art. cit. p. 53-54. 198 Id. De Babel à Pentecôte,op. cit., p.281.

199 Confira para isso, além do já citado artigo de Ch. Duquoq, todo o número monográfico da

Revista Concílium- 155, 1980 com o título geral: Verdadeira e falsa universalidade do cristianismo

.

200 Id. De Babel à Pentecôte, op. cit., p. 284, apud: DUQOUQ, Ch. Messianisme de Jésus et

discrétion de Dieu. Genève: Labor et Fides, 1994. Por messianismo paradoxal o autor entende que Jesus não se alinhou simplesmente ao messianismo dominante em Israel no seu tempo. Este era caracterizado pela espera do Messias enviado por Deus para restabelecer a paz e a justiça. Mesmo com uma indicação escatológica, o messianismo de Israel era nacionalista. Jesus procura manter distância dessa expectativa messiânica. Ao lado desse messianismo político, terrestre e nacionalista, Jesus instaura um messianismo espiritual, celeste e universal. Porém, mesmo com essa característica, o Reino de Deus anunciado por ele, que não é desse mundo, começaria aqui, no tempo, na história, graças à aceitação e vivência concreta do Evangelho.

(25)

mundo e outra que sustenta uma doutrina de desprezo pelo mundo, traduzindo uma visão muito pessimista da criação.201

3.2.

A virada hermenêutica do Vaticano II

O período imediatamente anterior ao Vaticano II caracterizou-se como uma busca de síntese entre essas duas tendências. A Igreja não podia mais virar as costas para a história. Sobretudo nos dois grandes textos Lumen Gentium e Gaudium et Spes e na Declaração sobre a liberdade religiosa o Concílio consagrou o fim da cristandade e definiu uma nova maneira da Igreja se relacionar com a história.

A Igreja não mais se definia como sociedade perfeita, mas como Povo de Deus em marcha para o Reino. Já não insistia mais sobre sua dimensão jurídica, mas na sua dimensão sacramental e exodal. Ao lado disso, reconhecia a autonomia da sociedade e a independência do poder político em relação ao religioso. Estavam lançadas as bases para o reconhecimento inconteste da sociedade civil como laica, democrática e pluralista. O catolicismo começa a renunciar à idéia de alguns privilégios que lhe foram concedidos nos tempos em que era religião do Estado. Ao reconhecer a legitimidade da sociedade pluralista, reconhece também a legitimidade da pluralidade das opiniões, das crenças e o respeito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa.

O Vaticano II inaugura uma nova maneira de relacionar o Cristo sempre vivo e a história humana. Depois de séculos de predominância de um grande pessimismo, a história começa a ser vista de maneira positiva. A Igreja não é a única produtora de sentido na ordem religiosa, moral e cultural.202 A História é portadora de sentido em si mesma. O Concílio afirma que Deus fala aos seres humanos não somente pelas Escrituras e pela tradição dogmática, mas também através dos “Sinais dos tempos”. Numa atitude de escuta atenta do mundo, a Igreja revê sua missão como testemunho da boa nova e como anúncio da chegada do Reino sem exercer um poder direto sobre a sociedade.

Essa virada provocada pelo Vaticano II fez aparecer dois resultados diferentes, que Geffré chama de dualismo e messianismo. Esse dualismo

201 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit., p. 282. 202 Id. Ibid., p. 286.

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moderno, na esteira dos que o antecederam, apresenta certa complacência com a distinção entre o espiritual e o temporal, a história profana e a história sagrada, a Igreja e o mundo. A despeito de todos os esforços da chamada teologia da secularização, esse dualismo continua forte e muito bem nutrido.203 Seus efeitos podem ser devastadores, uma vez que tende a levar a uma privatização do cristianismo e a uma hipertrofia da interioridade em detrimento de um engajamento maior com a história. Desse dualismo passa-se a uma nova forma de messianismo. Os messianismos sempre permearam a história do cristianismo. Vez por outra ressurgem movimentos que propõem uma transformação da história a partir da utopia cristã e da possibilidade de uma fraternidade universal. Geffré diz que, em nosso tempo, as teologias da libertação da América Latina redescobriram a dimensão messiânica do cristianismo. Elas refutam o dualismo e o pessimismo histórico em nome de uma concepção puramente espiritualista e escatológica da salvação. Criticam, inclusive, as teologias da secularização por sua pretensa neutralidade política. Ao insistirem na dimensão messiânica do cristianismo, as teologias da libertação pretendem se encontrar numa certa continuidade com a pregação dos antigos profetas de Israel ao afirmarem que a opressão não é uma fatalidade histórica, mas produto da história. Essa perspectiva se alinha à pregação de Jesus. A libertação histórica dos homens é parte integrante da salvação. O Reino de Deus que vem pode ter sua antecipação na história concreta em que vivemos. Essa nova maneira de olhar a história é importante também para ajudar o cristianismo a renunciar a uma falsa universalidade, que estaria em contradição com a prática de Jesus. Um cristianismo que insista em manter um controle autoritário sobre todas as esferas sociais, políticas e morais da sociedade está fadado ao insucesso.

O abandono dessa ambição universalista não deve levar à marginalização da fé cristã ou à renuncia de sua vocação missionária. Ao contrário, a nova situação do cristianismo deve levá-lo a configurar uma nova maneira de estar presente no mundo. Isso nos convida a também refletir teologicamente sobre sua particularidade histórica em consonância com o mistério de Cristo. É sempre a

203 GEFFRÉ C. Verbete “Sécularisation”. In: Dictionnaire de Spiritualité, t. XV, Paris:

Beauchesne, 1989.

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partir de uma particularidade concreta que se pode verificar a catolicidade do cristianismo como religião mundial.204

3.3.

O caráter dialogal do cristianismo

O diálogo é uma característica congênita do cristianismo. Não se trata de uma estratégia de nossa época de inegável pluralismo religioso, mas faz parte de sua natureza. É em nome mesmo do Absoluto do mistério de Cristo como centro da história que é possível considerar a particularidade histórica do cristianismo entre as religiões do mundo. Tal concepção suaviza os temores de alguns setores do Magistério da Igreja de que o diálogo inter-religioso desemboque no relativismo.205 Geffré sustenta a possibilidade de uma elaboração teológica do pluralismo religioso que seja capaz de se perguntar sobre sua significação no interior do único desígnio salvador de Deus. O pluralismo religioso necessita ser compreendido a partir do mistério de Deus que se manifestou concretamente em Jesus Cristo, o que fundamenta a unicidade de sua mediação salvadora.206

Embora, no decorrer dos séculos, a tendência dominante da teologia tenha sido conferir ao cristianismo e à Igreja uma universalidade que não se separava da de Cristo, o paradoxo da Encarnação do Verbo, o aparecimento do Absoluto de Deus na particularidade histórica de Jesus de Nazaré nos leva a não absolutizar o cristianismo. Ele não é a única via de salvação em detrimento de todas as outras. Cabe aqui mais uma vez o conceito de cristianidade, como aquilo de Cristo que está presente em todo homem e em toda mulher deste mundo, em virtude do desígnio criador e salvador de Deus que deseja recapitular todas as coisas em Jesus Cristo.

Geffré se pergunta a partir de quais critérios nós podemos lançar um olhar positivo sobre as outras religiões. Diz ele: o pluralismo religioso é tão inevitável

204 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit., p. 288.

205 Cf. Declaração Domunus Iesus e mais recentemente (29 de junho de 2007) da Nota da Sagrada

Congregação para a Doutrina da Fé intitulada RESPOSTAS A QUESTÕES RELATIVAS A ALGUNS ASPECTOS DA DOUTRINA SOBRE A IGREJA acerca da correta compreensão do que afirma o Concílio sobre a Igreja de Cristo que subiste na Igreja católica, claramente apontando para um recuo na herança do Vaticano II no que se refere ao diálogo ecumênico e inter-religioso.

206 GEFFRÉ, C. De Babel à Pentecôte,op. cit., p. 291 – “Cela ne nous conduit pas à remettre em

cause l’unicité de la médiation du Christ. Mais cela nous invite à désabsolutiser Le christianisme comme religion historique et à ne pas confondre son universalité avec celle du mystère du Christ”.

Referências

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