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GT-POVOS INDÍGENAS/ANPOCS-2003 Coordenadores : João Pacheco de Oliveira e John Manuel Monteiro

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GT-POVOS INDÍGENAS/ANPOCS-2003

Coordenadores : João Pacheco de Oliveira e John Manuel Monteiro

O “deslindamento” Kambiwá e a etnogênese Pipipã: dilemas culturais e disputas políticas na criação da ´nova aldeia´ do Travessão do Ouro1.

Wallace de Deus Barbosa – UFF RESUMO:

No ano de 1998, uma crise política - envolvendo os cargos de cacique e pajé na área indígena Kambiwá (PE) - levou a Funai a intermediar uma eleição cujo resultado gerou um impasse e culminou com a deposição do pajé em exercício que, juntamente com seus partidários e simpatizantes, retirou-se para a localidade do Travessão do Ouro (nos limites da área indígena Kambiwá) e fundou uma “nova aldeia”, adotando o etnônimo Pipipã de Kambixurú. Os diversos relatos e narrativas sobre o evento permitem apreender convergências e divergências em torno de uma concepção nativa de cultura que, por sua vez, estão relacionadas à disputas faccionais pretéritas, instauradas no processo de territorialização do grupo, quando do processo de seu reconhecimento oficial.

Na chegada à Área Indígena Kambiwá, em maio de 1998, conversei preliminarmente com alguns índios na cidade de Ibimirim, colhendo impressões sobre o momento político vivenciado na área indígena. Sabia que Ivan Pereira já não era mais cacique2. Na época de minha última estada na comunidade (fevereiro de 1997), Ivan e o pajé Expedito Rozeno já se encontravam em desacordo sobre a forma de trabalhar para o grupo. A distância entre os dois ficou particularmente patente na filmagem de um Toré3. Suas divergências passavam pelo fato de Ivan ter apoiado a retirada do administrador regional da FUNAI da

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- Trecho adaptado da tese de doutorado, defendida em 2001, no PPGAS-MN-UFRJ, publicada com o título de ´Pedra do Encanto. Dilemas culturais e disputas políticas entre os Kambiwá e os Pipipã´ (BARBOSA, 2003).

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Desde a criação do Posto Indígena Kambiwá, o grupo tivera três caciques: Zizi, que permaneceu na função por 18 anos a partir de 1971; Pedro Joaquim, primo de Zizi, que foi cacique por volta de quatro anos; e Ivan Pereira, que substituiu Pedro Joaquim por pouco mais de dois anos. Devido a seu envolvimento no episódio de deposição do administrador, foi levado a devolver o cargo a Pedro Joaquim, que assumiu a função interinamente até a eleição promovida para definir quem seria o próximo cacique.

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Junto com a antropóloga Mércia Rejane Rangel Batista e um auxiliar de pesquisa, ambos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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criada DR de Arcoverde4, acusado de utilizar recursos das comunidades indígenas para promover festas na cidade.

Naquela ocasião, o cacique e o pajé se evitavam, suscitando observações dos presentes, que lamentavam a manifestação explícita de desacordo entre lideranças em um evento público, especialmente com a presença de visitantes. A conduta das duas liderançasferia a expectativa usual de comportamento, que implicaria a troca discreta de cumprimentos e a plena partilha do ambiente proporcionado pelo ritual. Não fazê-lo simbolizava a dissidência estabelecida.

Posteriormente, as divergências entre Ivan e sua família com relação ao modo de trabalhar de Expedito ficaram ainda mais patentes. Uma das principais objeções de Ivan dizia respeito ao estilo de trabalho tradicionalista5 de Expedito, bem como à facilidade com a qual o então pajé recorria à Polícia Federal para resolver problemas internos do grupo. No entender de Ivan, essa última era uma medida extrema, que só deveria ser adotada após esgotadas todas as possibilidades de resolução interna dos conflitos. A adoção repetida desse recurso abria sérios precedentes, que punham o grupo em uma situação vulnerável a posteriores intervenções similares.

Conversando com dois rapazes de Alexandra, soube da iminente possibilidade de ação da Polícia Federal na área indígena. De fato, quase me deparei com a viatura enquanto buscava um meio de transporte para me deslocar na área. A intervenção havia sido solicitada pelo cacique em exercício Pedro Joaquim e pelo pajé Expedito. Os motivos alegados eram variados: alguns atribuíam a solicitação à necessidade de resolver problemas com fazendeiros locais. Diziam alguns dos rapazes que, após a demarcação, os fazendeiros estariam hostilizando os índios e ameaçando-os com armas de fogo. Mas também havia

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Essa administração acabou extinta pouco tempo depois do episódio. O administrador era acusado de desvio de verba. Na ocasião, Ivan apoiou um grupo de funcionários da FUNAI liderado por um advogado de Garanhuns e pelo então chefe de Posto dos Kapinawá, do município vizinho de Buíque. Este, apesar de não ser “do quadro” da FUNAI, ocupou pouco depois o lugar de Administrador da DR de Recife como “cargo de confiança”, o mais alto cargo regional do órgão. Segundo registramos, já há muito que o ex-Chefe de Posto dos Kapinawá alardeava que ainda ocuparia o cargo de administrador, por ser “gente de Inocêncio de Oliveira”. Desde então, atuava, segundo diversos relatos, seguindo parâmetros da política partidária regional. Para chefiar o Posto Indígena Kambiwá, nomeou um primo seu que, apesar de não ter qualquer experiência no trabalho com comunidades indígenas, trabalhou durante muitos anos como assessor do prefeito de Buíque (PE).

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Em referência a uma postura primordialmente preocupada com os aspectos comportamentais relacionados à

tradição – entendida como categoria nativa – associada às práticas culturais do grupo e com as noções de costume e cultura.

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problemas internos que necessitavam, no entender do cacique e do pajé, de intermediação externa.

Um deles estava ligado ao fato de um jovem de Alexandra ter “jurado de morte” sua ex-esposa. O casamento do rapaz fora anulado pouco depois de consumado, quando abandonou o lar alegando que sua esposa não “se guardara” para a noite de núpcias e já “tinha estado” com alguns rapazes da aldeia. O fato ocorrera há alguns meses, o jovem já estava noivo de outra moça e sua ex-esposa namorava outro rapaz. Sua justificativa para a ameaça foi a alegação de que a ex-companheira e seu atual namorado teriam “mangado” de sua atual noiva (ainda muito jovem), advertindo-a de que ele não fora “homem o bastante”.

No entender do rapaz, depois de cessadas as provocações, o episódio estava superado. Mas a família da jovem abandonada não pensava dessa forma. Seu pai era membro do Conselho Indígena e representante de uma das famílias mais importantes de Alexandra, e esperava, com a intervenção da Polícia Federal, uma retratação pública do ex-marido da filha, que também o ameaçara de morte. Isso foi posteriormente desmentido pelo rapaz, que admitia ter ameaçado somente a ex-companheira. De todo modo, a intervenção externa era desejada por esse membro do Conselho Indígena, formado por pequeno e seleto grupo de moradores da área indígena.

Paralelamente, algumas semanas antes ocorrera um episódio envolvendo alguns rapazes da área indígena. Em um dia de chuva, eles se abrigaram na varanda do Posto Indígena, fechado, para beber algumas doses de aguardente, e foram denunciados por uma moradora ao cacique e ao pajé. Estes se dirigiram ao Posto e fizeram reprimendas ao comportamento, considerado condenável na área indígena. Os rapazes não cederam e alegaram que o chefe do Posto e dois de seus auxiliares freqüentemente bebiam no Posto, chegando inclusive a “receber garotas, até índias, para desfrute”. Pedro Joaquim e Expedito recuaram e, como represália, elaboraram um documento solicitando a presença da Polícia Federal para repreender os rapazes.

A atuação da Polícia Federal na área indígena foi exagerada. Os rapazes do episódio no Posto foram humilhados6 e só não sofreram agressões físicas pela intervenção de

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Um dos rapazes foi bastante hostilizado por um dos policiais por seu conhecido envolvimento com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgão ligado à CNBB que nunca teve atuação expressiva na área indígena Kambiwá. Segundo o rapaz, o policial teria sido punido com suspensão devido a uma denúncia sua, de ação violenta contra um grupo de índios, em um episódio ocorrido na DR de Garanhuns.

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membros do Conselho Indígena que acompanhavam a diligência policial. O outro jovem foi aconselhado a não prolongar a questão com a família da ex-companheira, e nada foi feito em relação aos fazendeiros.

Colhi algumas versões sobre esse incidente. Inicialmente com Ivan Pereira (ex-cacique), que falou de forma discreta, porém crítica. Em sua opinião, partilhada por vários moradores de Alexandra, a atual liderança da aldeia, formada por Pedro Joaquim e Expedito, agia de forma radical e mesmo ingênua ao lidar com os problemas recorrentes na área indígena, como o consumo de cachaça e os jogos de baralho. Ivan disse passar por um momento de afastamento da vida social da aldeia, o que lhe permitia uma visão mais distanciada dos acontecimentos. Para ele, o caráter tradicionalista da dupla era pautado principalmente pelo temperamento de Expedito, “cabra com quem não se pode teimar”. Pedro Joaquim seria mais omisso, tendendo a seguir os “impulsos” de Expedito, que, para muitos, extrapolava suas atribuições de pajé para se envolver com “problemas de política”7. A conversa com Ivan teve início quando perguntei se haveria Toré naquele sábado. Ele respondeu: “É... hoje é dia, né?”, e passou a falar de como as tradições ocorriam “muito fracamente”. A última festa de que se recordava fora realizada no dia do Índio (19 de abril), e dela participaram apenas dez famílias de Alexandra. Ele mesmo foi porque foram convocá-lo em casa, mas só ficou até às 20h. Atribuiu a fraca participação da comunidade ao fato de Expedito ter insistido em fazer a festa em sua casa, e não no terreiro, passando a comentar as coisas estranhas e erradas que ocorriam na aldeia e deu então sua versão do ocorrido no episódio do Posto. Em seu entender, os meninos legitimamente reagiram e “partiram pra cima” dos dois, que “saíram de banda” e foram redigir um documento solicitando a intervenção da Polícia Federal. As objeções de Ivan a esse procedimento eram basicamente as seguintes: a) uma semana antes, o chefe do Posto promovera uma festa “regada à cachaça”, sem qualquer reação de Expedito ou Pedro Joaquim; b) beber cachaça não é grave a ponto de chamar a Polícia Federal, que só deve ser requisitada em último caso.

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Expedito estaria investigando o destino das cestas básicas obtidas por Luciene em nome dos índios. Luciene é uma índia Kambiwá moradora de Alexandra que trabalhou como professora na área indígena. Foi eleita vereadora na cidade de Ibimirim em 1996, com o expressivo apoio dos moradores da área indígena, e reeleita em 2000, contando com grande apoio dos “brancos da cidade”. Segundo Expedito, boa parte das cestas obtidas em nome da comunidade indígena era desviada para os “brancos”, antes que se pudesse distribuí-las entre todas as aldeias.

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Quanto ao jovem que ameaçou a ex-esposa, pude conversar diversas vezes com ele, visto que fiquei hospedado em sua casa. Ele narrou sucintamente o incidente do Posto, no qual também esteve envolvido, e afirmou que nem todos os envolvidos foram punidos ou advertidos da mesma forma. O rapaz envolvido na denúncia contra o policial foi bastante ameaçado, e pessoas ligadas a famílias importantes de Alexandra não foram repreendidas8. Ele estava convencido de que só não foi agredido fisicamente por causa da atuação do cacique e do pajé e por sua capacidade de argumentação, mas mesmo assim foi diversas vezes ameaçado.

O jovem mais prejudicado no episódio disse que teve sua casa revistada e foi chamado de “cabra safado” várias vezes por um policial que já o conhecia de Garanhuns, em um dos episódios que envolveram a deposição do antigo administrador. Foi acusado de ser um “agitador perigoso”. Segundo ele, o policial declarou que o caso entre eles era pessoal, e que se ele estivesse em Garanhuns, iria “pegá-lo no cacete”. Também o desafiou para um embate físico e o comparou a Xicão, líder Xucurú assassinado havia menos de um mês que, segundo o policial, “também se achava muito valente”.

Recorrer à Polícia Federal para a resolução de problemas internos da comunidade não é fato novo entre os povos indígenas do Nordeste. Como a FUNAI é um órgão federal e as comunidades indígenas são regidas por uma legislação específica, recorre-se às autoridades federais em incidentes nos quais o uso de forças policiais se torna premente, como conflitos fundiários, problemas com plantação ou tráfico de maconha e homicídios. Existem vários registros desse expediente em outras áreas indígenas (cf. Brasileiro 1999). Entre os Kambiwá, o recurso é acionado quando se esgotam as possibilidades de mediação dos conflitos internos gerados por desvios do comportamento julgado aceitável, como consumo de bebidas alcoólicas, plantio ou uso de maconha, ameaças de morte, jogos de azar e roubo de criação. Essa última infração é considerada muito grave e o infrator é bastante estigmatizado, o que é compreensível, tendo em vista a importância da criação (principalmente de bodes) para o consumo interno ou a comercialização.

Em função da dissidência já estabelecida e das visões divergentes sobre a conveniência de acionar tal recurso, a presença da Polícia Federal na área indígena Kambiwá constituiu um marco na instauração do processo de crise, no sentido proposto por Victor Turner (1974: 38). Paralelamente,

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Ele se refere a um filho de seu ex-sogro, presente ao incidente no Posto mas convenientemente em sua roça, a algumas léguas da sede, quando a polícia federal chegou.

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o recurso a esse expediente evidencia o declínio do papel do Conselho Indígena (ou Conselho Tribal) como regulador da vida social do grupo.

Durante os primeiros anos de pesquisa, o Conselho, formado por sete representantes das famílias locais, era responsável pela normatização da vida social das aldeias e respondia pelas questões relacionadas ao relacionamento entre os membros do grupo, infrações e desvios e por uma parte significativa da vida ritual, por meio do estabelecimento do calendário de eventos e mesmo das práticas relacionadas ao costume (uso de indumentárias, acessórios, uso de terminologias nativas etc.). Com o tempo, parece ter perdido força e credibilidade. O Conselho era criticado pelas duas facções ou “partidos” da área indígena: o grupo ligado à vereadora Luciene (que criticava a incapacidade do Conselho de obter recursos para a comunidade), e aquele associado a Expedito (que censurava o Conselho por fornecer “registro de índio” a pessoas arroladas como “posseiros” no Levantamento Fundiário que antecedeu os trabalhos de demarcação da área indígena).

As investidas do Conselho na regulação da vida social do grupo começaram a ser questionadas como algo subsidiário, principalmente porque sempre estiveram estritamente centradas em assuntos relacionados à cultura e à tradição. Eventualmente, seus membros intermediavam soluções para assuntos internos relacionados a problemas de conduta, mas com a perda de prestígio de seus membros, essa atribuição era exercida de modo cada vez menos freqüente.

Entrevistando Petrônio Machado, antigo administrador regional responsável pela consolidação do papel do “Conselho Indígena”, soube que a adoção dessa instituição procurava resguardar a figura do chefe do Posto da intervenção em assuntos da comunidade indígena. Segundo Petrônio, “os chefes de Posto tinham uma influência muito grande nas áreas indígenas: serviam de padre e de juiz dentro de uma área e, com o tempo, foram perdendo esse poder”. De acordo com ele, “em Kambiwá, as lideranças sempre tiveram um papel forte e decisivo, mais do que em outras comunidades”.

No início da pesquisa, o Conselho ainda se encontrava atuante, o que gerou a necessidade de refletir sobre sua gênese e seu papel social. Em função de suas sanções e normatizações, era possível atribuir a ele um caráter fundamentalista, posto que se preocupava prioritariamente com a manutenção de certa concepção de tradição, calcada em princípios éticos e morais. Paralelamente, havia a tendência representada pelos adeptos do

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“associativismo”9, que, embora concordassem com a premissa de que “índio só é índio se tiver cultura”, acreditavam ainda mais no poder de realização do capital e dedicavam seu tempo à obtenção de recursos de órgãos filantrópicos.

A crise: deposição de Expedito Rozeno da função de pajé

Em 25 de junho de 1998, no Posto Indígena Kambiwá, ocorreu uma reunião entre os índios e um representante do Banco do Estado de Pernambuco que se dirigia para Alexandra, acompanhado pelo chefe do Posto, a fim de discutir projetos de financiamento agrícola.

Ao fim da reunião, a vereadora Luciene e Zezinho Ricardo10, representante do Conselho Indígena, propuseram aos presentes que se votasse a permanência de Expedito Rozeno no cargo de pajé. Os argumentos contrários à sua permanência giravam em torno de sua postura como líder político. Segundo Luciene, Expedito não gozava de “boa reputação” junto ao administrador do Recife, e o grupo era preterido em favor de outros, mais afeitos à DR do Recife, como os Fulniô. Os Fulniô teriam recebido uma viatura F4000 inicialmente destinada à área indígena Kambiwá.

Não foi permitido meu ingresso na reunião. Pelas informações que obtive, estavam presentes quatro dos sete “Conselhos” e mais quarenta ou cinqüenta pessoas. Os presentes chegaram à conclusão de que Expedito extrapolava suas atribuições de pajé11, restritas às atividades de cura e comando nos rituais, para se meter em política. Ao proceder dessa forma, estaria “metendo os pés pelas mãos”. Segundo Cícero Dantas12, comentava-se que

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Em 1992, a FUNAI promoveu um encontro para compreender o incremento do fenômeno associativista entre os grupos do Nordeste, com o surgimento de uma série de associações comunitárias indígenas. Entre os Kambiwá, existem duas associações comunitárias dessa natureza, ambas representadas por moradores de Alexandra, que competem entre si pela obtenção de recursos da FUNAI e de outros órgãos de assistência.

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Filho mais velho de uma família indígena originária de Mina Grande, município de Buíque, PE, onde hoje está circunscrita a área indígena Kapinawá. Como sua família não integra o grupo das famílias fundadoras de Alexandra, Zezinho pertence ao Conselho, mas não goza de tanto prestígio quanto seus demais integrantes.

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A determinação de papéis sociais para as lideranças corresponde a um modelo de conduta gerado a partir do trabalho de assistência da FUNAI. Esse ideal de comportamento foi chamado por Oliveira Filho (1988: 14) de “indianidade”, e definido como “modo de ser característico dos grupos indígenas assistidos pelo órgão tutor”. Esse modo de ser encontra-se submetido às especifidades regionais derivadas das tradições culturais locais: no Nordeste, a expectativa de que o pajé aja como curador e tenha sua atuação restrita à área ritual pode ser entendida como leitura local dos pressupostos reproduzidos pelos funcionários do órgão tutor. Os funcionários da FUNAI sempre tiveram intensa atuação no processo de construção da indianidade Kambiwá.

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Jovem de 26 anos, filho de dona Clarisse, em cuja casa fiquei hospedado nos dois últimos anos da pesquisa. Cícero nasceu e morou até os seis anos na periferia de São Paulo. Dona Clarisse trabalhava como doméstica e seu finado marido (Dantas), como guarda-noturno.

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Expedito teria dispensado a viatura e uma ambulância, argumentando que seriam usadas só pelo grupo da vereadora. Além disso, teria dispensado também certa quantidade de cestas básicas vindas do Recife, alegando que famílias de brancos estariam sendo beneficiadas por intermédio de Luciene (que assim procederia visando a interesses eleitoreiros).

Zé de Timóteo13, antigo morador de Alexandra, reafirmou o descontentamento de parte da comunidade com o modo de proceder de Expedito. Disse que conhecia muito bem os políticos de Inajá e que, por intermédio deles, já conseguira três bois para o ouricurí14 em Serra Negra. Queixou-se de Expedito dizendo que ele se vale do branco e depois o deixa de lado. Perguntei como ele fazia isso. Zé de Timóteo contou que certa vez o acompanhou em uma visita a um vereador do município de Inajá, que se comprometeu a fornecer um boi para determinada festa. No dia da festa, o vereador foi obrigado a retornar do terreiro mestre15, pois Expedito interditou sua presença, apesar de ele argumentar ter parentes na área indígena. Zé de Timóteo admitiu a existência de terreiros secretos (chamados de “gentio”), mas esse não seria o caso do terreiro mestre. Assim, julgou exagerada a atitude de Expedito.

Nessa mesma linha, Expedito teria se referido a Luciene como “branca”, embora a mãe de Expedito fosse “irmã do avô materno de Luciene”. Expedito desmentiu todas as acusações, desde o fato de ter dispensado as viaturas e cestas básicas até a referência a Luciene. Afirmou entender que ela, como política, não podia trabalhar só pelo índio, tendo de se apoiar e de certo modo também se comprometer com o “branco”.

Expedito foi substituído na função de pajé em agosto de 1998. Pode-se aplicar a esse momento a noção de crise, entendida como a primeira das fases constituintes de um drama social e marcada pelo “não-cumprimento público de alguma norma social que seria crucial na regulação do intercurso entre as partes” (Turner op.cit.: 38).

A eleição e a “aldeia desapartada”: o cisma

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Filho mais velho do segundo casamento do pai de dona Clarisse, senhor Timóteo, com uma índia Kambiwá com quem se uniu quando decidiu se estabelecer como morador na Baixa da Alexandra.

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Ritual de cunho reservado, sempre realizado na Serra Negra, instaurado por Expedito durante o tempo em que permaneceu na função de cacique dos Kambiwá.

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Principal terreiro da área indígena. Timóteo reafirmou que havia precedentes de presença autorizada de pessoas de fora nas “brincadeiras” (rituais).

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A notícia foi dada por telefone por dona Clarisse: “A aldeia desapartou!”. Tratava-se de um cisma, resultante da substituição do cacique e do pajé. Em agosto de 1998, as lideranças dos Kambiwá solicitaram à FUNAI o envio de um representante para intermediar a transição dos cargos.

Expedito, rejeitado pelo povo de Alexandra, não se conformava em abandonar o cargo, tendo em vista que contava com expressivo apoio dos moradores das comunidades de Faveleira, Serra Negra e Realengo, onde vivia boa parte de seus parentes. Embora Alexandra seja o principal povoado e tradicionalmente o centro das decisões que afetam toda a área indígena, não constituía a maior força do pajé em exercício, que contava com um contingente significativo de partidários16 fora da aldeia. Expedito os convocara para uma grande reunião com a FUNAI a fim de resolver os problemas gerados pela intervenção dos brancos na vida da aldeia. “Branco” se tornaria a categoria genérica de acusação acionada por ele contra o grupo rival, liderado pela vereadora Luciene.

Conversando com dona Maria das Neves, defensora do ritual do Praiá em Alexandra, soube que Adelso, representante do grupo de Expedito, ao conclamar seus presumíveis adversários para a reunião proposta, dizia que ela tinha por objetivo apresentar ao representante da FUNAI uma “amostra da tradição”. Segundo dona Maria, no entanto, o objetivo principal era promover um “embate de culturas”, uma “disputa entre o Toré e o Praiá”. Já para o ex-cacique Ivan Pereira, a intenção de Expedito era banir os folguedos17 da área indígena e, depois, fazer uma fogueira das máscaras do Praiá.

A FUNAI enviou uma representante de Recife, que tentou resolver o impasse com uma consulta ao Conselho Indígena. Mas Expedito entendia que a maioria do Conselho era contra ele, e insistiu para que a questão fosse levada à comunidade e decidia por votação. Expedito contava com os votos do expressivo número de moradores que mobilizara. Depois de algumas discussões e trocas de empurrões dentro do Posto Indígena, formaram-se duas filas: a daqueles que aderiam ao partido de Expedito (candidato a pajé) e a daqueles que pertenciam ao partido de Luciene.

Um pouco antes do início da votação, a fila de Expedito era visivelmente majoritária. Seus integrantes estavam todos trajados (paramentados de saiote e penacho de

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Embora não exclusivamente, a maioria dos partidários de Expedito Rozeno era composta por seus parentes.

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caroá), sendo muitos deles desconhecidos do povo de Alexandra. A fila rival, ainda um pouco desorganizada e dispersa, foi convocada a tomar forma somente no momento preciso da votação, quando começaram a surgir diversas pessoas que estavam “escondidas” dentro da Igreja, superando a fila de Expedito. Este, vendo-se ameaçado, dirigiu-se à representante da FUNAI argumentando que haveria brancos e crianças na fila oponente. O outro partido reagiu:

Ele disse que na fila tinha gente de menor! Foi aí que eu disse: “Expedito, todo índio é de menor! Veja, Expedito, que quando nós chega no Recife, o direito que eu tenho, a criancinha que nasceu naquele mesmo dia também tem! Porque todo índio é de menor! E como é que você quer tirar a criançada? A nossa força, do nosso trabalho, é nossas crianças... mas, meu filho, não faça isso com os menino inocente não!”18 (Maria da Neves. Alexandra, outubro de 1998).

A funcionária da FUNAI solicitou a Expedito que retirasse da fila aqueles que ele considerava “brancos”. Expedito se dirigiu à fila de Luciene e começou a triar os “brancos”, moradores da cidade ou posseiros. Diante de suas investidas, alguns exibiram “carteiras da FUNAI” ou registros de nascimento para fazer valer seu direito de permanecer na fila:

Aí ele chegou pr’aquela Marizinha, mulher de Zezinho, e disse: “A senhora é branca! Saia!”. Foi quando ela puxou a carteirinha de índio e falou: “Olha aqui, seu Expedito, se o senhor for eu sou também!”. Aí ele disse: “Ah... me desculpe”, e assim foi com vários! Ele chegava em cima, a pessoa mostrava a carteira e ele se aquietava... Ele chegava e a pessoa mostrava que era índio, porque ‘tava com o documentinho do índio, né? E do lado dele ele não tirou um! (Maria da Neves. Alexandra, outubro de 1998).

No primeiro escrutínio, o partido de Luciene vence com uma margem de menos de dez votos. Expedito novamente recorre à representante da FUNAI, argumentando que a fila oponente era de “brancos”. Expedito diz que, mesmo que sejam moradores da área indígena, não têm cultura, pois “os seus” estão todos trajados, enquanto na fila oponente

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É interessante notar como determinadas representações sobre o “índio” são reproduzidas no movimento de afirmação dos povos indígenas no Nordeste. Rocha Jr. relata a realização de uma assembléia na fazenda Picos, no início da década de 1980, como parte dos esforços para a demarcação da área Kiriri, em Mirandela (BA), na qual determinadas palavras de ordem emitidas pelos presentes ilustram tais representações: “O índio é de menor, mas só para dominar o que é dele” ou “O índio é federal”, entre outras (Rocha Jr. 1983: 19-21).

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somente alguns estão paramentados com a “saiota” de caroá. Seus opositores alegam não saber que deveriam estar trajados e que a maior parte deles tem as vestes19. Segue-se uma discussão sobre a presença dos Praiás, que Expedito alega “desconhecer” como parte da cultura Kambiwá.

Após nova contagem, Expedito, ainda em pequena desvantagem numérica, alega que aqueles que ele retirara da fila retornaram, e que muitos dos registros apresentados foram obtidos, por motivos políticos, por pessoas arroladas como posseiros no levantamento fundiário. Depois de muita discussão, os líderes do partido de Expedito pedem à representante da FUNAI que informe ao administrador que nada havia sido decidido e que seria solicitada uma nova eleição, dessa vez com a presença da Polícia Federal, para que a ordem fosse mantida. Nesse momento, o chefe de Posto intervém dizendo que não haveria mais reuniões daquela natureza no Posto, e que ele reconhecia como cacique e pajé os candidatos do partido de Luciene. Diante disso, os opositores de Expedito comemoram a vitória, enquanto algumas mulheres de seu grupo, em um ato de protesto, quebram seus maracás e ateam fogo a um amontoado de vestes de caroá.

No dia seguinte à reunião, a maior parte dos moradores de Alexandra que tinham se posicionado a favor de Expedito inicia mudança para a localidade conhecida como Travessão do Ouro, dentro dos limites da área demarcada, e iniciam a criação de uma nova aldeia. Solicitam à FUNAI a construção de um Posto Indígena, de uma escola e a perfuração de um poço artesiano, passando a se autodenominar índios Pipipã de Kambixurú20, e não mais Kambiwá.

As versões

Cheguei a Ibimirim em 3 de outubro de 1998. Era véspera de eleição para presidente da República, e a população da cidade e da área indígena estava mobilizada com questões de ordem política. Os temas mais freqüentes eram a abertura de frentes de emergência e o fornecimento de cestas básicas.

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“Até que quando ele viu que nós tinha ganhado, ele disse: ‘Espera, dona Estela! Porque agora nós vamos tirar o pessoal que é classificado no croá! Pra ver o pessoal que ‘tava trajado de crauá, o que tivesse ficava e o que não tivesse era pra sair... Sabe por que que ele disse isso? Porque o pessoal dos Pereiro não sabiam que era pra vim trajado... eles pensaram que era uma reunião!” (Maria da Neves. Alexandra, outubro de 1998).

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Segundo Expedito, no “idioma dos antigos”, Pipipã é o nome da nação indígena, e Kambixurú significa Serra Negra: Kambixu, “serra” ou “serrote”, e Xurú, “negra”.

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Um pouco antes das nove da manhã, encontrei Antonio Lima. Chegara recentemente do Rio de Janeiro, onde tivemos a oportunidade de nos encontrar. Conversamos sobre a situação da aldeia. Entre os que se mudavam para Travessão do Ouro, estava sua filha primogênita, jovem de 14 anos que há pouco “se juntara” com um dos filhos de Expedito. Antônio estava chateado com o fato de seus parentes estarem se mudando: “Isso já houve outras vezes e ninguém nunca fez isso!”. Disse que os eleitos (Zuca e Zizi), além de não terem como responder pela tradição, também não tinham “cor” e “presença”: “Luciene foi quem armou tudo e depois pulou fora!”.

Pouco depois, encontrei dona Nina, esposa de Zé de Sérgio (também conhecido como Zé de Nina). Zé de Sérgio fazia parte da chapa derrotada, na qual figurava como candidato a cacique. Nina disse que não estava mais morando em Alexandra e que sua casa estava à venda. Perguntei o que ocorrera e ela confirmou, com certa relutância, a avaliação de Antônio. Em seu entender, tudo fora “armado” por Luciene. No dia da votação, estava “uma beleza, uma porção de índios mais velhos, tudo trajado formando a fila de Expedito, uma fila enorme!”. Mas Luciene convocou muita gente (inclusive “brancos”), que ficou escondida e só apareceu na hora da contagem:

Foi quando falaram “vamos contar”. Assim, a parte dela saiu vencedora, ninguém entendeu como... Foi uma decepção, um desgosto geral... O cambalacho foi tão grande que a moça da FUNAI anulou tudo na hora! Da parte de Luciene tinha muito poucos trajados! Já na parte de Expedito... queria que o senhor tivesse visto e filmado! Foi um empurra-empurra danado! Filho contra pai, irmão contra irmão! Uma tristeza... saiu gente com o pescoço arranhado do Posto, e por pouco não saiu morte! Zé Ozório já avisou que o cacique é Zé (já que ele foi eleito). Na nova aldeia se juntaram os índios da Craíba21 que antes nunca haviam sido reconhecidos! O acesso para a nova aldeia é bem mais fácil... toda hora tem carro pra lá... Da estrada pra lá dá pra ir à pé! (Nina Lima. Ibimirim, outubro de 1998).

Dona Nina falou ainda da confusão em torno das cestas básicas mandadas de Recife para a nova aldeia, que ficaram retidas no Posto durante 15 dias. Durante esse período, só era beneficiada a família de Luciene: “Pais de família como Caca, Quincas [com nove filhos] e outros não foram beneficiados, enquanto outros, até solteiros ganhavam cestas básicas!”.

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Povoado próximo a um dos limites da área indígena, na altura da localidade denominada Realengo, situada nas margens da rodovia que liga os municípios de Ibimirim e Floresta.

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No dia seguinte, amanheci em Alexandra, e a primeira pessoa que entrevistei foi dona Anatália, habilidosa artesã de quem eu regularmente comprava artesanato de fibra de caroá. Ela me contou que apoiou Zuca e Zizi, pois o “outro lado queria tirar os folguedo daqui!”, o que era inconcebível. Perguntei se a oposição aos folguedos estava relacionada ao fato de os Praiá serem originários de Brejo dos Padres [Pankararú]: “Os de lá são uns, e os de cá são outros”. Sua família está dividida, e uma de suas irmãs, mulher de Quincas Lima, está se mudando para Travessão.

Algum tempo depois, encontrei Ivan, logo após a reunião com representantes da OXFAM22. Em seu depoimento, disse que a intenção de Adelso e Expedito era fazer um confronto da cultura. Se vencessem, fariam uma fogueira das máscaras do Praiá. Como saíram derrotados, queimaram suas próprias vestes e quebraram maracás (esse fato foi confirmado por Zezinho Ricardo).

Entrevistei também seu Luís e sua esposa dona Maria das Neves. Seu Luís, além de ser da família Pereira (é irmão de Ivan, o ex-cacique com o qual Expedito havia entrado em desacordo), é o responsável pelo Praiá. É ele, auxiliado por sua família, quem organiza a confraria dos “moços”, seus trabalhos e apresentações. Perguntei os motivos da oposição de Expedito aos Praiá. Seu Luís explica que, no entender de Expedito, “a semente do Praiá, do folguedo, não pertence aqui”:

Então eu respondo pra ele que então não é aldeia... Se não é aldeia, tem que nascer! Porque o Praiá, o folguedo, nasce do Toré, mas com o folguedo dominando o Toré: é como o pai que pega o filho, bota na escola, o pai não entende, mas o filho entende... E, nas altas alturas, o filho vai dominar o pai, não é assim? (Luís Pereira. Alexandra, outubro de 1998).

A oposição persiste, e Adelso, da família Lima, aliado de Expedito, convida seu Luís e sua família para uma reunião com representantes da FUNAI em Recife, “pra representar os costumes”. O que se propunha tacitamente era um embate entre práticas culturais, um confronto entre Toré e Praiá:

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A presença de integrantes desse órgão não-governamental na Área Indígena Kambiwá foi uma ocorrência inédita. A equipe, composta de um estrangeiro que não falava português e duas assistentes brasileiras, convocou homens e mulheres da aldeia para uma reunião na escola. Fui convidado por membros do Conselho, mas não tive a oportunidade de conversar diretamente com os visitantes. Pelo que pude depreender, estava sendo realizada uma prospecção das necessidades básicas do grupo, particularmente as relacionadas aos reduzidos recursos hídricos disponíveis em toda a área indígena.

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Ele queria isso pra jogar o Praiá fora daqui! Entendeu agora? Bom... mas ele aqui não me disse assim... quando ele veio me convidar, fazer o convite pro pessoal, pro local pra fazer esse trabalho... (Luís Pereira. Alexandra, outubro de 1998).

Dona Maria recapitula o ocorrido, explicando que Adelso chegou interessado na eleição: Ele chegou aqui num dia de quarta-feira, às dez horas do dia, e

falou: “Boa, prima... nós viemo aqui hoje porque amanhã a gente tem uma reunião com o pessoal da FUNAI”. “Refém de quê?”, perguntei. “Refém a pajé e cacique.” Aí eu disse: “Quer dizer, Delso, que vocês ‘tão acostumado a botar e tirar e nunca precisaram de nossa opinião. Por que ‘tá chamando a gente agora? Por quê?”. Aí ele disse: “Porque amanhã vai ser o dia de nós ‘deslindar’ disso aqui, porque nós botemo o pajé e o cacique e o pessoal acharam ruim e, em nossas costas, botaram outro”. Aí eu perguntei: “E quem foi que botaram?”. Delso disse: “Botaram Zuca de cacique e Zizi de pajé”. Foi quando eu disse: “Pois fizeram errado! Na época de papai, Zizi era o cacique e papai o pajé... e agora vocês mudaram?”. Aí ele disse: “Não, não fomo nós, foi o outro partido! É por isso que nós ‘tamo chamando o pessoal da FUNAI pra vim resolver isso com nós amanhã, às duas da tarde... todo mundo: homens e mulheres” (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

O verbo deslindar tem tanto os sentidos de apurar, esmiuçar, investigar ou descobrir quanto os de demarcar, separar, apartar (cf. Ferreira 1975). Perguntei a dona Maria se, quando Adelso fala em deslindar, isso significa que o partido perdedor teria de sair da aldeia. Ela confirma:

“Como é esse negócio de reunião?”. Ele disse: “É pra gente se apresentar... com os costumes que nós temos: o Toré!”. Aí eu falei: “Pois então eu vou lhe dizer, Delso. Eu só posso me apresentar com o que meu pai me deixou... e o que ele me deixou foi o Praiá! Eu não posso me apartar deles! E com a presença de FUNAI principalmente... porque ali em Pankararús, me disseram que, a partir desse ano que entra, só vai ter o direito em Brasília quem for liderança, quem tiver o crauá! A não ter, não vai ter... sendo assim por que que é que o pessoal de FUNAI vem aqui pra eu me apresentar no Posto e eu não vou? Porque eu não vou possuir isso aqui que foi herança de meu pai?”” Aí ele disse: “Pois a gente só vai se apresentar com a roupinha de crauá (a saiota), o capacetinho e nada de Praiá, porque o Praiá não é daqui!”. Aí eu disse: “Não é daqui, Delso? Delso, você tá louco, meu filho, da cabeça?”. Ele disse: “Não, eu não ‘tô louco, mas amanhã nós vamo deslindar! Quem ganhar, fica... e quem não ganhar”. Eu disse: “É rua, né?”.

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Ele disse: “É”. Eu digo: “Pois ‘tá, não vai ser isso não... agora eu vou fazer de tudo no mundo pra nós levar... porque eu só vou me apresentar amanhã com o que papai me deixou... porque é uma herança que ele deixou e nós só pode acompanhar essa herança que ele deixou”. Aí ele disse: “Pois nós vamo levar o que é daqui e não do Brejo!”. Aí eu disse: “Nada é do Brejo! Porque a semente é daqui! O crauá é daqui! O pessoal do Brejo quando querem vem arrancar crauá aqui! E por que que o nosso é de lá, Delso? Né não, meu filho... é daqui!”. Foi isso mesmo que eu disse pra Estela dentro do Posto: “Dona Estela, Pankararú quando quer crauá vem catar aqui, vem pegar aqui na nossa área! O nosso chefe é da nossa área! E só existe aldeia porque existe um chefe de aldeia! Só existe Posto porque existe um chefe no Posto! E tem havido tudo aqui nessa área depois que nós cheguemos e foi graças a esses homens! Porque eles são homens pra chegar junto com nós em tudo que é canto e valer nós de tudo no mundo!”. Aí dona Estela chamou Luciene, quando Expedito queria fazer uma eleição: “Eleição como, Expedito?”. Ele disse: “Eleição! Como de prefeito!”. Aí ela disse assim: “Como é isso?”. Ele disse: “É só fazer duas fila... uma de um lado e outra de outro!”. Estela disse: “Não faça isso não que o senhor perde!”. Aí foi que Luciene chegou e, encostada num canto de parede assim, ela chorou! Ela ficou assim: “Eu ‘tô te pedindo, Expedito, pelo amor de Deus, não faça isso não!”. Ele disse: “Não tem pedido! É pra fazer eleição!”. Alguém disse: “Como assim?”. Ele disse: “É pra fazer a fila e ir contando”. Quem fizesse mais ganhava, quem perdesse... (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Dona Maria é uma das que lamenta o desfecho da eleição. A filha de seu genro, Antônio, casada com o filho de Expedito, foi criada por ela e se transferiu para a aldeia nova: “a menina gostava do trabalho [dos Praiá] mesmo! E depois juntou-se com o filho de Expedito e saiu pra ir morar lá mais ele, num lugar seco!”. Prossegue seu relato contando da disposição das filas em frente ao Posto:

Aí quando eu saí do Posto, a fila de Expedito ia lá naquele pé de algaroba de Zezinho Ricardo. O nosso povinho dava desse tanto. Quando eu olhei, e olha que eles mandaram tirar os Praiá, é porque eles não tiraram!, e então falei: “E agora?”. Aí Raquel disse: “Ô mãe, se conforme!”. Foi quando eu me dei conta: “Cadê os homem?”. Raquel disse: “’tão na casa do Tio Dudú”. Foi quando eu disse: “Pois vão chamar! Pelo amor de Deus, tragam os homens!”. Aí quando os meninos vieram de lá, o senhor acredita? Foi Deus! Fez assim atrás dos homens, de gente! Passou da igreja, passou da casa de Tota, foi até a casa de comadre Quitéria, que o pessoal não deu conta de andar um atrás do outro! Aí Expedito começou a ficar

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aperreado pra tirar os branco de nosso lado! Sem ter, meu irmão! (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Parece ter sido no momento em que viu ameaçada sua vitória que Expedito acionou a representante da FUNAI para que fossem retirados da fila aqueles que não estavam trajados. Segundo dona Maria, Estela retrucou:

“Expedito, não posso mais fazer isso... porque só ficou você! Porque tudo o que vocês exigiram, eles ficaram tudo caladinho agüentando... e porque você vai tirar esse pessoalzinho que vieram enfadadinho, sem trajes, porque não sabiam o que que essa reunião ia decidir... Eu tenho certeza que todo mundo que ‘tá aqui... se dissesse que era pra vim trajado eles tinham vindo!” (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Com o desfecho negativo, Expedito e seus aliados tomaram a iniciativa de sair de Alexandra e fundar uma nova aldeia, com os “índios verdadeiros”, legítimos herdeiros de Serra Negra, onde ele seria o pajé, e Zé de Sérgio, o cacique:

Aí, nessas alturas, os Praiá ficaram na casa de comadre Quitéria e depois foram dançando até o Posto e eles resolveram ir-se embora, e já foi um bocado de gente! Eles ‘tão num lugar feio! Prá lá do Travessão, só Deus que sabe! Se aqui tá ruim... imagine lá! Eu tenho pena... eu tenho pena de minha neta que acompanhou o marido... mas é isso aí... quando ela ver que o negócio ‘tá pesado ela vem embora, né? Sabe onde deixou o pai, sabe onde deixou a mãe, os avôs... vem s’embora. Então foram s’embora um bocado de gente, mas foram porque quiseram! Tivemos pena e sentimos... mas ninguém mandou! E além do mais, as bichinha chorando, como as filhas de Delso, puseram tudo no caminhão e se foram! Fiquei só espiando... nessa disputa eu fiquei no meio: em pé! Olhava pra um lado, olhava pro outro... (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Apesar de ter permanecido, como ela mesma descreve, em pé entre as duas filas, dona Maria das Neves estava claramente posicionada no “embate das culturas”. Acha que os que saíram da aldeia vão voltar: “O mesmo Deus que levou vai trazê-los. Agora, eu só tive pena foi da criançada, sabe?”. Sua maior objeção ao partido de Expedito é a recusa de reconhecer o Praiá, herança de seu pai que, por meio do pajé Pankararú João Tomaz, foi introduzida em Alexandra como parte integrante da cultura Kambiwá:

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Eu só não posso é desprezar uma herança que papai nos deu e foi com que ele nos cobriu. Eu disse lá dentro do Posto: “Nós aqui não existia um Posto, não tinha poço, não existia farmácia, nós não tinha nada aqui! Nem a igreja de São Francisco nós não tinha... e depois dessa aldeia tudo isso nós tinha. Pra puxar água pra beber no poço de 185 metros de fundura! Puxava quatro pessoas, duas de um lado e duas do outro, e hoje, abaixo de Deus, nessa nossa aldeia nós teremos tudo: nós teremos enfermeira, chefe, professora, nós teremos tudo pra nossas crianças! (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Muito embora dona Maria lamente o ocorrido, colhi depoimentos segundo os quais o fato não seria de todo negativo, principalmente por ter sido constituída uma nova aldeia dentro dos limites da área demarcada, próximo a um local onde fora constatada a presença de posseiros. Essa seria, assim, uma forma de ocupar o espaço conquistado com a demarcação. Além disso, com o “cruzamento” das famílias, os laços estabelecidos são fortes o bastante para manter o conflito em um nível aceitável: “O índio só vive brigando um com o outro... mas nenhum branco não bula com um índio não!” (Maria das Neves. Alexandra, outubro de 1998).

Entrevistei Cícero Dantas sobre a eleição e sobre os motivos do recurso à FUNAI para intermediá-la. Para ele, grande parte do ocorrido se deveu às divergências entre o estilo de liderança de Expedito e os interesses políticos de Luciene:

O começo foi Luciene (a vereadora), né? Se não fosse ela, não tinha acontecido nada... Expedito, por sua parte, ‘tava mais o ex-cacique, né? Pedro Joaquim. Era os dois. Aí... nisso que ‘tava os dois. Mas Expedito achava que Pedro Joaquim... Pela calma que tinha para acertar as coisas, Expedito ‘tava achando que Pedro ‘tava fraco! O negócio de Expedito era mais assim, desse tipo de índio guerreiro que gosta de cutucar as onça. Aí nisso ele tirou Pedro pra fora, né? Ele achava ruim Pedro, porque ele, qualquer coisa com Luciene concordava, né? E com todo mundo aí! Era um homem pacífico, de acordo. Já o Expedito, não, ele é um cara que se ele disser que é pedra é pedra e ali não podia, ninguém podia dizer nada não. Era o que a cabeça dele dizia que era o certo e acabou! Não tinha diálogo, não tinha nada! E aí, nisso, ele escolheu Zé de Nina pra ser o cacique, apoiado por Adão, Adelso e Zé Pretinho, irmão de Pedro, que achava que seu irmão não ‘tava arrochando, no caso, né? Achava que o irmão ‘tava fraco, quieto, pacífico, né? E eles queriam um negócio mais arrochado, um cacique mais assim, pra bater de frente com o chefe e Luciene, porque o chefe ficou do lado

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de Luciene e num ‘tava apoiando as coisas que Expedito queria fazer, né? (Cícero Dantas. Baixa da Alexandra, outubro de 1998). Como vimos, pesavam contra Expedido acusações de dispensar cestas básicas obtidas por Luciene, alegando que estariam sendo fornecidas para brancos, de acordo com os interesses políticos da vereadora. Além disso, teria recusado duas viaturas destinadas pela Administração da FUNAI à área indígena Kambiwá, pois seriam monopolizadas pela família da vereadora23.

No entender de Cícero, o que estava em jogo eram divergências sobre o estilo de liderança ou de trabalho, que puseram em clara oposição dois lados da aldeia, um representado pela chapa composta por Expedito e Zé de Nina, e o outro identificado a Luciene:

Aí, nessa história toda, apoiaram Zé de Nina, eles apoiaram! Ninguém apoiou, eles mesmo lá fizeram uma reunião entre si e queriam que ficasse Expedito como pajé e Zé de Nina como cacique, porque Pedro Joaquim era muito calmo e não dava combate contra o chefe de Posto e Luciene, porque o negócio de Expedito era ter uma pessoa forte com ele para dar combate contra o chefe e Luciene... tirar o chefe fora daqui e Luciene ficar sem força aqui dentro... de nada! Aí nisso Luciene pegou, por sua vez, pegou os Conselho: Zé Aristides, Zizi, Cosme, Zezinho Ricardo, Zé Neco, Tota [pai de Luciene] e aí a maior parte dos Conselho ficaram do lado dela. Mas só que Expedito mais Zé de Nina e os Conselho que apóiam eles [Adão e Mané de Santina] e a família Lima foram pro Posto com um papel batido que era pro chefe assinar como se Zé de Nina fosse o novo cacique e Expedito o novo pajé. Aí foi que se ajuntou cinco menino aí e disse: “Não! Ninguém apoiou Zé de Nina como cacique... ninguém fez reunião!”. Se fizeram reunião foi entre si, mas não comunicou nada ao povo, se o povo aceitava ou não. Aí Zé de Nina, como é meio cismado, disse: “É, já que vocês ‘tão com isso aí”, pegou e saiu. Mas só que Adão e Adelso, irmãos dele, continuaram batalhando pra ele ser o cacique, até radiaram lá pro Recife e aí foi quando Estela veio pra ver se acalmava esse impasse, né? Aí, no dia que ela veio, Expedito trouxe uns três ou quatro carro, uma Mercedes cheia de gente de lá do

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Estive com Expedito antes de sua deposição e ele desmentiu as acusações. Afirmou não ter nenhum problema de relacionamento com o administrador, que sempre o tratou de modo cordial. Quando estive em Recife, contudo, uma funcionária confirmou a antipatia do administrador para com Expedito. Dona Maria das Neves também relatou um encontro com o então administrador: “Tá fazendo um ano agora. Foi no mês de outubro. Porque os recursos estavam descendo no nome do capitão da aldeia que vinha sendo desconsiderado! Minha conversa com Zé Ozório findou ele dizendo assim: ‘Com licença da má palavra, lá são uns calça-frouxa que ‘tão com medo daquele matador de índio!”. O administrador se referia a um boato que circulava na área indígena de que Expedito estaria matando moradores flagrados em desvio de conduta, particularmente roubo de bodes.

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Realengo. Ninguém sabia quem era índio, quem não era... aí o povo falou assim: “Oxente! Donde saiu esse povo? Tem gente que a gente nem conhece... de onde é?”. Eu acho que nem da reserva indígena era. Devia ser do meio da floresta, da caatinga, daquelas mata braba de lá (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998). O momento da eleição é relembrado a partir da constituição das filas:

Aí ‘teve as fila, né? As duas fila ficaram lá: a de Expedito chegou até a casa de Zezinho Ricardo e a nossa passou da igreja ali. Aí foi quando Expedito falou pra moça: “Ói! ‘tá errado! Porque nessa minha fila aqui todos são índios e já nessa fila aí, é fila de branco!”. Aí Estela falou pra ele: “É de branco por quê? Eu acho que, se esse povo todo daí ‘tá na fila, é porque são todos índios! Porque se não fosse índio...”. Aí foi quando ela falou: “Olha, gente: quem estiver em uma das duas filas, se não pertencer à área indígena, não morar na área indígena, saia!”. Aí Expedito falou: “Não! Não é por morar não, é porque não são índio: não têm cultura!”. Aí a mulher disse: “Não, rapaz, não é assim não! É você quem ‘tá dizendo que eles não têm cultura. Você sabe da vida de todo mundo? Quem são as pessoas?”. Aí foram pra contagem (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Fica patente nesse relato a assunção de critérios muito distintos de identificação étnica. Para a administradora e na lógica de um dos partidos, seriam índios todos os moradores da área indígena, enquanto para os partidários de Expedito seriam índios somente aqueles que tivessem a “cultura”. Ser morador da área indígena era um critério rejeitado por Expedito sobretudo pelo fato de que, durante o levantamento fundiário que antecedeu a demarcação da área indígena, muitos se identificaram como “posseiros” a fim de obter indenização. Posteriormente, obtiveram registro como índios. Grande parte morava no município de Ibimirim e não freqüentava os Torés quinzenais no terreiro. Assim, para o grupo de Expedito, não possuíam “cultura”. Outro critério, mais operativo, dizia respeito à cultura material. Teriam cultura os que estavam paramentados como índios (trajados), ou seja, vestidos com o saiote de caroá (também chamado de cateoba) e, opcionalmente, com um adorno de cabeça feito de palha ou fibra vegetal e adornado com elementos plumários genericamente chamado de capacete ou penacho:

O mais específico que ele falou “não tem cultura” é porque os índio tudinho que ‘tava na fila dele ‘tavam todos de saiota de caroá, né? Porque a informação que a gente tinha é que essa mulher [Estela, representante da FUNAI] vinha pra um tipo de reunião, conversar

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com todo mundo... ninguém ‘tava sabendo que ia dançar Toré! Não sabia de nada, sabe? Mas já a parte dele, ele muito esperto, ‘teve muita reunião com o pessoal dele, que apoiou ele aqui dentro e o pessoal do Realengo e aí todo mundo veio de saiota, né? De caroá! Aí ele disse à Estela: “Olha, você pode ver que os índios da minha fila estão todos vestidos de saiota de caroá! E a deles são poucos que têm!”. Aí Estela disse: “Isso aí não quer dizer nada!”... E deixa que o Praiá estava acompanhando nossa fila, né? (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Cícero se refere ao Praiá como uma espécie de compensação pelo fato de a maioria dos integrantes de sua fila estar sem os paramentados legitimados pela tradição. Os mascarados do Praiá, dada a respeitabilidade desse ritual e o efeito plástico das máscaras, que conferem caráter emblemático às performances das quais fazem parte, constituem uma espécie de capital cultural para o povo de Alexandra. Não obstante ter sido introduzida a partir dos esforços do pajé Pankararú João Tomaz, essa prática cultural teve plena acolhida entre os Kambiwá – inclusive por Expedito, que, embora se mantivesse relativamente distante dos preparativos, sempre considerou o Praiá parte da cultura Kambiwá, mesmo com objeções discretas24.

Cícero conta como os Praiá participaram da eleição:

Estavam de traje, trajados. Sim, os Praiá, aí ele pegou e disse que o Praiá não fazia parte da cultura indígena. Foi quando Estela disse pra ele: “Quem falou isso pro senhor? Que o Praiá não faz parte da cultura indígena?”. Aí ele disse: “A cultura indígena é o Toré”. Aí ela falou: “Não, o senhor ‘tá enganado! A cultura indígena é o Toré e o Praiá!”. Ele disse: “Não, aqui em nós é só o Toré”. Aí a mulher falou: “Pois o senhor ‘tá enganado, o Praiá faz parte da cultura indígena, sempre fez e sempre vai fazer!”. Aí foi que ele calou-se mais... e ela não considerou isso não... como nada! Porque Expedito veio com um tipo dum esquema, sabe? Ele é muito esperto! Porque o cara é inteligente mesmo, ele disse: “Não, eu vou trajar meus índios bem trajados, né? Os dele não ‘tão sabendo de nada, não têm mentalidade pra formar uma coisa bem-feita, aí eu faço isso e levo a melhor”. Mas aí foi que ele dançou! Aí foi pra fila, Expedito

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Alguns meses antes da disputa, entrevistei Expedito e perguntei sua opinião, como pajé, sobre a importância dos Praiá para a cultura Kambiwá: “o Praiá, ele tem importância porque aquilo é o vestuário do ‘brabio’. Agora, pra eu dizer que entendo, eu não entendo. Eu mesmo não conheci e nem ouvi os mais velhos da Serra Negra falar, não. Não conheço bem, não. Pra eu explicar, posso explicar errado, aí eu não sei. Mas hoje é um ritual que a gente tem e considera, porque já basta dizer que o croá [caroá] é uma parte que a gente tem e que considera, que é a força do croá, a força pelo croá. O croá é um material sagrado que a gente tem na caatinga que por aí a gente já tem o respeito, modo o croá: por causa do caroá! (Alexandra, maio de 1998).

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dizendo: “Olha, nós vamos formar duas fila! Quem for índio a gente deixa, quem não for a gente tira!”. Da nossa fila a gente tirou umas vinte pessoas, dizendo que não são índios, as pessoas... um bocado do Nazário, das pessoas que moram dentro da reserva indígena, tirou. Aí as pessoas dizendo “Não, eu sou índio! Eu tenho a carteirinha!”. Aí ele dizia: “Não, você não é índio não, né não” (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Cícero menciona que a vereadora ficou ao lado dos que estavam sendo retirados para consolá-los e para pedir que saíssem da fila, para evitar confusão. Isso parece ter ocorrido quando a vantagem numérica já era patente, embora a diferença registrada na contagem final tenha sido reduzida:

Luciene, pra livrar de confusão, pede pro pessoal ir saindo. Porque o negócio de Expedito, quando ele viu que ‘tava perdido, ele queria embolar o negócio, na hora que ele viu que a nossa fila passou da igreja e foi até a casa de Tota, aí o homem se apavorou! E aí ele queria fazer um tumulto, sabe? Aí Luciene disse: “Não, pode sair que nós ‘tamo ganho! Num tem jeito da gente perder não, nossa fila é maioria. Porque vocês que ‘tão saindo não perde não, mas vocês são índio, podem ficar tranqüilos! Só não é índio na boca dele, porque ele acha que só é índio a família dele, lá do Realengo!”. Aí foi pra fila. Lá dentro do Posto quase que começou uma briga, todos discutindo por isso, um dizendo que era índio, os outros dizendo que são eles, o senhor entendeu? Um racha mesmo! Aí foi feita a contagem, né. Nossa fila, se eu não me engano, deu 278 pessoas, e a deles deu 270. Eu sei que a diferença foi de seis a oito pessoas (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Após as comemorações pela vitória, seguiu-se uma discussão dentro do Posto, pois Expedito exigia nova contagem, alegando que aqueles que foram retirados da fila retornaram logo em seguida. Diante da negativa da representante da FUNAI e do chefe do Posto, foi instaurado um impasse, com o grupo liderado por Luciene considerando-se vencedor e o liderado por Expedito julgando a eleição sem efeito:

Quando foi no final, com o resultado, deu aquela gritaria! Aí saímos pulando, gritando... aí fomo lá pra frente do Posto. E eles ficaram na fila! Aí Expedito dizia: “Não, vamos contar de novo! ‘tá errado!”. Aí foi que Zé Cicero, ali do Nazário, disse: Expedito, você contou junto com nós... Você tá dizendo que a gente ‘tá mentindo é? ‘tamo roubando é?”. Ele disse: “Não, mas tá errado!”. Zé então falou: “’tá errado não, rapaz”. A moça [Estela] disse: “Como é? ‘tá certo? ‘tá certo aí nos Conselho?”. Aí o Conselho disse: “Não, tá certo: 260 a

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270”. “Pronto! Esse lado aqui ganhou!”. Aí, nisso, Adão se aperreou e disse pra Estela: “Olha, diga lá pro homem que aqui nada resolvido!”. Aí, nisso, o Chefe do posto disse: Ói, aqui não vai ter mais nada disso não! Agora o cacique é Zizi e ‘tá acabado! Aqui não vai ter mais negócio de fila não. Fizemos o que vocês queriam, nós fizemos. A partir de agora, é Zuca cacique e Zizi pajé”. Mas, aí Expedito fundou a nova aldeia. Nem todos que ficaram do lado deles ainda não foram. Adão mesmo, que era um que, na mentalidade certa, era um dos primeiros que devia ser enxotado daqui pra fora! Porque foi um dos primeiros que fez a quizanga! Junto com Zé Pretinho, com Delso, foram os cabeça que fizeram isso aí. Aí foi uma parte morar no Travessão do Ouro. Aí, nisso, um bocado de famílias já foi, essa parte dos Rozeno, já foi morar lá no Travessão. Agora, só que... Expedito ‘tava dizendo que quer que o Posto, a aldeia saia daqui e vá pra lá, que aqui não seja mais aldeia, não seja nada! Que a aldeia vá pra lá que lá ele seria o cacique e algum outro parente dele seria o pajé e que lá é a aldeia certa! Lá é os índios verdadeiros! E aqui não, nenhum daqui é índio, num tem cultura, só ele e a família dele e os que apóia eles é que são índio legítimo! (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

A retirada e a fundação da nova aldeia começaram logo após o desfecho da eleição. Ao que parece, essa iniciativa surpreendeu a maior parte dos moradores de Alexandra. Dona Clarisse, mãe de Cícero, afirma que “se esse outro lado ganhasse, o de Expedito, a gente continuava aqui. Ninguém expulsou eles, ninguém!”. Cícero entende que “foi ignorância deles, que eles disse que aqui não moravam mais, que aqui só tinha branco, que os índios era eles, e o que Expedito quer mesmo é que lá vire aldeia e aqui passe para o município, estado, sei lá. Ou então, mesmo que pertença à aldeia, mas que seja igual aos Pereiro, Nazário, Tear... e lá seja a aldeia mesmo, a sede!”.

O receio de Cícero diz respeito à possibilidade de que Alexandra deixe de ser o centro administrativo de toda a área indígena, sede do Posto, e passe a ter papel subsidiário, comparável às demais aldeias. Sua mãe ouviu dizer que o administrador havia se pronunciado a respeito e que “se eles fossem pra lá, que pertence à área, tudo bem, tem todo o direito, como de fato mandou entregar a cesta deles, mas que não haveriam duas áreas indígenas, não, é uma só, e é essa aqui”.

Cícero é explícito em relação à inquietação gerada pela criação da nova aldeia e alude, em linguagem típica da burocracia estatal, ao receio de a aldeia ser “exonerada”:

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Tudo que acontece aqui dentro, ainda tem meio mundo de gente do partido dele morando aqui, tudo o que acontece aqui dentro já tem gente certo pra levar a informação pra ele lá, né? Eles lá se apoiaram com os políticos de Floresta e só vivem viajando pro lado de Recife, não sei se ele foi pra Brasília. Parece que ‘tava arrumando um ônibus pra ir pra Brasília, o senhor entendeu? O negócio dele vai acabar de fazer aqui pro beleléu, porque uma hora dessas os homens vão dizer: “Não, lá não é uma nação indígena, lá é uma nação de psicopata louco!”., Vão até exonerar a aldeia, do jeito que o governo já quer cortar gastos, né? Tirando uma aldeia dessa fora é muita grana, né? Que ele corta também, uma aldeia quase sem tradição! Porque a aldeia ela sozinha tem que ser uma nação! E aqui não é nação! Nação de quê? De encrenqueiro, bagunceiro, cachaceiro, bandido? (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Uma das conseqüências mais lamentadas do cisma diz respeito às desavenças entre membros de uma mesma família. Em seu estudo sobre o faccionalismo em Malta, Boissevain (1977: 281) comenta que determinadas clivagens são penosamente claras para os membros de grupos sociais que enfrentam problemas de divisão interna, em especial nas pequenas comunidades com fortes laços de parentesco e afinidades, onde são por vezes obrigados a se opor a amigos e parentes.

Clarisse comenta que “por conta disso tudo, Zé Pretinho e Pedro Joaquim [irmãos], que sempre se deram, agora não se entendem mais”, enquanto Cícero deplora o clima de beligerância gerado com o deslindamento da aldeia, afirmando que, em Alexandra, os aliados de Expedito poderiam chegar a hora que quisessem, “ninguém diz nada, ninguém nunca fez mangação, ninguém nunca fez deboche. Já eles não, foi um menino daqui e eles mandaram o recado que não fosse outra vez não, senão ele ia se ferrar”. E prossegue:

Dodó [irmão de Dona Clarisse] foi lá uma vez e depois foi Dé, marido de Antônia: Dé de Louredo! Foi levar uma merenda junto com Diá e lá queriam agredir o rapaz, que ficou do nosso partido. Dodó foi lá uma vez e aí eles mandaram o recado que Dodó não fosse outra vez não porque se ele fosse outra vez, o negócio ia ser mais feio. Ele discrimina de algum de nós ir pra lá, passar pra lá, ao menos por perto! Já nós aqui não tem nada disso, eles andam aqui na hora que quer, vive aqui na hora que quiser, ninguém nunca discriminou sobre o Posto de Saúde, carro, nada! Do jeito que os índios que ganharam na votação têm direito, a mesma coisa eles têm aqui dentro, ninguém discriminou ninguém. Só não queria Expedito como pajé porque ia chegar uma hora que ia ter uma

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guerra aqui dentro, haver meio mundo de morte! Porque o homem não tinha diálogo pra conversar com ninguém. Ele sendo pajé, ele não tinha a força de fazer o que ‘tava fazendo. Porque a força é do cacique e não dele! Ele é o curador da aldeia, ele não tem força política dentro da aldeia! A força política da aldeia é o cacique, e não o pajé. O pajé é o curador, o conselheiro. Aí ‘tava assim, essa guerra política aqui dentro, aí aconteceu isso (Cícero Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Cícero afirma que, se soubessem dessa necessidade, “a gente tinha saído pro mato e catado [o caroá]”. Isso remete ao comentário dos moradores de Travessão do Ouro, a aldeia nova, de que “as saiota deles eram tudo novinha!”. O valor atribuído a uma “saiota” nova, conseqüentemente pouco utilizada, pode ser inferido pelo tom depreciativo dos partidários de Expedito, que se orgulham de ostentar paramentos desgastados pelo uso continuado.

Dona Clarisse comenta que, pouco tempo após “terem colocado” Zuca e Zizi, já se comentava na aldeia a possibilidade de substituir o cacique: “Parece que já querem mudar o cacique, porque o cacique é muito novo e não se mexe pra nada, não resolve nada!”. Perguntamos de quem era o comentário, e ela respondeu: “Eu ‘tô ouvindo só as abelha zoar”. Na verdade, dona Clarisse sugere que a chapa vencedora foi composta apenas para atender aos interesses imediatos de Luciene, que, no momento que julgar conveniente, pode substituir o cacique e/ou o pajé a partir de suas articulações com a FUNAI. Apesar de ter votado no partido de Luciene, dona Clarisse ficou incomodada com o fato de os índios, em vez de abraçar os recém-eleitos Zuca e Zizi, terem ido parabenizar Luciene: “Viva Luciene, Luciene venceu”.

Mazinho, filho mais velho de dona Clarisse, tem um tom mais melancólico com relação ao ocorrido. Expedito ficou perplexo com o fato de Mazinho ter se posicionado no partido de Luciene, pois, apesar de descendência indígena discutível, ele sempre foi um participante ativo nos trabalhos dentro da área indígena e, conseqüentemente, um legítimo representante da cultura.

Em seu relato, Mazinho lamenta a divisão da aldeia:

Eu acho que isso era uma coisa que não devia ter acontecido entre nós. Porque é que, como é que nós que somo da tradição... não carecia existir esse tipo de divisão entre nós mesmo! Esse acontecimento aqui dentro da área, de cacique e de pajé, isso aqui sempre teve aqui em nossa aldeia, mas como teve esse desentendimento, entre essa escolha, então foi onde ocorreu a

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divisão, porque o pajé antes daqui da nossa aldeia achou que pra ele não adiantava existir esse tipo de troca (de substituição), então ele ficou desgostoso e foi embora, agora sendo na mesma área da gente (Mazinho Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Mazinho parece concordar com os argumentos de Expedito, o que permite inferir que sua adesão ao partido de Luciene se deveu sobretudo à fidelidade aos demais membros de sua família, por vezes ameaçados pelo fundamentalismo do pajé:

Eu acho o seguinte, o pajé Expedito, ele por uma parte tem suas razões. Porque tem muita gente aqui na aldeia que não freqüenta tanto nossa cultura. Então eu acho, eu como índio, que sou da cultura, estou muito triste porque a maior parte do pessoal da cultura está do outro lado, onde está agora dividido entre nós. Porque nós tem que colocar na cabeça que, se não fosse a nossa cultura, hoje a gente não teria nosso apoio nessa área indígena aqui (Mazinho Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Ele parece ser um dos poucos que admite a reintegração. Embora descrente da possibilidade de os aliados de Expedito voltarem atrás em sua decisão de fundar a nova aldeia, acredita na união dos lados rivais como “uma maneira da gente se unir e colocar nossa cultura pra frente”:

É, junto com o pessoal do Travessão! Mas eu acho que isso vai ser... Não vai ter condições, porque eles não vão querer voltar novamente, de ser o que eram. Agora sim, eles tem a cultura deles, eles hoje estão morando lá do outro lado no Travessão, fazem sua cultura e a gente também aqui, fraco assim mesmo, mas a gente ainda freqüenta nossa cultura e eu acharia melhor se a gente tivesse tudo junto como era antes! Mas assim mesmo nós não deixamos de ser parentes, não! Só o que está existindo mesmo é essa divisão, divisão que foi onde fracou um pouco mais a aldeia (Mazinho Dantas. Alexandra, outubro de 1998).

Luciene, tida como um dos pivôs da disputa, manifesta sentimento semelhante, e lamenta o cisma, atribuindo-o à predisposição do partido de Expedito.

Remontando à gênese desse processo, Luciene menciona o fato de se sentir discriminada pelo grupo de Expedito, que também a desconsiderou como “liderança”:

Olha, ali foi uma história que, até eu hoje... Tem hora que eu paro pra pensar por que aconteceu, como foi, e tem hora que eu não

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