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Walter Benjamin e Cora Coralina: uma incursão à narrativa

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Academic year: 2018

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D O S S I Ê

WALTER BENJAMIN

E CORA CORALINA:

UMA INCURSÃO

À

NARRATIVA

U

M

FEDCBA

TEMA EMERGE:

A NARRAÇÃOvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A narrativa tem se insur-gido como um tema de es-pecial importância para mim. O contato com o tex-to "O Narrador", de Walter Benjamin (1985), se fez de tal modo presente que me mobilizou em busca de ten-tar entendê-lo por dentro, esmiuçar o seu conteúdo e articulá-lo com alguns ou-tros textos e autores. Bom, e o que há no texto de Ben-jamin que o faz um eixo de reflexão tão central para mim?

Primeiro, a tentativa de resgate pelo autor desta an-tiqüíssima forma de comu-nicação - a Narrativa, que para Benjamin, já em 1936

mórdios de nossa história, de trocar, enriquecer e cons-truir experiências e, até, de construir a própria história dos homens?

Ora, Hannah Arendt (1995) já nos alerta para "O fato de que toda vida indivi-dual, compreendida entre o nascimento e a morte, pode vir a ser narrada como uma história com princípio e fim, é a condição pré-política e pré-histórica da História, a grande história sem começo nem fim."(p.197) Assim, parece-me essencial mergu-lhar nas reflexões sobre nar-rador e narrativa, buscando uma maior compreensão.

Além disso, que categori-as são ressaltadcategori-as no texto de Benjamin, ao abordar a nar-rativa, que merecem uma re-flexão maior? Creio que há várias e sobretudo que, se to-mássemos apenas uma delas, já haveria material suficiente para a elaboração de um trabalho extre-mamente denso. São elas: a experiência; a sabedo-ria; a marca do narrador; a oralidade; o dom de ouvir; a observação, a capacidade de narrar; a fi-gura do narrador.

Essa elencação trouxe-me à lembrança que Lyotard (1993) coloca o saber dizer, o saber ouvir e o saber fazer como os três aspectos básicos do saber narrativo.

Mas, tentando ir mais fundo, por que tudo isso ressoa tão fortemente em mim?

A

ANGELA DE ALENCAR ARARIPE PINHEIRO*

R E S U M O

Otra b a lh o to m o c o m o o b je to o n a rra tiv o e c o m o p o n to d e p a rtid o d e o n ó lis e o s id é ia s

d e BENJA.MIN, a rtic u la n d o -o s c o m o d e o u tro s

a u io re s , c o m o G in z b u rg e A re n d t. P ro c u ro fo rm u la r re fle x õ e s e q u e s tio n a m e n to s , id e n ti-fic a r re s s o n ã n c ia s , e s ta b e le c e r a rtic u la ç õ e s n o v o s , e n fim , tra z e r o NARRATlVAp a ro o c e n -tro d o d is c u s s ã o , b u s c a n d o c o n trib u ir p o ro o s e u re s g a te e p re s e rv a ç ã o c o m o in s tru m e n to d o s a b e r h u m a n o . T ra z u m e x e m p lo d o n a r-ro iv a - o c o n trib u iç ã o d e CORA CORAl/NA,

te n ta n d o a rtic u la r o s u o o b ro c o m o p e n s a -m e n to d e BENJAMIN, b u s c a n d o c o m p re e n d e r

c o m o o n a rra ç ã o c u m p re o p a p e l d e c a m i-n h o p o ro o d e s v e la m e i-n lO d o c o tid ia i-n o . A s c a te g o ria s c e n tra is d e BENJA.MIN p a ro o n a r-ra tiv o e o fig u ro d o n a rr-ra d o r tê m s u o id e n ti-fic a ç ã o b u s c a d o o p a rtir d e u m a o b ro d e

CORAl/NA -"V in té m d e c o b re m e io s c o n fis

-s õ e -s d e A n in h o ."

'P ro fe s s o ra d o D e p a rta m e n to d e P s ic o lo g ia e a lu n a d o C u rs o d e D o u to ra d o e m S o c io lo g ia d a U F C .

- ano em que escreveu o texto, encontrava-se em

pro-cesso de extinção. Benjamin também tenta pre-servar a narração, posto que nos leva a pensar so-bre a sua importância pelo conteúdo, simples e ao mesmo tempo denso, lúcido e ao mesmo tempo poético, que nos presenteia através de "O Nar-rador". Há, outrossim, algumas contribuições suas relacionadas ao assunto em "Sobre alguns temas em Baudelaire". (Benjamin, 1975).

Surge-me, de pronto, a indagação: o que se dá fundamentalmente com a história humana que está relegando um dos canais mais antigos de co-municação, uma forma cotidiana, desde os

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Primeiro, posso identificar que ressoa com o conteúdo de meu projeto de tese Pinheiro (1995), cujo objeto é a investigação, a partir de situações do cotidiano da criança, de seu reconhecimento ou não, de sua representação social ou não, como cidadã. Ora, as representações sociais se formam, principalmente, através das conversações e dos diálogos cotidianos Moscovici (1994), instâncias em que as narrativas, suas ruínas (os provérbios-no entender de Benjamin), o senso comum, o dis-curso popular, se fazem presentes e se elaboram muito visível. Trabalhando com amostra formada por crianças, na faixa etária de 8 a 12 anos, como indicado no Projeto de Tese, a oralidade, catego-ria intimamente ligada à narrativa, será de funda-mental importância para a observação e as entre-vistas a serem executadas com as crianças.

Segundo, porque tudo isso tem a ver com a ex-periência de ser humana, bem assim com a expe-riência de ser humana trabalhando no âmbito das Ciências Humanas. O que fazemos nós, profissio-nais das Ciências Humanas, se não ouvirmos tex-tos, pessoas, realidades, poemas, e recontá-Ios, em

salas de aula, bem como através de artigos,

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p a p e r s ,

livros, conferências e outros caminhos mais? Não é nosso trabalho igualmente artesanal como a nar-rativa, no sentido de que construímos, ou devería-mos construir, em nosso cotidiano, narrativas, a partir dos textos que ouvimos, os mais diversos -em termos de conteúdo e forma? Parece-me que sim. Foi quando cheguei a este sim, como resposta à minha própria indagação que me decidi a abor-dar a Narrativa por intermédio deste trabalho.

Ademais, a que tipo de textos temos estado aten-tos? Estaremos restritos a um determinado tipo de escuta, apenas a de natureza acadêmica, ou te-mos nos permitido estar abertos a escutar, a en-tender, a ouvir textos outros, igualmente férteis para a compreensão do humano?

Despertado o interesse, expresso através desses questionamentos, creio que, agora, os objetivos do trabalho ficam mais claros:

a) tomar como objeto a categoria da Narrativa, tendo como ponto de partida inicial de análise as idéias de Walter Benjamin (1985), articulando o seu conteúdo com o pensamento de outros auto-res Ginzburg (1989); Arendt (1995), e formular reflexões e questionamentos, identificar ressonân-cias, estabelecer articulações novas, enfim, trazer

a Narrativa para o centro de discussão, em busca de também contribuir para o seu resgate e sua pre-servação, como objeto de saber humano;

b) trazer para discussão um exemplo de Narra-tiva, através da contribuição de uma narradora contemporânea brasileira, Cora Coralina, tentan-do articular a sua obra com o pensamento de Ben-jamin e dos demais autores, buscando compreen-der como a narração cumpre seu papel de cami-nho, de instrumento para o desvelamento do coti-diano. A partir de Cora Coralina, partindo do con-teúdo de um de seus livros - V in té m d e c o b r e : m e ia s c o n fis s õ e s d e A n in h a , tentar-se-á identificar as cate-gorias centrais da narrativa e da figura do narrado r, abordadas por Benjamin, conforme já anterior-mente citadas.

Convém ressaltar que este trabalho procurará seguir uma das abordagens possíveis do texto "O Narrador", qual seja, analisá-Io a partir de dois grandes tópicos, intimamente relacionados: a ca-racterização do narrado r e a técnica da narrativa.

o

FEDCBA

NARRADOR

O primeiro narrador verdadeiramente e que continua a sê-I o, afirma Benjamin, é o narrador de conto de fadas, assim como foi Heródoto o primeiro narrador grego. Oportuno se faz citar que, para o autor,

"O conto de fadas nos revela as primeiras me-didas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade e continua ensinan-do hoje às crianças que o mais aconselhável é en-frentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância." (p. 215)

Pergunto-me, de imediato, se só as crianças, com o passar das eras, conseguiram guardar essa capaci-dade, essa coragem de compreender e enfrentar pe-sadelos de ordem mítica. Perdemos nós adultos essa prerrogativa? Ou melhor, permitimo-nos perder?

Os representantes arcaicos da figura do narrador foram, para Benjamin, o camponês sedentário e o marinheiro comerciante, que faziam uso da arte da interpretação. Posteriormente, os artífices fo-ram os aperfeiçoadores da arte de narrar, a partir do conhecimento que lhes chegava do saber das

terras distantes e do passado.

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Já Carlo Ginzburg (1991) aponta o caçador co-mo o primeiro homem a narrar uma história, a partir de sua capacidade de ler aparentemente mu-das, tais como ramos quebrados, pisamu-das, entre ou-tras, que eram deixadas pelas presas. Não vejo na constatação de Ginzburg um desmentido ao que afirma Benjamin, e, sim, um antecessor ainda mais arcaico, como primeiro narrador, do que, como cita Benjamin, o narrado r de contos de fadas.

Ginzburg fala-nos de uma seqüência narrati-va, que ele acredita talvez "tenha nascido pela primeira vez numa sociedade de caçadores, a par-tir da experiência de decifração de pistas." (p.152) Trata-se, evidentemente, de uma hipótese inde-rnonstrável, como indemonstrável, veremos, é a força da credibilidade da narração, que não ne-cessita de passar pela verificação ernpírica para ser acreditada pelos ouvintes. A autoridade está no narrador.

E, no mundo contemporâneo, poderemos vis-lumbrar alguma profissão, em que se identifique o narrador? Lembrei-me da figura do contador de histórias, que até

à

época de minha infância (tem-po não distante assim ...) conseguíamos identifi-car e por vezes conviver em várias cidades do in-terior do Estado do Ceará, e que hoje, tudo indi-ca, torna-se cada vez mais, um personagem raro.

Veio-me

à

lembrança, também, uma espécie de narrador, que chamo quase solitário: o clien-te de processo psicoclien-terápico, que, de uma certa forma, conta e refaz a sua própria história, ten-do como ouvinte apenas o(a) psicoterapeuta.

Finalmente, ocorreu-me o(a) contador(a) de his-tórias para crianças, geralmente um papel assumi-do pelas mulheres (mães, ou mesmo as avós, ou a quem a criança está sob os cuidados - babá, cre-cheira etc), geralmente sob a atenção redobrada das crianças que, é importante que se diga, por vezes procuram recontá-las, colocando-se nelas (a marca do narrado r?) , e, em outras ocasiões, pe-dindo que lhes sejam as histórias, já ouvidas mui-tas vezes, recontadas fielmente. Serão esses os nar-radores contemporâneos?

Para Benjamin, "são cada vez mais raras as pes-soas que sabem narrar devidamente."(p. 197)

Benjamin refere-se

à

figura do contista, no qual o narrado r se secularizou.

Vejo o contista eventualmente presente nos

jor-nais e, raramente, deparamo-nos com persona-

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2 6 R e v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 7 n .1 /2 1 9 9 6

gens no nosso cotidiano que são capazes de efe-tivamente transforrná-lo em objeto de narração. Estarão também os cronistas em processo de extinção? Será que isso decorre da necessidade, apontada por Benjamin, de o narrado r ter sem-pre suas raízes no povo, "principalmente nas ca-madas artesanais"? Será que esse processo tam-bém está ligado

à

extinçâo imposta quase total-mente ao ofício do artesão, cada vez mais e mais substituído pelo operário produtor em série, fa-bricante de artigos despersonalizados ou banali-zados pela quantidade?

Para Benjamin, há uma distância entre o nar-rador e seus ouvintes. Diz: "Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo distante que se distancia ainda mais."(p. 197)

O que será que distancia o narrador? A sua sa-bedoria, aliada

à

condição de quem sabe dar con-selhos e que detém um senso prático, característi-cas a ele atribuídas por Benjamin?

A matéria-prima do narrador é a experiência, é dela que o narrado r retira o que conta, seja a sua própria experiência, de outros ou do ouvinte. A isso associa-se a marca que ele imprime na narra-ção, que decorre do mergulho que o narrador efe-tua na narrativa, que passa, então, a contar com a marca do narrador.

É

um processo realmente den-so, encantador, fascinante.

Benjamin, abordando a relação entre ouvinte e narrado r, ressalta a memória como a mais épica de todas as faculdades e a importância dessa relação -entre ouvinte e narrado r, que ele qualifica como ingênua, na conservação do que foi narrado. Creio que essa ingenuidade apontada, bem assim a con-servação, estão intimamente vinculadas a uma pre-servação maior da confiança, da confiança no que é ouvido, sem a necessidade de uma comprovação, de uma legitimação outra, que não a própria pala-vra do narrador e a sua contribuição como deposi-tário de um saber, saber que ele compartilha com o ouvinte, através da narrativa.

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parti-cipantes da história, posto que tem um olhar re-trospectivo sobre a ação, que tem significado com-pletamente diferente para o ator e para o narrador.

Tal abordagem faz crescer o papel do narrador, em termos da preservação da história humana, a quem se atribui tamanha força de fidedignidade no contar e recontar as histórias, e a estas, que fazem, sem dúvida, a História.

FEDCBA

A

NARRATIVA

E o resultado do ofício do narrado r - a NAR-RATIVA - como é abordada por Benjamin?

Iniciemos pela experiência, que é por ele apon-tada como o elemento central da narrativa. O vi-vido, o individual, o testemunhado pelo narrador, através de sua própria experiência, quando com-partilhado com o(s) ouvinte(s), assume significa-dos coletivos e recebe, ao mesmo tempo, outras experiências. Assim, deparamo-nos, através da narrativa, com o encontro, a junção, a imbricação de vários níveis de experiência: a do narrador -seja ela direta ou indireta, essa última quando o narrar refere-se a experiências de outros; a do ou-vinte, que tem na narração uma experiência que passa a fazer parte da sua própria; a experiência do coletivo em que se dá a narração, coletivo esse que certamente se transforma com o conteúdo ad-vindo da narração.

Em outro texto, "Sobre alguns temas em Bau-delaire", Benjamin (1975) refere-se

à

experiência como um fato de tradição, quer para a vida coleti-va, quer para a individual, idéia também presente em Arendt (1995), que nos alerta para o fato de que, no mundo moderno, as experiências estão sob a ameaça de ficarem mudas, "na ausência de referências e parâmetros, através dos quais possam ser elaboradas como experiências significativas." (Arendt,

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a p u d Telles, 1990:36).

Voltando a Benjamin (1985):

"A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E entre as narrativas escritas, as melhores são as que me-nos se distinguem das histórias orais contadas pe-los inúmeros narradores anônimos." (p. 198)

Ora, todas essas situações - tanto da experiên-cia passada pessoa a pessoa, como a narrativa oral - requerem o estar frente a frente entre os homens,

o contato direto. Quanto a isso, Benjamin alerta para a crescente raridade dos momentos de inter-cambiar experiências e diz que "uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão ca-indo até que seu valor desapareça de todo." (p. 198) Neste sentido, convém lembrar que Hannah Arendt (1995) aponta a narração de histórias como a forma mais comum de transformação, despriva-tização e desindividualização do que vem do

âmbi-to privado e passa adequadamente a uma aparição pública. Para a autora de "A Condição Humana", o aparente - aquilo que vimos e ouvimos, sob o testemunho uns dos outros - é que constitui a rea-lidade. O que não é compartilhado não está na es-fera pública, ou seja, o que não se encontra na his-tória comum dos homens tem, para Arendt, uma "espécie de existência incerta e obscura."(p. 59)

A narração de histórias tem, assim, especial sig-nificado, posto tratar-se de caminho para a trans-formação do individual, do privado, para o públi-co. Ademais, podemos certamente apontar a cate-goria da experiência, sua troca, como se dando na esfera pública, como pública é a experiência que resulta da contação e recontação de histórias.

Este paralelo entre as contribuições de Benjamin e de Arendt leva-nos a ressaltar que a palavra, o discurso, tem fundamental importância no pensa-mento de Arendt. As histórias narradas - instânci-as do discurso, podem, no entender de Arendt,

"ser registradas em documentos e monumen-tos; podem tornar-se visíveis em objetos de uso e obras de arte; podem ser contadas e recontadas e transformadas em todo tipo de material. Por si, em sua realidade viva, possuem natureza inteira-mente diferente de tais reificações. Falam-nos mais de seus sujeitos, do 'herói' que há no centro de toda história, como qualquer produto humano fala do artífice que o produziu, sem, no entanto, se-rem produtos propriamente ditos."(p. 197)

Será possível, sob as trilhas do pensamento de Arendt, conceber a narração de histórias como um momento de testemunho, elemento essencial na esfera pública, na formação do aparente e da realidade? Vera Telles (1990), comentando a obra de Arendt, lembra-nos que ela confere especial

im-portância

à

narração, que significa a reificação que

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permite atribuir significado aos acontecimentos e, de conseqüência, o estatuto de uma coisa entre as coisas do mundo existente, do mundo comum. A narração, para Hannah Arendt, é, além disso, um dos caminhos da palavra para preservar a ação do

esquecImento.

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Épor demais interessante a abordagem que Ben-jamin faz do momento de escutar histórias, oca-sião em que se está em companhia do narrador, até em se tratando de narrativas escritas, quando também desfrutamos da companhia do narrador. Situação contrária - de solidão - ocorre, no en-tender de Benjamin, com o leitor do romance. En-quanto, na narrativa, o ouvinte desfruta da com-panhia e tende a recontar o que ouviu, no roman-ce, o ouvinte experiencia a solidão e sua tendência é querer transformar o que leu em coisa sua, em devorá-Ia. Benjamin vai além, para distinguir o romance da narrativa, posto que detêm diferentes estatutos históricos: enquanto a narrativa traz em si a "moral da história", o romance contém um "sentido da vida". E diz ainda Benjamin:

" ...numa narrativa a pergunta - e o que aconte-ceu depois? - é plenamente justificada. O roman-ce, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido de uma vida." (p. 213)

Benjamin resgata, ainda, uma ruptura que se deu, com a desagregação da poesia épica, que apa-gou a unidade de origem comum da rememo ração - musa do romance, e da música - e da musa da narrativa, que é a reminiscência. Desagregam-se e isso se reflete nos âmbitos, diferenciando-os, ro-mance e narrativa.

A comparação entre essas formas de comunica-ção traz ainda, por Benjamin, outros elementos esclarecedores, posto que o autor considera o surgimento do romance como "o primeiro indí-cio da evolução que vai culminar na morte da nar-rativa."(p. 201)

Observamos que é esta a única ocasião, no tex-to "O arrador", em que Benjamin fala da morte da narrativa, ao invés de processo de extinção, de-cadência, ou que está definhando. Essa importân-cia toda do romance deve-se

à

sua ligação essencial com o livro, a contraposição que ele permite

en-2 8 Re v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 7 n .1 j2 1 9 9 6

tre a imprensa (instrumento dos mais importan-tes para a consolidação da burguesia) e a tradição oral; e, como já falamos anteriormente, entre o indivíduo isolado (leitor do romance) e a experi-ência compartilhada (quando da narrativa).

A ligação do romance com a burguesia fica ex-tremamente clara nesta passagem de Benjamin: "O romance, cujos primórdios remontam

à

Antigüi-dade, precisou de centenas de anos para encon-trar, na burguesia ascendente, os elementos favo-ráveis ao seu florescimento."(p. 202)

Vejamos, agora, a vinculação que Benjamin apre-senta entre narrativa e sabedoria. Definindo a sa-bedoria como o objeto épico da verdade, Benja-min afirma que a narrativa está definhando por-que a sabedoria está em extinção.

Benjamin apresenta a morte como a "sanção de tudo o que o narrado r pode contar.

É

da morte que ele deriva a sua autoridade."(p. 208) E, ainda, que "...é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as his-tórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível." (p. 207)

Penso que a legitimidade que a morte imprime ao saber é tanto no sentido de que há de alguma forma uma idéia de completude do saber, de uma sabedoria que com a morte atinge um ápice, como também no sentido de que a morte deixa o saber, a sabedoria em disponibilidade para prosseguir, através da experiência dos outros, recebida pela narrativa, pelas histórias contadas e recontadas.

Além disso, no entender de Benjamin,

"O saber, que vinha de longe - do longe espaci-al das terras estranhas, ou do longe temporespaci-al con-tido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira uma ve-rificação imediata."(p. 202/3)

É, pois, fundamental a distinção entre o saber advindo da narrativa e o que provém da informa-ção, em termos de verificação: enquanto a credi-bilidade na narrativa é implícita, a informação re-quer uma verificação.

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critérios de credibilidade, de forma mais geral, quanto ao saber?

Benjamin (1975) reitera a substituição da nar-ração pela informação, o que se reflete no que denomina a progressiva atrofia da experiência, que, por sua vez, se afasta da narração, que ele consi-dera, como já foi dito, uma das mais antigas for-mas de comunicação. Para Benjamin, a narração "não visa, como a informação, comunicar o puro em si do acontecimento, mas o faz penetrar na vida do relator, para oferecê-lo aos ouvintes como experiência. Assim aí se exprime o sinal do narrador, como o da mão do oleiro no vaso de argila."(p. 37)

A experiência é ainda vista por Benjamin como um instrumento que reporta ao tempo passado, que o preenche e o articula. Como pode o ser humano viver sem um elo, um caminho de arti-culação entre os vários "tempos" de sua vida? Será

isso admissível para a vida humana, em

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s e u senti-do mais amplo?

Benjamin acrescenta, ademais, a liberdade de que goza o leitor ou ouvinte na narração quanto ao contexto psicológico, no qual ele pode interpretar

à

vontade a história escutada/lida, o que permite que o fato narrado alcance uma amplitude inexistente na informação. Isso porque, enquanto "metade da arte de narrar está em evitar explica-ções" (p. 203), a informação liga-se diretamente a fatos explicativos. Além disso, a informação neces-sita de ser nova para ter valor, o que contrasta fron-talmente com a narração, que guarda suas forças por muito tempo, podendo ainda se desenvolver. São palavras de Benjamin: "Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria con-cisão que as salva da análise psicológica." (p.. 204) Ou seja, a concisão leva

à

facilidade de me-morização, que por sua vez facilita a recontagem da narrativa.

Não é certamente

à

toa que a narrativa é um veículo privilegiado da tradição oral, do saber através dos tempos e da atribuição que Benja-min faz ao narrador de sintetizar o mestre, o sábio e o justo.

Benjamin associa, de forma brilhante, a arte da narrativa com o dom de ouvir e o lidar com o tem-po. Nesse sentido, resgata o tédio como sentimen-to promissor ao narrar, possentimen-to que permite aos ho-mens que se esqueçam mais de si e se liguem, se

entreguem, vivam mais o que é contado. Essa rede permite o desenvolvimento do dom narrativo.

Quero, além disso, aprofundar o sentido imen-samente humano que há no dom de ouvir, quer para a conservação do saber, no sentido da sabe-doria, quer como instrumento essencial para a efe-tivação, a transformação e a construção das rela-ções humanas. Ademais, o dom de ouvir, parece-me, trata-se de elemento essencial para o fazer das Ciências Humanas. Como dispor-se a compreen-der o tecido social, suas estruturas, s e u funciona-mento, enfim, sua cultura, sem que o ouvir este-ja, e muito, presente? Como interagir essencial-mente, sem que o dom de ouvir seja mutuamente cultivado pelos seres humanos envolvidos nos diá-logos, nas interações?

Vejo nestas observações ligação íntima com a classificação que Benjamin faz da narrativa como uma forma artesanal de comunicação. Ora, o arte-são constrói objetos um a um, deixando em cada um deles a sua marca, da mesma forma que o narra-dor imprime a sua marca a cada narrativa. O ou-vinte, como companhia essencial do narrador, tam-bém se marca com a narrativa e nela há de colocar igualmente a sua marca. Tudo isso é comunicação, é construção, é o sistema cultural em formação.

O artesão necessita, por certo, de dispor de mui-to mais tempo do que o operário que produz em série. Digamos que o artesão precisa perder tem-po, para usar uma expressão rotineira (na verda-de, parece muito mais um ganhar tempo), nesta época histórica em que o tempo, diz-se, é precio-so, no sentido de que tem que ser aproveitado, que não se pode perder um só segundo. Isso dife-re visceralmente do que diz Benjamin: " ...e hou-ve o tempo em que o tempo não contava." "Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrati-va." (p. 206) Isso se deu, segundo Benjamin, com a criação da "short story", ligada fundamental-mente

à

abreviação do tempo.

Relação artesanal é ainda abordada por Benja-min entre o narrador e a experiência, quando

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I

N

d

I

terroga: ... a re açao entre o narra or e sua mate-ria - a vida humana - não semate-ria ela própmate-ria uma relação artesanal? Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros - transformando-a num produto sólido, útil e único?" (p.221)

A comparação parece prenhe de significado,

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uma vez que o resultado dessa relação artesanal far-se-á único, como única é cada experiência, co-letiva ou individual, como única é a relação entre o narrador e o seu ouvinte. Artesanal é ainda a participação dos gestos, da mão do narrado r, aprendidos na experiência do trabalho, e que inter-vêm no que é por ele dito, sustentando o seu con-teúdo, e certamente enriquecendo a narrativa. E nós, estudiosos das Ciências do Homem e da So-ciedade, o que fazemos da riqueza de nossos ges-tos de nossas mãos?

Fica para reflexão a seguinte afirmativa de Ben-jamin: "A alma, o olho e a mão estão assim ins-critos no mesmo campo. lnteragindo, eles defi-nem uma prática." (p. 220)

FEDCBA

FORMUlANDO

AlGUMAS

OBSERVAÇÕES ADICIONAIS

Recordo-me, de pronto, ao iniciar esta etapa do trabalho, do que Geertz (1978) afirma, referin-do-se a que as obras não são acabadas, são abando-nadas. Quero "abandonar" esta reflexão, levan-tando alguns questionamentos a mais, que me vi-eram, quando de sua elaboração.

Primeiro, continua a me intrigar que a experiência seja considerada por diversos auto-res como em processo de extinção, bem como a sabedoria. Assim, pergunto, creio que para me incentivar a prosseguir nesta linha de reflexão, se o homem contemporâneo construiu, está construindo ou ainda virá a construir algo que possa resgatar a experiência como fenômeno central em nossas vidas.

Da mesma forma, considerando a importância demonstrada sobre a narrativa, como forma ge-nuína de comunicação, indago-me se haverá uma outra que substitua ou venha a substituí-Ia, nos tempos contemporâneos, o seu papel primordial no cotidiano das relações interpessoais, no senti-do de sua contribuição para a troca de experiên-cias, de saberes, enfim, como objeto diferenciado para a interação.

Em outro nível de questionamento, num âm-bito muito mais de curiosidade histórica, senti falta, entre os autores, da figura da mulher como narradora, posto que em pelo menos um aspecto ela parece ter um papel inegável: na narração de contos de fadas (apontada por Benjamin) e na nar-rativa de fábulas (referida por Ginzburg), quando

da transmissão dos saberes acumulados pelos caça-

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dores, que decorriam de operações mentais com-plexas resultantes de seu ofício de farejar, regis-trar, interpretar e classificar pistas "infinitesimais", saberes que eram transmitidos de geração a gera-ção, enriquecendo o patrimônio cognoscitivo da humanidade. Poderíamos levantar também a hipó-tese da participação da mulher, nos primórdios da narrativa?

Afinal, quem desconhece Sharazade (ar.) ou Schéhérazade (fr.)? Personagem de "As Mil e Uma Noites", consegue evitar, como prescrito, ser mor-ta pelo sultão, conmor-tando-lhe histórias fascinantes, uma a cada noite, até conseguir o perdão. Os tos narrados por Scharazade são, por vezes, con-tos dentro dos concon-tos, com personagens que apa-recem e reapaapa-recem. Trata-se, pois, de uma narra-dora, cuja história atravessou séculos e é até hoje amplamente conhecida.

Para continuar com uma narradora, agora uma nossa contemporânea, apresento algumas refle-xões sobre a obra de Cora Coralina e a articula-ção com o conteúdo expresso na primeira parte deste trabalho.

UMA NARRADORA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA

-CORA -CORALlNA

Ao começar a falar sobre Cora Coralina, evo-co de imediato lembranças de enevo-contro que com ela mantive, nos idos de 1982, em sua Casa da Ponte, na cidade de Goiás Velho. Cora Coralina, já

à

época com 91 anos de idade, mantinha-se se-nhora de toda a sua lucidez. Foi através de seu próprio depoimento, feito em uma tarde inteira de conversa informal em sua residência, que tra-vei conhecimento mais profundo sobre sua vida e sua obra, que até então me era restrito a infor-mações de imprensa e algumas passadas por um seu neto, jornalista residente em Brasília.

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Ponte, como ela denominava sua morada. Por si-nal, as suas portas eram tradicionalmente sempre abertas aos visitantes que quisessem adentrar.

A dedicatória do livro que adquiri na ocasião,

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P o e m a s d o s b e c o s d e G o i á s e e s t ó r i a s m a i s , ora trans-crita exatamente como o original por ela manus-crito, diz bem da sabedoria da mulher de 91 anos mais jovem que até hoje tive a oportunidade de conhecer:

A n g e l a P i n h e i r o

A v i d a é b o a e p o d e m o s f a z e l - a s e m p r e m e l h o r , e o m e l h o r d a v i d a é o t r a b a l h o . T r a b a l h a r n ã o c a n ç a o q u e t r a z s e n s a ç ã o d e c a n ç a s s o é a r o t i n a d o t r a b a l h o . A o c i o s i d a d e c a n ç a m a i s d o q u e o p r o p r i o t r a b a l h o e n ó s t o d o s , h o m e n s e m u l h e r e s , a p r e n d e m o s e e s t u d a -m o s p a r a t r a b a l h a r -m e l h o r . T r a b a l h a r é c o n s t r u i r e r e c o n s t r u i r e n u m u a i - u e r n d e f a z e r e r e f a z e r s e m -p r e , a h u m a n i d a d e c u m p r e o s e u d e s t i n o .

a ) C o r a C o r a l i n a C i d a d e d e G o i á s ,12-6-82. "

Mulher de pouca instrução, estudou apenas as primeiras letras, como ela dizia, com Mestra Sil-vina, a quem Cora dedica o seu livro V i n t é m d e c o b r e - m e i a s c o n f i s s õ e s d e A n i n h a . Cora Coralina foi considerada por Carlos Drummond de An-drade (1980) a pessoa mais importante de Goiás. Tem uma obra de publicação tardia: seu primeiro livro foi editado em 1965, quando Cora já conta-va 76 anos de idade, posto que Ana Lins de Gui-marães Peixoto Bretas (Cora Coralina) nasceu em 20 de agosto de 1889, na cidade de Goiás. Cora morou fora do Estado de Goiás por 45 anos, vol-tando a residir, a partir de 1964, na Casa Velha da Ponte, até o seu falecimento.

Guardo comigo uma lembrança ao mesmo tem-po muito real e muito mágica de Cora Coralina. Desde que a conheci, ficou-me uma imagem mui-to forte de uma mulher trabalhadora, artífice da poesia e um monumento vivo - mesmo depois de sua morte, em 1985, aos 95 anos de idade, uma mulher que soube fazer de sua memória uma fon-te fértil de ensinamentos e sabedorias, transpos-tos em seus livros.

São obras da autora, por ordem cronológica:

- P o e m a s d o s b e c o s d e G o i á s e e s t ó r i a s m a i s - M e u l i v r o d e c o r d e l

- V i n t é m d e c o b r e

- O s m e n i n o s v e r d e s

- E s t ó r i a s d a c a s a v l h a d a p o n t e

Falar mais sobre Cora Coralina? Por enquanto, prefiro fazê-lo através de sua própria obra, aqui representada pelo conteúdo de V i n t é m d e C o b r e ,

livro depositário de suas meias confissões. Esco-lhi-o por ser, dentre os escritos pela autora que me foram acessíveis (os três primeiros), o mais rico em narrativa e, portanto, mais aproximado do tema ora tratado.

Assim, a categoria da narração é central nas abordagens que se seguem sobre Cora Coralina, apresentando-a sob os seguintes ângulos:

a) o cotidiano na obra de Cora Coralina; b) Cora Coralina, a narradora, pela visão dos outros;

c) as categorias da narração na obra de Cora Coralina.

Tais ângulos são, por vezes, sobrepostos, o que nos fará, em certos momentos, ir e vir entre eles. Pouco importa. Quero, fundamentalmente, tra-zer

à

tona a força da narrativa que consegui iden-tificar e com ela me embeber na obra de Cora Coralina.

o

COTIDIANO NA OBRA DE CORA CORAlINA

Narração e cotidiano: relação Íntima, talvez até mesmo inseparável.

É

no cotidiano que as expe-riências ocorrem e se sedimentam, como é no co-tidiano que se insere a narração como instrumento de transformação das experiências privadas em ex-periências, como preconiza Hannah Arendt (1995). Como se publicizariam certos personagens, eventos, sentimentos, objetos, a não ser através de determinados caminhos, entre os quais se desta-cam a narração e as manifestações artísticas de for-ma geral? Como se dariam a conhecer heróis anô-nimos do dia a dia, a não ser também pela força desses instrumentos?

Foi através da narração que travei conhecimen-to, me aproximei, assim como certamente os tan-tos outros leitores/ouvintes de Cora Coralina, da importância que assumiu para ela, por exemplo, a figura de sua bisavó, a Fazenda Paraíso, os casti-gos a que eram submetidas as crianças de Goiás, frente a alguma falta cometida.

A leitura e a releitura de V i n t é m d e c o b r e dei-xam claro como Cora Coralina invoca o

cotidia-no, a todo instante, a todo verso seu.

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Há uma densidade peculiar de personagens. Ci-temos algumas: a vizinha do lado, gente antiga, tia Nhorita, Maria Grampinho, o pai, a mãe, ir-mãs, a madrinha, os filhos e netos, o irmão peque-no. Longe estamos de esgotar o elenco de persona-gens, que prosseguem: Siá Balbina, escravos, Va-queiro Fortunato, carreiro Anselmo, as enjoadas filhas da vizinha, seu Benicio Sossegado.

Além de personagens humanos, há um núme-ro imenso de objetos, fatos, sentimentos e animais advindos do cotidiano, habitando os seus versos: a galinha chamada Dona

Otília,

broinhas, brevi-dades, a metade da bolacha ganha da bisavó, a loja do seu Cicinato, boneca de loiça, o rio, a cidade de Goiás Velho, histórias infantis, um cami-nhãozinho de brinquedo, flores várias, a cartilha do ABC e a tabuada, a roça, o medo e a coragem, os gatos, provérbios e adágios, a janela, a gleba, o mundo do faz de conta, os sonhos e o imaginário, a Universidade e o professor, a colheita do milho, as lembranças.

Cora, ao longo do livro, se identifica com per-sonagens vários do cotidiano: boiadeiros, comis-sários, humildes, obscuros, lavadeiras, enxadeiros, machadeiros, menina enjeitada, cabocla velha, doceira, cozinheira, poeta, todos dentro de Cora, dentro e fora de seus versos, adentrando natu-ralmente o mundo de experiências de seus leito-res e ouvintes.

Há um poema, particularmente, intitulado

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O f e r t a d e A n i n h a ( A s l a v a d e i r a s ) , em que a nossa narradora descreve a vida dessas trabalhadoras, louvando-lhe o ofício e contando-o e decantan-do-o com uma transparência peculiar, no que poderíamos reconhecer uma ode ao cotidiano.

Tudo isso tem cheiro, gosto, som, imagens e es-pessuras várias do cotidiano, que parece construido e reconstruido a todo instante nas narrações de Cora. Carlos Drummond de Andrade (1980) diz que ela tem "o dom de aproximar e transfigurar as coisas." (p. 21)

Salta o cotidiano do seu livro e passa a nos ha-bitar, por tantos dos seus personagens, que povo-am, desde então, também o nosso cotidiano. E a listagem, diga-se, é tão-somente de alguns exem-plos, longe muito de esgotar o manancial de me-mórias de Cora Coralina.

Quanto a mim, embebi-me na leitura dos seus

casos cotidianos, na história e nas histórias do dia-

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3 2 Re v is to d e C iê n c ia s S o c ia is v .2 7 n .1 /2 1 9 9 6

a-dia. Sua narração permitiu-me recompor, cons-truir, reconstruir e desconstruir cenas do cotidia-no, quase sempre parecendo-me familiares alguns acontecimentos distantes e desconhecidos.

CORA CORAlINA - NARRADORA PELA VOZ

DOS

OUTROS

A

quarta edição de V i n t é m d e c o b r e traz uma série de textos sobre sua autora, e a obra de Cora de uma forma geral.

Como pode ser observado em suas partes ini-ciais, este trabalho foi elaborado seguindo uma abordagem da figura do narrador e, em seguida, da técnica da narrativa.

Assim, procuro detectar como Cora Coralina é vista e apresentada por esses escritos introdutórios de seu livro, no que concerne às características de uma narradora.

Tento, portanto, neste momento, refazer o tex-to sobre a figura do narrador, desconstruindo o inicial aqui apresentado anteriormente, e recons-truindo-o, a partir da visão que alguns autores têm de Cora Coralina, todos eles, esclareço, com pen-samentos expressos na parte introdutória da quar-ta edição, daquar-tada de 1987, de V i n t é m d e c o b r e .

Os editores apresentam Cora como um exem-plo do costume de os mais velhos contarem casos para as crianças, constituindo-se um elo de per-manência da tradição. Enquanto isso, Oswaldino Marques traz-nos a relação que se estabelece entre o narrador e o ouvinte, através da citação de um verso de Cora Coralina, que diz:

E m q u a l d o s g r u p o s s e j u l g a s i t u a d o v o c ê , l e i t o r a m i g o ?

Quanto à necessidade de aproximação do nar-rador com as camadas populares, Lena Costa quali-fica Cora como "quase um milagre de identiquali-fica- identifica-ção com a vida rural, sua gente, seus usos, seus valores"(p. 18). O Prof. Saturnino Ramon afirma que: "Cora sabe escolher as palavras que são as de seu povo. Sabe escolher seus temas que são os de sua terra e os de sua vida." (p. 31)

Ela é, além disso, raizes de todos nós (Lena Cos-ta) e um depósito de memórias, "surdinando mú-sica de sereias antigas e de dona Janaína moder-na" (Carlos Drummond de Andrade: 21).

Sua sabedoria é insistentemente decantada: "Ao longo dos anos... colheu sabedoria e com-preensão." Lena Costa (p. 19);

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"Cora é modelo de brasilidade, sábia caipira ... " Ramon, (p. 31)

"Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, poe-tisa de algumas gerações goianas, patrimônio de todas" Cassimiro (p. 37)

Também sua experiência é extremamente des-tacada, por Carlos Drummond, assim como por Marques, que postula: "Dificilmente há ocorri-do a transfusão tão completa de uma existência numa criação literária." (p.26) Para Ramon, Cora é detentora de "experiência que ensina e mostra caminhos andados para outras gerações." (p.30), colocando-a entre os mestres que também ensi-nam fora das suas salas de aula. Finalmente, Cas-simiro diz:

"Cora Coralina, doutora dos becos da vida, das classes da experiência cotidiana, aprendeu de tudo quanto vivenciou as experiências mais entranha-das no âmago da natureza." (p. 37)

Cora é apresentada como um ser geral (será esta uma característica do narrador?) por Drummond; e como uma mulher múltipla, no dizer de Marques. Essas afirmações fazem-me lembrar como Cora se identifica com diversos personagens, ao longo do seu livro, conforme já analisado anteriormente.

E a credibilidade da narradora, em que bases se sustenta? No entender de Marques, "Todos po-dem confiar na veracidade de seu testemunhar, do seu ajuizar sobre si mesma e sobre o mundo em que vive." (p. 30)

A observação essencial do artista, apontada por Valery

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A p u d B e n j a m i n (1985), também é reconhe-cida como característica de Cora, por Cassimiro:

"doutora feita pela vida, pelo estudo incessante de tudo quanto aconteceu em seu derredor. Verso prenhe de emoções e verdades colhidas no pro-cesso de fecundação direta entre a emoção da ar-tista e a mais profunda realidade das coisas, dos fatos e das pessoas." (p. 37)

FEDCBA

CORA CORAlINA - NARRADORA POR ELA MESMA

É

mais que hora de apresentar e sentir a narra-dora em Cora Coralina, expressa por si mesma, através de seus versos.

Perguntei-me ao iniciar nova leitura de seu li-vro V i n t é m d e C o b r e para a elaboração deste

tra-balho, se seria possível caracterizá-Ia como narra-dora, a partir das categorias estudadas dessa forma de comunicação, tendo como fonte de pesquisa os seus próprios poemas. O resultado desta pra-zeirosa tarefa é o que se segue.

DA RELAÇÃO NARRADORA COM O(A) OUVINTE/lEITOR(A)

De início, digo que me senti sua ouvinte, privi-legiada tal como uma outra, que ela destaca:

A o n d e a n d a a m e n i n a C é l i a , m i n h a n e t a , q u e g o s t a v a d e o u v i r c o n t a r e s t ó r i a s r e p e t i d a s e m r e p e t i ç ã o s e m f i m ?

Com a obra de Cora, estabeleci uma relação em que o seu conteúdo em mim ressoou, tal como ela prevê acontecer com seus leitores, nos versos segumtes:

D e u m a c o i s a e s t o u c e r t a , m u i t o s d i r ã o : e s t a s c o i s a s t a m b é m s e p a s s a r a m c o m i g o .

Sei bem que não estou só entre seus leitores, que Cora bem sabe serem tantos, como expressa na dedicatória de seu livro P o e m a s d o s b e c o s d e G o i á s e o u t r a s e s t ó r i a s .

A o l e i t o r

A l g u é m d e v e r e v e r , e s c r e v e r e a s s i n a r o s a u t o s d o P a s s a d o a n t e s q u e o T e m p o p a s s e t u d o a r a s o .

É o q u e p r o c u r o f a z e r , p a r a a g e r a ç ã o n o v a , s e m -p r e a t e n t a e e n l e v a d a n a s e s t ó r i a s , l e n d a s , t r a d i ç õ e s , s o c i o l o g i a e f o l c l o r e d e n o s s a t e r r a .

P a r a a g e n t e m o ç a , p o i s , e s c r e v i e s t e l i v r o d e v e -l h a s e s t ó r i a s . S e i q u e s e r e i -l i d a e e n t e n d i d a .

Em outra poesia, Cora se reconhece como con-tadora de histórias, além de doceira, é daro ...

F i z u m n o m e b o n i t o d e d o c e i r a , m i n h a g l ó r i a m a i o r .

F i z a m i g o s e f r e g u e s e s . E s c r e v i l i v r o s e c o n t e i e s t ó r i a s .

V e r d a d e s e m e n t i r a s . F o i o m e l h o r t e m p o d a m i n h a v i d a .

Além disso, Cora também relata sua condição de ouvinte:

R i c a r d a , a c o c o r a d a , a l i m e n t a v a o f o g o . F i c á v a m o s a l i e m a d o r a ç ã o n a q u e l e r i t u a l s a g r a d o ,

q u e v e m d e m i l ê n i o s , d e q u a n d o o p r i m e i r o f o g o s e a c e n d e u n a t e r r a .

C o n t a v a m - s e c a s o s . C o n v e r s a s i n f i n d á v e i s d e

o u t r o s t e m p o s e p e s s o a s m o r t a s .

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· DA MARCA DA NARRADORAvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Por certo, muitas são as marcas da narradora Cora

Coralina. Estudos mais aprofundados hão de dar-lhes visibilidade. Faço-o com urna marca, extrema-mente ligada ao tempo de antigaextrema-mente, ao passado, e às suas origens, à terra natal de Cora - a cidade de

Goiás, marca que se faz tão presente em sua obra:

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E s t a s c o i s a s d o s R e i n o s d a

c i d a d e d e G o i á s .

E r a a s s i m n o a n t i g a m e n t e , n a q u e l e s v e l h o s r e i n o s d e G o i á s .

U m d i a h o u v e . T e m p o v e l h o .

E r a a s s i m a n t i g a m e n t e . C o n t a v a m o s a n t i g o s .

E s t a s c o i s a s n o s r e i n o s d e G o i á s .

DA RELAÇÃO COM O TEMPO

Igualmente forte é a relação que Cora demons-tra com o tempo, que se manifesta ademons-través de al-guns caminhos:

a) a referência constante a figuras ancestrais: à bisavó, à gente antiga, às famílias do passado e sua figura, às mulheres do passado, aos antigos;

b) o s e u cuidado com a preservação da lingua-gem antiga:

P o d i a c r e s c e r e p e r d e r o b o r z e g u i m .

B o r z e g u i m ... q u e m f a l a o u e s c r e v e m a i s e s t a p a l a v r a ...

s a b e a m e n i n a d o p r e s e n t e o q u e s e j a c a l ç a r u m b o r z e g u i m ?

D e u o v e s t i d o p r o n t o e u m a b o n e c a d e

" lo iç a " ,n o d i z e r d e m i n h a b i s a v ó .

c) a relação com o tempo propriamente dito:

N e s s e t e m p o m e c r i e i .

D a í , e s t e l i v r o - V i n t é m d e c o b r e , n u m a l o n g a g e s t a ç ã o ,

i n c o n s c i e n t e o u n ã o ,

q u e v e m d a i n f â n c i a l o n g í n q u a à a n c i a n i d a d e p r e s e n t e .

E o t e m p o p a s s a n d o e o m o i n h o d o s a n o s m o e n d o ,

e a r o d a - d a - v i d a r o d a n d o ... V i r a - v i r á !

E u m e p r o c u r o n o p a s s a d o .

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3 4 Re v is to d e C iê n c ia s S o c ia is v .2 7 n .1 /2 1 9 9 6

A n i n h a , a s o b r e v i v e n t e , s u a e s c r i t a p e s a d a , a s s e n t a d a

n a s p e d r a s d a n o s s a c i d a d e ...

S e g u r o s e m p r e n a s m ã o s c a n s a d a s a v e l h a c a n d e i a

d e a z e i t e v e l e t u d i n á r i a e v i t a l í c i a d o p a s s a d o .

Cora não fica tão-somente no passado. Vejamos como ela também vai ao futuro, em visão pre-rnonitória:

T e m p o v i r á . U m a v a c i n a p r e v e n t i v a d e e r r o s e v i o l ê n c i a s e f a r á .

A s p r i s õ e s s e t r a n s f o r m a r ã o e m e s c o l a s e o f i c i n a s .

E o s h o m e n s , i m u n i z a d o s c o n t r a o c r i m e , c i d a d ã o s d e u m n o v o m u n d o ,

c o n t a r ã o à s c r i a n ç a s d o f u t u r o , e s t ó r i a s a b s u r d a s d e p r i s õ e s ,

c e l a s , a l t o s m u r o s , d e u m t e m p o s u p e r a d o .

E me pergunto (e creio que, muito mais ainda, desejo) que Cora tenha detectado indícios, sinais, pistas, e tudo o mais que nos faz lembrar o méto-do indiciário (Ginzburg, 1989) para que sua afir-mação divinatória possa se tornar realidade, coti-diano, dia a dia concreto ...

E

A SABEDORIA E A EXPERIÊNCIA

Cora exalta, em diversos momentos, os en-sinamentos por ela recebidos de seus antepas-sados, com especial destaque para a bisavó; de sua única professora - Mestra Silvina; de pes-soas do tempo antigo. Faz igualmente referên-cia a bases da experiênreferên-cia, como nos versos segumtes:

D i z i a m e u a v ô :

Q u a n d o a s c o i s a f i c a m r u i n s , é s i n a l d e q u e o b e m e s t á p e r t o .

O

r u i m e s t á s e m p r e a b r i n d o p a s s a g e m p a r a o b o m .

O e r r a d o t r a z m u i t a e x p e r i ê n c i a e o b o m t r a z à s v e z e s c o n f u s ã o ! N e m s e m p r e a s s i m n e m n u n c a p i o r .

Nossa narradora reconhecia na gente mais velha fonte legítima de sabedoria:

(12)

e a p r e n d e u .

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Da sabedoria popular, Cora parece também ex-trair bases para a sua própria sabedoria, além de, sem dúvida, contribuir para a preservação desse saber, ao dar-lhe visibilidade, ao torná-Ia pública, através de s e u s versos:

Q u i s e r a e u s e r d o n a , m a n d a n t e d a v e r d a d e i n t e i r a e n u a ,

q u e n u a , c o n s t a a s a b e d o r i a p o p u l a r , e s t á e l a n o f u n d o d e u m p o ç o p r o f u n d o ,

e s u a i r m ã m e n t i r a f o i a q u e f i c o u e m c i m a b e r a d i a n d o .

Cora parece ligar o saber ao passar do tempo, o que torna o jovem aspirante natural ao aprendiza-do e à superação da ignorância:

N ã o , s ã o c o i s a s p o r d e m a i s r e m o t a s q u e g e n t e m o ç a z g n o r a .

A autora parece outrossim que apresenta um vínculo particular entre a sabedoria e a morte, a primeira prevalecendo à segunda, como também o diz Benjamin. Além disso, podemos perceber que Cora tem consciência da arte como forma de preservação do saber, quando diz:

Q u a n d o e u m o r r e r , n ã o m o r r e r e i d e t u d o . E s t a r e i s e m p r e n a s p á g i n a s d e s t e l i v r o , c r i a ç ã o m a i s v i v a

d a m i n h a v i d a i n t e r i o r e m p a r t o s o l i t á r i o .

A sabedoria e a experiência dos antigos são com constância enaltecidas por Cora Coralina. Veja-mos alguns exemplos:

A q u e l a g e n t e a n t i g a e r a s á b i a e s a g a z , d o m i n a n t e .

C o m o s a b i a m c o m t a n t a s e g u r a n ç a e a u t o r i d a d e ?

C r e s c i c o m o s m e u s m e d o s e c o m oc h á d e n a r i z d e f e d e g o s o ,

p r e s c r i t o p e l o s a b e r d e m i n h a b i s a v ó .

A p a l a v r a d o s v e l h o s e r a o u v i d a c o m r e s p e i t o , e s t r i b a d a n o s c a l ç o s

d a e x p e r i ê n c i a e s e u s e s t í m u l o s s e f a z i a m c o n s i d e r á v e i s .

Também o saber bíblico é recorrido por Cora, como no trecho em seguida transcrito:

N a d a t ã o r e a l c o m o a a p ó s t r o f e d o g ê n e s i s : 'T u é s p ó e a o p ó r e t o m a r á s .

Destaco os versos seguintes como exemplares da importância da sabedoria e da experiência dos antigos para Cora Coralina, bem como o s e u la-mento por não serem preservados e utilizados como poderiam, ou deveriam:

C o l h e d o s v e l h o s p l a n t a d o r e s q u e s a b e m c o m j e i t o e e x p e r i ê n c i a

d e b u l h a r a s e s p i g a s d o p a s s a d o e d a r v i d a a o s c e r e a i s d a v i v ê n c i a .

Q u a n t a i n f o r m a ç ã o a n t i g a , q u a n t a s a b e d o r i a i n a p r o v e i t a d a ...

o

saber que vem de longe também ocupa espa-ço privilegiado na obra de Cora Coralina:

E s t a s c o i s a s l á l o n g e ,

n o s r e i n o s d a c i d a d e d e A n d r a d i n a .

L á l o n g e , n a d i v i s a d e t r ê s E s t a d o s , e m f e s t a s , p r e s e n t e s a s a u t o r i d a d e s ,

a g r a n d e B a r r a g e m ! t a i p u B i n a c i o n a l .

Aninha também diz de sua transformação, ocor-rida a partir de sua obra, ou seja, a marca que em si própria a sua criação imprimiu:

N ã o é o p o e t a q u e c r i a a p o e s i a . E s i m , a p o e s i a q u e c o n d i c i o n a o p o e t a .

P o e t a é a s e n s i b i l i d a d e a c i m a d o v u l g a r P o e t a é o o p e r á r i o , oa r t í f i c e d a p a l a v r a E c o m e l a c o m p õ e a o u r i v e s a r i a d e u m v e r s o .

Tudo isso traz à tona a relação artesanal, citada por Benjamin, claramente expressa por Cora, que também retoma o tema em:

M i n h a p e n a ( e s f e r o g r á f i c a ) éa e n x a d a q u e v a i c a v a n d o ,

é o a r a d o m i l e n á r i o q u e s u l c a .

M e u s v e r s o s t ê m r e l a n c e s d a e n x a d a , g u m e d e f o i c e e p e s o d e m a c h a d o .

C h e i r o d e c u r r a i s e g o s t o d a t e r r a .

São igualmente inúmeros os versos em que Cora Coralina deixa fluir a sua sabedoria, às ve-zes em forma de conselhos, coadunando a figura da narradora como capaz de os formular e concedê-los:

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(13)

A v i d a t e m a m e l h o r e x p r e s s ã o n o t r a b a l h o c o n s t a n t e .

T u d o o q u e s o m o s u s u á r i o s v e m d a t e r r a e v o l t a p a r a a t e r r a .

T e r r a , á g u a e a r .

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O t r i â n g u l o d a v i d a .

D i g o s e m p r e : j o v e n s a g r a d e ç a m a D e u s t o d o s o s d i a s

t e r e m n a s c i d o n e s t e s t e m p o s n o v o s ...

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Há também na poetisa uma consciência do seu saber, acumulado ao longo dos anos:

E u s o u a q u e l a m u l h e r a q u e m o t e m p o m u i t o e n s i n o u .

E n s i n o u a a m a r a v i d a . N ã o d e s i s t i r d a l u t a . R e c o m e ç a r n a d e r r o t a .

E Cora estimula o aprendizado, a sabedoria, o que me parece iniciativa própria de quem detém a sabedoria:

T u e n c o n t r a r á s s e m p r e n o t e u c a m i n h o a l g u é m p a r a a l i ç ã o q u e p r e c i s a s . A p r e n d e , m e s m o q u e n ã o q u e i r a s .

O saber da narradora faz chegar a ela pedidos de conselho, que ela registra:

A l g u n s v ê m a m i m .

Q u e r e m a p a l a v r a , O i n c e n t i v o , a a p r e c i a ç ã o . Q u e d i z e r a u m j o v e m a n s i o s o n a s e d e p r e c o c e d e l a n ç a r u m l i v r o ...

FEDCBA

E TAMBÉM CONSELHOS SÃO DADOS ...

...como podemos perceber nesses versos, onde é explícita a intenção da narradora:

O

g r a n d e l i v r o q u e s e m p r e m e v a l e u e q u e e u a c o n s e l h o a o s j o v e n s

u m d i c i o n á r i o . E l e é p a i , é t i o , é a v ô , é a m i g o e é u m m e s t r e .

Ou ainda, não tão explicitamente, mas com mensagem de conselho:

R e c r i a t u a v i d a , s e m p r e , s e m p r e

R e m o v e p e d r a s e p l a n t a r o s e i r a s e f a z d o c e s . R e c o m e ç a .

F a z d e t u a v i d a m e s q u i n h a U m p o e m a .

3 6 R e v is tod e C iê n c ia s S o c ia is v .2 7 n .l/2 1 9 9 6

E v i v e r á s n o c o r a ç ã o d o s j o v e n s

e n a m e m ó r i a d a s g e r a ç õ e s q u e h ã o d e v i r .

Alguns dos conselhos têm direção específica, como aquele que Cora endereça às mães:

C r i a t e u s f i l h o s ,

n ã o o s e n t r e g u e s

à

c r e c h e . C r e c h e é f r i a , i m p e s s o a l . N u n c a s e r á u m l a r p a r a t e u f i l h o .

E l e , p e q u e n i n o , p r e c i s a d e t i .

N ã o o d e s l i g u e s d e t u a f o r ç a m a t e r n a l .

E

O SENSO PRÁTICO DA NARRADORA SE EXPRESSA

Característica apontada por Benjamin, referen-te aos narradores natos, se evidencia nessas passa-gens de Cora Coralina:

O

f u m o e r a p r e p a r a d o p o r t i a N h á - B á , c o l h i d o n a s h o r t a s . D e s t a l a d a s ,

m u r c h a s a s f o l h a s , e r a m e n t r e g u e s

à

v e l h a m ã e q u e f a z i a a t o r ç ã o

d e f o r m a e s p e c i a l , q u e s ó e l a s a b i a f a z e r . E r a m p o s t a s p a r a c u r t i r n u m p e q u e n o v a r a l , n u m c a n t o r e m o t o d o o r a t ó r i o .

E l a g o v e r n a v a a q u i l o e d a q u e l a r e s e r v a s e f a z i a c o m m u i t a c i ê n c i a

e p a c h o r r a , o t o r r a d o d e m e u a v ô . T r a b a l h o e s s e e n t r e g u e a N i c o t a .

Até aos turistas de sua cidade de Goiás, Cora demonstra seu senso prático, mostrando-lhes um pouco o que fazer na sua terra natal:

A f i n a l q u e o t u r i s t a v e m e v a i .

N ã o a b r e m c a m i n h o a o t u r i s m o i n f o r m a t i v o e s o c i a l ,

V a l e m u i t o m a i s o a r t e s a n a t o c o m e r c i a l b e m a m p l o d o p á t i o i n t e r n o

d o C o n v e n t o d o m i n i c a n o .

V a l e t a m b é m o m e r c a d o e o m u s e u c o m e r c i a l d e J a i r F i g u e i r e d o

q u e n u n c a s e e s v a z i a e o n d a h á m u i t o o q u e v e r e c o m p r a r .

E l e é e n v o l v e n t e e ó t i m o c o m e r c i a n t e .

E HÁ MORAL DA HISTÓRIA?

(14)

C o n c l u s ã o :

N a p r á t i c a , a t e o r i a é o u t r a .

P r o c u r a s e m p r e a a l m a o c u l t a d o t e u c o m p u t a d o r .

E l e é u m a c r i a ç ã o m a r a v i l h o s a d a i n t e l i g ê n c i a h u m a n a .

U m a d i a t u a s e n s i b i l i d a d e a e n c o n t r a r á .

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Além da "moral da história", vejamos, por fim, um exemplo de que a pergunta "O que aconte-ceu depois" - própria da narrativa, no entender de Benjamin, também tem seu lugar na obra de Cora Coralina:

M i n h a f é é f r á g i l , om u n d o m e d o m i n a , s u s t e n t a i a m i n h a f é

S e n h o r ! A o n d e i r e i s e m V ó s ? ..

FEDCBA

MORAl...

DESTA HISTÓRIA

Não consigo me contrapor simplesmente às afir-mações de Walter Benjamin, quanto ao processo de extinção da narrativa, ou até mesmo quanto

à

sua morte.

Consigo, contudo, sentir e afirmar que encon-trei e encontro (e creio que continuarei a encon-trar), na obra de Cora Coralina, um exemplo vivo de que a narração tem permanecido no mundo contemporâneo. De forma insuficiente? Por cer-to. Como forma de saber, não tenho dúvida.

Da mesma forma, também não tenho dúvida de que essa forma de comunicação - a narrativa, tão antiga quanto fecunda, representa uma fonte translúcida, densa e profunda, essencial para as nossas buscas de compreensão do humano, de suas interações, de sua história, do seu mundo comum, do cotidiano.

Fico, agora, com um pensamento, mesclado de

sentimentos, de que os narradores são patrimônios especiais da sabedoria e da experiência humanas.

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Referências

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