• Nenhum resultado encontrado

Carla Manuela da Silva Vieira

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Carla Manuela da Silva Vieira"

Copied!
185
0
0

Texto

(1)

PUC-SP

CARLA MANUELA DA SILVA VIEIRA

SOCIABILIDADE E MODERNIDADE NOS ESPAÇOS DE LAZER DA CAPITAL CEARENSE DO INÍCIO DO SÉCULO XX (1901 a 1910)

MESTRADO EM HISTÓRIA

(2)

SOCIABILIDADE E MODERNIDADE NOS ESPAÇOS DE LAZER DA CAPITAL CEARENSE DO INÍCIO DO SÉCULO XX (1901 a 1910)

MESTRADO EM HISTÓRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Estefania Knotz Canguçu Fraga.

(3)

Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

(4)
(5)

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo financiamento desta pesquisa.

A todas as minhas professoras do curso de Mestrado em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em especial às professoras Yvone Dias Avelino e Carla Reis Longhi, por suas contribuições em ocasião da qualificação deste trabalho, e a meus colegas de curso e pesquisa, que dividiram comigo suas dúvidas e descobertas ao longo das aulas e da pesquisa, especialmente Cristina Toledo, Fátima C. Leister, Victor Martins, Cristiano e também a Rose Silveira, por suas importantes observações na leitura de meu trabalho durante a disciplina de Pesquisa Histórica.

Tenho um agradecimento mais que especial pela professora Estefania Knotz, não apenas por sua orientação, que me ajudou a transformar uma torrente de leituras, fontes e inquietações neste trabalho, mas, sobretudo, por sua calma, paciência, atenção e seu incentivo, sem os quais eu nunca poderia ter seguido adiante com o curso e a pesquisa.

(6)

Aquela cidadezinha que até os dias de 1850 só sabia brincar de cirandas e pastorinhas e mal saía da timidez das festinhas e das noites de São João, [...] aquela cidade miniatura das praças de areia e arruados na quase totalidade térreos, saía agora para os passeios da praia enluarada, já podia frequentar os circos ou teatros públicos e dançar em bailes mais luxuosos, em casas de bom gosto trazido da Europa.

(7)

As práticas de sociabilidade e cultura de uma sociedade apresentam-se sempre como um rico campo para compreenderem-se as relações sociais entre os indivíduos que a constituem. Neste estudo, buscou-se investigar como tais formas e práticas relacionavam-se com a ideia e o desejo por Modernidade da cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, no início do século XX (1901 a 1910), em torno dos usos e imagens que se faziam dos espaços de lazer da cidade. Essa Modernidade materializava-se então na remodelação e reordenação dos espaços públicos da capital, mas também se traduzia pela busca de modos de conduta e pensamento elitistas de sociedades europeias, sobremaneira a francesa, paradigma maior para o restante do mundo que se pretendia civilizado e moderno. Nesse processo, os espaços de sociabilidade e lazer aparecem como locus privilegiado para o desenvolvimento desses modos e a crônica jornalística do período, que registrava aspectos das mais diversas ordens, incluindo aqueles referentes às sociabilidades mundanas, mostra-se como fonte à pesquisa de tais questões. É essa mesma crônica que permite a avaliação dos usos e imagens que se faziam dos espaços de lazer de que dispunha a cidade, importantes ícones de modernidade e civilidade para as elites citadinas fortalezenses, mas, também, significativas vitrines que expunham os profundos contrastes entre o projeto desses grupos e a realidade das classes populares, identificadas sempre com o passado colonial do país que se desejava superar.

(8)

The practices of sociability and culture of a society is a rich field to understand the social relations between the individuals who constitute it. In this study, we get to investigate how these forms and practices were related to the idea and the desire for modernity of the city of Fortaleza, capital of Ceará in the early twentieth century (1901-1910), around the uses and pictures which were made of the leisure facilities of the city. This modernity was materialized in the remodeling and reorganization of the capital's public spaces, but also translated too by the search for modes of conduct and thought of elitist societies, European especially French major paradigm for the rest of the civilized world that it was intended and modern. In this process, the spaces of sociability and leisure appear as a privileged locus for the development of these modes and journalistic chronicle of the period, which recorded aspects of several orders, including those related to mundane sociability, shows up as research source on such matters It is this same chronicle that allows the evaluation of the uses and images that were of leisure facilities available to the city, important icons of modernity and civility to the elites of Fortaleza city dwellers, but also significant windows that exposed the deep contrasts between design of these groups and the reality of the popular classes, always identified with the colonial past and backward country that wanted to overcome.

(9)

Ilustração 1: Detalhe destacando as praças que marcam a área de maior movimento de sociabilidade e lazer da capital cearense no início do século XX. Adaptado a partir da Planta da Cidade da Fortaleza, Capital da Província do Ceará Levantada por Adolpho Herbster. Ilustração 2: Praça Marquês do Herval. Fonte: Acervo do Museu da Imagem e do Som do Ceará (MIS).

Ilustração 3: Vênus com Cupido. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 4: Prédio da Phenix Caixeiral. Fonte: CÂMARA, João. Almanach Estatístico, Administrativo, Mercantil, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o Anno de 1906. Anno 12.º Fortaleza: Typ. Economica, 1906.

Ilustração 5: Jardim Nogueira Accioly (Praça Marquês do Herval). Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 6: Jardim 7 de Setembro (Praça do Ferreira). Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 7: Avenida Caio Prado. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 8: Avenida Mororó (Passeio Público). Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 9: Procissão de Passos pela Rua Formosa. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 10: Rua Formosa. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 11: Entrada do palacete da Phenix Caixeiral. Fonte: CÂMARA, 1906, op. cit. Ilustração 12: Bondes de tração animal em um foto de 1906. Fonte: Acervo MIS.

Ilustração 13: Casas comerciais situadas na Praça do Ferreira em uma foto de 1904. Fonte: Acervo MIS.

Ilustração 14: Café do Commercio. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908. Ilustrações 15: Café Java. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

Ilustração 16: Café Elegante. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908. Ilustração 17: Café Iracema. Fonte: Álbum de Vistas do Estado do Ceará, 1908.

(10)

Ilustração 19: Anúncio do Cynematographo Parisiense. Fonte: Jornal do Ceará, Fortaleza, ano IV, n. 537, 10 de maio de 1907.

Ilustração 20: Anúncio da Companhia Dramatica Germano Alves. Jornal do Ceará, Fortaleza, ano III, n. 557, 05 de junho de 1907.

(11)

INTRODUÇÃO: UM MAPA PARA AS SOCIABILIDADES MUNDANAS... 11

1 A MONTAGEM DO CENÁRIO: FORTALEZA NO INÍCIO DO SÉCULO XX... 29

2 FESTAS E LAZERES AO AR LIVRE... 58

3 O PÚBLICO E O PRIVADO NA DIMENSÃO NOTURNA DA CIDADE: SALÕES, BAILES E CLUBES... 86

4 ENTRE CAFÉS, BOTEQUINS, ESPETÁCULOS DE VISTAS, CINEMAS E BRINQUEDOS POPULARES... 110

5 OS TEATROS DA CIDADE: SEUS USOS, IMAGENS E SIGNIFICADOS... 134

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 163

LISTA DE FONTES... 170

BIBLIOGRAFIA... 173

(12)

Um personagem. Imagine-se um personagem. Vários, em verdade. Sobre um palco, frente a um cenário, maquiagem às faces, figurinos arranjados. Esse é o lugar-comum de uma cena de teatro. Mas os personagens aqui evocados não têm a dimensão exata do palco onde atuam, pois esse pode ser tudo à volta; todo o mundo, ou o mundo que alcançam: a cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará. Eles conhecem mais mundo que isso, mas apenas conhecem, não chegam, não todos, a tocá-lo. Conhece-se, de longe, a Inglaterra, a França e outros países europeus; também o Rio de Janeiro, algumas poucas capitais pelo Norte1; e ouvem falar de cidades norte-americanas e das exóticas civilizações orientais.

Isso porque esses personagens nasceram nas décadas finais do século XIX e vivem no “seculo da electricidade”2, aquele que lhes possibilitaria correr páreos “no espaço com as aguias, e sob as ondas com os cetaceos”3: o século XX; um futuro cada vez mais presente cuja imagem condensava os ideais do que então era visto como a relação indissociável entre os conceitos de civilização e progresso, “ces deux mots magiques, fascinateurs, amènent á l’esprit tout un cortège de choses bonnes et profitables à l’humanité, ces deux mots presque divins”4, conceitos que miravam uma direção específica, o enredo de que esses personagens desejavam cada vez mais participar: a Modernidade.

Essa modernidade, a que se faz referência aqui, alude ao modelo de desenvolvimento concebido na virada do século XIX, baseado nos padrões tecnológicos e culturais importados de nações modernas, sobretudo as europeias. O “século das luzes” trouxe consigo uma série de inovações tecnológicas e transformações de percepção para as sociedades, o que gerou novas organizações, entre outras, sociais e culturais. Não apenas os centros desenvolvidos europeus “sofreram” a ação dessa Modernidade, mas também os periféricos (países não desenvolvidos, como o Brasil), que estavam ligados às influências daqueles.

Com o enredo de suas peças em mãos, dissolvido nas publicações diárias, hebdomadárias ou mensais que lhes traziam para perto o restante do mundo de que tinham

1 Pertencentes aos territórios que se conhecem hoje por Norte e Nordeste.

2 A referência aparece, entre outros, em SECULO XX. A Republica, Fortaleza, ano IX, n. 292, 21 de dezembro

de 1900. Em todas as citações neste estudo, foi mantida a grafia original das fontes e referências.

3 BRIGIDO, João. Século XX. A Republica, Fortaleza, ano IX, n. 01, 1º de janeiro de 1901.

4 Essas duas palavras mágicas, fascinantes, trazendo à mente uma série de coisas boas e proveitosas para a

(13)

notícia, liam os atores (sim, porque um personagem, no teatro, é interpretado por um ator) em jornais, revistas e livros que

a Humanidade [parecia] reunir todos os elementos de progresso, que se [achavam] dispersos, apparelhando-se para novas e estupendas victorias, pois o seculo XX, elle só, unicamente, [havia] de sobrepujar toda a Historia, pelo arrojo e brilho de excepcionaes e grandiosas conquistas.5

É esse então o contexto que marcou o início do recorte desta pesquisa: o ano de 1900, último ano do “século das luzes”, que dava passagem à “possibilidade de um otimismo sem limites em função das conquistas da ciência e da técnica”,6 ao novo século. Ainda que herdeiros de processos os quais se vinham desenhando desde meados dos oitocentos, os novecentos eram acreditados como o século que viria a corroborar os espíritos que premiam pela modernização de sua cidade e civilização de sua sociedade.

Nessa corrida para a civilização e o progresso, acreditando que, em grande parte, bastava-lhes imprimir uma maior velocidade a suas transformações econômicas e tecnológicas, os referidos atores, transfigurados em agentes remodeladores, puseram em prática uma série de medidas de saneamento urbano e social, visando a modificar espaço, costumes e práticas dos diversos grupos citadinos que constituíam a sociedade fortalezense à época. Território de civilização e modernidade burguesas, a cidade encarnava para eles os valores do progresso e da cultura, um palco perfeito para que se representassem as cenas da modernidade desejada pelas elites locais.

Como em uma grande ópera (ou mesmo uma opereta, mais ao gosto do público cearense no período em questão), na cidade de Fortaleza, revezavam-se inúmeros cenários, todos eles necessários à trama. A intensa urbanização e o saneamento de costumes, entre outros, intensificaram as diversões públicas e o lazer na cidade. Nessa medida, a inserção espacial contribuía fundamentalmente para a estruturação das socialidades, ao passo que a diversidade de espaços evidenciava as várias situações vividas em sociedade: praças, cafés, teatros, cinemas, clubes e associações de divertimento multiplicavam-se, promovendo encontros, festas, bailes, espetáculos e quaisquer outras atividades onde se pudesse – além de divertir-se à maneira correta, de acordo com os paradigmas de civilidade e bom gosto – ver e

ser visto, em uma multiplicidade de formas.

5 UCHÔA, Raul. No peristylo. A Fortaleza, Fortaleza, ano I, n. 4, 17 de janeiro de 1907.

6 NEVES, Margarida de Souza. Os Cenários da República: o Brasil na virada do século XIX para o XX. In:

(14)

Tais formas traduziam-se na “trama existencial” da sociedade, sobretudo, nas sociações7 e nos desdobramentos que as constituíam: as socialidades e sociabilidades. A ideia de socialidade é aqui entendida como conjunto de conceitos inerentes aos produtos de relações, situações, encontros e vivências, desde o “cotidiano mais banal”, aos “grandes acontecimentos pontuais ou comemorativos”, perpassando, dessa forma, toda a existência em sociedade.8

Posto que a ideia englobe boa parte das relações avaliadas neste estudo, fez-se necessária uma ênfase a um conjunto de relações (inseridas no entendimento das

socialidades,) as quais identifico com o termo sociabilidade, compreendido enquanto apanhado de práticas sociais cujos conteúdos relacionam-se muito mais ao prazer do contato com o outro, ao gozo do estar junto, do que com a resolução dos problemas da vida prática9; relações inerentes a hábitos, usos e imagens que os sujeitos sociais de Fortaleza do início dos novecentos realizavam em torno de seus espaços de lazer.

Dos referidos espaços, destacam-se aqui, de forma inextricável, seus aspectos materiais e imateriais. Na coletividade, estes se confundiam, uma vez que os indivíduos atribuíam inúmeros concretos e simbólicos significados aos espaços que praticavam. Nesse sentido, os espaços em questão não foram reduzidos a locais de abrigo a manifestações de lazer10, mas, sobremaneira, procurou-se pelas manifestações sociais que englobavam diferentes grupos e revelavam elementos imprescindíveis à compreensão da sociedade da capital cearense do début de siècle e das inúmeras transformações por que essa passava.

É esse então o objeto aqui em questão. Não o palco em si, mas as relações que assim o constituíam. Buscou-se, dessa forma, analisar as formas e práticas de sociabilidade da sociedade de Fortaleza em seus espaços de lazer durante os primeiros anos do século XX. A cidade não foi entendida apenas como “locus privilegiado” da ação de atores sociais, mas, principalmente, “como um problema e um objeto de reflexão”, partindo das “representações

7 Termo utilizado pelo sociólogo Georg Simmel para referência às formas ou aos modos pelos quais os sujeitos

sociais se relacionam, interagem entre si (SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006).

8 MAFFESOLI, Michel. A Conquista do Presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. 9 SIMMEL, 2006, op. cit.

10 Por lazer, entende-se o conteúdo do tempo orientado a um “conjunto mais ou menos estruturado de atividades

(15)

sociais” que ela produzia e que se concretizavam em suas práticas sociais,11 que transformavam espaços de lazer em cenários imprescindíveis para mostrarem-se os traços de modernidade da capital cearense, a modernidade turbulenta, e sobretudo incerta, do período.

No recorte em questão, espaços e práticas de sociabilidade e lazer fortalezenses passavam a ser cada vez mais marcados por aspectos modernos que se configuravam em um espetacular atrativo ao desfrute dos mesmos, processo que se manifestava em vozes de grupos dominantes na cidade (“burguesia” comercial, políticos, intelectuais etc.), elites que mobilizavam seus esforços para experimentar essa turbulência da modernidade da Primeira República brasileira e tinham por modelos as sociedades do Velho Mundo (seus padrões, hábitos, modos de agir e sentir).

Essas elites, que atribuíam a si o papel de protagonistas do enredo, apropriavam-se da cidade, fosse de sua administração ou dos meios de formação de opinião, por intermédio dos principais periódicos da cidade. Nesses, propagavam-se discursos que visavam a reordenar o perfil da cidade em seus mais diversos aspectos. Para os “personagens principais”, urgia não apenas a remodelação do espaço, mas a reeducação dos sujeitos que os frequentava, para que correspondessem aos padrões que se acreditavam necessários a que Fortaleza figurasse como uma capital moderna material e culturalmente.

No entanto, ainda que os registros dos quais hoje se dispõe tenham, ao longo de sua constituição, privilegiado as “melhores famílias da capital”12, os sons das classes populares – a quem se atribuía os papéis de coadjuvantes – também, ainda que em meio a críticas de seus costumes e suas práticas, excluídas que foram dos meios de criação e difusão de cultura, fizeram-se sentir, permitindo-se sua ausculta e a problematização dos embates entre os mais diversos grupos sociais fortalezenses no período.

A configuração do cenário jornalístico à época rendeu interessantes e importantes informações sobre as inúmeras faces da “opinião pública” acerca das questões relativas à cidade em suas relações entre espaço e sociedade. Sob dois diversos e opostos pontos de vista, os periódicos de maior circulação em Fortaleza eram A Republica (para este estudo, analisados, em decorrência da disponibilidade, os anos de 1900, 1901, 1902, 1906, 1907, 1908 e 1910), Jornal do Ceará (1904, 1905, 1907 e 1908) e Unitario (1903, 1904, 1905, 1908, 1909 e 1910); somados a pequenas publicações de menor circulação, como a revista

Fortaleza (1906 e 1907), os jornais O Chapéu Elegante (1900), O Vapor (1900), O Garoto

11 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades Visíveis, Cidades Sensíveis, Cidades Imaginárias. Revista Brasileira

de História, São Paulo, v. 27, n. 53, julho de 2007, p. 13.

(16)

(1907 e 1908) e O Bandeirante (1910), que tinham por motivo a literatura, publicidade ou o humor, a exceção deste último, que se autoclassificava “Literário, Moral e Noticioso”.

Devido ao fato de os referidos jornais nem sempre possuírem uma secção específica para a publicação de informações a respeito dos lazeres e diversões da cidade de Fortaleza à época e, quando da existência, nem sempre concentrarem todas as informações relativas aos temas nas referidas secções, todos os jornais, em todos os seus números disponíveis, foram lidos da primeira à última página, dos quais foram destacados artigos, notas, notícias, crônicas, reclames e toda sorte de informações que se remetessem às atividades de cultura e lazer da capital cearense e suas demais sociabilidades mundanas.

Os registros foram realizados através de fotografias digitais. De cada número dos jornais lidos, reuniram-se os recortes (notas, notícias, reclames etc.) em conjuntos, inicialmente organizados por jornal e data (a exemplo: 01 - A República, 02.04.1900, ano VIII, n. 75). O primeiro número (01) corresponde à sequência de dias em que se publicaram notícias relevantes à pesquisa, sendo então o dia 02 de abril de 1900 o primeiro dia, no período pesquisado, em que apareceram informações relevantes a esta pesquisa. A numeração foi procedida de forma progressiva, de modo que, quando se chegou ao dia 30 de dezembro de 1902, a exemplo, já haviam sido numerados 987 conjuntos de recortes somente do jornal A Republica. Cada novo jornal lido iniciou uma nova sequência, gerando um número superior a 3000 conjuntos.

Cada um desses conjuntos (840 - A República, 18.07.1902, ano XI, n. 157; 409 - Jornal do Ceará, 31.12.1907, ano IV, n. 714; 136 – Unitario, 23.12.1905, ano III, n. 352), reunia mais de uma nota, notícia, crônica ou um artigo de assuntos diferentes. Devido ao grande número de conjuntos, cada um deles foi novamente consultado e dividido por temáticas; os arquivos de imagem foram recortados, gerando outros arquivos de conteúdos diferentes entre si, mas que mantinham o mesmo nome (jornal e data), pois, mesmo que diferentes no conteúdo, haviam sido publicados em uma mesma edição de jornal.

As temáticas encontradas somaram um total de 58 e foram reunidas em pastas e subpastas digitais, como a pasta “Clubs e Associações de Divertimento”. Dentro desta, foram criadas as subpastas “Club Cearense”, “Club Democratas”, “Club Iracema” e “Outros”. No interior de cada uma delas, outras subpastas com títulos como “Assembleias e Reuniões”, “Concertos”, “Partidas Dançantes” e “Outros”.

(17)

pesquisa, permitindo também a comparação da quantidade de informações publicadas mês a mês, ano a ano, jornal a jornal. Também foi possível a verificação de informações como: em quais jornais cada clube, teatro ou cinema publicava seus chamados e reclames; em que anos mais se oportunizaram atrações de lazer na cidade; ou quais espaços ou atrações receberam mais atenção por parte da imprensa.

Tendo em vista que a cidade tem sido, ao longo do tempo, “objeto da produção de imagens e discursos que se colocam no lugar da materialidade e do social e os representam”, sendo “um fenômeno que se revela pela percepção de emoções e sentimentos dados pelo viver urbano e também pela expressão de utopias, de esperanças, de desejos e medos, individuais e coletivos, que esse habitar em proximidade propicia”13, enquanto documentos, todas as referidas publicações não escaparam às críticas devidas, tendo-se em conta que, para a análise de um discurso, “o sentido de um enunciado não está dado a priori, mas será produzido dentro de determinadas condições de produção”.14

Nessas, deve-se considerar “não apenas o contexto mais imediato, ou seja, a situação de interlocução, mas também as condições históricas, o que significa dizer posições ideológicas com as quais o sujeito enunciador se identifica, bem como a relação entre os outros discursos”.15 Essas posições ideológicas foram de valor imprescindível às avaliações realizadas por esta pesquisa, uma vez que “pensar as linguagens como ‘atividade’ significa buscar desvendar os processos e práticas sociais que articulam sua constituição/instituição em um momento histórico determinado”.16 No caso em questão, posições as quais nasceram da disputa política no país e, na condição mais imediata, no Ceará da Primeira República.

Não obstante a mudança do regime político brasileiro (1889), muitas das elites agrárias remanescentes do Império, consoantes aos grupos urbanos17, permaneceram no poder político e foram participantes ativas na implantação dos novos modelos e padrões sociais burgueses. No estado do Ceará, as lideranças políticas permaneceram a cargo da oligarquia do Comendador Antonio Pinto Nogueira Accioly, que mantinha relações com a direção política estadual desde antes da instauração da República.

13 PESAVENTO, 2007, op. cit., p. 14.

14 MITTMAN, Solange. Nem lá, nem cá: o percurso de um enunciado. In: FREDA INDURSKY, Maria C. L.

Ferreira (Org.). Os Múltiplos Territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzato, 1999, p. 01.

15Idem.

16 CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em Papel e Tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo:

EDUSC/ FAPESP/ Arquivo Público do Estado de São Paulo/ Imprensa Oficial, 2000, p. 23.

17 “As novas classes médias urbanas que se construíam no decorrer do Segundo Reinado nos principais núcleos

(18)

Accioly fora presidente da Província do Ceará em 1878, Deputado na Câmara dos Deputados Gerais e eleito Senador do Império em 1889, não chegando a exercer o cargo. Dado o fato de que, quando o novo Regime proclamou-se, não existia no estado um movimento republicano propriamente, revelou-se uma incrível capacidade adaptativa para manterem-se as posições e os privilégios políticos dentro da nova situação pelos políticos locais, o que lhes permitiu a permanência no poder. Dessa forma, o Comendador assumiu o cargo de Senador da República em 1892, passando a exercer influência hegemônica na política cearense. Assumiu a Presidência do Estado em 1896,18 permanecendo no cargo até 1900, quando cedeu lugar a Pedro Borges (1900-1904) até retomá-lo em 1908.19

A oposição mais ferrenha a Accioly, em torno das figuras de João Brígido, Valdomiro Cavalcante e Agapito dos Santos (donos e redatores dos jornais de oposição), agravou-se a partir dos incidentes ocasionados pelo confronto entre policiais e operários do Porto de Fortaleza em greve, em 1904, com saldo de sete mortos, todos populares.20 A partir desse acirramento, quaisquer medidas tomadas pela Presidência do Estado eram passíveis de fortes críticas21, observando-se, a partir do debate político registrado nas folhas de maior circulação no período e, também, de maior representatividade dos grupos de situação e oposição política no Ceará, dados de efetiva importância para a compreensão das questões aqui propostas, pois que eram importantes formadores e difusores de opinião à época.

Os jornais conferem uma estrutura intelectual por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as submetem, as fidelidades que arrebatam e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo que um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, [...] são um lugar precioso para a análise do movimento das ideias.22

18 ANDRADE, João Mendes de. A Oligarquia Acciolina e a Política dos Governadores. In: SOUZA, Simone de

(Coord.) História do Ceará (Vários Autores). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará/ Fundação Demócrito Rocha/ Stylus Comunicações, 1989.

19 Sua oligarquia era composta por familiares (que ocupavam os mais altos cargos da administração pública e

postos no legislativo estadual e federal) e correligionários, utilizando-se de inúmeros arbítrios para manterem-se no poder, como a concentração e hierarquia do poder, o nepotismo, a fraudulência etc.

20Ibid., p. 216.

21 Não que a administração do Dr. Pedro Augusto Borges (1900-1904) não houvesse sofrido críticas –

principalmente pelo fato de o mesmo, logo no início de seu mandato de Presidente do Estado, tendo descoberto irregularidades na administração anterior, a do então Senador Nogueira Accioly, ter negociado, com o mesmo, apoio para um futuro Senado, o que, na prática, colocou Accioly novamente no comando do Estado através do Presidente Borges –, mas essas se acirraram a partir do referido ano (Ibid., p. 213).

22 GRAZZIOTIN, Francine. Imprensa: considerações para seu uso como fonte histórica. SEMINA – Cadernos

(19)

Durante o século XIX, e mesmo nas primeiras décadas do XX, “as limitações da indústria editorial no País convertiam os jornais na possibilidade quase única de expressão do pensamento e de criação literária”.23 O condicionamento das atividades da imprensa no Ceará às atividades político-partidárias era bastante evidente, tendo chegado a afirmar o pesquisador Geraldo da Silva Nobre que, mesmo na primeira década dos novecentos, a notícia continuou a ser “um complemento do debate político”, que se processava “tanto na Assembléia como nas folhas”24, tendo sido as mesmas, conforme João Brígido, editor e proprietário do Unitario, o meio mais seguro de descarregarem-se as paixões dos diversos grupos, “evitando as lutas à mão armada”.25

As folhas (termo comum para designar os jornais da época) registraram também a série de transformações de ritmo de vida e percepção de homens e mulheres que habitavam os grandes centros urbanos do país; em momento de tamanha efervescência, em que as novas tecnologias trazidas pelo século XIX (entre outras, a fotografia, o cabo submarino, fonógrafo, gramofone e cinematógrafo) invadem a cena urbana, esses aparelhos influenciam a população das cidades e os periódicos que circulam nas mesmas.

Percebe-se hoje que “a entrada em cena desses modernos aparelhos tecnológicos [produziu uma] alteração significativa no comportamento e na percepção dos que [passaram] a conviver quotidianamente com eles”.26 Alteraram-se as distâncias e o restante do mundo colocou-se ao alcance do leitor. Nos jornais fortalezenses, geralmente na primeira página, publicavam-se diariamente notícias do estrangeiro a partir de informações chegadas pelo telégrafo e o cabo submarino, como no caso da Guerra dos Boers, noticiada quase que diariamente pelo jornal A Republica durante o ano de 1902.27

Nas publicações diárias, o passado, fortemente marcado pelas socialidades provincianas, era obliterado; tinha-se “olhos apenas para um futuro inaugurado com a

23 NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à História do Jornalismo Cearense. Edição fac-similar. Fortaleza:

NUDOC/ Secretaria da Cultura do Estado do Ceará – Arquivo Público do Ceará, 2006, p. 09.

24Ibid., p. 128.

25 O comentário de João Brígido é comentado por Geraldo da Silva Nobre (Ibid., p. 17). Ainda segundo o

pesquisador, o caráter noticioso dos jornais cearenses só seria inaugurado a partir da publicação do Correio do Ceará em 1915.

26 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa no Brasil 1900 – 2000.Rio de Janeiro: Mauad X, 2007,

p. 21-22.

27 Também os próprios jornais passaram a implantar artefatos tecnológicos que mudaram significativamente o

(20)

inclusão do país num novo tempo: a República. [Apagava-se] quotidianamente o passado filiado obrigatoriamente à origem colonial”, a um momento histórico que se queria esquecido.28 Não era despretensioso, ou puramente político, portanto, o fato de o jornal de maior circulação no estado do Ceará na virada do século XIX ter por nome A Republica.

Tendo sobrevivido a um grande número de jornais publicados em Fortaleza na transição do século XIX para o XX, chegando, em mais de uma ocasião, a ser o único diário a circular pela capital cearense29, a folha perdurou do ano de 1892 a 1912, coincidindo em grande parte com o período de domínio da oligarquia do Comendador Nogueira Accioly. Era

A Republica, órgão oficial de seu governo, quem mais se congratulava com os melhoramentos realizados pela Presidência do Estado, as modernizações da cidade e notas de civilização da sociedade fortalezense, classificando-os, via de regra, como “palpitantes signaes de progresso” de seus “foros de povo civilizado”.30

Com o início do novo século, os jornais do período adotaram, sobremaneira, uma postura de campanha contra a imagem social arcaica e fortemente “manchada” pelo passado colonial brasileiro, na construção de uma nova imagem: burguesa, moderna e civilizada. Notadamente, esse impulso era próprio às elites citadinas, a toda maneira proclamando o novo

status que se pretendia para a cidade, o que se leva a crer que tamanho entusiasmo com os novos aparelhos de que vinha sendo dotada a capital cearense por parte de A Republica não tenha ocorrido por apenas questões de respaldo às ações da Presidência.

Ao jornal do Governo – ao próprio Governo, em verdade – opunham-se os jornais

Unitario e Jornal do Ceará, oposição congratulada por muitos historiadores, como o já citado Geraldo Nobre, quando declara que, pelo fato de o Ceará ter sido um dos estados onde o governo oligárquico configurou-se “com maior agressividade”, até 1912, quando “a reação popular se fez sentir”31, “foi da maior importância o comportamento dos jornais, que, desde

28Idem.

29 Uma farta relação dos periódicos cearenses e informações quanto à periodicidade e permanência em circulação

dos mesmos consta em: STUDART, Barão de. Para a História do Jornalismo Cearense: 1824-1924. Fortaleza: Typ. Moderna – F. Carneiro, 1924.

30 Em ocasião do anúncio do início da construção do Theatro José de Alencar (O NOSSO theatro. A República,

Fortaleza, ano XVII, n. 115, 19 de maio de 1908).

31 Data de 1912 a revolta popular que se iniciou após incidente ocorrido no momento em que cavalaria, a mando

(21)

1890, se opuseram [...] à oligarquia e contenderam com a imprensa por esta montada a seu serviço”,32 o jornal A República. Este, para as folhas oposicionistas, composto por “miseráveis, alugados á custa dos cofres publicos, para encamparem os actos mais degradantes, as mais torpes infamias, com que diariamente [estavam] os acciolys escandalizando a sociedade cearense”.33

Não obstante, essas folhas, muitas vezes, também se rejubilavam com os melhoramentos de Fortaleza, em decorrência, entre outros, do fato de o Intendente Municipal, o Coronel Guilherme Cesar da Rocha (1892-1912), gozar de prestígio político entre os diversos grupos da cidade, concorrendo para a cruzada pela “educação” da população. Nessas publicações, tal como no “jornal oficial” e em outras de menor expressão, encontravam-se textos em posições de endosso ou crítica às transformações materiais e culturais fortalezenses. Tal oscilação entre o aplauso e a recusa encontrou nas crônicas jornalísticas diárias o veículo estratégico de defesa ou crítica a essas transformações na negociação entre tradicionais e novos padrões que deviam mediar as relações sociais naquele momento. Mantendo em seus textos o “ar despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência”, personagens como Jack, Jacy Ubirajara, Z. Estrábico, C. (assinantes das principais sessões de crônicas no período analisado), entre outros, não apenas entravam “fundo no significado dos atos e sentimentos do homem”, mas podiam “levar longe a crítica social”,34 configurando seus textos em importantes documentos.

A crônica aparece como portadora por excelência do “espírito do tempo”, por suas características formais como por seu conteúdo, pela relação que nela se instaura necessariamente entre ficção e história, pelos aspectos aparentemente casuais do cotidiano, que registra e reconstrói, como pela complexa trama de tensões e relações sociais que através delas é possível perceber.35

Também outras crônicas, além das escritas dentro do recorte temporal desenhado, serviram de subsídios a este estudo, mesmo que não tenham ganhado status de fonte. São as conhecidas crônicas históricas, aquelas escritas por memorialistas ou historiadores cearenses durante as décadas seguintes, como o caso de João Nogueira, Otacílio Colares, Raimundo de

Accioly, que, após declará-la e ver frustrada a tentativa de sua reposição, partiu com sua família para o Rio de Janeiro (FIRMEZA, Hermenegildo. A Revolução de 1912 no Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, t. 77, p. 25-59, 1963).

32 NOBRE, 2006, op. cit., p. 121.

33Jornal do Ceará, Fortaleza, ano V, n. 875, 25 de julho de 1908.

34 CÂNDIDO, Antônio (Org.). A Crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas:

Editora da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barboza, 1992, p. 17-18.

35 NEVES, Margarida de Souza. Uma Escrita do Tempo: memória ordem e progresso nas crônicas cariocas. In:

(22)

Menezes e Mozart Soriano Aderaldo, que, partindo de documentos ou de sua própria memória dos fatos vividos ou ouvidos, registraram sensibilidades acerca do período em Fortaleza: “se não vi, ouvi descrevê-los tantas vezes em casa que a descrição se mistura lá nos recessos do meu cérebro às cousas reais e acaba feita realidade pelo contado”, advertiu a si próprio Gustavo Barroso quando do momento da escrita de suas memórias.36

Raimundo Girão, ícone de destaque na historiografia cearense, é aqui também tomado como referência. O autor entendia a crônica histórica como uma “quase-história”, com a diferença de que a História, a que se dedicou, registraria e dissecaria “friamente o fato-histórico”, ao passo que a “Crônica-história” não pretendia “ir ao exame fundo desse fato”, sendo “mais por cima, mais literária, menos exigente”.37 Na importância atribuída à “exigência”, Girão possibilita a leitura do mecanismo a que lhe permitiria a “busca da verdade histórica”, da descrição do “fato-histórico” tal qual havia acontecido. Essa posição do autor foi claramente considerada para a realização das devidas críticas a sua produção em seu uso nesta pesquisa.

Nascido no ano de 1900, tendo-se dedicado à vida pública e ao estudo da História e Geografia cearenses, Raimundo Girão (tal os sujeitos analisados nesta pesquisa) foi herdeiro de uma tradição positivista, a qual encarava o compromisso com o documento oficial como caminho exclusivo e suficiente para que a “verdade histórica” fosse “revelada”, característica que impõe à historiografia contemporânea uma crítica específica dessas narrativas, que se apresentavam enquanto narração dos fatos tal qual haviam acontecido, objetivo esse não mais válido para a historiografia atual. Não obstante, a Literatura e as memórias sobre a História do Ceará, documentos repletos de subjetividade, em alguma medida, tomaram importância na busca de Girão pela “verdade dos fatos históricos”, aproximando sua obra à “quase-história” presente nas crônicas a que se refere.

Ainda a memória serviu de combustível aos escritos de Gustavo Barroso e Otacílio de Azevedo, personagens reais que viveram os primeiros anos do século XX em Fortaleza. A respeito da escrita dos memorialistas, dos que viveram ou não as experiências narradas, tenta-se levar em conta a distinção entre a cidade e os discursos sobre ela elaborados, cuidado flagrante, inclusive, em algumas das próprias obras, conforme adverte a seus leitores o autor

(23)

de Coração de Menino, Liceu do Ceará e Consulado da China38, anunciando que neles contaria somente

a verdade. Os arranjos e atavios literários envolvem-na só para diminuir-lhe a intensidade ou para torná-la mais acessível ao leitor atual. Como a distância azula as serranias e as uniformiza, fazendo desaparecer anfractos e despenhadeiros, é possível que a saudade também azuleça homens e cousas na distância do tempo. Mas a saudade é a maior testemunha da verdade.39

Nos azuis da memória de Barroso, estiveram atores transfigurados em personagens múltiplos, que desfrutaram, a seus modos, os espaços de sociabilidade e lazer da vida do autor cearense, que os traz aos dias atuais também em Literatura, na obra Mississipi, que narra a história de vida de João Mississipi, rapaz fortalezense que vive os anos de modificação intensa do perfil urbano e social do recorte em questão e tem por cenário as ruas e praças de Fortaleza; obra significativa aos estudos históricos sobre a capital cearense da virada do século XIX.

Distribuídos pela cidade, esses espaços ligavam-se, formando trajetos através dos quais se consegue hoje elaborar uma espécie de mapeamento das sociabilidades mundanas fortalezenses, construído com o auxílio da Planta da Cidade da Fortaleza, Capital da Província do Ceará, Levantada por Adolpho Herbster em 1888 (anexo A), litografada pela

Grave & Imprimé chez Becquet Frères, em Paris. Levantada por decisão do próprio Herbster, quando esse já estava afastado de suas funções de Engenheiro do Estado e Arquiteto da Câmara Municipal, a planta, tal as anteriormente elaboradas em 1859 e 1875, também de sua autoria, visava “à expansão física programada da cidade”.40

Ainda que confeccionado em data anterior ao recorte definido e, portanto, contendo dados contemporâneos a sua elaboração, o documento tem validade para o presente estudo na medida em que se apresenta como uma projeção, ou seja, muitas das quadras mostradas no desenho do final do século XIX vieram ser ocupadas apenas no decorrer das primeiras décadas do século seguinte. Na verdade, a planta previa “uma vasta ampliação urbana, pois, de conformidade com as indicações constantes da planta executada mais de meio século depois pelo Governo Revolucionário em 1931/1932, a cidade ainda não havia conseguido preencher o traçado proposto por Herbster [...]”.41

38 Títulos das memórias da meninice, adolescência e início da fase adulta de Gustavo Barroso, respectivamente. 39 BARROSO, 1989, op. cit.

40 CASTRO, José Liberal de. Contribuição de Adolpho Herbster à Forma Urbana da Cidade de Fortaleza.

Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza; ano CVIII, p. 43-90, 1994, p.70.

(24)

Ademais, o Jornal do Ceará, em um artigo de 1907, intitulado Cartas do Ceará, sob a assinatura de José Piza (jornalista carioca que, tendo passado um longo período de tempo em Fortaleza, registrou através das Cartas suas impressões sobre a cidade), traz a informação de que a capital cearense possuía então a soma de “34 ruas, 3 boulevards, e 14 praças”,42 os mesmos números, a exceção do número de praças, apontados pela planta de Herbster, o que pode indicar que essa, salvas as devidas considerações, exemplificava a extensão e disposição do traçado urbano fortalezense no intervalo entre os anos 1901 e 1910.

Ao longo de um retângulo imaginário cujos vértices acomodam-se nas principais e mais frequentadas praças de Fortaleza, Passeio Público, Praça do Ferreira, Marquês do Herval (antiga Praça do Patrocínio e atualmente José de Alencar) e Comendador Castro Carreira (antes Campo da Amélia e hoje Praça da Estação43) (Ilustração 1), a população encontrava a maior parte dos espaços de lazer de que dispunha a cidade.

Ilustração 1: Detalhe destacando as praças que marcam a área de maior movimento de sociabilidade e lazer da capital cearense no início do século XX. Adaptado a partir da Planta da Cidade da Fortaleza, Capital da Província do Ceará Levantada por Adolpho Herbster.

A Planta da Cidade da Fortaleza, Capital da Província do Ceará, Levantada por Adolpho Herbster, como já referido, serviu de subsídio à elaboração desse mapeamento. Do

42 PIZA, José. Cartas do Ceará. Jornal do Ceará, Fortaleza, ano IV, n. 665, 29 de outubro de 1907.

43 Campo da Amélia em homenagem à Imperatriz Amélia de Leuchtemberg e Praça da Estação por nela se

(25)

primeiro de seus vértices, o Passeio Público (primeiro porque mais próximo a ele se iniciou a ocupação do território fortalezense, nas imediações do Forte, a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção), parte-se ao longo da Rua da Boa Vista (atual Floriano Peixoto) até a Praça do Ferreira, frente à qual se pode virar à direita na Travessa das Trincheiras (Rua Liberato Barroso) e por ela seguir poucos quarteirões até encontrar a Marquês do Herval (à época também chamada de Praça Capitão Clementino), de onde, pela Rua 24 de Maio, alcança-se a

Praça Castro Carreira, fim do percurso inicial, porque a referida área concentrava a maior parte dos aparelhos de sociabilidade e lazer da capital à época, mas não todos. Um número pequeno de pontos marcados fora dessa figura geométrica completa o mapeamento.

No referido perímetro, concentravam-se antigos, novos e remodelados espaços de sociabilidade e lazer para a sociedade do início do século XX, que cada vez mais ganhavam traços modernos ou pretensões modernizantes por parte das elites fortalezenses ou opunham-se a elas. Em praças, pasopunham-seios, avenidas, quiosques, botequins, teatros, cinemas e outros, a presença ou falta de traços de civilidade e modernidade configuravam-se em espetaculares atrativos ao desfrute dos espaços em questão, um rico subsídio à compreensão das relações sociais de ordem mundana da Fortaleza do début du siècle.

“Os cearenses sempre tiveram um dinheirinho amarrado na ponta de um lenço, para comprar um pouco de diversão”, afirmou João Nogueira em seu Fortaleza Velha,seleção de memórias e crônicas históricas publicadas nos jornais Correio do Ceará e Gazeta de Notícias

entre as décadas de 1920 e 1940.44 No entanto, a planta de Herbster, a priori,pouco diz sobre essa vocação para o lazer dos fortalezenses. Nela, apenas elementos urbanísticos são destacados. Há motivos: era objetivo oficial do documento a orientação da expansão da cidade. Fortaleza crescia, e deveria fazê-lo de forma orientada.

A referida vocação aparece mais claramente em outro documento que serviu de fonte a este estudo, o Álbum de Vistas do Estado do Ceará de 1908, também confeccionado na França, mas por Les Imprimeries Réunies de Nancy (formada pelos impressores Bergeret, Humblot e Helmlinger).45 O álbum foi encomendado aos impressores franceses por uma firma de importação e exportação de produtos e artigos, e de transações financeiras com o estado, a Boris Frères e Cia, uma das mais importantes do período, e visava a propagandear o estado de desenvolvimento da cidade de Fortaleza.

(26)

A intenção daqueles que o encomendaram declara a escolha arbitrada das imagens que o compõem, tanto no momento de confecção das mesmas, o ato fotográfico, quanto no que correspondeu à escolha e organização delas no álbum. Considera-se, portanto, que o viés que orientou a elaboração do documento não foi “ingênuo ou aleatório, pois [seguiu] critérios, ideias ou intenções, pautadas, por sua vez, pelo imaginário social da época em que foi produzido”,46 um período em que se desejava inserir a capital cearense no rol das cidades mais adiantadas do país.

Considera-se, então, que a fotografia é, portanto,

um duplo testemunho: por aquilo que ela nos mostra da cena passada, irreversível, ali congelada fragmentariamente, e por aquilo que nos informa acerca de seu autor. [...] Toda fotografia representa o testemunho de uma criação. Por outro lado, ela representará sempre a criação de um testemunho.47

Sendo outra tipologia de impresso, difere da planta de Herbster principalmente quanto à presença humana em seus registros. Nele, praças, ruas, igrejas e cafés aparecem povoados. A partir de suas fotos, os usos desses espaços puderam ser pensados e problematizados, aliando-as às informações pretensamente objetivas do documento do engenheiro: “ao lado das imagens icônicas da materialidade urbana, há toda uma outra linha de representação que exibe a cidade através da sua população, com suas ruas movimentadas, o povo a habitá-la, a mostrar sua presença e também a sua diversidade [...]”.48

Na representação chapada da cidade, a princípio, apenas a ordenação ortogonal e regular. “Vista de cima, a cidade oferece um mosaico harmônico e uniforme, estável e ordenado, justamente porque a representação [...] do mapa exclui do núcleo urbano seu conteúdo mais expressivo – os habitantes da cidade”49 e, com isso, suas práticas de sociabilidade, e sequer ganham destaque os locais onde se realizam e, por conseguinte, os conflitos e disputas sociais ali ocorridos.

Um documento desse gênero tem, portanto, a “vantagem” de “ocultar” o elemento humano, representado, quando muito, em dados como população e densidade demográfica, fabricando, dessa forma, “uma cidade ideal, sem conflitos sociais”.50 O que, na prática, não se evidenciava. Em todos esses aspectos, à primeira vista objetivos, está, no entanto, o elemento

46 POSSAMAI, Zita Rosane. Narrativas Fotográficas sobre a Cidade. Revista Brasileira de História, São Paulo,

v. 27, n. 53, 2007, p. 56.

47 KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001, p. 50. 48 PESAVENTO, 2007, op. cit., p. 14.

49 SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Fortaleza: imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará/ Secretaria

da Cultura do Estado do Ceará, 2004, p. 111.

(27)

humano presente, permitindo-se pensar como esse se relacionava dentro da organização dos elementos físicos, embutindo, dessa forma, alguma subjetividade ao documento.

Pelos caminhos recuperados através das fontes, analisaram-se questões caras à urbanização da cidade e às transformações de atitude dos atores à rua, no espaço público. Esse é o tema do primeiro capítulo deste estudo: A Construção do Cenário: Fortaleza no início do século XX, que se ocupa do cenário que acolhe a coletividade, abordando as relações entre as modificações no perfil urbano da capital cearense e sua sociedade durante os primeiros anos do “século da eletricidade”.

Foi esse o período em que mais claramente se mostrou o projeto de modernização para a capital de um estado cuja economia era constantemente assolada pelas secas, o que não obstou as ações dos poderes públicos para inserirem Fortaleza no rol das “capitaes mais adeantadas do paiz”, conforme se referiam à cidade do Forte51 os articulistas das folhas diárias. Dentro desse projeto de modernização urbana, o aformoseamento das praças da cidade ganhou grande destaque, transformando-as em palcos, por excelência, para o desfile da sociedade fortalezense.

Sobretudo nas referidas praças, espaços para a prática das sociabilidades mundanas, desenvolviam-se os lazeres ao ar livre, que se realizavam, além das praças, nos passeios ajardinados, na praia e no Prado. Esses lazeres, neles incluído o esporte, configuram o tema do capítulo segundo, Festas e Lazeres ao Ar Livre, e permitem a revelação, ainda, dos processos de permanências e rupturas com as formas tradicionais da cultura urbana fortalezense naqueles espaços e em seus entornos.

Aformoseadas logo nos primeiros anos da República, nas praças, encontravam-se passeios, jardins e coretos onde as bandas de música dos corpos oficiais executavam trechos de operetas e valsas, “onde fervilhava a fina sociedade local”, a “ostentação de vestidos e graça feminil”, o “dandismo masculino à altura do ambiente da mais indiscutível distinção social”,52 mas também “o pessoal da classe média” e mesmo a “ralé – mulheres da vida, os rufiões e os operários pobres”,53 num claro aceno de segregações apregoadas como “voluntárias”, mas, também por isso, se existentes, bastante frouxas, apontando conflitos múltiplos entre os grupos da sociedade.

51 Também assim era referida nos jornais a capital cearense, dado o início de sua povoação estar ligado à

construção e manutenção da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. São muitas as passagens nos jornais consultados em que o autor do artigo ou nota refere-se a Fortaleza como “cidade do Forte” ou a sua população como “sociedade do Forte”.

(28)

Mesmo entre embates, intensificaram-se as diversões citadinas, que cada vez mais perpassavam o dia e invadiam a noite da cidade, denunciando sua vida noturna, proporcionada pela infraestrutura que avançava e, sobretudo, a iluminação e o transporte públicos concorreram para tal. Essas sociabilidades noturnas são então problematizadas aqui no capítulo terceiro: O Público e o Privado na Dimensão Noturna da Cidade: salões, bailes e clubes.

Junto aos salões de elite, no período em questão, eram o Clube Cearense, o Clube Iracema, o Clube Os Democratas e a Phenix Caixeiral os principais promotores de bailes e reuniões familiares na cidade, ocasiões em que a sociedade de salão fortalezense tentava, a todo instante, mostrar e propagandear seus ares de elegância e civilidade54, mas essas sociabilidades realizavam-se pisando o terreno escorregadio e incerto entre as dimensões do público e do privado, cujos limites eram ainda bastante imprecisos na Primeira República brasileira.

Entre Cafés, Botequins, Espetáculos de Vistas, Cinemas e Brinquedos Populares é o tema do quarto capítulo que se segue. Em espaços de lazer abertos ou fechados, mas todos públicos, a sociedade fortalezense continuava a agitar-se. As mesmas praças que abrigavam os “inocentes” passeios vespertinos davam espaço aos cafés, restaurantes e botequins, aos quais concorriam ícones e signos da modernidade de então, como os phantascópios, bioscópios, kinefones, entre outras maravilhas que a modernidade do século XIX trouxera, entre eles, o cinematographo.

Os cinemas da cidade sucederam-se em nomes como Rio Branco, Art-Nouveau e

Cassino Cearense, todos situados nas imediações da Praça do Ferreira e os quais, além das exibições das “fitas” e “films”, também abriam espaço para apresentações de palco, funcionando, em verdade, como “casas de diversões”, cineteatros. De frequência mais diversificada, dado ao baixo custo de seus ingressos, novamente a divisão entre estratos afrouxava-se e os modos das classes populares faziam-se notar, contra o que bradavam as elites, em uma campanha assemelhada àquela que pretendia expurgar da cidade os “perniciosos brinquedos populares”, folguedos do povo que remontavam ao passado colonial e escravista do país, “nocivo”, portanto, aos “foros de gente civilizada” de Fortaleza.

54 Muitos desses bailes realizavam-se em razão do período carnavalesco. Por sua dimensão envolver inúmeros

(29)

Foros esses que deveriam se desenvolver, preferencialmente, na frequência aos teatros, que sempre foram – no Brasil, desde o século XVIII55 – espaços de sociabilidade característicos dos centros urbanos civilizados e modernos, aqui configurando tema para o quinto capítulo: Teatros da Cidade: seus usos, imagens e significados; problematizando-se essas casas possuidoras de palco, principalmente, como espaços de sociabilidade e signos de civilidade e modernidade.

Na capital cearense, ao longo do recorte em questão, os teatros em funcionamento foram o Theatro Iracema (que funcionava dentro do Club Iracema), o Theatro João Caetano

(pertencente ao Club Athletico) e os palcos dos cineteatros Art-Nouveau e Rio Branco, teatros os quais, embora tenham recebido diversas companhias em turnê pelo país e algumas até estrangeiras, não atendiam aos padrões desejados pelas elites, o que contribuiu para o constante desejo por “uma casa de espetaculos como nos [merecia] o meio”,56 não apenas um ícone para a urbe, mas um grande cenário para as elites mostrarem-se modernas e civilizadas, ao mesmo tempo em que “o povo” fosse educado em “tão importante escola de costumes” 57, acreditava-se.

Esse tão desejado teatro materializou-se sob o nome Theatro José de Alencar apenas no ano de 1910, data que encerra o recorte temporal desta pesquisa. Nesse ano, Fortaleza ganhou sua “primeira casa de espetáculos”, conforme era referido pelos entusiasmados cronistas à época. A partir da inauguração e das primeiras temporadas teatrais do mesmo, problematizou-se seu uso como um signo máximo de modernidade e civilização burguesas; um espaço de desfile de prestígios e segregação social: o cenário entendido como perfeito para a encenação social das elites.

No entanto, esse mesmo palco expunha à luz parca de suas luminárias a gás carbônico os inúmeros contrastes entre uma sociedade que se acreditava protagonista desse espetáculo, as “melhores famílias da capital”, pretensamente civilizadas, modernas e burguesas, e a persistência de formas e práticas tradicionais e populares da sociedade como um todo, que se mostravam sobremaneira nos diversos modos e atitudes das classes menos abastadas, muitas vezes ainda ligadas à cultura sertaneja cearense; classes vistas como coadjuvantes do processo, mas que, em verdade, possuíam papel capital no mesmo.

55 ARAÚJO, Nelson. Alguns Aspectos do Teatro no Brasil nos Séculos XVIII e XIX. Latin American Theatre

Review, Lawrence, Kansas, v. 11, n. 1, p. 17-24, outono 1977, p. 17.

56 THEATRO. Jornal do Ceará, Fortaleza, ano IV, n. 654, 16 de outubro de 1907.

57 C. Entrelinhas. A República, Fortaleza, ano XVIII, n. 42, 21 de janeiro de 1910. “Entrelinhas” era a crônica

(30)

A densidade da população augmentou e os limites da area urbana se afastaram, levados alem pelas edificações de todo dia. Bairros ha que eram ainda, ha poucos anos, largas estradas, quase sem gente, e hoje oferecem aspecto diverso, ostentando innumeras vivendas, muitas das quaes, verdadeiros palacetes, de construcção moderna. (Jornal do Ceará, 21 de fevereiro de 1908).

A virada do século XIX para o XX provocou, devido em grande parte às novas ideias e tecnologias que inundaram o cotidiano dos citadinos principalmente, toda uma série de transformações no ritmo e na percepção de homens e mulheres que habitavam os grandes centros urbanos brasileiros. “Tudo parecia mudar em ritmo alucinante. A política e a vida cotidiana; as ideias e as práticas sociais; a vida dentro das casas e o que se via nas ruas”.58

Processos importantes ocorridos ao longo do período – a abolição, a proclamação da República, a instalação da rede ferroviária, o aumento do comércio internacional, entre outros, – concorreram para produzir modificações nas estruturas econômica e social das cidades, contribuindo para o desenvolvimento de relativo mercado interno e estimulando os processos de urbanização, que haviam ganhado seu primeiro fôlego com a vinda da Corte portuguesa ao país e a abertura dos portos em 1808.

A integração do Brasil nas correntes internacionais de comércio, eliminada a mediação portuguesa [após o rompimento do sistema de monopólios lusos até então vigente], numa fase em que o mercado internacional se achava em plena expansão graças ao crescimento da população, à maior distribuição da riqueza e à melhoria do sistema de transportes, daria novo incentivo às funções comerciais dos núcleos urbanos [...].59

Esse incremento às funções comerciais das cidades fez-se acompanhar por relativo desenvolvimento econômico das mesmas e um intenso desejo por seu progresso material, o que não ocorreu de modo diferente em Fortaleza. A capital cearense, desde meados dos oitocentos, ensaiava para fazer frente aos grandes centros urbanos brasileiros e mesmo ao restante do mundo, em um processo que neste estudo é associado a uma grande cena de teatro, ou a um quadro de cinematógrafo, também em gosto da população à época.

(31)

Para tal associação, destacam-se todos os elementos cênicos, sobremaneira atores e cenário, cuja relação não é encarada de forma unilateral (atores modificando e usufruindo do espaço), pois este, acolhendo a coletividade, não o fazia de forma passiva: a composição e o desenvolvimento das socialidades adquiria corpo num espaço determinado que dava, também, forma às situações vividas. No contexto do final dos oitocentos e início dos novecentos, tais situações, em direções diversas, ganhavam força a partir do fausto das aparências, mas não aparências quaisquer; essas deviam ter, “por obrigação”, a marca da Civilização, condição

sine qua non para alcançar-se a Modernidade.

Para o Brasil da Primeira República, a ideia de modernidade representava, ao mesmo tempo, “um valor em si e um paradigma de desenvolvimento, de estabelecimento da Ordem e do Progresso no país”. Ela era, “[...] antes de tudo, e acima de tudo, o projeto de construção da ‘sociedade e da identidade nacionais’ que se realizaria pela via da ultrapassagem da situação de atraso e de subdesenvolvimento resultante da recente e ainda viva ‘condição colonial’”.60

Essa modernidade representava também um “modelo de pensamento e de ação”, um projeto estabelecido em vista à substituição da antiga estrutura material das cidades e dos hábitos cotidianos da população – ainda fortemente presentes, sobremaneira junto aos setores mais pobres – por modelos importados de nações já entendidas como modernas, notadamente as europeias, então paradigmas para o restante do mundo que se pretendia civilizado.

Mas o estado do Ceará, incluindo sua capital, até os idos iniciais dos oitocentos, era ainda acanhado, mesmo “pobre”, conforme levantou Raimundo Girão, apontando suas “ruas sem pavimentação, durante a noite às escuras, todos andando a pé, pois não havia qualquer espécie de veículos, as cargas transportadas no costado de animais”.61 Entretanto, as dificuldades econômicas que enfrentava um estado assolado constantemente pela miséria das secas não obstaram uma busca incessante por inclui-lo no rol das sociedades modernas da virada do século XIX.

Sobretudo na capital, suas elites econômicas, intelectuais e políticas62 empreenderam esforços para a “modernização” da urbe, concorrendo para a criação de uma imagem

60 PEREZ, Léa. Por uma Poética do Sincretismo Tropical. Estudos Iberoamericanos, Porto Alegre, v. 18, n. 2,

1992, p. 43-44, apud, BITTENCOURT, Ézio da Rocha. Da Rua ao Teatro, os prazeres de uma cidade: sociabilidades e cultura no Brasil meridional. 2. Ed. Rio Grande: Editora da FURG, 2007, p. 46.

61 GIRÃO, 2000, op. cit., p. 20.

62 Tais elites compunham-se, sobretudo, por ricos comerciantes (chamados à época também de burgueses ou

(32)

civilizada para sua população e, em mesmo processo, para o combate a práticas que não se compadecessem com seus «foros de gente civilizada»63, o que concorria – acreditava-se – para a modernidade da cidade do Forte.

A rigor, os projetos de modernização dos estados nordestinos – verificados, sobremaneira, em suas capitais – não seguiram em todos os níveis os dos grandes centros urbanos brasileiros, como a capital da República, o Rio de Janeiro, remodelado e “saneado” nos anos iniciais dos Novecentos. No entanto, os governos desses estados empenharam-se para manterem suas capitais “ao nível do século”, intentando, a seu modo, emparelhá-las a cidades como o já referido Rio de Janeiro e mesmo estrangeiras, como Chicago, Nova York, Londres e Paris64.

A pesquisadora paraibana Maria Berthilde Moura Filha – visando a entender o projeto estético das cidades brasileiras da virada do século XIX a partir da estruturação da paisagem urbana – aponta que, em razão das limitações dos recursos econômicos dos poderes públicos desses estados, tais projetos caracterizaram-se, via de regra, “por intervenções mais pontuais e de menor porte, expressando-se, particularmente, através do tratamento de praças e outros espaços urbanos, construção de edifícios públicos, etc.”, objetivando a composição de “cenários representativos do progresso que se desejava alcançar”.65

A exemplo, explicando à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará a respeito das condições sanitárias das cidades cearenses, estando “os habitantes tão desapparelhados [...] quanto estavam [havia] cem anos”, o Presidente do Estado, Antonio Pinto Nogueira Accioly, que durante todo o recorte em questão governou direta ou indiretamente o Ceará, destacou como dado importante para o combate a esses problemas as obras realizadas “no sentido de regularisar o alinhamento de suas ruas, o ajardinamento das praças e o incremento da edificação, etc.”, embora reconhecesse no mesmo documento que, “rigorosamente fallando, nada ou muito pouco, de tanto esforço municipal ou estadual despendido com a parte

63 As aspas francesas (« ») foram utilizadas ao longo deste estudo para referência a expressões comumente

utilizadas pelos jornais do período, mas que não constituem explicitamente uma citação. A grafia própria do período também foi mantida. Quando dentro de uma citação, as referidas aspas correspondem ao original citado.

64 Essas eram as cidades sempre referidas pelos jornais como cidades adiantadas, modernas, que pareciam

sempre “elevar-se no infinito” (Jornal do Ceará, Fortaleza, ano IV, n. 755, 21 de fevereiro de 1908. A respeito de Nova York).

65 MOURA FILHA, Maria Berthilde. O Cenário da Vida Urbana. João Pessoa: CT/ Editora Universitária/

Imagem

Ilustração 1: Detalhe destacando as praças que marcam a área de maior movimento de sociabilidade e lazer da  capital  cearense  no  início  do  século  XX
Ilustração 2: Praça Marquês do Herval. Fonte: Acervo MIS.
Ilustração  3:  Vênus  com  Cupido.  Álbum  de  Vistas  do  Estado  do  Ceará,  1908.  Ao  lado, foto de 2009 de F
Ilustração  4:  Prédio  da  Phenix  Caixeiral.  CÂMARA,  João.  Almanach  Estatístico,  Administrativo, Mercantil, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o Anno de 1906
+7

Referências

Documentos relacionados

Lernaea cyprinacea of Steindachnerina insculpta from Taquari River, municipality of Taquarituba, São Paulo State, Brazil.. Note the hemorrhagic area around the insertion point of

Isso será feito sob o ponto de vista dos conceitos apresentados pelo físico Serge Nahon, em “ Contribuição ao Estudo das Ondas de Formas a Partir da Mumificação

Podem treinar tropas (fornecidas pelo cliente) ou levá-las para combate. Geralmente, organizam-se de forma ad-hoc, que respondem a solicitações de Estados; 2)

Como irá trabalhar com JavaServer Faces voltado para um container compatível com a tecnologia Java EE 5, você deverá baixar a versão JSF 1.2, a utilizada nesse tutorial.. Ao baixar

O presente trabalho de doutorado tem como objetivo principal analisar de forma sistemática a influência do tempo de vazamento até 45 min, após o tratamento de inoculação

Diante das consequências provocadas pelas intempé- ries climáticas sobre a oferta de cana-de-açúcar para a indústria, a tendência natural é que a produção seja inferior

quantificar os benefícios para efeito de remunerar o seu gerador. A aprovação da idéia e a autorização para sua implementação dependem da alta administração,

Antes de se apresentar as ações de melhoria que dizem respeito ao sistema pull e tendo em consideração que o planeamento da UI de Lamas combina a tipologia