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UM FATO SOCIAL TOTAL: UMA ETNOGRAFIA DA FESTA DE LEVANTAMENTO DO MASTRO DE SÃO BERNARDO.

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Academic year: 2021

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UM FATO SOCIAL TOTAL: UMA ETNOGRAFIA DA FESTA DE LEVANTAMENTO DO MASTRO DE SÃO BERNARDO.

Keliane da Silva Viana1

RESUMO

Este trabalho apresenta resultados do estudo etnográfico realizado entre os anos de 2011 e 2014, sobre a festa de levantamento do mastro em São Bernardo. Utilizo dados dessa pesquisa para explorar a noção maussiana de “fato social total” tal como se manifesta no momento ritualizado da recepção pública do evento. Destaca-se que o conjunto de relações, a dimensão social total que une os agentes sociais no interior da festividade, os sentidos apreendidos não se restringe apenas às ocorrências intrínsecas ao seu universo cultural. Como fato social total, o mastro alcança uma significação muito mais ampla do que uma festa popular e, por conseguinte, suas construções e simbologias transformam-se em objeto de estudo das ciências sociais. Conclui-se que, o levantamento do mastro, enquanto fenômeno social total é um evento de natureza religiosa que agrupa uma multiplicidade de ritos, símbolos e representações de costumes e comportamentos herdados que perpassam esferas diferenciadas, os quais, por sua vez, não se limitam ao plano do sagrado.

PALAVRAS-CHAVES: cultura campesina, etnografia, festas, mastro, fato social ABSTRACT

This work presents results of the ethnographic study carried out between the years of 2011 and 2014 on the lifting party of the mast in São Bernardo. I use data from this research to explore the Maussian notion of "total social fact" as manifested in the ritualized moment of the public reception of the event. It should be noted that the set of relations, the total social dimension that unites the social agents within the festival, the senses seized is not restricted to the occurrences intrinsic to its cultural universe. As a total social fact, the mast reaches a much broader meaning than a popular feast, and therefore its constructions and symbologies become objects of study of the social sciences. It is concluded that the lifting of the mast as a total social phenomenon is an event of a religious nature that brings together a multiplicity of rituals, symbols and representations of customs and inherited behaviors that pass through different spheres, which, in turn, are not limited to the plane of the sacred.

KEY-WORDS: Peasant culture, ethnography, parties, mast, social fact

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1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Ao ingressar na Universidade, participei de inúmeros espaços de formação acadêmica. Nesses espaços, um conjunto de discussões e reflexões produzidas trouxeram inquietações e curiosidades em relação às problemáticas sociais da região do Baixo Parnaíba, situada no Leste do Maranhão. Como moradora da região e discente de um curso interdisciplinar (Ciências Humanas/Sociologia) e do recém instalado campus da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em São Bernardo, á época, conhecer mais profundamente as comunidades campesinas e as festas na sua estrutura cultural, eram campos de estudos que despertaram grande interesse.

O interesse pela temática, ainda no terceiro período do curso, resultou na publicação do artigo intitulado “Festejo de São Bernardo: memória e representação”, apresentado no XIII Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Um trabalho desenvolvido em conjunto com outro discente do curso2. Tratava-se naquela oportunidade de analisar os significados, as continuidades e rupturas do festejo do padroeiro do município de São Bernardo, bem como encontrar explicações que o concebessem além de sua dimensão propriamente cerimonial, a importância das crenças coletivas que comunicam acerca das próprias categorias de representação da vida social na cidade e sobre o imbricamento entre o social, o político e o cultural (SOUSA; VIANA, 2012).

Buscamos na ocasião, oferecer uma explicação do fenômeno a partir das relações entre modernidade e tradição, refletindo sobre o cenário das festas e manifestações religiosas presentes no estado, bem como o significado que estas possuem para os seus participantes. Essas reflexões trouxeram a tona duas questões importantes: de um lado, o fato das festas na maioria das vezes serem realizadas anualmente no mesmo período, não apenas para a manutenção da tradição e realização de homenagens anuais, como também para envolver entre muitos aspectos, a questão sociocultural da comunidade, a autonomia das festas e de quem delas participam. Noutro, foi à compreensão dos significados, continuidades e rupturas entre grupos históricos relacionados a experiências culturais distintas das festas, como também os acontecimentos, personagens e lugares que marcam a memória coletiva por meio de formas de socialização ou de um determinado passado que arrolam na memória lembranças, que podem ser uma lembrança pessoal, mas também pode ter apoio no tempo cronológico (POLLAK, 1992).

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À medida que avançava na procura de referências às festividades de cunho religioso cristão que acontecem nas comunidades, povoados e vilas da região secular do Baixo Parnaíba, encontrava falas e documentos que noticiavam sobre as festas dos santos, impregnadas de costumes profanos e de outras crenças. Ao assistir a queima de fogos na porta da Igreja Matriz ou no morro do Alto Clube, ao acompanhar a procissão e ouvir os tambores de crioula que roncavam até o raiar do dia, os bumbas, quadrilhas e uma seresta que fazia a alegria da moçada, fui direcionando o olhar para o âmbito mais espontâneo das condutas e representações: tratava-se de apontar certos aspectos do sistema de representações, crenças e valores que constituíam, no plano simbólico, a integração concebida entre os que das festas participavam. Muitas vezes, ao chegar à casa de senhoras e senhores idosos, deixava-me envolver por suas histórias de vida. Registrava cada suspiro, risos, silêncios e as pausas cada vez que rememoravam com lágrimas os ausentes. A história desse ritual é um pouco da história dessas pessoas.

Foi nas idas e vindas, junto a estes idosos, quando as pessoas falavam dos bailes nos anos dourados3, as músicas entoadas e a importância para elas destas festas, destes espaços de sociabilidades criados, bem como por dividir o palco em uma companhia de teatro com alguns desses mesmos personagens cotidianos, que reafirmei o interesse pela temática. Foi quando passaram a narrar que todo início de festa de padroeiro nas comunidades campesinas, nas cidades e lugarejos, começavam com as chamada festa do mastro, e que geralmente essas festas ocorriam fora da massiva programação religiosa dos santos festejados. Entender essa espécie de fenômeno despertava grande curiosidade, foi então que busquei acompanhar as mudanças ocorridas num espaço festivo (levantamento do mastro de São Bernardo), que extrapolava a esfera propriamente religiosa para mostrar como essa festa se constituía como um fato social total.

O foco recai aqui sobre a tradicional festa de levantamento do mastro que ocorre todos os anos em São Bernardo, cidade localizada no Baixo Parnaíba, região Leste maranhense do Estado. A festa é reconhecida como “fato social total”, na medida em que abrange toda a vida de uma comunidade, bem como se manifesta no momento ritualizado da recepção pública.

3 O baile dos anos dourados é uma festa que acontece todo ano no dia 18 de agosto na festa do padroeiro São

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Neste artigo, a festa de levantamento do mastro será analisada como um fato social total ou (fenômeno social total), noção formulada inicialmente por Marcel Mauss no célebre Ensaio sobre a dádiva, publicado originalmente em 1925, em uma coletânea intitulada Sociologia e antropologia. Trata-se de uma noção central do pensamento maussiano, e que é um desdobramento da noção anterior de "fato social", tal como apresentada por Émile Durkheim (2006) em As regras do método sociológico, de 1895. Total, por um lado, no sentido de que na comunidade, a festa se constitui em um acontecimento ligado aos universos social e simbólico do grupo, capaz de promover uma dinâmica social específica nos dias em que a festividade é realizada bem como do engajamento da coletividade como um todo. E, por outro lado, fato social total no sentido de um fenômeno que atravessa todas as esferas do social: econômico, político e religioso, pois, somente assim é possível reconhecer sua eficácia na sociedade.

Para tanto, o objetivo aqui não é fazer uma discussão de conceitos teóricos, mas, uma etnografia da festa do mastro, apresentando os significados, os elementos que a compõe, a forma de apresentação, os participantes, os símbolos, enfim, tudo que contribui para que a tradição se mantenha viva. A festa recebe destaque por representar a cosmologia dos grupos humanos, incluindo questões ligadas à origem histórica e à localização espacial, ou seja, a ocupação do espaço físico da comunidade está vinculada às homenagens e reverências ao santo padroeiro da cidade.

Diferentemente, como habitante da região onde ocorre o levantamento do mastro (bernardense de origem), para realizar o estudo desse objeto tive que trabalhar o distanciamento, levando a considerar como não naturais todo um conjunto de atos, condutas e representações que partilhava com os demais devotos da festa. Não se trata em momento algum de um abandono do vínculo religioso, mas tão somente de tentar adotar uma perspectiva ― de longe e com isso extrair as vantagens de uma observação eivada de pré-noções, julgamentos de valor e raciocínios explicativos do senso comum.

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pela puxada e finalizando com o fincamento4 da mesma, quando começa efetivamente o tempo do festejo.

A metodologia pauta-se na pesquisa documental, bibliográfica, etnográfica e entrevistas realizadas com moradores mais antigos, organizadores e participantes dessa festividade. Fiz uso do método etnográfico que propõe a observação participante e o convívio com o grupo como principal meio de obtenção de conhecimento sobre os mesmos.

Diferentemente do estudo feito anteriormente sobre as transformações, continuidades e rupturas da festa de São Bernardo, com o aporte teórico de estudiosos de campos disciplinares diversos, pretendo, pois, discorrer sobre as simbologias presentes na festa de levantamento do mastro, essa rica manifestação de fé que, embora esteja mais ligada ao laicato, não deixa de assumir dimensões religiosas e culturais importantes. Se de início, estudos realizados sobre o festejo de São Bernardo demarcava a existência de duas festas muito distintas, o aprofundamento do estudo sobre o levantamento do mastro mostrou que esse evento constitui uma etapa inicial, prévia e significativa para que a parte mais sacral do evento ocorra.

2. UMA ORIGEM DIVIDIDA NOS RELATOS.

O levantamento do Mastro faz parte do extenso calendário de festas tradicionais do município de São Bernardo. De maneira geral, trata-se de uma festa que vai da escolha prévia de uma árvore de grande porte, de sua preparação para o ritual e do seu transporte em direção à igreja matriz, onde é fincada, dando início ao festejo de São Bernardo. Algo que poderia parecer a um observador externo como algo simplório, a princípio, ou destituído de maior importância. Um olhar mais de perto permite ver, no entanto, que esse ritual aparentemente banal constitui um daqueles eventos a partir do qual se pode ver a complexa dinâmica de permanências e transformações culturais nos modos de fazer e ser de uma coletividade dada.

A análise dos relatos dos entrevistados quanto ao surgimento e organização do mastro de São Bernardo indica a existência de diferentes versões. Para alguns, a festa teria

4 O fincamento do mastro não é um ato isolado, está imbricado no processo de levantar o mastro, ou seja, para o

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surgido a partir das investidas de um “certo caboclo chamado Gaudino”, agregado da fazenda da família Corrêa, no povoado ladeira. Passando a tradição a sua filha adotiva (dona Cota), como segue:

Boxe 1

[...] com o crescimento da festa aumentou as brigas e bebedeiras e eu comecei a não gostar mais daquilo, então chamei o cumpadi Decim e pedi pra ele continuar com a festa que meu pai deixou pra mim. As pessoas já tavam acostumadas com a festa aqui em casa, mas os prejuízos eram grandes, os meus pratos amanheciam tudo quebrados no mato em cima do morro. Mas, tudo começou aqui nessa casa antiga, ali naquela outra onde meu pai mandou derrubar, depois a festa mudou pra cá. Nesse tempo tinha muita laranja e eu também dava um boi todos os anos por que era promessa do meu pai e eu tinha que continuar5.

“Que eu me lembre, parece que meus pais já diziam que muito antes essa tradição é muito antiga, eu não me lembro agora do nome da ―nega véa cativa, parece que foi ela que começou a dá o mastro lá na ladeira, isso é coisa que vem desde o tempo do cativeiro, dos escravos, muito antigo. [...] O mastro meche com as memórias, as chibatadas nos escravos e que meus pais ouviam (SÉRGIO MARINHO DA SILVA, 2013).

[...] A festa é muito antiga, ela ta acompanhando desde os meus bisavôs, da uns duzentos anos quase, ou mais. Dos meus bisavô, já tinha mastro. Eles sempre contavam pros meus avôs, que contavam depois pros meus pais e depois contavam pra nós. Da quase duzentos anos isso no todo. Não tem uma data certa, não tem uma ideia mesmo certa de como a festa começou, só que ela sempre veio da Ladeira. Não da pra analisar porque não restou nada de antigamente. Não tem papel, tudo na memória e é ela que importa pra nós. Tudo foi passando e hoje o que agente sabe é isso. Só sei que a região do mastro é toda formada de escravos. Sempre foi de lá da ladeira que veio o pau, a geração veio de lá (FRANCISCO MORENO, SILVA, 2013).

Para o que importa ressaltar aqui, porém, antes de optar por uma ou outra versão, importa entender que as representações formuladas sobre a origem da festa, misturam elementos que dizem respeito tanto a aspectos históricos, quanto a dimensões culturais que estão associados á própria cultura campesina e sua estrutura social. Como temos notado em conversas informais, existem outras versões (além das aqui mencionadas) que também indicam a polivalência dos significados simbólicos associados á própria explicação da origem da festa.

5 A depoente não quis nos revelar o seu verdadeiro nome, pedindo-nos que a tratasse apenas pelo nome como era

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3 UMA ETNOGRAFIA DA FESTA

A festa de levantamento do mastro começa trinta dias antes da festa do padroeiro de São Bernardo, e tem sua partida na escolha da árvore que será derrubada e transformada em mastro: um tronco de árvore longo sem galhos que, geralmente mede de setenta e cinco a oitenta palmos. Assim começa todo um conjunto de rituais e peregrinações. De início, na casa do segundo mordomo do mastro6 se reúnem os organizadores e derrubadores da árvore que, juntos, seguem para o local onde se dá a retirada da árvore (povoado Ladeira, localizado em um município vizinho - Santa Quitéria/MA). Sua busca constitui um ritual predominantemente masculino. Em meio a uma vereda sinuosa com várzeas e olhos d’água, os homens selecionam uma árvore (pindaíba). Todo o ritual de derrubada é acompanhado por crianças e adolescentes, a própria procura e corte da árvore lembra a “derrubada do mato” para a qual muitos homens se associam e cuja eficácia consiste na produção de sentido e está na base da antropologia de Marcel Mauss. Um dos organizadores da festa, senhor Francisco Moreno Silva, explicou como ocorre o processo de seleção.

[...] A escolha da árvore é sempre uma indecisão, por que o local tem uma grande quantidade de árvores alinhadas. [...] Aqui o lugar já é tão sagrado que as árvores já crescem como se tivessem prontas pra serem cortada para fazer o mastro. O machado é sempre o mesmo, já fica guardado no cercado do Corrêa pro ano seguinte, tem que aturar mil anos. Nós deixa guardado no pé da terra, é zelando e ficando lá. Essa área é reservada somente pra retirar a árvore, seja a pindaíba ou o bacuri. Aqui ninguém mexe, aqui tudo é reservado pro padroeiro São Bernardo. No dia da puxada eu faço a doação de dez litros de cachaça. [...] Não pode ser nem um pau grosso porque maltrata o povo, nem um pau fino por que tem que ser igual. No corte, quando um cansa o outro pega o machado e a árvore que agente escolhe é sempre a pindaíba, por que o bacuri é mais pesado. Essas duas são as que mais crescem aqui na região. Quando agente corta a árvore, que derruba ela, nós bota ela no chão, nós tem aquele maior prazer de aquele povo nosso que tão ali pegar ela botar no ombro, levar pro ponto pra nós puder levar lá pra tapera que é o lugar onde

6 Os mordomos do mastro são lavradores, aposentados e católicos, caboclos nascidos e criados em São Bernardo.

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nasce, nós corta ali. Pra puder tirar dali e levar pra ladeira pra ficar bem no ponto. Nós tem aquele prazer quando nós bota, quando nós tira o mastro de lá de dentro da mata, daquele ponto qui nós bota ele lá no ponto ixato nós vem muito satisfeito como nós tiremo já o mastro do padroeiro. Aquilo ali é ele que ta dando aquela força todinha qui nós não tem força pra isso. Aquilo ali é ele. [...] Tem que tirar uma árvore bunita, a terra lá é própria pra isso. A terra lá tem árvore de todo tamanho, todo tipo. Tem que ser uma bunita que é pra quando chegar no padroeiro ele não dizer “tanto mastro e tiraram esse feio”.

Após a derrubada, o mastro é carregado para o quintal do Sr. Adécio (Decim), local onde é descascado e amarrado com arame farpado para evitar rachaduras durante os trinta dias em que ficará secando, aguardando o dia nove de agosto, quando ocorre a puxada. Quando chega o dia nove, esse quintal torna-se espaço de sociabilidade, preservação dos traços da cultura dos antepassados, atraindo devotos, promesseiros e brincantes. Espaço onde os devotos se movimentam e praticam sua religiosidade. É nesse local onde muitos guardam na memória os que já fizeram a festa e por quantas vezes, é um momento de extremo significado coletivo quando os participantes dançam velhas músicas e, criam, coletivamente, outros passos, quando se alegram com as bebidas, mas também relembram, com tristeza, os ausentes.

É nesse quintal onde as mulheres preparam a comida para àqueles que vêm passar o dia todo na festa. Mas, os organizadores precisam redobrar os cuidados para evitar que alguns mais espertos entrem na fila para comer duas ou mais vezes e desperdiçar comida. A comida é preparada em várias casas da localidade, pessoas que recebem parentes e amigos oferecendo galinha caipira, pato e até porco assado como cardápio - geralmente animais criados nos próprios quintais e para o próprio consumo.

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Há uma lógica simbólica e temporal que envolve as pessoas e externam um sentimento de pertencimento e de identificação a um lugar – uma espécie de intercâmbio ritual entre devotos de diferentes lugares. Nesse ambiente, carregado de crenças e valores, os símbolos exercem sua eficácia (TURNER, 2008). O envolvimento dos grupos pode ser verificado em diversas ocasiões e espaços, como descreve o mais idoso mordomo do mastro, o senhor Francisco Rosa de Sousa:

[...] A festa acontece com cordialidade e cooperação, é uma fulia tão grande que agente não tem vontade de ir embora, agente faz todo ano e todo ano é uma alegria, todo mundo se dá bem e ajuda, lá da gente num é brincadeira não. É uma arrumação muito grande, as mulheres da comunidade ajudam preparando a comida no fogão a gás, os homens fazendo o fogo no fogão a lenha porque cozinha mais rápido e as crianças cortando os temperos dos canteiros. [...] No dia da festa muitos devotos do padroeiro que acompanham e vão passar o dia na Ladeira pagam suas promessas dando o feijão, a farinha e a abóbora que tiram da roça que fazem para misturar com a carne de boi que vem todo ano da fazenda do seu Nonato, ele quem manda matar um boi e manda a carne pra fazer pro povo comer. É uma promessa que ele fez e continua cumprindo. [...] Tem um encarregado todos os anos para da à bandeira, levar a bandeira e subir em cima do mastro, ele mora em Parnaíba, Nonato o nome dele.

Também, ao término da festa, ás 16 hs da tarde, ocasião solene em que o mordomo faz os agradecimentos, percebe-se tal envolvimento:

[...] Sou muito grato a Deus, ao nosso padroeiro São Bernardo em estar festejando ele porque eu considero o São Bernardo como um santo milagroso. Quero agradecer a todo mundo, o pessoal que contribuíram dando as comidas, bebidas, água, porque a ajuda de vocês é que faz essa festa ficar alegre. [...] Agradecer os outros mordomos, os amigos Toinho Trajano e Sabido (FRANCISCO ROSA DE SOUSA, 2014).

É um dos momentos mágicos da festa, as palavras do mordomo apresentam um poder mágico. Sua linguagem é mágica e se torna o principal meio de comunicação entre os participantes. Terminado a solenidade os “caboclos” se reúnem nos arredores da árvore levantando a mesma do chão e dando gritos de “Viva São Bernardo”. O Juiz do mastro dá a voz de comando para a saída em direção à matriz, é ele quem se destaca por ser possuidor de um saber especial.

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possibilidade de explicar quaisquer infortúnios que atingissem as pessoas, como também era capaz de fornecer os mecanismos necessários para combater e curar suas vítimas. Os adivinhos se apresentavam como portadores de um saber raro, prestigiado. Tais saberes só se tornavam possíveis e conectados por meio de um acúmulo de esforços pessoais.

Abro um “parêntese” para indicar que até esse ponto já é possível demarcar algumas dualidades do “saber especial” adquirindo prestígios num modo de vida específico onde cada esfera se caracteriza em um nível que vai ao encontro da apropriação pessoal. Dito isso, a simbologia presente na imaginação dos participantes associa a figura do juiz do mastro com a figura do rei, mestre, autoridade, imagem enquanto soberano mago e guerreiro.

[...] Este é o gerente, é o que puxa os outros. É o que arrasta, é o principal. Quando ele fala todo mundo obedece, e num é com raiva não. Todo mundo respeita e segue. É ele quem comanda, quem organiza, é o da frente. Não sei como seria essa festa sem a presença dele, porque é ele que incentiva, que ajuda e aconselha os outros (LUÍS SOARES MONTEIRO, 2013).

Na festa, essa figura se assemelha com a do bom soberano, aquele que exerce sua autoridade sem excesso, ao contrário do que mostrou Pritchard quando disse que, apesar dos adivinhos possuírem um significado fundamental devido ao papel de proteção que exerciam contra a bruxaria, eram também segundo ele, seres arrogantes e intimidadores. Essa noção conecta-se, portanto, a ideia de que nos diferentes modos de vida de uma dada sociedade, relacionar-se está muito ligada à incorporação ou captação de valores interiores e exteriores ao corpo social.

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Assim, a festa é também provida de regras. Estas regras devem ser respeitadas, como forma de expressar o que está sendo festejado. O sentido de regra é pensado como sentido de regulação. A isso, pode-se associar as observações de Elinor Ostrom (2005), quando destaca quais as regras que orientam e fazem parte de nossas interações e ações cotidianas. Para a autora, as regras podem ser pensadas como um conjunto de instruções para criar uma situação de ação num ambiente particular. Tudo o que o indivíduo enfrenta em qualquer situação seja ela de caráter particular ou não ele é afetado pelas regras ou pela ausência destas que estruturam a situação.

A autora ainda pontua que regras são criadas por humanos para estruturar uma situação e que, em determinadas situações elas não necessitam ser escritas, nem resultar de procedimentos formais legais. Regras institucionais muitas vezes, são, conscientemente criadas pelos indivíduos para mudar a estrutura de situações repetitivas que eles mesmos enfrentam. Neste caso, as funções desempenhadas pelo juiz do mastro se inscrevem como uma tomada em que as regras não são autoformuláveis, determináveis ou autoimpositivas, são agentes humanos que lhes formulam, que as aplicam em situações particulares e que desempenham conscientemente com elas uma linguagem humana. É a partir dessas funções que podemos entender a representação de papéis exercidos pelo juiz do mastro e, também, como sendo ele símbolo do arquétipo, do herói que representa a sabedoria e o conhecimento em determinadas circunstancias de espaço e tempo, e como às regras se aplicam em determinadas situações de ação.

Durante o percurso, vários rituais se repetem no cortejo como as diversas festas e serestas montadas em frente às casas que recebem o mastro e fazem as doações. Esses rituais ganham valores simbólicos e se aproximam daquilo que o representam, pois, como também observou Victor Turner (2008), para outro contexto, rituais são dramas que se representam. Ele afirma que rituais podem emergir de dramas sociais como forma de ação reparadora que é exatamente o que se observa no ritual da festa. O mastro é a chave para a reparação de possíveis conflitos que venham ocorrer.

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mastro pedindo bênçãos para arrumar um casamento, ou quando as velhinhas choram e dançam ao som dos instrumentos.

O corpo que equilibra a cuia feita de cujuba cheia de farinha ou a lata com água tirada do rio deixa de ser simplesmente uma forma de realizar as atividades do lar e passa a ser, também, parte integrante da devoção e fé depositada no padroeiro São Bernardo. Neste sentido, essas mulheres encenam sua fé, seja pela devoção, seja pelo desejo que o santo interceda por seus pedidos e que estes sejam respondidos. Desta forma, o ato de acreditar e colocar seus desejos nas mãos de um ser divino adquire uma tonalidade particular que ressignifica o cotidiano, o pueril, a normalidade.

Em meio aos frevos, marchinhas e dobrados que são tocados, acontecem as tradicionais paradas na casa de devotos que fazem promessas ao santo, oferecendo doações diversas. A primeira parada constitui-se na doação da cachaça, seguida pelas laranjas e pelos fritos. Com o mastro, os homens entram na casa dos devotos, previamente e tradicionalmente escolhidos: o primeiro encarna a sacralização do espaço no interior da casa, no âmbito do privado; o último faz os agradecimentos aos donos da casa. Recebem as doações, tocam músicas, espocam foguetes e depois saem dando gritos de “Viva São Bernardo”. Este ritual acontece em todas as paradas.

Todos estes gestos intermediados por uma divindade envolvem a reciprocidade, um constante dar, receber e retribuir, que nos retorna às ideias de Mauss, quando da sua análise nas manifestações do Kula - troca de colares e braceletes entre os trobriandeses, e do potlatch, ritual de oferta de bens e de redistribuição da riqueza entre tribos indígenas (MAUSS, 2003). O papel da dádiva, como nos ensinava Mauss, é uma regra moral, regida por um principio de honra e reciprocidade contendo, portanto, uma dimensão simbólica que se impõe sobre a sociedade.No momento da doação, não é apenas o bem doado que é entregue, mas toda uma carga espiritual que liga os indivíduos ou as divindades, através do bem doado Mauss (2003, p. 212). O gesto significa a saudação ao padroeiro e aos donos da casa. Nas palavras do senhor Francisco Bernardo de Lima (Biar):

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obedece, sempre respeitando, recebe a doação, a banda toca mais uma ou duas músicas e depois o mastro sai pra frente. Frevo, samba e forró só são tocados nas paradas. Forró pé de serra, dobrados e o hino de São Bernardo são tocados quando vai chegando na capela.

Nas paradas, sai o café com bolo, sai a laranja, sai a tangerina, sai essas besteirinha. Mas, o certo mesmo é a cachaça, as laranjas e os fritos. Sai bebida pra da pros pessoal, quem correspondi tudim é o Chico Rosa aqui! Dou o “viva” do dono da casa, dou o “viva” da bebida. Os donos da casa ficam alegres, eles que permitem. Não é contra vontade, o povo tem gosto, já fica esperando (FRANCISCO ROSA DE

SOUSA, 2013).

Partindo de uma análise constituída através da dádiva, na qual a obtenção da graça é retribuída ao Santo que a concedeu, pode-se identificar como o indivíduo se relaciona com o sobrenatural e como se estrutura a sua visão de mundo. Ao longo do percurso ao som de instrumentos musicais como a sanfona, a zabumba e o triângulo, o povo se diverte acompanhando o cortejo.

Além dos foguetes sem cessar, o cortejo é iluminado pelas velas, lanternas e pelas luzes de carros e motos que acompanham a puxada. É comum organizarem, durante a peregrinação, barracas com vendas de água, refrigerantes, bebidas e comidas. O seu sentido é de confraternização e alegria durante o cumprimento de um longo ciclo ritualístico em devoção a São Bernardo. Para os homens que carregam o mastro são oferecidas doses de cachaça, tudo controlado pelos mordomos. Atrás do cortejo, vem sempre um caminhão de apoio para apanhar os que pelo caminho ficam embriagados.

Durante o cortejo, o primeiro mordomo Francisco Rosa de Sousa (Chico Rosa) desloca-se o tempo todo, controlando, com restrições, o jogo sexual, e certificando-se se tudo está ocorrendo bem, para que os homens preservem as relações de respeito e não tomem gosto com as moças durante o período de peregrinação, além de também "puxar" as músicas junto aos “cabeças brancas”. Infligir ou quebrar uma regra é uma opção que está sempre disponível para os participantes durante o cortejo, mas, associado à quebra de regras, há o risco de eles serem monitorados e sancionados. Obedecer ou não obedecer às regras implica consequências para quem não as cumpre (OSTROM, 2005).

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Se no passado o ritual contava com a presença de algumas senhoras, atualmente percebe-se um cortejo cheio de jovens moças, incluindo as filhas dos mordomos e organizadores mais ativos. O segundo mordomo Antônio Pereira da Costa (Toinho), geralmente é responsável por distribuir e controlar as doses de cachaça entre os homens que carregam o mastro. O terceiro mordomo Francisco Moreno Silva (Sabido) fica responsável por fiscalizar e proteger as laterais evitando brigas, além de ser um dos principais a puxar os gritos de Vivas.

Na chegada à meia noite do mesmo dia na capela de São Sebastião, na entrada da cidade, é montada outra festa para receber o mastro. Na ocasião, cabem às mulheres do tambor de crioula à responsabilidade de alegrar o ambiente, oferecer boa música e divertir o povo.

Quando o mastro chega, a multidão abre caminho para que os homens o levem para dentro do santuário da capela de São Sebastião. A capela, pequena para tanta gente, enche-se rapidamente, e parte da comunidade assiste a celebração do lado de fora. O mastro é jogado três vezes para cima com gritos de viva São Bernardo e em seguida é colocado do lado de fora do santuário até o dia do fincamento. Ao final da noite, as pessoas ainda permanecem por um bom tempo nas imediações da capela. Agora é hora da despedida, principalmente daqueles que vem de “fora” por ocasião de uma promessa ao padroeiro - especialmente para acompanhar este primeiro momento da festa e, que, são impedidos, por motivos de trabalho, de continuarem, precisando retornar as suas atividades.

No dia seguinte, dez de agosto, é oferecido na casa do segundo mordomo, um almoço para todos os que da festa participam. Trata-se de um momento de confraternização das famílias, de descontração, prosas e risos. É, sobretudo, um momento de pagamento de promessa, pois é sempre oferta de uma família, a qual expressa uma dádiva. Marcel Mauss já definia a dádiva de modo amplo, uma vez que ela inclui não só presentes como também visitas, festas, comunhões e outros. A dádiva segundo o autor está presente em todas as partes. Ela pode apresentar-se em sorrisos, gentilezas, palavras, hospitalidades, presentes, serviços gratuitos, dentre outros.

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Esta última significando um princípio moral (MAUSS, 2003). Segundo Mauss, recusar o alimento equivale também, recusar a aliança e a comunhão.

Na festa, momentos importantes parecem todos demarcados por formas específicas de preparação, apresentação, distribuição e consumo de alimentos. Ao entregar o alimento, recebe-se a luz que é revertida para o presenteador e é esse ato que estabelece a ligação entre o indivíduo e a divindade, possibilitando a comunicação direta entre os dois. O alimento está coberto de representatividades simbólicas específicas. O local quase sempre preferido para receber os devotos e brincantes é a sombra de uma mangueira no quintal e por isso também precisa de atenção especial, principalmente, porque é lá que os homens tocam, cantam, comem e espocam foguetes.

Por volta das 16 horas da tarde, com a chegada dos devotos, momento de comoção e alegria os organizadores pegam o mastro e colocam sobre ele o responsável por carregar a bandeira (que contém a imagem do santo padroeiro). A evidência da noção de relações de gênero é novamente expressa sendo demarcada pelas categorias homem e mulher, em que o primeiro desempenha papel de destaque nessa etapa do ritual.

No entanto, é necessário enfatizar a ocorrência da morte do responsável pela bandeira. Fazendo uso do modelo de drama social instituído por Turner (ruptura, crise, intensificação da crise, ação reparadora e desfecho). A tradição da Bandeira do Mastro passa por um momento de intensificação da crise, partindo para uma ação reparadora cujo desfecho somente o tempo será capaz de determinar. Na ocasião da saída do mastro, uma grande procissão toma conta da rua principal da cidade, dando início ao cortejo até a igreja matriz.

Os participantes acompanham o carregamento do mastro, tendo à frente os dez componentes da bandinha de música “cabeças brancas” que animam a multidão e seguem o cortejo de carregamento até à igreja, fazendo paradas e tocando os instrumentos. Estes são os sinais anunciadores da chegada da entidade que, com a sua presença, confere ao momento todo um peso de sacralidade (PRADO, 2007).

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representativa na medida em que o objeto em questão abrange significados múltiplos e interconexos. Turner enfatiza como símbolo de condensação, uma espécie de liberação de tensão emocional de forma tanto consciente como inconsciente, e essa descrição se faz notória quando os devotos visualizam a chegada da romaria e de seu objeto principal.

É neste local onde gestos e rituais divinos são reatualizados e cujo espaço vai sacralizando-se durante o percurso, transformando o caos em cosmos. São momentos tradicionais e devocionais que envolvem a religiosidade. O mastro é o símbolo que liga o céu e a terra fazendo a mediação entre os devotos caboclos e o padroeiro São Bernardo. Esse é o seu principal significado, uma relação entre os homens e o sagrado, mediado pela natureza. Outra multidão espera nos arredores da igreja Matriz. Local em que se torna espaço de peregrinação religiosa e que circunscreve por excelência a sacralidade da festa.

Quando chega a igreja, os sinos badalam. A igreja funciona como uma ponte, uma porta de ligação do homem (ser terreno), ao cultuar um ser celestial, o mastro é também essa ponte e essa porta. Caberia mencionar, nesse sentido, as observações de Mircea Eliade (1992, p. 19) quando, ao analisar as relações entre o sagrado e o profano, tenta demonstrar que a porta, ao menos num templo, não é tão somente uma passagem física, posto que está totalmente imbuída de sentidos outros. Em suas palavras: “A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso”.

Após adentrá-la, o mastro é jogado três vezes para cima, demarcando a abertura de mais um ano do festejo. Em seguida, o pároco dá a benção em louvor e saudação ao santo, cujo sermão e outros ritos são marcadamente para afirmar que a festa em homenagem ao padroeiro está começando. Além do sermão, as músicas e a participação da comunidade reforça a importância da devoção. Após a benção dos fiéis, realizada pelo pároco e com todos os paramentos eclesiásticos, dá-se como que uma virada no ritual, posto que ele passa a ser dominado pelo tempo eclesiástico.

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e dinheiro”. Nessa hora, são jogados bolos, biscoitos, pipocas e bombons para as pessoas que se encontram no local onde ele é fincado (praça da igreja a matriz).

Quando é pra botar os prêmios, as mulheres não procuram outra pessoa, só eu. Aí na hora da amarração das galinhas, tem um que vem, chega e bota 10, bota 20, bota 30, bota 50. E eu amarro tudim nos pés das galinhas. Eu fico ali, porque se eu sair dali as negradas tira. Então eu digo, olha negrada, o valor dessas duas galinha aqui é 200 reais, e no pé delas aqui vai amarrado quatrocentos reais, quem ir buscar, é joia do padroeiro São Bernardo que ele manda botar, vocês podem irem buscar que é de vocês. Aí quando eles sobem que não acham esse dinheiro eles ficam doido (risos). Eu boto longe, bem alto, perto da bandeira. [...] As cruzetas é tirada lá na Lagoinha, o Sabido é quem tira. O Sabido da conta das tesouras feitas, da conta das cordas, da conta do buraco escavacado [...] Qualquer um pode da a joia, os prêmios. Qualquer um pode botar o dinheiro lá em cima, quem faz promessa, é promessa sempre (FRANCISCO ROSA DE SOUSA, 2013).

Levantado, pois, o mastro assim permanecerá até o final do festejo, passando ainda de dois, três até quatro meses fincado, sendo, então, ritualmente derrubado. Essa cerimônia é geralmente dirigida pelo segundo mordomo que, na ocasião torna-se uma espécie de leiloeiro, encarregado de lançar preço entre os interessados (seja para fazer cadeira, mesa ou porta). Além disso, caso manifestem interesse, mordomos de cidades vizinhas podem pedir emprestado o mastro para ser levado para outros festejos. Já que nessas cidades, não existem áreas com reservas de árvores propícias para a derrubada. O mordomo apanha-lhe a bandeira e a leva para sua casa. Caso seja leiloado e não doado, o dinheiro contribui para o abatimento das despesas arcadas pelos mordomos da festa. Mesmo porque, a maioria dos gastos concernentes ao cerimonial de levantamento (foguetes e comidas) ocorre por sua conta.

Eu sou encarregado de passar o mastro, do maranhão pro Piauí. Sou convidado para tudo quanto é mastro na região. Todo mundo me convida, é uma emoção. O pessoal vem todo de baixo do mastro. O mastro fica passando. Daqui vai pra Luzilândia, de Luzilândia vai pra Esperantina, fica passando, anda de mais. Quando não da para fazer porta, só da pra festejo mesmo. [...] A nossa tradição do mastro é desse jeito. [...] O mastro é tirado na ladeira, acontece à festa, depois ele é derrubado, leiloado ou doado - o santo empresta, vai pra Luzilândia, de lá vai pra Esperantina e se acaba pra lá. Mas, nasce aqui e daqui é que vai pras outras regiões. O mastro daqui é mais pesado, mais forte (FRANCISCO ROSA DE SOUSA, 2013).

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mundo como simples “coisas ou objetos” e passam a fazer parte da sacralidade cósmica. E, no todo, o cosmo pode tornar-se uma hierofania (ELIADE, 1992).

A isso podemos associar a árvore tirada no mato e convertida em mastro pelo ritual. Isto é, ela é transformada em sagrada no momento em que acontece todo um ritual, na mesma época do ano, com as mesmas pessoas ou seus descendentes envolvidos em toda a ritualística preparatória. Quando começa o corte, a árvore já começa a ser investida de componentes que permitem a sua modificação de condição. Durante o cortejo até a matriz, ela vai se tornando cada vez mais sagrada, na medida em que recebe, até certo ponto, a autorização das autoridades eclesiásticas. Nesse percurso, todos os acontecimentos vão ganhando uma aura de religiosidade, inclusive, o próprio ato de beber no ritual, como se pode captar no relato desse entrevistado.

O senhor acha que a festa deixou de ser religiosa?

- Não. Eu não acho que deixou de ser religiosa porque a maioria das pessoas que participam da festa vão ali para prestar suas homenagens ao padroeiro São Bernardo e agradecer pelo que o padroeiro fez de graça na vida deles, as bênçãos que receberam, os milagres. [...] Esses homens que ficam no meio do caminho bêbados, até eles são religiosos, porque se não tivesse a festa eles não iam ficar bêbados. Então, lá no fundo se agente prestar atenção bem, mesmo aquele que fica bêbado está participando de uma festa religiosa. [...] Existe pessoas que dizem assim, principalmente pessoas de outras religiões: “há mais isso ai não tem nada de religioso, isso ai não tem nada de sagrado, isso ai tudo é só uma desculpa pra beber cachaça, só isso”. Só que essa opinião deles pra nós não serve, porque por mais que algumas pessoas às vezes meta uma lapada, uma dose de cachaça nos peito, tomem um litro de tiquira todim isso não impede de acontecer a religiosidade na festa. Não importa se ele tá bêbado, até porque isso faz parte da brincadeira pra ele puder aguentar a caminhada, o repulso. As vezes eles ficam bêbados, num sabe nem o que ta se passando, mas, ele ta no meio, ele foi participar da festa religiosa, participar da festa do mastro que é o inicio das homenagens a São Bernardo. Sem beber não tem festa, tem que beber para existir a festa (FRANCISCO MORENO SILVA, 2013). .

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Uma festa religiosa que não necessitaria da presença do representante da igreja para ocorrer, visto que são os caboclos os seus principais defensores e organizadores. Dentro da esfera institucional católica, inclusive, não faltaram momentos nos quais os representantes eclesiásticos questionaram a continuidade e importância da festa, obtendo forte resistência das frações locais do laicato:

Teve um tempo que um padre quis proibir a festa aí num prestou não viu. Eu disse: Padre, peço que você não tutuque no mastro do padroeiro, deixe o mastro do padroeiro em paz, porque se você mexer com o mastro do padroeiro, você vai mecher com a nação, aí não vai da certo pro senhor. Pode entrar padre que entrar, mas a comunidade não aceita acabar (FRANCISCO MORENO SILVA, 2013). Ora, um tempo desses chegou um padre aqui que quis proibir o mastro, teve até um pastor aí de uma igreja que queria até botar a polícia lá na frente e queria ver se o mastro passava. [...] A tradição desse mastro aí não pode se acabar. Eles lutam pra acabar mas não acaba não, de jeito nenhum, porque é uma tradição muito forte e agente não deixa ser vencido, não deixa ser vencido pelo cansaço (FRANCISCO ROSA DE SOUSA, 2013).

De acordo com os relatos, a população não aceitou de maneira passiva todos os ideais da igreja católica, continuando com a festiva celebração tradicional. Cabe mencionar que, em muitas festas de mastro já existem, inclusive, os patrocinadores que, independentemente do apoio clerical, colaboram todos os anos para que a festa aconteça. Mesmo o padre se negando a rezar a missa, a festa acontecerá, como se pode evidenciar nos relatos acima onde, mesmo tentando proibir, o povo não deixou de realizar a festa. Portanto, ainda que a instituição não concorde, pois, o pároco assim a representa, à festa ocorre da mesma forma. Atualmente, segundo relatos:

O padre, “nem apoia e nem atrapalha. Como não é organizada por ele, diretamente, ele não da apoio, mas como muitas pessoas da comunidade que participam da festa faz parte da paróquia dele, da igreja, ele também não atrapalha. Este ano ele até rezou a missa antes do levantamento, disse umas palavras de fé, abençoou e tudo mais, foi muito bunito o discurso dele. Mas, no ano passado teve um fato que me deixou desconfiado. Furaram um rapaz lá na ponte da ladeira no dia da puxada, então, foram anunciar pra polícia pra dizer que tinha sido dentro do nosso movimento, que era pro padre puder acabar com o mastro. Mas, perderam tempo. Quando foi uma hora, depois do almoço, a polícia baixou aqui e mandou me chamar, alegando que a briga tinha sido no decorrer da festa. Quando eu sai já foi invocando o nome do padroeiro, eu disse tanta palavra bunita e sincera que os policiais foram tudo embora e nunca mais voltaram (FRANCISCO ROSA DE SOUSA, 2013).

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A Festa do Mastro evidencia uma manifestação de fé e a estrutura que cerca o ritual em toda sua simbologia. É por meio dessa manifestação popular que a comunidade mantém suas características garantindo a manutenção de símbolos e valores que a transforma em uma grande celebração no centro do universo místico religioso, atuando na memória e fortalecendo os vínculos sociais e o sentimento de pertencimento, formando espaços de socialização e de construção da identidade. Neste sentido, compreendemos essa manifestação como um momento de prazer e manutenção de costumes, tradições e especificidades culturais. Dentro da estrutura campesina, esta festa reveste-se de um caráter material, incluindo símbolos, rituais e devoções. Através dessa manifestação, compreendemos a relevância e o significado da tradição popular no universo cultural campesino, ao mesmo tempo em que os laços de sociabilidades, trocas culturais e preservação das tradições são reatualizados.

Considerações finais

Através da análise etnográfica desta festa, resgatando as origens desse ritual, sua simbologia e as suas transformações, conclui-se que a festa do mastro se apresenta como um fato social total. Trata-se de um evento religioso com grande importância para o grupo social caboclo. A árvore transformada em mastro representa a capacidade e a força natural de cada homem com suas múltiplas realidades que se associam a organização no sentido de constituir a valorização e devoção aos santos protetores. Essas formas de se comunicar e fazer promessas por meio da puxada do mastro permitiram pensar que as crenças humanas estão sempre intimamente ligadas com a crença do sacrifício e realização.

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