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Vanitas: imagens e alegorias da morte na aurora da Era Moderna. Rodrigo Medina Zagni

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Academic year: 2021

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“Vanitas: imagens e alegorias da morte na aurora da Era Moderna” Rodrigo Medina Zagni

“Eu fecho meus olhos / apenas por um momento / E o momento se vai / Todos os meus sonhos / passam diante dos olhos curiosamente / Tudo o que eles são é poeira ao vento. A mesma velha música / Apenas uma gota d’água / Em um mar infinito / Tudo o que fazemos / destroça-se ao solo / Embora nós nos recusemos a ver / Todos o que nós somos é poeira ao vento. Não desperdice um minuto / Pois nada dura para sempre / Apenas o céu e a Terra / Tudo isso irá embora / E todo o seu dinheiro / Não comprará um minuto a mais neste mundo/ Poeira no vento / Tudo o que nós somos é poeira ao vento.” Steve Walsh; “Dust in the Wind” O excerto consiste na letra de uma canção da banda setentista de rock progressivo “Kansas” e cumpre a função de introduzir os temas centrais desta exposição uma vez que nela estão inscritos os elementos de que trataremos aqui: transitoriedade, efemeridade, a passagem fugaz da vida e a aproximação inexorável da morte.

Daremos início a esta exposição com uma incursão pela História da Arte a fim de nos conectarmos, uma vez caracterizado o subgênero da pintura de natureza-morta designado como Vanitas, com parte da iconografia Maçônica que, uma vez analisada, nos possibilitará refletir sobre os seus sentidos e significados.

Nosso percurso inicial requer um necessário exercício de taxonomia, ou seja, de classificação, a fim de localizarmos adequadamente o nosso objeto:

Até o séc. XIX, quando do desenvolvimento das técnicas de fotografia e sua posterior difusão, a pintura carregava o pesado fardo de ter que mimetizar a realidade, convencionando-se que a qualidade da obra se media por quão próxima estaria ela do plano da realidade. Marcada por essa função social primordial, seus gêneros tradicionais podem ser classificados da seguinte forma:

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 A pintura de paisagens, que se difundiu sobretudo nos Países Baixos, cuja religião preponderante protestante condenava a idolatria e passava, com isso, a excluir do mercado de arte a produção de pinturas sacras ou mitológicas, viabilizando a produção de paisagens e retratos, como no exemplo de Jacob van Ruisdael, Castelo de Bentbeim, de 1653.

 A pintura histórica, tipo de pintura revestido de um caráter didático e que vocalizava a narrativa histórica oficial dos vencedores, sendo comuns as cenas de batalhas e de ações de conquista que, comumente, serviram de instrumento de legitimação de um “nacionalismo oficial” que comporia, junto de outros itens diversos, o que podemos chamar de uma “mitologia da nação”. É o caso, por exemplo, de Ernest Meissonier, na tela Le siége de Paris, de 1870, e que trata do suplício sangrado pela população parisiense ao cabo da Guerra Franco-Prussiana.  A pintura sacra ou religiosa, tratando-se de temática ligada sobretudo à autoridade cristã, cabendo-se ressaltar que a Igreja, durante séculos, foi o mais importante comprador de pinturas desse gênero. Dentre os vários exemplos clássicos, destacamos o quadro de Tintoretto,

A Última Ceia, tela datada de 1592?1594.

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como no sutil exemplo de Pierre Nicolas Huilliot, Natureza-Morta com Instrumentos, datada do ?séc. XVII.

Apresentados os gêneros tradicionais da pintura, fixemos nosso foco sobre a pintura de natureza-morta, a começar pelo nome dado a este gênero. Sua etimologia remonta ao termo Still-leven, de origem holandesa e cujo uso se verifica, de início, entre os séculos XVI e XVII. É este termo que dá origem ao inglês Still-Life; Nature-morte em francês; Natura-morta em italiano; e Natureza-morta em português.

Antes de 1650 o termo não era utilizado e, quando cunhado, se deu a definir a pintura de objetos inanimados, inicialmente elaborada nas escolas de pintura como um mero exercício de composição no qual o aprendiz deveria retratar sobre a tela os objetos dispostos a sua frente por seu mestre de ofício.

Ao contrário da pintura religiosa e mitológica, ela está enraizada no mundo real, no universo sensível e fenomenológico, sendo dotada de uma simplicidade aparente: trata-se de meras cópias da realidade, desprovidos os seus criadores tanto de imaginação quanto de intelecto porque nada criam, senão copiam. Porém, trata-se de uma simplicidade enganadora, isso porque os objetos retratados não são neutros, ou seja, caveiras ou flores, por exemplo, têm significados profundamente simbólicos e carregam consigo mensagens que deveriam, portanto, serem decodificadas. Logo, os objetos representados na Natureza-Morta normalmente exprimem significados para além daqueles que são imediatamente aparentes.

Este gênero, nomeado apenas no séc. XVII, carrega contudo uma tradição que data desde a Antiguidade Clássica. Na Grécia Antiga, objetos do dia-a-dia compunham murais, mosaicos e painéis; também alimentos, do grego xênia (que significa refeição), eram representados sobre esses suportes; mas não restou registro dessas obras a não ser as referências constantes na literatura clássica e que ressaltam o realismo de que eram dotadas, capaz literalmente de enganar o olhar do observador.

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Zéuxis teria pintado uvas de tal forma realistas que as aves, enganadas pela impressão de realidade, teriam descido dos céus para tentar comê-las. Inspirado nessa descrição sobre a obra de Zéuxis, Juan de Espinosa, em 1630, pintou a tela Natureza-Morta com uvas tentando recriar a mesma ilusão. Nela, é possível ver as aves de que tratara Plínio, debicando as frutas.

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Esta passagem foi repetida incontáveis vezes em tratados de arte na Antiguidade e no período medieval, enaltecendo a capacidade de os pintores clássicos criarem imagens ilusórias possíveis apenas àqueles que dominassem com maestria as regras de perspectiva, luz e sombra, regras de geometria, física e química (esta para a composição exata das tintas), ou seja, saberes considerados heréticos pela autoridade eclesiástica desde assentada sua autoridade no período medieval, dado o monopólio dos saberes engendrado pela Igreja e que de tal forma perseguiu o que considerava heresias que obrigou estudiosos dessas áreas a se organizarem em segredo, motivo pelo qual grande parte dos pintores passaram a constituir os quadros das mais importantes ordens secretas do Ocidente.

Essa tradição de natureza-morta ilusionista, inaugurada pelos gregos, foi continuada pelos romanos que também pintavam objetos cotidianos em pinturas de parede e mosaicos, geralmente compondo a cena de obras de arte maiores.

Este realismo que pretendia enganar o olhar do observador por meio de representações ilusionistas de objetos inspirou pintores renascentistas como Caravaggio, que na tela Cesta de Fruta, pintada no convulsionado séc. XVI, imitava as perdidas naturezas-mortas da antiguidade clássica. É possível notar, nesse caso, como a fruta já tocada e danificada pelos insetos desafia as noções aceitas até então de beleza ideal (predominantemente gregas) a favor de um realismo radical.

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Exemplo disso é a obra de Carlo Crivelli, a Anunciação com Santo Emídio, de 1486, na qual a maçã aparece como símbolo do pecado enquanto a abóbora representa a Ressurreição. Esses significados, todos eles concernentes a elementos do reino vegetal, segundo Joseph Campbell, na obra O poder do mito, referem o ciclo de morte e renascimento observável nas plantas, na medida em que uma nova vida depende, para surgir, de formas fenecidas; enquanto no reino animal a morte, via de regra, é associada à finitude.

A natureza-morta surge como gênero de pintura entre os séc. XVI e XVII, quando esses pormenores começam a aparecer como temas de direito próprio; período em que o termo natureza-morta

é cunhado referindo-se, como já dissemos, a um mero exercício de composição.

Por volta de 1660 o gênero é reconhecido pela Academia de Belas Artes da França como natir mortir (natureza-morta), relegada a condição mais baixa dentre os gêneros de pintura por tratar-se de uma arte de imitação pura e simplesmente, carente de originalidade.

Visto o que é o gênero natureza-morta, passemos agora aos seus subgêneros tradicionais, organizados a partir de seus mais recorrentes temas:

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era a de que as imagens parecessem tão reais que aguçassem, além da visão, o apetite do espectador, capaz portanto de ativar seus sentidos e, a partir deles, despertar seus desejos.

 Recipientes ou bodegones: um tipo elementar de reprografia, muitíssimo utilizado como exercício de composição nas academias de pintura nos quais aprendizes deveriam reproduzir mesas postas, montadas a sua frente por seus mestres, via de regra poderia compor-se com elementos do subgênero anterior, ou seja, comida, como no caso da tela de Jean-Baptiste Siméon Chardin, Copo de água e jarro, de 1760.

 Flores: trata-se também de uma arte de reprografia e esteve entre os primeiros temas de natureza-morta que chegaram efetivamente ao mercado de arte europeu, também o mais persistente e apelativo dentre os demais temas dado o seu potencial decorativo. Como no caso da tela de Jan Brueghel, Grande bouquet de flores numa tina de madeira, de 1606?1607, tem a vantagem de preservar o efêmero, dado que a beleza real das flores depende de seu curto tempo de vida e que seu destino inevitável é o fenecimento.

Morte: também nominado Vanitas ou Memero mortis, trata-se da representação de caveiras, esqueletos, ampulhetas, castiçais, relógios, flores ou frutos fenecendo, eventualmente à mercê de insetos como moscas e outros tipos peçonhentos, bem como demais objetos que simbolizam a efemeridade e a transitoriedade da vida, ao passo da inevitável aproximação da morte. Parte desses elementos estão presentes no clássico exemplo de Barthel Bruyn o Velho, a tela de nome Vanitas, de 1493?1555.

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O desenvolvimento de um intenso mercado de arte e de um ativo mecenato, ao longo do séc. XVII, ajudou para que o gênero se popularizasse e para que a pintura de natureza-morta fosse consumida entre governantes, príncipes e a classe média emergente, conformando um novo mercado de arte, fundamentalmente burguês e principalmente nos Países Baixos, onde o desenvolvimento das altas finanças, em tempos de hegemonia holandesa no nascente sistema-mundo capitalista, culminou no fenômeno do alto consumo de bens culturais, desvelando que o plano da cultura era elemento indispensável para a conquista e manutenção de uma condição hegemônica que, segundo o Antonio Gramsci consiste na composição entre domínio direto (promontório da economia e da política, incluso das armas) e liderança intelectual e moral (âmbito da cultura), a fim de compor um tipo indemovível de poder.

A Holanda foi palco do florescimento da Natureza-Morta por conta das mudanças sociais e econômicas que ali se operaram. Em 1609 o norte dos Países Baixos obteve sua independência do governo católico da Espanha, ou seja, libertou-se do império católico dos Habsburgo, tendo a Nova República adotado oficialmente o calvinismo reformado, doutrina religiosa protestante que proibia a produção de imagens religiosas. É preciso dizer que isso impactou diretamente o mercado de arte holandês uma vez que na Europa, até ali, a Igreja era o principal comprador de pinturas.

Dadas as poucas encomendas, os artistas holandeses viram-se obrigados a voltar-se para um mercado doméstico e privado, especializado em temas voltar-seculares, fundamentalmente nos gêneros: retrato, paisagem e natureza-morta.

Houve também uma relativa popularização do mercado de arte, agora acessível à burguesia comercial e aquecido com o implemento de vendedores de quadros e casas de leilão, além dos já célebres ateliês e galerias de arte: nascendo com isso o que podemos chamar de um mercado moderno.

Dentre as funções sociais atribuídas a este gênero, a prosperidade econômica holandesa valeu-se das naturezas-mortas para difundir ao mundo a variedade de objetos preciosos e de luxo, flores e alimentos como objetos de desejo, inserindo a produção artística, e não apenas sua circulação, na lógica da acumulação de capital que proporcionara, naquela realidade, o advento do consumo exacerbado de bens culturais. Além disso, a capacidade que os pintores de natureza-morta demonstravam em criar uma ilusão da realidade era admiradíssima no séc. XVII, despertando o fetiche de uma burguesia ávida em consumir qualquer item que pudesse lhe proporcionar ainda mais prestígio social, função eminentemente burguesa então da pintura.

Apesar de em número e variedade o gênero ter sido desenvolvido primordialmente na Holanda, ainda no séc. XVII a natureza-morta difundiu-se por toda a Espanha, chegando também à Itália com o objetivo de representar o mundo natural de forma realista.

Dito isso, passemos a tratar então do subgênero que nos interessa.

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É o caso de São Jerônimo, aqui representado por um pintor anônimo flamengo do séc. XVI e tendo a caveira ainda outra função: a de apontar a localização do Gólgota, o local da caveira, o mesmo que dizer: o local da crucificação de Jesus Cristo. Também é o caso de Maria Madalena, que na imagem de El Greco, pintor do séc. XVI, que na tela Santa Maria Madalena também aponta o lugar da crucificação, referindo ainda sua penitência. Outro exemplo clássico é o de São Francisco de Assis, na imagem de Caravaggio, São Francisco de Assis meditando, de 1606, cujos sentidos teológicos acabam definindo marcantemente este sub-gênero. Sabemos que Giovanni di Pietro di Bernardone, canonizado como São Francisco de Assis, foi um dos mais expressivos nomes dos movimentos mendicantes de desafiavam a opulência do poder eclesiástico no séc. XII, pregando uma vida mendicante, praticante e dependente da caridade, defendendo o desapego dos bens materiais. Tendo sido incompreendido pelo pai, rico mercador apegado a toda ordem de bens e de prazeres mundanos, Francisco de Assis teve enorme influência sobre a cristandade abandonada pelo Poder Eclesiástico em razão de as ordens monásticas, morada do currupto Alto Clero, estarem, a esse tempo, enclausuradas em monastérios e distantes demais do cotidiano dos povos europeus. São inúmeras as imagens que trazem São Francisco de Assis segurando o crânio de seu pai e fitando-o como que indagando: “O que levaste de material para o pós-morte?”

Contemplar a caveira, ato referido recorrentemente por esse repertório iconográfico, é fazê-la de memento-mori, ou seja, convertê-la em objeto de reflexão sobre a morte como fizera o príncipe Hamlet, personagem célebre de William Shakespeare, segurando a caveira de Yorick e indagando-lhe sobre os sentidos da existência humana. Esta matriz religiosa dota a percepção acerca da finitude da vida humana de uma certeza: a existência de uma vida futura, esta determinada pelo que fizemos no tempo efêmero de nossa passagem pelo plano terrestre.

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séc. XVII, especificamente a partir da década de 1620, tendo sido o mais ativo pintor desse sub-gênero Harmen Steenwyck, aqui representado pela obra Natureza-Morta: Alegoria sobre as vaidades da vida humana, de c. 1640. O título atribuído à pintura já revela muitos de seus significados: “alegoria sobre as vaidades da vida humana”, a passagem do tempo está referida, como de costume, pelo relógio. A caveira, elemento central da imagem que aparece iluminada por um implacável foco de luz, consistindo em seu ponto máximo de tensão e provocando a atenção primeira do observador, está ladeada de objetos raros e caros como uma espada japonesa e uma concha que referem a futilidade dos prazeres e das posses mundanas.

A precariedade da vida humana, recordada pelos objetos do Vanitas, lembram o espectador sobre a fragilidade da vida e a brevidade de sua existência terrestre; a certeza da morte nos une a todos, independente de condição social, cultura ou fé religiosa: a morte é o evento que, finalmente, nivela a todos, do mendigo ao rei.

Suas primeiras representações como temas de direito próprio foram elaboradas nos reversos de quadros, principalmente de retratos (muitos encomendados por papas, altas autoridades eclesiásticas, príncipes, nobres e ricos mercadores), como um alerta sobre a finitude da vida, a aproximação da morte e da existência de uma vida futura que dependeria essencialmente das virtudes manifestadas em vida e não da riqueza material nela acumulada. A utilização de alegorias para a transmissão desse conteúdo moral levou à publicação dos chamados livros de emblemas, comuns ao séc. XVII e que relacionavam uma série de conteúdos morais a objetos do mundo material.

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A mosca (e insetos em geral), como no quadro de Jan van Huysum, Flores num vaso de terracota, de 1736, é responsável por acelerar o fenecimento de tudo o que é belo, flores ou frutos, dizendo-nos que o mal espreita aquilo que é belo e a transitoriedade da vida, expressa na efemeridade do conceito clássico de beleza, é evidenciada pelas flores que já começam a murchar. Próxima das uvas e dos pêssegos, ela ameaça a própria fonte da vida, no caso representada alegoricamente pelo alimento e, mais radicalmente, pelos ovos, cuja representação simboliza o útero.

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esfacelamento daquilo que, em vida, junto estava), repousa sobre um livro por sobre o qual encontra-se também uma pena embebida em tinta, referindo o registro dos feitos em vida dos quais depende seu destino post-mortem.

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ainda pela inscrição que aparece na tela, em latim: a glória dos feitos gloriosos desvanece-se como num sonho, e todo o sonho é tanto efêmero quanto irreal: a realidade está no porvir da morte.

A maçã, como no exemplo já referido de Caravaggio, Cesta de fruta, de 1596?1597, é o emblema de Vênus e significa amor e desejo, em especial a vermelha que simboliza a fertilidade, enquanto sua forma arredondada indica a imortalidade e a terra; já no Velho Testamento representa a tentação, bem como a redenção de Virgem Maria. Por oposição, a maçã fenecida revela o processo que a levará ao seu contrário: a infertilidade, que nega a vida, e a mortalidade.

O relógio ou a ampulheta são objetos para medir o tempo e, por conta de sua função social, referem sua marcha implacável e, consigo, do inevitável envelhecimento e da morte. Implica ainda na percepção da impossibilidade de voltar no tempo e corrigir o passado, cabendo ao homem no presente a definição de seus destinos futuros que da tela de Espanhol, Natureza-Morta com Livros, datada do séc. XVII, é mais uma vez simbolizada pelos livros e pela pena embebida num tinteiro. O envelhecimento é o caminhar natural do tempo, na imagem do anônimo cujo pseudônimo ficou referido como Espanhol, a ampulheta que mede a passagem do tempo aparece relacionada aos registros dos feitos do indivíduo em vida. Na imagem, os livros não referem apenas às letras como posses mundanas, mas acompanhados da pena e do tinteiro significam que as virtudes terrenas, imortalizadas pelas letras e que trazem ao homem a fama - referência à Francesco Petrarca que no poema Triunfo de la fama desvela os valores vigentes no primeiro humanismo do renascimento. A necessidade de os homens tomarem em suas mãos a própria imortalidade aperece garantida pelo registro das virtudes explicitadas em vida, e não mais garantida pelo poder eclesiástico que declinava na Europa desde fins da Idade Média (séc. XV).

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Remetendo às origens clássicas das representações miméticas de objetos reais, Jan Gossaert, na tela Natureza-Morta com caveira, de 1517, insere sua composição dentro de um ilusório nicho de pedra. A decadência do corpo humano, este que é objeto em grande medida das vaidades humanas, é representada por seu estado completo de decomposição: a esqueletização, pela mandíbula separada da parte superior do crânio e pelos dentes faltantes. Sobre a caveira está inscrita a frase de São Jerônimo, santo penitente e um dos primeiros padres da Igreja: Aquele que pensa constantemente na Morte pode facilmente desprezar todas as coisas. O mais interessante é que esta imagem foi pintada na parte de trás de um retrato e seu objetivo claro era o de lembrar ao retratado da inevitabilidade da morte; portanto, se almejasse o bem viver, teria que entender que sua existência carnal seria finita. Ciente disso, ao incerto e efêmero período de sua existência deveria ser dado valor superior aos vãos prazeres materiais.

Disso, já é possível saber reunindo os elementos aqui dispostos nesse breve percurso; mas o que representa o Vanitas para o Ocidente nos primórdios do Renascimento? Que usos são dados às alegorias da morte na iconografia que neste período circulou?

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Muitos dos objetos que vimos aqui constituindo o repertório simbólico do subgênero Vanitas, estão presentes na Câmara de Reflexões de ordens iniciáticas no Ocidente, tratando-se de objetos que que referem uma morte simbólica, sentido elementar de todo e qualquer rito iniciático: a caveira, a vela, a ampulheta e teias de aranha aludindo a insetos venenosos, fundamentalmente.

Na parede aparece inscrita a sigla V.I.T.R.I.O.L., uma referência à frase em latim cujo significado é Visita o Centro da Terra, Retificando-te, encontrarás a Pedra Oculta (ou Filosofal). Esta pedra filosofal é a arché, conceito presente na filosofia já pré-socrática e que foi tida, dos filósofos materialistas aos idealistas desde Parmênides e Heráclito, a origem de todas as coisas. A indicação expressa na frase nos dá a localização da arché no interior do homem, conceito que se encontra com a concatenação socrática expressa na sentença: Conheça-te a ti mesmo, atribuída a Sócrates por Platão e Xenofonte, que teria vivido na Atenas do séc. V a.C. e de quem ambos teriam sido discípulos. Ou seja, a arché está dentro e não fora do Homem.

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quanto política encarnada pela Igreja; já que a salvação não estaria fora do Homem, como numa autoridade religiosa ou num templo onde deve-se render culto, mas dentro dele.

Se fosseis morrer agora, o que fizeste durante o breve tempo de tua existência? Que sentidos destes a tua vida? Quantas pessoas magoastes pensando haver tempo para redimir-se com elas? A que dedicardes tua vida, ao acúmulo de bens materiais ou morais? O ensinamento decorrente de todas essas indagações é o de que se quizerdes o bem viver, deveis pensar na morte!

A iniciação representa exatamente a morte, no sentido da morte simbólica pela qual deve passar o neófito a fim de renascer para um mundo de virtudes. Por isso, tudo neste rito refere a morte!

Considerações finais:

Notadamente a vaidade é uma das condições existenciais do homem pós-moderno, primordialmente, se pensarmos no sentido da vida, esvaem-se facilmente as convicções de caráter materialista e desvela-se a solidão do homem imerso na lógica das sociedades de consumo de massa, as quais preteriram o ser pelo ter, na qual as posses acumuladas pelos indivíduos no período de sua existência são tidas como designadoras de sua essência, essa que se desvela oca e vazia, como vimos, sinônimos de vaidade.

Vivemos num ciclo sistêmico de capitalismo tardio que a tudo amoedou, penetrando em praticamente todas as relações sociais e dotando-as do fenômeno nefasto da coisificação do outro que, tal qual qualquer item de consumo, uma vez usado é descartado. Esses são os valores da sociedade de consumo de massa, do ter pelo ser, conforme nos dissera Eric Fhromm.

Uma vida em que seus sentidos se restringem a tudo aquilo que é amoedável e venal simplesmente não dá conta daquilo de que precisa a alma humana.

No entanto, tratamos a nós mesmos como se fôssemos revestidos por embalagens, rótulos e slogans, nos cobrindo daquilo que é matérico e que apresenta ao mundo não como somos, mas como somos vaidosos, porquanto vazios, ocos e fúteis.

E tratamos os outros como se coisas fossem, isso porque, hoje, pessoas consomem pessoas e as descartam. Tal qual o ciclo industrial, que fabrica bens de consumo de massa em linhas de produção, pessoas e suas personalidades são fabricadas, postas para circular, consumidas e, tão rápido quanto se descarta um copo plástico, descartadas assim que deixem de cumprir a função imediatista que lhes fora atribuída: seja o sexo como mercadoria, os interesses fiduciários em relacionamentos pessoais e, no extremo, o mais vil e repulsivo parasitismo.

Egoísmo, ganância e narcisismo são as características portanto de uma sociedade soberba, onde a multidão nada quer dizer senão um amontoado de indivíduos isolados, egocentrados, circunscritos aos seus próprios umbigos.

Nos escritos de Edgard Morin, trata-se de uma sociedade em neurose e em necrose. Na obra de Eric Fhromm, trata-se do ter sobrepondo-se ao ser. Nas análises de Erich Hobsbawm, trata-se do próprio mundo contemporâneo como uma era de extremos. Qualquer glória conquistada, numa vida materialista, é vã. Qualquer riqueza é passageira e qualquer prazer é efêmero, dado que a única certeza que temos é quanto à efemeridade da vida e a aproximação inexorável da morte, revela-se que tudo aquilo vazio de sentidos e significados, tudo o que é oco e fútil, incluindo todas as riquezas materiais que possa o Homem acumular, são em verdade, nada.

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Bibliografia

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HOBSBAWM. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995

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WALLERSTEIN, Immanuel. El moderno sistema mundial: la agricultura capitalista y los orígenes de la economía – mundo europea en el siglo XVI. México: Siglo Veinteuno, 1979.

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