• Nenhum resultado encontrado

JOSÉ MANUEL BARATA-FEYO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "JOSÉ MANUEL BARATA-FEYO"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

11

PREFÁCIO

Dormi no Sara rodeado de pinturas rupestres com mais de vinte mil anos e com outras tantas estrelas por tecto, no mais puro céu do mundo; apontaram-me uma Kalashnikov à cabeça para me roubar as botas, numa tribal area do Paquistão; apertou-se-me o coração diante de uns sapatos vermelhos de mulher que sobressaíam no meio dos sapa- tos pretos dos milhares de mortos em Auschwitz; vi as jo- vens pigmeias, nas florestas virgens do Gabão, mastigar a mandioca antes de a meter na boca dos velhos já desdenta- dos; caí numa emboscada montada pelo Exército angolano, com a cumplicidade do «Telejornal» da RTP, e sobrevivi, ao contrário de outros; andei às cegas em campos de minas no Afeganistão; recebi dezenas de ameaças de morte ao fazer a reportagem sobre a tragédia de Camarate; comovi-me com as lágrimas nos olhos de um piloto marroquino pri- sioneiro da Polisário; fui em parte responsável pela morte de soldados e de civis, em África; conheci muitas pessoas extraordinárias em situações extremas e um número bem maior de filhos da puta; pisei as velhas lajes de pedra com

(2)

JOSÉ MANUEL BARATA-FEYO

12

que os portugueses pavimentaram as ruas de Paraty para melhor escoar o ouro do Brasil; cheirei a gangrena nas per- nas estilhaçadas de soldados no Chade; ouvi os gritos dos presos a serem espancados, no Togo, enquanto esperava pela minha vez, e vi morrer gente em combate, e nasceu- -me uma criança no jipe, nas picadas do Burkina-Faso, e vi a ganância nos olhos dos garimpeiros, rente à fronteira do Congo, e o desespero nos olhos dos refugiados que fugiam do Iraque e da guerra…Vi e tornei a ver. Sou um homem rico de muitas imagens. Algumas ainda me atormentam em pesadelos; outras fazem-me sorrir. Colhi-as enquanto repórter. E como repórter aqui vo-las deixo. Afinal, foi por vós e para vós que as guardei.

Escrever sobre o que testemunhei é um trabalho que exige cautela, porque o tempo agrupa na memória os acon- tecimentos mais relevantes e apaga a escrita compacta dos dias. Se um jornalista não tiver cuidado, muito cuidado, ao relatar o que viu e viveu, arrisca-se a esquecer o que não lhe convém lembrar ou a pintar a metade do quadro que lhe diz respeito em tons cor-de-rosa e a metade dos outros com as cores sombrias de William Turner. Em vez disso, deve ape- nas cuidar dos factos, sempre os factos e ainda os factos, in- dependentemente da sua cor. Para me manter no caminho certo, conto com os cadernos que enchi com notas durante décadas e com as reportagens que fiz para a imprensa, a rá- dio e a televisão, e faço votos para que eles me encurralem na verdade ou, pelo menos, na verdade desses tempos.

Vou abordar apenas umas quantas das grandes reporta- gens que fiz ao longo de vinte anos. Porquê umas e não ou- tras? Porque algumas foram um marco no sempre inacabado

(3)

13

O LADO INVISÍVEL DO MUNDO

combate entre o jornalismo independente e o poder políti- co, em democracia; porque outras trataram temas premen- tes, que, sendo do passado, o são também da actualidade, e ainda porque dizem respeito a alguns sítios maravilhosos da Terra que a civilização, o turismo de massas e a poluição ainda não estragaram. Quanto à forma, o que escrevo só por acaso obedecerá a uma cronologia. Será, antes, como as cerejas da minha serra natal. Uma história puxará outra e nunca se sabe quantas virão no final. E poderá ainda acon- tecer que dentro de algumas histórias haja outras, como nas matrioscas russas. A primeira cereja — a que puxará pelas outras — serão as reportagens que fiz em África du- rante o ano de 1977.

(4)
(5)

15

1

UMA GLORIOSA MADRUGADA

«A minha jornada chegou ao fim;

abandono a Europa»

Arthur Rimbaud (Mauvais sang, 1873)

Volto costas a Paris e rumo a África, ao volante de um Land Rover em segunda mão que comprei em Birmingham.

O projecto da reportagem passa por cruzar o Mediterrâneo entre Algeciras e Ceuta, e continuar por Marrocos e pela Argélia, antes de atravessar o Sara, a solo. Do outro lado do deserto, quero percorrer a África Ocidental e a Austral, até Angola. Depois, ao fim de um ano, se tudo correr bem, se o jipe e eu aguentarmos e se o que for escrevendo me der di- nheiro para ir vivendo e continuar, logo se verá. Talvez um ano mais, até à África Oriental e a Moçambique, na peuga- da de Capelo e de Ivens. Mas, para já, agrada-me pensar, como Rimbaud, que ma journée est faite, je quitte l’Europe…

Nesta fria madrugada de Fevereiro de 1977, pouco sei sobre África, e quero saber tudo. Na juventude, ainda em Portugal, tinha ficado fascinado pelos livros de Ferreira de Castro, pelas narrativas de caça de Henrique Galvão e,

(6)

JOSÉ MANUEL BARATA-FEYO

16

mais tarde, pelas histórias contadas por amigos que tinham feito a guerra colonial. Já exilado em Paris, a estas impres- sões algo folclóricas tinha-se juntado a reflexão do grande africanista René Dumont1 sobre o mau caminho por onde a África enveredou após o surto das independências, nos anos 60.

Na actualidade, seguia atentamente o que as revistas e os jornais franceses escreviam sobre as suas ex-colónias e também sobre o andamento da guerra que Portugal trava- va nas frentes da Guiné, de Angola e de Moçambique. Mas sentia que, havendo de sobra declarações e comunicados oficiais, faltava a realidade dos povos africanos.

Esta misturada de informações, por vezes contraditó- rias, despertava em mim uma certa perplexidade e uma não menor curiosidade. Ambas eram exacerbadas pelas versões quase antagónicas sobre a colonização e a descolo- nização portuguesas, defendidas pelos políticos do pós- -25 de Abril, por um lado, e, pelo outro, pelos chamados

«retornados». A melhor solução para o problema, ainda que não a mais fácil, era ir ver. Sem óculos ideológicos de esquerda nem de direita, sem preconceitos. Ver para contar, a grande obsessão do repórter… Fui ver.

A França, de norte a sul, a Espanha, que surpreende, apesar de já saber que é surpreendente. A rádio noticia as discussões sobre a possibilidade da legalização do Partido Comunista Espanhol. Atrás de mim, a Europa mexe. À mi- nha frente, África. O ruído certinho do motor é uma boa companhia. Hoje, tenho 29 anos e começo a minha primeira grande reportagem.

1 L’Afrique noire est mal partie, Paris, Seuil, 1962.

(7)

17

O LADO INVISÍVEL DO MUNDO

O jipe porta-se bem, apesar da muita carga que trans- porta. Nas subidas tem dificuldade em chegar às 50 milhas (80 quilómetros) por hora, mas nas descidas consegue dar mais de 100 à hora. O lado bom da coisa é que, pelo menos, não corro o risco de levar uma multa por excesso de velo- cidade.

O porta-bagagem do tejadilho leva os pneus sobresse- lentes, amarrados com uma corrente e um sólido cadeado, e duas pranchas de alumínio e uma pá, para resolver pos- síveis «atascanços» nas areias do deserto. À frente, do lado do passageiro, tem um bidon rectangular com capacidade para 60 litros de água, equipado com uma torneira à qual posso ligar um tubo de plástico, para servir de duche. No interior, nas costas dos bancos, mandei instalar um reser- vatório suplementar para 250 litros de gasóleo. A água e o combustível, as duas grandes preocupações de quem vai atravessar o Sara. A par de não se perder, é claro.

A cabina propriamente dita está dividida em dois «cai- xotes», aparafusados ao chassis. No maior, segue a roupa, alguns livros, a máquina de escrever, duas bússolas, alguns guias do Sara e da África negra em geral, vários mapas, um filtro bacteriológico para água e uma pequena mala de pri- meiros socorros, preparada pela minha namorada, que por essa altura acabava Medicina em Paris.

O «caixote» mais pequeno, separado do outro por uma estreita passagem que me permite aceder ao fundo do jipe, foi reservado para a cozinha. É nele que assenta a tampa do maior, que é desdobrável e que me permite fazer uma cama. No «caixote» pequeno vai um camping-gás, uma modesta panela de pressão, uma fartura de patês, de latas de conservas e de sopas instantâneas, um valente queijo

(8)

JOSÉ MANUEL BARATA-FEYO

18

de Malpica, vindo de Portugal (que atravessou o Sara com garbo e um cheiro vigoroso), esparguete, arroz, chá, café, açúcar, sal, piripíri, mostarda e uma garrafa de azeite, bem acondicionada com cartão, para a proteger dos saltos do jipe.

Guardo a quase totalidade do meu dinheiro no cinto.

É um daqueles cintos com fecho-éclair no interior, onde posso esconder algumas notas bem dobradas. Anos mais tarde, já em Lisboa, esse mesmo cinto haveria de servir aos jornalistas da «Grande Reportagem» quando partiam para países de segurança duvidosa. Ainda hoje o tenho, não vá um milagre improvável lançar-me numa última reporta- gem… Dependurada no cinto tenho uma pequena bolsa de cabedal preto, que também guardo, onde conservo religio- samente o «coração burocrático» da viagem.

É um coração de várias nacionalidades. Essa circunstân- cia iria custar-me inúmeras horas de justificações em qua- se todas as vinte e oito fronteiras africanas que atravessei nesse ano. A carta de condução é internacional; até aí, tudo bem. Mas depois vá lá explicar-se a um aduaneiro africano porque é que eu, português com um passaporte português, tenho um certificado internacional de vacinas francês, um jipe matriculado em Inglaterra, com o volante à direita, um caderno de passagem nas alfândegas também francês e, para compor o ramalhete, um seguro automóvel suíço.2

Ceuta será a minha porta de entrada em África. Levarei três dias a chegar lá. Ainda há poucas auto-estradas e pro- curo evitá-las, por causa das portagens. Afinal, tempo não

2 Como os governos africanos eram avessos, ainda mais do que hoje, à presen- ça de jornalistas estrangeiros, o meu passaporte indicava que eu era professor, profissão inócua e até respeitável, em África.

(9)

19

O LADO INVISÍVEL DO MUNDO

me falta. Durmo no jipe, em estações de serviço, entre ca- miões e camionistas que me olham com curiosidade. Um deles é português e não quer acreditar que vou dar a vol- ta a África. Conversamos um pouco, à volta de um cigar- ro. Ele fuma SG Gigante, o tabaco que eu também fumava quando vivia em Portugal. No dia seguinte, está um maço de SG Gigante no assento do jipe, que ele atirou lá para dentro pela janela entreaberta.

Em Algeciras apanho um barco cheio de marroquinos que fazem uma grande algazarra em árabe, e duas horas depois estou em Ceuta. A cidade é para mim uma surpresa tão grande quanto a minha ignorância sobre ela. As placas das ruas, encimadas pelas armas de Portugal, têm nomes portugueses. Lá no alto da fortaleza, ao lado da bandei- ra espanhola, agita-se a bandeira de Lisboa, que afinal é também a de Ceuta. À beira do fosso navegável que corta o istmo ao meio, uma placa explica que os engenheiros mi- litares portugueses tinham criado ali a primeira ilha arti- ficial do mundo, em meados do século xv. No ombro, os soldados espanhóis têm um escudo com as Quinas.

No «Ofício de Turismo» arranjo uns vagos prospectos e uma pequena brochura, que desfazem parte do mistério.

Lá está a história de Ceuta desde a Antiguidade, com par- ticular ênfase na conquista da cidade pelos portugueses, comandados por D. João I e pelos filhos, a 21 de Agosto de 1415. A insistência dos espanhóis em manter os nomes por- tugueses explica-se pela teoria com que pretendem legiti- mar a soberania de Espanha sobre o enclave. Segundo eles, Ceuta não era árabe até ser conquistada por Tárique, em 711, e os portugueses limitaram-se a reconquistá-la para o Ocidente e a Cristandade.

Referências

Documentos relacionados

O trabalho de migrantes de Fagundes- PB nas usinas Maravilha e Santa Tereza, em Pernambuco aborda as mudanças estruturais do Sistema Capitalista, que atingem a questão do mercado

A taxa do ganho de umidade do arroz parboilizado, para os ensaios até 60°C, exibiram comportamento de absorção rápida no início do processo, divido em duas

 No século 7, nas regiões desérticas da Arábia, um mercador chamado Muhammad, conhecido no Brasil pelo nome de Maomé, começou a pregar uma nova religião monoteísta.. 

23 Twitch breaks records again in Q2, topping 5B total hours watched [https://techcrunch.com/2020/07/01/twitch-breaks-records-again-in-q2- topping-5b-total-hours-watched/]..

Disto pode-se observar que a autogestão se fragiliza ainda mais na dimensão do departamento e da oferta das atividades fins da universidade, uma vez que estas encontram-se

Em relação ao Currículo Tecnológico, McNeil (2001) afirma que a educação consiste na transmissão de conhecimentos, comportamentais éticos, práticas, sociais e

Aditamentos contratuais envolvendo aspectos técnicos, relacionados às obras ou serviços de engenharia, para que possa ser adequadamente efetivado, é imprescindível a atuação

Trabalhar com Blogs para auxiliar a aprendizagem de conteúdos matemáticos, ou desenvolver o pensamento geométrico com base nas técnicas de dobraduras não é algo